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História da filosofia - Nicola Abbagnano

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hist�ria da filosofia 1.rtf
História da Filosofia
Primeiro volume
Nicola A bbagnano
~DIGITALIZAÇÃO E ARRANJO:
ÂNGELO MIGUEL ABRANTES
HISTÓRIA DA FILOSOFIA
2.a Edição
VOLUME I
TRADUÇÃO DE:
ANTÓNIO BORGES COELHO 
FRANCO DE SOUSA 
MANUEL PATRÍCIO
EDITORIAL PRESENÇA
Título original
STORIA DELLA FILOSOFIA
PREFÁCIO DA PRIMEIRA EDIÇÃO
Esta História da Filosofia pretende mostrar a essencial humanidade dos filósofos. Ainda hoje perdura o preconceito de que a filosofia se afadiga com problemas que não têm a mínima relação com a existência humana e continua encerrada em uma esfera longínqua e inacessível aonde não chegam as aspirações e necessidades dos homens. E junto a este preconceito vem o outro, que é ser a história da filosofia o panorama desconcertante de opiniões que se sobrepõem -e contrapõem, privada de um fio condutor que sirva de orientação para os problemas da vida. Estes preconceitos são sem dúvida reforçados por aquelas orientações filosóficas que, por amor de um mal entendido tecnicismo, pretenderam reduzir a filosofia a uma disciplina particular acessível a poucos e assim lhe menosprezaram o valor essencialmente humano. Trata-se, todavia, de preconceitos injustos, fundados em falsas aparências e na ignorância do que condenam. Demomstrá-lo é a pretensão desta obra.
Parte ela da convicção de que nada do que é humano é alheio à filosofia e de que, ao contrário, esta é o próprio homem, que em si mesmo se faz problema e busca as razões e o fundamento do ser
que é o seu. A essencial conexão entre a filosofia e o homem é a primeira base da investigação historiográfica empreendida neste livro. Sobre tal base, esta investigação inclina-se a considerar a pesquisa que há 26 séculos os homens do ocidente conduzem acerca do próprio ser e do próprio destino. Através de lutas e conquistas, dispersões e retornos, esta pesquisa acumulou um tesouro de experiências vitais, que urge redescobrir e fazer reviver para além da indumentária doutrinal que muito frequentemente o oculta, ao invés de revelá-lo. E isto porque a história da filosofia é profundamente diferente da da ciência. As doutrinas passadas e abandonadas já não têm para a ciência significado vital; e as ainda válidas fazem parte do seu corpo vivo e não há necessidade de nos voltarmos para a história para apreendê-las e torná-las nossas. Em filosofia a consideração histórica é, ao invés, fundamental; uma filosofia do passado, se foi verdadeiramente uma filosofia, não é um erro abandonado e morto, mas uma fonte perene de ensinamento e de vida. Nela se encarnou e exprimiu a pessoa do filósofo, não apenas em o*, que tinha de mais, seu, na singularidade da sua experiência de pensamento e de vida, mas ainda nas suas relações com os outros e com o mundo em que viveu. E à pessoa devemos volver se queremos redescobrir o sentido vital de toda doutrina. Em cada uma de elas devemos estabelecer o centro em torno do qual gravitaram os interesses fundamentais do filósofo, e que é ao mesmo tempo o centro da sua personalidade de homem e de pensador. 'Devemos fazer reviver perante nós o filósofo na sua realidade de pessoa histórica se queremos compreender claramente, através da obscuridade dos séculos desmemorizados ou das tradições deformadoras, a sua palavra autêntica que pode ainda servir-nos de orientação e de guia.
Por isso não serão apresentados, em esta obra, sistemas ou problemas, quase substantivados e considerados como realidades autónomas, mas figuras ou pessoas vivas, serão feitas emergir da lógica da pesquisa em que quiseram exprimir-se e consideradas nas suas relações com outras figuras e pessoas. A história da filosofia não é o domínio de doutrinas impessoais que se sucedem desordenadamente ou se concatenam dialecticamente, nem a esfera de acção de problemas eternos, de que cada doutrina é manifestação contingente. É um tecido de relações humanas, que se movem no plano de uma comum disciplina de pesquisa, e que transcendem por isso os aspectos contingentes ou insignificantes, para se fundar nos essenciais e constitutivos. Revela a solidariedade fundamental dos esforços que procuram tornar clara, tanto quanto é possível, a condição e o destino do homem; solidariedade que se exprime na afinidade das doutrinas tanto como na sua oposição, na sua concordância tanto como na sua polémica. A história da filosofia reproduz na táctica das investigações rigorosamente disciplinadas a mesma tentativa que é a base e o móbil de todas as relações humanas: compreender-se e compreender. E reprodu-lo quando colhe êxitos como quando colhe desenganos, nas vicissitudes de ilusões renascidas como nas de clarificações orientadas, e nas de esperanças sempre renascentes.
A disparidade e a oposição das doutrinas perdem assim o seu carácter desconcertante. O homem tem ensaiado e ensaia todas as vias para compreender-se a si mesmo, aos outros e ao mundo. Obtém nisso mais ou menos sucesso. Mas deve e deverá renovar a tentativa, da qual depende a sua dignidade de homem. E não pode renová-la senão voltando-se para o passado e extraindo da história a ajuda que os outros podem dar-lhe para o futuro.
Eis por que não se encontrarão nesta obra críticas extrínsecas, que pretendem pÔr a claro os erros dos filósofos. A pretensão de atribuir aos filósofos lições de filosofia é ridícula, como a de fazer de uma determinada filosofia o critério e a norma de julgamento das outras. Todo o verdadeiro filósofo é um mestre ou companheiro de pesquisa, cuja voz nos chega enfraquecida através do tempo, mas pode ter para nós, para os problemas que ora nos ocupam, uma importância decisiva. Necessário é que nos disponhamos à pesquisa com sinceridade e humildade. Nós não podemos alcançar, sem a ajuda que nos vem dos filósofos do passado, a solução dos problemas de que depende a nossa existência individual e em sociedade. Devemos, por isso, propor historicamente esses problemas, e na tentativa para compreender a palavra genuína de Platão ou de Aristóteles, de Agostinho ou de Kant e de todos os outros, pequenos ou grandes, que hajam sabido exprimir uma experiência humana fundamental, devemos ver a própria tentativa de formular e solucionar os nossos problemas. O problema de o que nós somos e devemos ser é fundamentalmente idêntico ao problema de o que foram e quiseram ser, na sua substância humana, os filósofos do passado. A separação dos dois problemas tira ao filosofar o seu alimento e à história da filosofia a sua importância vital. A unidade dos dois problemas garante a eficácia e a força do filosofar e fundamenta o valor da historiografia filosófica. A história da filosofia liga simultaneamente o passado e o futuro da filosofia. Esta ligação é a essencial historicidade da filosofia.
Mas justamente Por isso a preocupação da objectividade, a cautela crítica, a investigação paciente dos textos, o apego às intenções expressas dos filóSOfos, não são na historiografia filosófica outros tantos sintomas de renúncia ao Weresse teorético,
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mas as provas mais seguras da seriedade do empenho teorético. Visto que a quem espera da investigação histórica uma ajuda efectiva, a quem vê nos fIlósofos do passado mestres e companheiros de pesquisa, não interessa falsear-lhes o aspecto, camuflar-lhes a doutrina, mergulhar-lhes na sombra traços fundamentais. Todo o interesse tem, ao invés, em reconhecer-lhes o verdadeiro rosto, assim como quem empreende uma viagem difícil tem interesse em conhecer a verdadeira índole de quem lhe serve de guia. Toda a ilusão ou engano é, neste caso, funesta. A seriedade da investigação condiciona e manifesta o empenho teorético.
É evidente, deste ponto de vista, que não se pode esperar encontrar na história da filosofia um progresso contínuo, a formação gradual de um único e universal corpo de verdade. Este progresso, tal como se verifica nas ciências, uma por uma, que uma vez implantadas nas suas bases se acrescentam gradualmente pela soma dos contributos individuais, -não pode encontrar-se em filosofia, uma vez que
não há aqui verdades objectivas e impessoais que possam tornar-se e integrar-se em um corpo único, mas pessoas que dialogam acerca do seu destino; e as doutrinas não são mais que expressões deste dialogar ininterrupto, perguntas e respostas que às vezes se respondem e se correspondem através dos séculos. A mais alta personalidade filosófica de todos os tempos, Platão, exprimiu na própria forma literária da sua obra-o diálogo-a verdadeira natureza do filosofar. Por outro lado, na história da filosofia não há, no emtanto, uma mera sucessão desordenada de opiniões que alternadamente se amontoam e destroem. Os problemas em que se verte o dialogar incessante dos filósofos têm uma lógica sua, que é a própria disciplina a que os filósofos livremente sujeitam a sua pesquisa: pelo que certas directivas persistem em dominar um
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período ou uma época histórica, porque lançam uma luz mais viva sobre um problema fundamental. Adquirem, então, uma impessoalidade aparente, que faz delas o património comum de gerações inteiras de filósofos (pense-se no agostinismo ou no aristotelismo durante a escolástica); mas em seguida declinam e apagam-se, e todavia a verdadeira pessoa do filósofo não mais se apaga, e Todos podem e devem interrogá-lo para dele tirar luz.
A história da filosofia apresenta deste modo um estranho paradoxo. Não há, pode dizer-se, doutrina filosófica que não tenha sido criticada, negada, impugnada e destruída pela crítica filosófica. Mas quem quereria sustentar que a obliteração definitiva de um só dos grandes filósofos antigos ou modernos não seria um empobrecimento irremediável para todos os homens? É que o valor de uma filosofia não se mede pelo quantum de verdade objectiva que ela contém, mas tão só pela sua capacidade de servir de ponto de referência (porventura somente polémico) a toda a tentativa de compreender-se a si e ao mundo. Quando Kant reconhece a Hume o mérito de o ter despertado do "sono dogmático" e de o ter encaminhado para o criticismo, formula de maneira mais imediata e evidente a relação de livre interdependência que enlaça conjuntamente todos os filósofos na história. Uma filosofia não tem valor enquanto suscita o acordo formal de UM Certo número de pessoas sob determinada doutrina, mas somente enquanto suscita e inspira nos outros aquela pesquisa que os conduz a encontrar cada qual o próprio caminho, assim como o autor nela encontrou o seu. O grande exemplo é aqui ainda o de Platão e de Sócrates: durante toda a sua vida procurou Platão realizar o significado da figura e do ensinamento de Sócrates, prosseguindo, quando era necessário, além do invólucro doutrinal em que estavam encerrados,- e
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desta maneira a mais alta e bela filosofia nasceu de um reiterado acto de fidelidade histórica.
Tudo isto exclui que na história da filosofia se possa ver somente desordem e sobreposição de opiniões; mas exclui, não obstante, que se possa ver nela uma ordem necessária dialecticamente concatenada, em que a sucessão cronológica das doutrinas equivalha ao desenvolvimento racional de momentos ideais constituindo uma verdade única que se mostre em sua plenitude no fim do processo. A concepção hegeliana faz da história da filosofia o processo infalível de formação de uma determinada filosofia. E assim suprime a liberdade da pesquisa filosófica, que é condicionada pela realidade histórica da pessoa que indaga; nega a problematicidade da própria história e faz dela um círculo concluso, sem porvir. Os elementos que constituem a vitalidade da filosofia perdem-se deste modo todos.
A verdade é que a história da filosofia é história no tempo, logo problemática; e é feita, não de doutrinas, ou de momentos ideais, mas de homens solidamente encadeados pela pesquisa comum. Nem toda a doutrina sucessiva no tempo é, só por isto, mais verdadeira que as precedentes. Há o perigo de se perderem ou esquecerem ensinamentos vitais, como frequentemente aconteceu e acontece; de onde decorre o dever de inquirir incessantemente do seu significado genuíno.
Obedece a este dever, dentro dos limites que me são concedidos, a presente obra. Que o leitor queira compreendê-la e julgá-la dentro deste espírito.
N. A.
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PREFÁCIO DA SEGUNDA EDIÇÃO
A segunda edição desta obra constitui uma actualização da primeira com base em textos ou documentos ultimamente publicados, em novas investigações historiográficas e em novos caminhos da crítica histórica ou metodológica. As partes que sofreram maiores revisões ou ampliamentos são as que concernem ' à lógica e à metodologia das ciências, à ética e à política. As investigações historiográficas contemporâneas voltam-se, de facto, preponderantemente para estes campos, obedecendo aos mesmos interesses que solicitam hoje a pesquisa filosófica. Aqui como ali a exigência de ter em conta os novos dados historiográficos e de apresentar todo o conjunto numa forma ordenada e clara tornou oportunas alterações de extensão ou de colocação dos autores tratados, em conformidade com certas constantes conceptuais que demonstraram ser mais activas, ou verdadeiramente decisivas, na determinação do desenvolvimento ou da eficácia histórica das filosofias. óbviamente, as maiores modificações teve que sofrê-las o desenvolvimento da filosofia contemporânea, no intuito de oferecer um sintético quadro de conjunto da riqueza e da variedade dos caminhos que hoje dis-
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putam o campo, e dos problemas em volta dos quais se concentram as discussões polémicas adentro de cada caminho.
Mas a estrutura da obra, os seus requisitos essenciais, as inscrições e os critérios interpretativos fundamentais não sofreram modificações substanciais, porque conservaram a sua validade. Às notas bibliográficas, embora acttualizadas, foi conservado o carácter puramente funcional de selecção orientadora para a pesquisa bibliográfica.
Agradeço a todos os que fizeram chegar até mim sugestões e conselhos e sobretudo aos amigos com quem discuti alguns pontos fundamentais do trabalho. A três deles, a quem mais frequentemente recorri, Pietro Rossi, Pietro Chiodi e Carlo A. Viano, tenho gosto em exprimir públicamente a minha gratidão.
Turim, Setembro de 1963.
N. A.
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PRIMEIRA PARTE
FILOSOFIA ANTIGA
ORIGENS E CARÁCTER DA FILOSOFIA GREGA
§ 1. PRETENSA ORIGEM ORIENTAL
Uma tradição que remonta aos filósofos judaicos de alexandria (século I a.C.) afirma que a filosofia derivou do Oriente. Os vrincivais filósofos da Grécia teriam extraído da doutrina hebraica, egípcia, babilónica e indiana não somente as descobertas científicas mas também as concepções filosóficas mais pessoais. Esta opinião divulgou-se progressivamente nos séculos seguintes; culminou na opinião do neo-pitagórico Numénio, que chegou a chamar a Platão um "Moisés ateicizante"; e passou dele aos escritores cristãos.
Contudo, não encontra ela qualquer fundamento nos testemunhos mais antigos. Fala-se, é verdade, de viagens de vários filósofos ao Oriente, especialmente pela Pérsia teria viajado Pitágoras; Demócrito, pelo Oriente; pelo Egipto, segundo testemunhos mais verosímeis, Platão. Mas o próprio Platão (Rep., IV, 435 e) contrapõe o espírito científico dos Gregos ao amor da utilidade, carac-
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terístico dos Egípcios e dos Fenicios; e assim exclui da mesma maneira clara a possibilidade de que se tenha podido e se possa trazer inspiração para a filosofia das concepções daqueles povos. Por outro lado, as indicações cronológicas que se têm sobre as doutrinas filosóficas e religiosas do Oriente são tão vagas, que estabelecer a prioridade cronológica de tais doutrinas sobre as correspondentes doutrinas gregas deve ter-se por impossível.
Mais verosímil se apresenta, à primeira vista, a derivação da ciência grega do Oriente. Segundo algumas opiniões, a geometria teria nascido no Egipto da necessidade de medir a terra e distribui-la pelos seus proprietários depois das periódicas inundações do Nilo. Segundo outras tradições, a astronomia teria nascido com os Babilónios e a aritmética no próprio Egipto, Mas
os Babilónios cultivaram a astronomia com vista às suas crenças astrológicas, e a geometria e a aritmética conservaram entre os Egípcios um carácter prático, perfeitamente distinto do carácter especulativo e científico que estas doutrinas revestiram entre os gregos.
Na realidade, aquela tradição, nascida tão tarde na história da filosofia grega, foi sugerida, numa época dominada pelo interesse religioso, pela crença que os povos orientais estivessem em poder de uma sabedoria originária e pelo desejo de ligar a tal sabedoria às principais manifestações do pensamento grego. Também entre os historiadores modernos a origem oriental da filosofia grega é defendida com cores que tendem a acentuar o seu carácter religioso e, de aqui, a sua continuidade com as grandes religiões do Oriente.
A observação decisiva que cumpre fazer a propósito é que, embora se presuma (pois que provas decisivas não existem) a derivação oriental de esta ou aquela doutrina da Grécia antiga, isto não implica ainda a origem oriental da filosofia grega.
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----A -sabedoria oriental é essencialmente religiosa: é ela o património de uma casta sacerdotal cuja única preocupação é a de defendê-la e transmiti-la na sua pureza. O único fundamento da sabedoria oriental é a tradição. A filosofia grega, ao invés, é pesquisa. Esta nasce de um acto fundamental de liberdade frente à tradição, ao costume e a toda a crença aceite como tal. O seu fundamento é que o homem não possui a sabedoria mas deve procurá-la: não é sofia mas filosofia, amor da sabedoria, perseguição directa no encalço da verdade para lá dos costumes, das tradições e das aparências. Com isto, o próprio problema da relação entre filosofia greco-cristã-oriental perde muito da sua importância.
Pode admitir-se como possível ou pelo menos verosímil que o povo grego tenha inferido, dos povos orientais, com os quais mantinha desde séculos relações e trocas comerciais, noções e haja encontrado o que esses povos conservaram na sua tradição religiosa ou haviam descoberto por via das necessidades da vida. Mas isto não impede que a filosofia, e em geral a investigação científica, se manifeste nos gregos com características originais, que fazem dela um fenómeno único no mundo antigo e o antecedente histórico da civilização (cultura?) ocidental, de que constitui ainda uma das componentes fundamentais. Em primeiro lugar, a filosofia não é de facto na Grécia o património ou o privilégio de uma casta privilegiada. Todo o homem, segundo os gregos, pode filosofar, porque o homem é "animal racional" e a sua racionalidade significa a possibilidade de procurar, de maneira autónoma, a verdade. As palavras com que inicia a Metafísica de Aristóteles: "Todos os homens tendem, por natureza, para o saber" exprimem bem este conceito, uma vez que "tendem" quer dizer que não só o desejam, mas
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que podem consegui-lo. 
 Em segundo lugar, e como consequência disto, a filosofia grega é investigação racional, isto é, autónoma, que não assenta numa verdade já manifestada ou revelada, mas somente na força da razão e nesta reconhece o seu guia. O seu limite polémico é habitualmente a opinião corrente, a tradição, o mito, para além dos quais intenta prosseguir; e até quando termina por uma confirmação da tradição, o valor desta confirmação deriva unicamente da força racional do discurso filosófico.
§ 2. FIlOSOFIA: NOME E CONCEITO
Estas características são próprias de todas as manifestações da filosofia grega e estão inscritas na própria etimologia da palavra, que significa "amor da sabedoria". A própria palavra aparece relativamente tarde. Segundo uma tradição muito conhecida, referida em as Tusculanas de Cícero (V, 9), Pitágoras teria sido o primeiro a usar a palavra filosofia em um significado específico. Comparava ele a vida às grandes festas de Olímpia, aonde uns convergiam por motivo de negócios, outros para participar nas corridas, outros ainda para divertir-se e, por fim, uns somente para ver o que acontece: estes últimos são os filósofos. Aqui está sublinhada a distinção entre a contemplação desinteressada própria dos filósofos e a azáfama interesseira dos outros homens. Mas a narrativa de Cícero provém de um escrito de Heraclides do Ponto (Dióg. L, Proemimm, 12) e pretende simplesmente acentuar o carácter contemplativo que foi considerado pelo próprio Aristóteles essencial à filosofia. Mas, na Grécia, a filosofia teve ainda o valor de uma sageza que deve guiar todas as acções da vida. Em tal sageza se haviam inspirado os Sete
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Sábios que, no entanto, eram também chamados "sofistas" como "sofista" era chamado Pitágoras. Não no sentido de contemplação, mas no sentido mais genérico de pesquisa desinteressada, usa Heródoto a palavra quando fez o Rei Creso dizer a Sólon. (Heródoto, J, 20); "Tenho ouvido falar das viagens que, filosofando, empreendeste para ver muitos países"; e da mesma forma Tucidides, quando (11, 40) fez dizer a Péricles de si e dos Atenienses: "Nós amamos o belo com simplicidade e filosofamos sem receio". O filosofar sem receio exprime a autonomia da pesquisa racional em que consiste a filosofia.
como veremos no tema posterior a palavra filosofia implica dois significados. O primeiro e mais geral é o de pesquisa autónoma ou racional, seja qual for o campo em que se desenvolva; neste sentido, todas as ciências fazem parte da filosofia. o Segundo significado, mais específico, indica uma pesquisa particular que de algum modo é fundamental para as outras mas não as contém. Os dois significados estão ligados nas sentenças de Heraclito (fr., 35 Díels): "É necessário que os homens filósofos sejam bons indagadores (historas) de muitas coisas". Este duplo significado encontra-se claramente em Platão onde o termo vem usado para indicar a geometria, a música e as outras disciplinas do mesmo género, sobretudo na sua função educativa (Teet., 143 d; Tím., 88 c); e por outro lado a filosofia vem contraposta à sofia, à sabedoria que é própria da divindade. e à doxa, à opinião, na qual se detém quem não se preocupa com indagar o verdadeiro ser (Fedr., 278 d; Rep.,
480 a). A mesma bivalência se acha em Aristóteles para quem a filosofia é, como filosofia prima, a ciência do ser enquanto ser; mas abrange, também em seguida, as outras ciências teoréticas, a matemática e a física, e até a ética (Ét. Nic., 1, 4,
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1906 b, ^31). Esta bivalencia de significado revela melhor do que qualquer outra coisa o significado originário e autêntico que os gregos atribuíam à palavra. Este significado está já incluído na etimologia, e é o de pesquisa. Toda a ciência ou disciplina humana, enquanto pesquisa autónoma, é filosofia. Mas é, logo a seguir, filosofia em sentido eminente e próprio a pesquisa que é consciente de si, a pesquisa que põe o próprio problema da pesquisa e esclarece por isso o seu próprio valor nas confrontações feitas pelo homem. Se toda a disciplina é pesquisa e como tal filosofia, em sentido próprio e técnico a filosofia é sómente o problema da pesquisa e do seu valor para o homem. É neste sentido que Platão diz que a filosofia é a ciência pela qual não sómente se sabe, mas se sabe ainda fazer um uso vantajoso do que se sabe (Eutid., 288 c-290 d). Aristóteles, por seu turno, acentua a supremacia da filosofia prima que é a metafisica nas confrontações com a filosofia segunda e terceira que são a física e a matemática. E num sentido análogo a filosofia é, para os Estóicos, o esforço (cpitedeusis) para a sabedoria (Sexto E. Adv. Math., IX, 13); para os Epicuristas é a actividade (enorgheia) que torna feliz a vida (lb., X1,
1 69). Em qualquer caso, a filosofia é um saber indispensável para o encaminhamento e a felicidade da vida humana.
§ 3. PRIMóRDIOS DA FILOSOFIA GREGA:
OS MITóLOGOS, OS MISTÉRIOS OS SETE SáBIOS, OS POETAS
Os primórdios da filosofia grega devem procurar-se na própria Grécia:(nos primeiros sinais, em que a filosofia como tal i, é, como pesquisa), começa a aparecer nas cosmologias míticas dos
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poetas, nas doutrinas dos
mistérios, nos apotDgrnas dos Sete Sábios e sobretudo na reflexão ético-política dos poetas.
Odocumento da cosmologia mítica mais antigo entre os gregos é a Teogonia de Hesíodo, na qual decerto confluíram antigas tradições. O próprio Aristóteles (Met., 1, 4; 984 b, 29) diz que Hesíodo foi, provàvelmente, o primeiro a procurar um princípio das coisas quando disse: "primeiro que tudo foi o caos, depois a terra de amplo seio... e o amor, que sobressai entre os deuses imortais" (Teog.,
116 sgs.). De natureza filosófica se apresenta aqui o problema do estado originário de que as coisas saíram e da força que as produziu, Mas se o problema é filosófico, a resposta é mítica. O caos ou abismo bocejante, a terra, o amor, etc. são personificados em entidades míticas.
Depois de Hesíodo, o primeiro poeta de quem conhecemos a cosmologia é Ferecides de Siros, contemporâneo de Anaximandro, nascido provàvelmente por alturas de 600-596 a.C.. Diz ele que primeiro que todas as coisas e desde sempre havia Zeus, Cronos e Ctonos. Ctonos era a terra, Cronos o tempo, Zeus o céu. Zeus transformado em Eros, ou seja no amor, procede à construção do Mundo. Há neste mito a primeira distinção entre a matéria e a força organizadora do mundo.
Observa-se uma ulterior afirmação da exigência filosófica na religião dos mistérios espalhados pela Grécia no dealbar do século VI a.C.. A esta religião pertenciam o culto de Dioniso, que vinha da Trácia, o culto de Deméter, cujos mistérios se celebraram em Elêusis, e sobretudo o orfismo.
O orfismo era também dedicado ao culto de Dioniso, mas punha em uma revelação a origem da autoridade religiosa e estava organizado em comunidades. A revelação era atribuída ao trácio ORFEu, que descera ao Hades; e a finalidade dos
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ritos que a comunidade celebrava era a de purificar a alma do Homem, iniciada para subtraí-la à "roda dos nascimentos", isto é, à transmigração para o corpo de outros seres viventes. O ensinamento fundamental que o orfismo contém- é o conceito da ciência e em geral da actividade do pensamento como um caminho de vida, ou seja como uma pesquisa que conduz à verdadeira vida do homem. Do mesmo modo devia depois conceber a filosofia Platão, que no Fédon se filia explicitamente nas crenças órficas.
Ao lado dos primeiros lampejos da filosofia na cosmologia do mito e nos mistérios está a primeira apresentação da reflexão moral na lenda dos Sete Sábios. São estes diversamente enumerados pelos escritores antigos, mas quatro deles, Tales, Bias, Pítaco e Sólon estão incluídos em todas as listas. Platão, que pela primeira vez os enumerou, acrescenta a estes quatro Cleóbulo, Míson e Chilon (Prot., 343 a). 
A eles se atribuem breves sentenças morais (de aí terem ainda sido chamados Gnomas), algumas das quais se tornaram famosas. A Tales se atribui a frase "Conhece-te a ti mesmo" (Dióg. L., 1, 40). A Bias a frase "a maioria é perversa" (1b., 1, 88) e esta outra "O cargo revela o homem" (Alist., Ét. Nic., V, 1,1029 b, 1). A Pítaco a frase "Sabe aproveitar a oportunidade" (Dióg. L.,
1, 79). A Sólon as frases "Toma a peito as coisas importantes" e "Nada em excesso" (1b., 1, 60,63). A Cleóbulo a frase "A medida é coisa óptima" (1b., 1, 93). A Míson a frase "Indaga as palavras a partir das coisas, não as coisas a partir das palavras" (1b., 1, 108). A Chílon as frases "Cuida de ti mesmo" e "Não desejes o impossível" (1b., I,
70). Como se vê, estas frases são todas de natureza prática ou moral e demonstram que a primeira reflexão filosófica na Grécia foi direita à sageza da vida mais do que à pura contemplação
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(ao contrário do que preferiu um Aristóteles). Estas frases preludiam uma verdadeira e peculiar investigação sobre a conduta do homem no mundo. E não é por acaso que o primeiro dos Sete Sábios, Tales, é ainda considerado o primeiro autêntico representante da filosofia grega.
Mas o clima em que pôde nascer e florescer a poesia e a reflexão filosófica grega foi preparado pela reflexão moral dos poetas que elaborou, na Grécia, conceitos fundamentais que deveriam servir aos filósofos
L para a ceito de uma
P
interpretação do mundo con
ão un lei que dá unidade ao mundo umano encontra-se pela primeira vez em Homero: Toda a Odisseia é dominada pela crença em úha lei de justiça, de que os deuses são guardiões e garantes, lei que determina uma ordem providencial nas vicissitudes humanas, pela qual o justo triunfo e o injusto é punido. Em Hesíodo esta lei vem personificada na Dikê, filha de Zeus, que tem assento junto do pai e vigia para que sejam unidos os homens que praticam a injustiça. A infracção a esta lei aparece no mesmo Hesíodo como arrogância (hybris) devida ao desenfreamento das paixões e em geral às forças irracionais: assim o qualifica o próprio Hesíodo (Os trabalhos e os dias, 252, segs., 267 segs.) e ainda o Arquíloco (fr. 36, 84), Mimnermo (fr. 9, ló) e Teógnis (v. 1. 40, 44, 291, 543, 1103). Sólon afirma com grande energia a infalibilidade da punição que fere aquele que infringe a norma de justiça, sobre que se funda a vida em sociedade: ainda quando o culpado se subtrai à punição, esta atinge infalivelmente os seus descendentes. A aparente desordem das vicissitudes humanas, pela qual a Moira ou fortuna parece ferir os inocentes, justifica-se, segundo Sólon (fr. 34), pela necessidade de conter dentro dos justos limites os desejos humanos descomedidos e de afastar o homem de qualquer excesso. De maneira que a lei de justiça é
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também norma de medida; e Sólon exprime num fragmento famoso (fr. 16) a convicção moral mais enraizada nos gregos: "A coisa mais difícil de todas é captar a invisível medida da sageza, a única que traz em si os limites de todas as coisas". Ésquilo é enfim o profeta religioso desta lei universal de justiça de que a sua tragédia quer exprimir o triunfo. Portanto, antes que a filosofia descobrisse e justificasse a unidade da lei por sob a multiplicidade dispersa dos fenómenos naturais, a poesia grega descobriu e justificou a unidade da lei por sob as vicissitudes aparentemente desordenadas e mutáveis da vida humana em sociedade. Veremos que a especulação dos primeiros físicos não fez mais do que procurar no mundo da natureza esta mesma unidade normativa, que os poetas haviam perseguido no mundo dos homens
§ 4. AS ESCOLAS FILOSóFICAS
Desde o início a pesquisa filosófica foi na Grécia uma pesquisa associada. Uma escola não reunia os seus adeptos somente pelas exigências de um ensino regular: não é provável que tal ensino tenha existido nas escolas filosóficas da Grécia antiga senão com Aristóteles. Os alunos de uma escola eram chamados "companheiros (etairoi). Juntavam-se para viver uma "vida comum" e estabeleciam entre si não só uma solidariedade de pensamento mas também de costumes e de vida, numa troca contínua de dúvidas, de dificuldades e de investigações. O caso da escola pitagórica, que foi ao mesmo tempo uma escola filosófica e uma associação religiosa e política, é certamente único; e por outro lado este traço do pitagorismo foi por isso mesmo mais uma fraqueza que uma força. Contudo, todas as grandes personalidades da filosofia grega são os funda-
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dores de uma escola que é um centro de investigação; a obra das personalidades menores vem juntar-se à doutrina fundamental e contribui para formar o património comum da escola.
Duvidou-se que tivessem formado uma escola os filósofos de Mileto; mas há para eles o testemunho explícito de Teofrasto que fala de Anaximandro como "concidadão e companheiro (etairos)" de Tales. O próprio Platão nos fala dos heraclitianos (Teet., 1792) e dos anaxagóricos (Crát.,
409 b); e em o Sofista <242d) o estrangeiro eleata fala da sua escola como ainda existente em Eleia. A Academia platónica teve portanto uma história de nove séculos.
Esta característica da filosofia grega não é acidental Já que a pesquisa filosófica não encerrava, segundo os gregos, o indivíduo em si próprio; exigia, bem ao contrário, uma
concordância de esforços, uma comunicação incessante entre os homens que dela faziam o objectivo fundamental da vida e determinava por isso uma solidariedade constante e efectiva entre os que a ela se dedicavam,.'
De aqui provém o interesse constante dos filósofos gregos pela política, isto é pela vida em sociedade. A tradição conservou-nos, notícia deste interesse mesmo na referência àqueles de cuja vida não nos dá mais que essas informações. Tales, Anaximandro e Pitágoras foram homens políticos. De Parménides se conta que deu as leis à sua cidade e de Zenão que pereceu vítima da tentativa para libertar os seus concidadãos de um tirano. Empédocles restaurou a democracia em Agrigento; Arquitos foi um chefe de estado e Melissos um almirante. O interesse político exercitou portanto, como veremos, uma função dominante na especulação de Platão.
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§ 5. PERÍODOS DA FILOSOFIA GREGA
O seu próprio carácter de pesquisa autónoma na qual cada um está igualmente empenhado e da qual pode e deve cada um esperar o cumprimento da sua personalidade, torna difícil dividir em períódos o curso da filosofia grega. Todavia, a organização da pesquisa nas escolas e as relações necessariamente existentes entre escolas contemporâneas, que, mesmo quando são polémicas, se batem em terreno comum, permitem distinguir, no curso da filosofia grega, um certo número de períodos, cada um dos quais determinado pela escolha de POSIÇãO no problema fundamental da pesquisa. Se considerarmos o problema em torno do qual virá sucessivamente gravitar a pesquisa, podem distinguir-se cinco períodos: cosmológico, antropológico, ontológico, ético, religioso.
1. Período cosmolÓgico que compreende a escolas pré-socráticas, com excepção dos sofistas,_ dominado pelo problema de perseguir a unidade que garante a ordem do mundo e a possibilidade do conhecimento humano
2. período antropológico que compreende os sofistas e Sócrates, é dominado pelo problema de perseguir a unidade do homem em si mesmo e com os outros homens, como fundamento e possibilidade da -formação do indivíduo e da harmonia da vida em sociedade
3. período lógico, que compreende Platão
e Aristóteles, é dominado pelo problema de perseguir na relação entre o homem e o ser a condição e a possibilidade do valor do homem como tal e da validade do ser como t.Este período, que é o da plena maturidade do pensamento grego, torna a propor na sua síntese os problemas dos dois períodos precedentes.
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4. O período ético, que compreende o estoicismo, o epicurismo, o cepticismo--C o eclectismo, é dominado pelo problema da conduta do homem e é caracterizado pela diminuta consciência do valor teorético da pesquisa.
5. O período religioso, que compreende as escolas neoplatónicas e suas afins, é dominado pelo problema de encontrar para o homem a via da reunião com Deus, considerada como a única via de salvação.
Estes períodos não representam rígidas divisões cronológicas: não servem para outra coisa que não seja para dar um quadro geral e resumido do nascimento, do desenvolvimento e da decadência da pesquisa filosófica na Grécia antiga.
§ 6. FONTES DA FILOSOFIA GREGA
As fontes da filosofia grega são constituídas: I. Pelas obras e fragmentos dos filósofos. Platão é o primeiro de quem -nos ficaram as obras inteiras. Temos muitas obras de Aristóteles. De todos os outros não nos ficaram mais que fragmentos mais ou menos extensos. 111. Pelos testemunhos dos escritores posteriores.
As obras fundamentais de que se extraem tais testemunhos são as seguintes:
a) No que respeita à filosofia pré-socrática são
precisas alusões conservadas nas obras de Platão e de Aristóteles.
Particularmente Aristóteles deu-nos no primeiro livro da Metafísica o primeiro ensaio de historiografia filosófica. Além disso, referências às outras doutrinas são muito frequentes em todos os seus escritos.
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b) Os doxógrafos, quer dizer, Os escritores pertencentes ao período tardio da filosofia grega, que referiram as opiniões dos vários filósofos. O primeiro destes doxógrafos, que é ainda fonte de quase todos os outros, é Teofrasto, autor das opiniões físicas de que nos resta um capítulo e outros fragmentos em o Comentário de Simplício (séc. VI d.C.) à Física de Aristóteles.
São ainda doxografias muito importantes: os Placita Philosophownena atribuídos a Plutarco e as Éclogas físicas de João Estobeu (séc. V d.C.). Provavelmente (como o demonstrou Diels) ambos bebiam na mesma fonte: os Placita de Aécio, que procediam por via indirecta, isto é, em segunda mão, das Opiniões de Teofrasto.
Outro doxógrafo é Cícero, que nas suas obras expõe doutrinas de numerosos filósofos gregos, porém todas conhecidas em segunda e terceira mão.
Para a biografia dos filósofos a mais importante doxografia é o primeiro livro da Refutação de todas as heresias de Hipólito (séc. III d.C.), que fora em primeiro lugar falsamente atribuída a Diógenes com o título de Philosophonmena. A obra de Diógenes Laércio (séc. III d.C.). Vidas e Doutrinas dos Filósofos, em 10 livros, que chegou inteira até nós, é de importância fundamental para a história do pensamento grego. Trata-se de uma história de cada uma das escolas filosóficas, segundo o método das chamadas Sucessões (Diadochai) que já tinha sido praticado por Socião de Alexandria (séc. II a.C.) e por outros cujas obras têm andado perdidas. A obra de Diógenes Laércio contém duas doxografias distintas: uma biográfica e anedótica, a outra expositiva. A parte biográfica é um amontoado de anedotas e de notícias acumuladas ao acaso; apesar disso contém informações preciosas.
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No que respeita à cronologia foi fundador desta Eratóstenes de Cirene (séc. III a.C.); mas as suas Cronografias foram suplantadas pela versão em trímetros jâmbicos que delas fez Apolodoro de Atenas (por volta de 140 a.C.) com o título de Crónica. A época de cada filósofo é indicada pela sua acmé ou florescimento que se faz coincidir com 40 anos de idade; e as outras datas são calculadas com referência a esta última.
Finalmente, outras indicações se colhem nas obras dos escritores que discutiram criticamente as doutrinas dos filósofos gregos. Assim Plutarco na sua polémica contra o estoicismo e o epicurismo, nos dá uma exposição destas doutrinas. Sexto Empírico assenta o seu cepticismo na critica e na exposição dos sistemas dogmáticos. E os escritores cristãos dos primeiros séculos, combatendo a filosofia pagã, fornecem-nos outras indicações em virtude das quais chegaram às nossas mãos fragmentos e testemunhos preciosos de obras que continuam perdidas. Outras colhem-se nos comentários de Proclo e de Simplício a Platão e a Aristóteles, nas Noites Á ticas. de Affio Gélio (por volta de 150 a.C.), em Ateneu (por volta de 200 a.C.) e em Eliano (ao redor de 200 a.C.).
NOTA BIBLIOGRÁFICA
§ 1. Sobre a pretensa origem oriental da filosofia grega: ZELLER, Philosophie der Griochen, cap. 2; GompERz, Griechische Denker, I, cap. 1-3, trad. frane., p. 103 segs.; BuRNET Earty Greek Philosophy, Intr. X-XII, trad. frane. com o título Aurore de Ia Phil. grecque, p. 17 segs. (Neste volume, ZELLER virá citado a 6.1 edição ao cuidado de Nestle; e de GomPERZ e BURNET as traduções francesas acima Indicadas). Para mais Indicações bibliográficas veja-se a longa nota acrescentada por Mondolfo à sua tradução
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Italiana da cit. ob. de ZELLER, Florença, 132, vol. 1, pág. 63-99.
§ 3. Os fragmentos dos mitólogos, dos Órficos e dos Sete Sábios ~o reunidos em DIEU, Fragmente der Vor8okratiker, 5.4 edição 1934, vol, I; SNELL, Leben und Meinungen der Sieber Wei8en. MiInchen, 1943. -KERN, Orphicorum fragmenta, Berlim, 1922: OuVHMI, La~lae auroae orphicae, Bona, 1915; ED., Civiltá greca nell'Italia meridionale, Nápoles, 1931; Orphei Hymni, edit. Gullermo Quandt, Berlim, 1941.
§ 4. Sobre o contributo da poesia para a elaboração dos Conceitos morais fundamentais: MAX WUNT, Gesch. der gricch. Ethik, Leipzig, 1908, vol. I, cap. 1-2; JAEGER, Pa~, tradução Italiana, Florença, 1936, livro I;
SNELL, Die Entdeckung des Geistee, trad. ital, La cultura greca e te origini del pe~ro europeo, Turim, 1951.
§ 5. Sobre a periodização da filosofia grega, vejam-se indicações bibliográficas na nota de Mondolfo a ZELLER, vol. I, pág. 375-384.
§ 6. Fragmentos: MULLACH, Fragmenta philosophorum graecorum, 3 vol., Paris, 1860, 1867, 1881; DIELS, Poêtarum philosophorum fragmenta, Berlim,
1901. Os fragmentos dos pré-socráticoa: DIELS. Die Fragmente der V<>r8okratiker, 5.1 edição, ao cuidado de KrsÈn , Berlim, 1R34. - DAL PRA, La atoriografia filosofica antica, Milão, 19W.
Os doxógrafos foram recolhidos e comentados por DIELS, Doxographi Gracci, Berlim, 1879, que contém as obras, ou os fragmentos de obras, de Aécio (Plutarco-"tobeu) Ario Didimo, Teofrasto, Cícero (livro I do De %atura deorum), FIlodemo, Mpólito, Plutarco, Epifâneo, Galeno, Hermias.
Sobre as fontes da fil. grega: UEBERWEG-PRAECHTER, PhiJ. der Altertums, Berlim, 1926, 5 4.; Mondolfo em 7--- , vol. I, p. 25-33.
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III
A ESCOLA JÓNICA
1. CARÁCTER DA FILOSOFIA PRÉ-SOCRÁTICA
A filosofia pré-socrática até aos sofistas é dominada pelo problema cosmológico, mas não exclui o homem da sua consideração; mas no homem vê somente uma parte ou um elemento da natureza, não ainda o centro de um problema específico. Para os pré-socráticos, os mesmos princípios que explicam a constituição do mundo físico, explicam a construção do homem. O reconhecimento do carácter especifico da existência humana é-lhes alheio e alheio é, por Isso, o problema do que o homem é na sua subjectividade como princípio autónomo da pesquisa. O escopo da filosofia pré-socrática é o de pedir e reconhecer, para lá das aparências múltiplas e continuamente mutáveis da natureza, a unidade que faz da própria natureza um mundo: a única substância que constitui o seu ser, a única lei que regula o seu devir. A substância é para os pré-socráticos a matéria de que todas as
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coisas se compõem; mas é, também a força que explica a sua composição, do seu nascimento, a sua morte, e a sua perpétua mudança. 'Ela é princípio não só no sentido de explicar a sua origem mas ainda e sobretudo no sentido que torna inteligível e reconduz à unidade aquela sua multiplicidade e mutabilidade que aparece à primeira observação tão rebelde a toda a consideração unitária. Do que deriva o carácter activo e dinâmico que a natureza, a physis, tem para os pré-socráticos: ela não é a substância na sua imobilidade, mas a substância como princípio de acção e de inteligibilidade de tudo o que é múltiplo e em devir. Do que deriva ainda o chamado hilozoísmo dos pré-socráticos: a convicção implícita de que a substância primordial corpórea tinha em si uma força que a fazia mover e viver.
A filosofia pré-socrática, não obstante a simplicidade do seu tema especulativo e o primitivismo materialista de muitas das suas concepções, adquiriu pela primeira vez para a especulação a possibilidade de conceber a natureza como um mundo e pôs como fundamento desta possibilidade a substância, concebida como princípio do ser e do devir. Ora- que estas conquistas respeitem exclusivamente ao mundo físico é um facto indubitável; mas é igualmente indubitável que elas arrastam consigo, pelo menos implicitamente, outras tantas conquistas que concernem ao mundo próprio do homem e à sua vida interior. O homem não pode voltar-se para a investigação do mundo como objectividade, sem tornar-se consciente da sua subjectividade; o reconhecimento do mundo como outro em relação a si é condicionado pelo reconhecimento de si como eu; e reciprocamente. O homem não pode dirigir-se à investigação da unidade dos fenómenos externos, se não sentir o valor da unidade na sua vida e nas suas relações com os outros homens.
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O homem não pode reconhecer uma substância que constitua o ser e o princípio das coisas externas senão enquanto reconhecer semelhantemente o ser e a substância da sua existência individual ou em sociedade. A investigação dirigida para o mundo objectivo está sempre unida à investigação dirigida para o mundo próprio do homem. Esta conexão torna-se clara em Heraclito. O problema do mundo físico é por ele posto em unidade essencial com o problema do eu; e toda a conquista naquele campo se lhe apresenta condicionada pela investigação dirigida para si mesmo. "Estudei-me a mim mesmo" diz ele (fr. 101, Diels). À excepção de Heraclito, todavia, o problema para que intencionalmente se dirige a pesquisa dos pré-socráticos é o problema cosmológico: tudo o que a pesquisa dirigida para este problema implica no homem e para o homem continua inexprimido e caberá ao período seguinte da filosofia grega trazê-lo à luz. O carácter de uma filosofia é determinado pela natureza do seu problema; e não há dúvida que o problema dominante na filosofia pré-socrática seja o cosmológico.
A tese apresentada pelos críticos modernos (em contraposição polémica com a de Zeller, do puro carácter naturalista da filosofia pré-socrática) de uma inspiração mística de tal filosofia, inspiração de que ela teria trazido a sua tendência para considerar antropomorficamente o universo físico, funda-se em aproximações arbitrárias que não têm base histórica. Esta tese encontra por outro lado as suas origens na última fase da filosofia grega, que, para a sua inspiração religiosa, quer fundar-se numa sabedoria revelada e garantida pela tradição, e precisamente daquela fase recolhe os testemunhos sobre que se funda a pouca, verosimilhança que possui. Mas é sabido que neopitagóricos, neoplatónicos, etc., fabricavam os testemunhos que deviam servir para demonstrar o carácter religioso, tradi-
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cional das suas doutrinas. E é impossível basear todo o desenvolvimento da filosofia grega nos seus próprios pressupostos: especialmente quando o mérito mais alto dos primeiros filósofos da Grécia foi o de terem isolado um problema específico e determinado o problema do mundo, saindo da confusão caótica de problemas e de exigências que se entrelaçavam nas primeiras manifestações filosóficas dos poetas e dos profetas mais antigos.
---Os filósofos pré-socráticos realizaram pela primeira vez aquela redução da natureza à objectividade, que é a primeira condição de toda consideração científica da natureza;! e esta redução é exactamente o oposto da confusão entre a natureza e o homem, que é própria do misticismo antigo. Que a pesquisa naturalista implique o sentido da objectividade espiritual ou contribua para o formar, é pois (como se disse) um facto indubitável; mas este facto não é devido a um influxo religioso sobre a filosofia; bem ao contrário é urna conexão que os problemas realizam na própria vida dos filósofos que os debatem.
§ 8. TALES
O fundador da escola jónica é Tales de Mileto, contemporâneo de Sólon e de Creso. A sua acmè, quer dizer o seu nascimento deve remontar a 624-23; a sua morte faz-se cair em 546-45. ,.Tales foi homem político, astrónomo, matemático e físico, além de filósofo-Como homem político, incitou os gregos da Jónia, como narra Heródoto (1, 170), a unirem-se num estado federal com capital em Teo. Como astrónomo, predisse um eclipse solar (provavelmente o de 28 de Maio de
585 a.C.). Como matemático, inventou vários teoremas de geometria. Como físico, descobriu as
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propriedades do iman. A sua fama de sábio continuamente absorto na especulação é testemunhada pela anedota referida por Platão (Teet., 174 e), que, observando o céu, caiu a um poço, suscitando as risadas de uma criadita trácia. Uma outra anedota referida por Aristóteles (Pol., 1, 11, 1259a) tende, ao invés, a evidenciar a sua habilidade de homem de negócios: prevendo uma belíssima colheita de azeitonas, alugou todos os lagares da região e subalugou-os depois a um preço mais elevado aos próprios donos. Trata-se, provavelmente, de anedotas falsas referidas a Tales mais como a um símbolo e incarnação do sábio que como a uma pessoa. Assim a última (como o próprio Aristóteles observa) procura demonstrar que a ciência não é inútil, mas que em
regra os sábios não se servem dela (como poderiam fazê-lo) para enriquecer.
Não parece que tenha deixado escritos filosóficos. Devemos a Aristóteles o conhecimento da sua doutrina fundamental (Met., 1, 3, 983b, 20): "Tales diz que o princípio é a água, pelo que --sustentava ainda que a terra está sobre a água; considerava, talvez, prova disso ver que o alimento de todas as coisas é húmido e que até o quente se gera e vive no húmido; ora aquilo de que tudo se gera é o principio de tudo, Pelo que se ateve a tal conjectura, e ainda por terem os gérmens de todas as coisas uma natureza húmida e ser a água nas coisas húmidas o princípio da sua natureza". Observa Aristóteles que esta crença é antiquíssima. Homero contou que Oceano e Tétis são os princípios da geração. Um só argumento, pois, apresenta Aristóteles como próprio de Tales: que, a terra está sobre a água: e água é aqui substância no seu significado mais simples, como aquilo que está sob (subiectum) e sustém. Um outro argu-
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mento (a geração pelo húmido) é adoptado tão só como provável; é talvez conjectura de Aristóteles. Tales imaginava unida à água uma força activa, vivificadora e transformadora: neste sentido, possivelmente, é que ele dizia que "tudo está pleno de Deus" e que o íman tem uma alma porque atrai o ferro.
§ 9. ANAXIMANDRO
Concidadão e contemporâneo de Tales, Anaximandro nasceu em 610-609 (tinha 64 anos quando em 547-46 descobriu a obliquidade do Zodíaco). Foi ainda homem político e astrónomo. É o primeiro autor de escritos filosóficos na Grécia;` a sua obra em prosa Acerca da natureza marca uma etapa notável na especulação cosmológica dos jónicos..Foi ele o primeiro a designar a substância única com o nome de principio (arché e reconhecia este principio não na água ou no ar ou em qualquer outro elemento particular, mas no infinito (ápeiron), isto é, na quantidade infinita da matéria, de que todas as coisas tiram a sua origem e em que todas as coisas se dissolvem quando termina o ciclo que lhe foi estabelecido- por uma lei necessária.' Este princípio infinito engloba, e governa tudo; é por si próprio imortal e indestrutível, divino por conseguinte.' Não o concebe ele como uma amálgama (migma) dos vários elementos corpóreos em que estes estejam compreendidos cada um com as suas qualidades peculiares; mas preferentemente como uma matéria em que os elementos não estão ainda distintos e que por isso, além de infinita, é ainda indefinida (a<)riston) (Diels, Ma).
Estas determinações representam já um desenvolvimento e um enriquecimento da cosmologia de Tales. Em primeiro lugar, o carácter indeterminado
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da substância primordial, que não se identifica com nenhum dos elementos corpóreos, na medida em que permite conceber melhor a derivação destes elementos como outras tantas especificações e determinações dela, imprime na substância todas as características de verdadeira e própria corporeidade, e faz dela uma simples massa quantitativa ou extensa. Sendo a corporeidade de facto ligada à determinação dos elementos particulares, o ápeiron não pode distinguir-se destes senão nos seres privados das determinações que constituem a sua corporeidade sensível e por isso na redução ao infinito espacial. Embora não possa encontrar-se em Anaximandro o conceito de um espaço incorpóreo, a indeterminação do ápeiron, reduzindo-o à espacialidade, faz dele necessariamente um corpo determinado somente pela sua extensão. Ora esta extensão é infinita e como tal englobante e governo do todo (Diels, A15). Estas determinações e sobretudo a primeira fazem da ápeiron uma realidade distinta do mundo e transcendente: aquilo que abraça está sempre fora e para além do que é abraçado, ainda que em relação com ele. " O princípio que Anaximandro estabelece como substância originária -merece pois o nome de "divino". A própria exigência da explicação naturalista Conduz Anaximandro a uma primeira elaboração filosófica do transcendente e do divino, pela primeira vez subtraído à superstição e ao mito, mas o infinito é ainda aquilo que governa o mundo: é por conseguinte, não só a substância como também a lei do mundo. 
Primeiro que todos, Anaximandro propôs-se o problema do processo por meio do qual as coisas derivam da substância primordial. Esse processo é a separação. (A substância infinita é animada por um eterno movimento, em virtude do qual se separam dela os contrários: quente e frio, seco e húmido, etc,1 Por meio desta separação geram-se
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os mundos infinitos, que se sucedem segundo um _,_Ciclo eterno. em todo o mundo, o tempo do nascimento, da duração e da morte está marcado. "Todos os seres têm de pagar uns aos outros o castigo da sua injustiça, segundo a ordem do tempo"] (fr. 1,
Diels). Aqui a lei de justiça que Sólon -considerava dominadora do mundo humano, lei que prova a prevaricação e a prepotência, torna-se lei cósmica, lei que regula o nascimento e a morte dos mundos. Mas que injustiça é essa que todos os seres cometem e que todos têm que exprimir? Evidentemente, ela é devida à própria constituição e portanto ao nascimento dos seres, uma vez que nenhum deles pode evitá-la não podendo assim subtrair-se ao castigo. Ora o nascimento é, como se viu, a separação dos seres da substância infinita. Evidentemente, esta separação é a ruptura da unidade, que é própria do infinito; é o suceder da diversidade, e portanto do contraste, lá onde existiam a homogeneidade e a harmonia. É na separação que se determina, pois, a condição própria dos seres finitos: múltiplos diversos e contrastantes entre si, pois que inevitavelmente destinados a pagar com a morte o seu próprio nascimento e a regressar à unidade.
Mau grado a distância dos séculos e a escassez das informações remanescentes podemos ainda dar-nos conta, por estes indícios, da grandeza da personalidade filosófica de Anaximandro. Ele fundou a unidade do mundo, não só na unidade da substância, como ainda na unidade da lei que o governa. E viu nesta lei não uma necessidade cega, mas uma forma, de justiça. A unidade do problema cosmológico com o problema humano aflora aqui: Heraclito irá iluminá-la plenamente.
Todavia, a própria natureza da substância priinordial conduz Anaximandro a admitir a infinidade dos mundos. Viu-se que infinitos mundos se
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sucedem segundo um ciclo eterno; mas os mundos são também infinitos contemporaneamente no espaço ou tão só sucessivamente no tempo? Um testemunho de Aécio inclui Anaximandro entre os que admitem mundos inumeráveis que circundam de todos os lados aquele que habitamos; e um testemunho análogo nos dá Simplício, que coloca, ao lado de Anaximandro, Leucipo, Demócrito e Epicuro (Diels, A 17). Cícero (De nat. deor., ]L 10.25), copiando Filodemo, autor de um tratado sobre a religião que se encontrou em Herculano, diz: "A opinião de Anaximandro era que aqueles são divindades que nascem, crescem e morrem a longos intervalos e que estas divindades são mundos inumeráveis". Na realidade é difícil negar que Anaximandro tenha admitido uma infinidade espacial dos mundos pois que se o infinito engloba todos os mundos, deve então ser pensado para além não de um só mundo, mas de outro e ainda de outro.] Só nos confrontos de infinitos mundos pode compreender-se a infinidade da substância primordial, que tudo abraça e transcende. Anaximandro considera de maneira original a forma da terra: esta é um cilindro que paira no meio do mundo sem ser sustentada por coisa alguma, visto que, encontrando-se a igual distância de todas as partes, não é solicitada por nenhuma destas a mover-se. Quanto aos homens, não são eles os seres originários da natureza. Efectivamente não sabem alimentar-se por si, e não teriam, por isso, podido sobreviver se houvessem nascido da primeira vez como nascem agora. É forçoso que hajam tido origem de outros animais. Nasceram dentro dos peixes e depois de terem sido alimentados, tornados capazes de se protegerem a si mesmos, foram lançados fora e encaminharam-se para terra. Teorias estranhas e primitivas, mas que mostram
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maneira mais firme a exigência de procurar uma explicação puramente naturalista do mundo e de se ater aos dados da experiência.
§ 10. ANAXÍMENES
Anaxímenes de Mileto, mais jovem do que Anaximandro e talvez seu discípulo, floresceu por volta de 546-45 e morreu entre 528-25 (63.a Olimpíada).como Tales, reconhece como princípio uma
matéria determinada, que é o ar; mas atribui a esta matéria as características do princípio de Anaximandro. 
Via ainda no ar a origem de todas as coisas: "Assim como a nossa alma, que é ar, nos sustém, assim o sopro e o ar circundam o mundo inteiro" (fr. 2, Diels). 
O mundo é como um animal gigantesco que respira: e a respiração é a sua vida e a sua alma. Do ar nascem todas as coisas que são, que foram e que Serão, e até os deuses e as coisas divinas. O ar é o princípio do movimento de todas as coisas.
 
Anaxímenes diz-nos ainda o modo como o ar determina a transformação das coisas: este modo é o duplo processo de rarefacção e da condensação: Rarefazendo-se o ar torna-se fogo; condensando-se torna-se vento, depois nuvem e, condensando-se mais, água, terra e em seguida pedra. Até o calor e o frio se devem a esse processo: a condensação produz o frio, a rarefacção o calor.
Como Anaximandro, Anaximenes admite o devir "Cíclico do mundo; de onde a sua disolução periódica no princípio originário e a sua periódica regeneração a partir dele.
Mais tarde a doutrina de Anaxímenes foi defendida por Diógenes de Apolónia, contemporâneo de Anaxágoras. A acção que Anaxágoras atribuía à inteligência, atribuía-a Diógenes ao ar, que tudo
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invade e, que, com alma e sopro (pneuma) cria nos animais a vida, o movimento e o pensamento. Por conseguinte, o ar é, segundo Diógenes, incriado, iluminado, inteligente e regula e domina tudo.
§ 11. HERACLITO
A especulação dos jónios culmina na doutrina de Heraclito, que pela primeira vez acomete o próprio problema da pesquisa e do homem que a institui. Heraclito de Éfeso pertence à nobreza da sua cidade; foi contemporâneo de Parménides e floresceu como ele por alturas de 504-01 a.C. É autor de uma obra em prosa que foi depois designada com o título habitual Acerca da natureza, constituída por aforismos e sentenças breves e lapidares, nem sempre claras, donde o apelido de "obscuro". 
O ponto de partida de Heraclito é a constatação do incessante devir das coisas. O mundo é um fluxo perpétuo: "Não é possível descer duas vezes no mesmo rio nem tocar duas vezes numa substância mortal no mesmo estado, pois que, pela velocidade do movimento, tudo se dissipa e se recompõe de novo, tudo vem e vai" (fr. 91, Diels). A substância, que é o princípio do mundo, deve explicar o devir incessante justamente por meio da extrema mobilidade; Heraclito reconhece-a no fogo. mas pode dizer-se que o fogo perde, na sua doutrina, todo o carácter corpóreo: é um princípio activo, inteligente e criado "Este mundo, que é o mesmo para todos, não foi criado por qualquer dos deuses ou dos homens, mas foi sempre, é e será fogo eternamente vivo que com ordem regular se acende e com ordem regular se extingue" (fr. 30, Diels). A mudança é, por isso, uma saída do fogo ou um
regresso ao fogo. "Todas as coisas se trocam pelo
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fogo e o fogo troca-se por todas, como o ouro se troca pelas mercadorias e as mercadorias pelo ouroi" (fr. 90, Diels).
As afirmações de que "este mundo" é eterno e de que a mudança é uma incessante troca pelo fogo excluem evidentemente o conceito. que os Estóicos atribuíram a Heraclito, de uma conflagração universal, em virtude da qual todas as coisas regressariam ao fogo primitivo. De facto, a troca incessante entre as coisas e o fogo não implica que todas se convertam em fogo, tal como a troca entre as mercadorias e o ouro não implica que todas se convertam em ouro.
Mas estes fundamentos de uma teoria da natureza são apresentados por Heraclito como o resultado de uma sabedoria difícil de alcançar-se e oculta à maior parte dos homens. Nas palavras que abriam o seu livro, Heraclito, lamentava que os homens não obstante terem escutado o logos, a voz da razão, se esqueçam dele nas palavras e nas acções, pelo que não sabem o que fazem no estado de vigília, como não sabem o que fazem no estado ",de sono (fr. 1, Diels). E ao, longo de toda a obra corria a polémica contra a sageza aparente dos que sabem muitas coisas, mas não têm inteligência de nenhuma: sageza a que se opõe a pesquisa dos filósofos, que essa sim incide sobre objectos múltiplos (fr. 35, Diels), mas recolhe-os todos em unidade (fr. 41, Diels).
Héraclito é verdadeiramente o filósofo da pesquisa. Nele, pela primeira vez, a pesquisa filosófica alcança a clareza da sua natureza e dos seus pressupostos. Por alguma razão a própria palavra filosofia é usada eclassificada no seu justo sentido.
 segundo Heraclito, a própria natureza impõe a pEsquisa: com efeito ela "gosta de ocultar-se." (fr. 123, Diels). Ele vê abrir-se à pesquisa o mais vasto horizonte: "Se não esperares,
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não acharás o inesperado, porque não se Pode achar e é inacessível" (fr. 18, Diels). Mas não se esconde a dificuldade e o risco da pesquisa: "Os que procuram ouro escavam muita terra, mas encontram pouco metal" (fr. 22, Diels)._detémse especialmente nas condições que a tornam possível primeira delas é que o homem examina-se a si mesmo."Procurei-me a mim mesmo", diz ele (fr. 101, Diels). A pesquisa dirigida ao mundo
natural é condicionada pela clareza que o homem pode alcançar a respeito do ser que lhe é próprio. A pesquisa interior revela profundidades infinitas: "Tu não encontrarás os confins da alma, caminhes o que caminhares, tão profunda é a sua razão" (fr. 45, Tiels). A pesquisa interior abre ao homem zonas sucessivas de profundidade, que jamais se esgotam: a razão, a lei última do eu, aparece continuamente mais além, em uma profundidade sempre mais longínqua e ao mesmo tempo sempre mais íntima.
Mas esta razão, que é a lei da alma, é ao mesmo tempo lei universal. A segunda e fundamental condição é a comunicação entre os homens: O pensamento é comum a todos segundo Heraclito, (fr. 113, Diels). "É necessário seguir o que é comum a todos porque o que é comum é geral" (fr. 2, Diels). "Quem quiser falar com inteligência deve fortalecer-se com o que é comum a todos, como a cidade se fortalece com a lei, e muito mais. Porque todas as leis humanas se alimentam da única lei divina e esta doutrina tudo o que quer, basta a tudo e tudo supera" (fr. 114 Diels).[O homem deve pois
dirigir a pesquisa não só para si mesmo, mas também, e com o mesmo movimento, para aquilo que o liga aos outros, o logos que constitui a mais profunda essência _(;homem individual é ainda o que liga os homens entre si numa comunidade de natureza., Este logos é como a lei para a cidade, mas
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é ele próprio a lei, lei suprema que tudo rege: o homem individual, a comunidade dos homens e a natureza externa. Ele é, portanto, não só a racionalidade mas o próprio ser do mundo: tal se revela em todos os aspectos da pesquisa.
"Heraclito põe constantemente defronte do homem -a alternativa entre o estar acordado e o dormir:!
entre o abrir-se, mediante a pesquisa, à comunicação inter-humana, que revela a realidade autêntica do mundo objectivo: e o fechar-se no próprio pensamento isolado, num mundo fictício que não tem comunicação com os outros (fr. 2, 34, 73; 89).
O sono é o isolamento do indivíduo, a sua incapacidade de compreender a si mesmo, os outros e o mundo. A vigília é a pesquisa vigilante que não se detém nas aparências, que alcança a realidade da consciência, a comunicação com os outros, e a substância do mundo na única lei (logos) que rege o todo. Esta alternativa estabelece o valor decisivo que a pesquisa possui para o homem. Ela não é só pensamento (noesis) mas também sabedoria da vida (fronesis); ela determina a índole do homem, o ethos, que é o seu próprio destino (fr. 119).
Mas Heraclito determinou ainda esta lei de que a pesquisa deve clarificar
e aprofundar o significado. Ela é já para os antigos a grande descoberta de Heraclito; isso nos atesta Ffion (Rer. Div. Her.,
43): "0 que resulta dos dois contrários é uno, e se o uno se divide, os contrários aparecem. Não é este o princípio que, conforme afirmam os gregos justamente, o seu grande e celebérrimo Heraclito colocava à cabeça da sua filosofia, o princípio que a resume toda e de que ele se gabava como sendo uma nova descoberta?" . A grande descoberta de Heraclito é, pois, que a unidade do princípio criador não é uma unidade idêntica e não exclui a luta, a discórdia, a oposição. Para compreender a lei suprema do ser, o logos que o constitui e
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governa, é necessário unir o completo e o incompleto, o concorde e o discorde, o harmónico e o dissonante (fr. 10), e dar-se conta de que de todos os opostos brote a unidade e da unidade saem os opostos. "É a mesma coisa o vivo e o morto. o acordado e o dormente, o jovem e o velho: pois que cada um destes opostos transformando-se, é o primeiro" (fr. 88). Como na circunferência todo o ponto é ao mesmo tempo princípio e fim, como o mesmo caminho pode ser percorrido para cima e para baixo (fr. 103, 60), assim todo o contraste supõe uma unidade que constitui o significado vital e racional do próprio contraste. 00 e é oposto une--se e o que diverge conjuga-se". A luta é a regra do mundo e a guerra é comum geradora e senhora de todas as coisas".
Nestas afirmações está contido o ensinamento fundamental de Heraclito, de cujo ensinamento ele deduz que os homens não podem elevar-se senão Por meio de uma longa pesquisa "Os homens não sabem como o que é discorde está em acordo consigo mesmo: harmonia de tensões opostas, como as do arco e da lira" (fr. 51). Como as cordas do arco e as da lira se retesam para reunir e estreitar ao mesmo tempo as extremidades opostas, assim a unidade da substância primordial liga pelo logos os opostos sem os identificar, bem ao contrário opondo-os. A harmonia não é para Heraclito a síntese dos opostos a conciliação e o anulamento das suas oposições; é antes a unidade que submete precisamente as oposições e a torna possível. A Homero, que dissera: "Possa a discórdia desaparecer de entre os deuses e de entre os homens", Heraclito replica: "Homero não se apercebe que pede a destruição do universo; se a sua prece fosse atendida, todas as coisas pereceriam" (Diels, A22): A tensão é uma unidade (isto é, uma relação) que pode
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encontrar-se somente entre coisas opostas enquanto opostas. A conciliação, a síntese anulá-la-iam.
unidade própria do mundo é, segundo Heraclito, uma tensão deste género: não anula nem concilia nem supera o contraste, mas fá-lo existir, e fá-lo compreender, como contraste.
Hegel viu em Heraclito o fundador da dialéctica e afirmou que não havia proposição de Heraclito que ele não tivesse acolhido na sua lógica (Geschichte der Phil., ed. Gockler, I. p. 343). Mas Hegel interpretava a doutrina heraclitiana da tensão entre os opostos como conciliação ou harmonia dos próprios opostos. Segundo Heraclito, os opostos estão unidos, é certo, mas nunca conciliados: o seu estado permanente é a guerra. Segundo Hegel, os opostos estão continuamente conciliados e a sua conciliação é também a sua "verdade". Heraclito não é um filósofo optimista que considera (como Hegel) a realidade em paz consigo mesma. É um filósofo por tendência pessimista e amargo (por alguma razão a tradição o representava como "chorão": Hipólito, Refut., 1, 4; Séneca, De Ira, 11, 10, 5, etc.) que considera um sonho ou uma ilusão ignorar a luta e a discórdia de que todas as coisas são constituídas e vivem.
NOTA BIBLIOGRÁFICA
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19a4; CHERNISS, Aristot&s Criticim of Pr"ocratic Philosophy, Baltimore, 1935; REY, La jeunesse de Ia science grecque, Paris, 1933; GOVOTri, I pre-aocratici, Nápoles, IgU; MADDALENA, Sulla cosmoZogia ionica
50
da Tauto ad Bracuto, pdd", 1%0. A &kterp~O ~ca da filosofia, pré~rãUca foi sustentada por C.~ JOEL, Der Ure~g der Naturph~10 gw dom ~to der My&ttk, lena, lgW; M., Ge~cht# der asfikes Phi~Me, J Tubinga, IM. Mo particularmente importantes: STzNzEL, Die M~phyaik doe Altertuino, M6naco, 1931; JAEGER, Pa~, 3 VOL, trad. ltal., Florença; 1936-59, ID., The Theology of the Barly &reek Ph~hera, Oxford, 1947; GIGON, Der Uroprung der G~hiochen Phfk8~e. Von H~ bis Porme~, Basilela, 1945; G. S. ~-J. E. RAvEN, The Pnesocratic Ph~hem. A Crit~ H~V with a Setec~ of Texts, Cambridge, 1957.
§ S. Os fragmentos de Talco in Dm^ cap. li. -
Sobre Talco além das obras citado : D. R. Dims in "Classical Quarterly>, 1950.
9. Oa fragmentos de Anaximandro in DMU,
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1912; C. ~N, A. and the 011~ of Greek Co~ Jogy, Nova Iorque, 1960.
§ 10. Os fragmentos de Anaxímenes in DM CaP- 13.-ZELLEP-MSTLE, 1, 315 ~.; Gom~ I,
62 sega.; BuRNET, 76 sega.
Os fragmentos de Diõgenes in D=, cap. 64. -zP-T.T -NEMx, 1, 338 segs.; Gom~, 1, 390 seg.; BuRNET, 406 segs.
§ li. Os fragmentos de Heraclito in DiEu, cap. 22-72ri-Ta -NMix, 1, 783 sego.; -GomPERz, 1,
6 segs.; BuRNzT, 145 sega.; STENzEL, artig:o na Encicl~a Pauly-Wissowa-Kro11; WALzER; Braclito (frag. e trad. ltal.), Florença, 1939. Uma Interpretação em sentido exístencialista-heidegge~o é a de BRECHT, H~it, Heidelber^ 1936. Um Heraclito criatianizante é apresentado por M~NTINI, Braclito,
51
Turim. 1944; KIRK, Irire in the Cos~g" Spoculat" of Heraclitu&, Mlanneapolls, 1940; HeracUtu8: The Coismic Fragments, 1954; RAus=NBERGzR, Parmen~ und Heraklit, Heidelberg, 1941; DnZER, Weltbild und Sprwhe in Reraklitismus, In "Neue lMld der Antike>, 1942; A. JEANNnM, La pensée d'HdracUte d'Ephè6e, Paris, 1959; H. QUIRING, H., Berlim, 1959; P. H. WHEELWRIGHT, H., Princeton, 1959.
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lu
A ESCOLA PITAGÓRICA
§ 12. PITÁGORAS
A tradição complicou com tantos elementos lendários a figura de Pitágoras que se torna difícil delineá-la na sua realidade histórica. Os apontamentos de Aristóteles limitam-se a poucas e simples doutrinas, referidas as mais das vezes não a Pitágoras mas em geral aos pitagóricos; e se a tradição se enriquece à medida que se afasta no tempo do Pitágoras histórico, isto é sinal evidente que se enriquece com elementos lendários e fictícios, que pouco ou nada têm de histórico.
Filho de Mnesarco, Pitágoras nasceu em Samos, provavelmente em 571-70, veio para a Itália em
532-31 e morreu em 497-96 a.C.. Diz-se que fora discípulo de Ferecides de Siros e de Anaximandro e que viajou pelo Egipto e pelos países do Oriente. 56 é certo que emigrou de Samos para a Grande Grécia e arranjou casa em Crotona onde fundou uma escola que foi também uma associação religiosa e política. A lenda representa Pitágoras
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como profeta e operador de milagres, a sua doutrina ter-lhe-ia sido transmitida directamente do seu deus protector. Apolo, pela boca da sacerdotisa de Delfos Temistocleia Aristósseno in Dióg. L.. VM, 21).
É muito provável que Pitágoras não tenha escrito nada. Aristóteles não conhece, com efeito, nenhum escrito seu; e a afirmação de Jâmblico (Vida de Pít., 199) de que os escritos dos primeiros Pitagóricos até Filolau teriam sido conservados como segredo da escola, vale só como uma prova do facto de que ainda mais tarde não se possuíam escritos autênticos de Pitágoras anteriores a Filolau. Pelo que é muito difícil reconhecer no pitagorismo a parte que pertence ao seu fundador. Uma única doutrina pode com toda a certeza ser-lhe atribuída - (a da sobrevivência da alma depois da morte e à sua transmigração para outros corpos) -----"Segundo esta doutrina, de que se apoderou Platão '(Górg., 493a), o corpo é uma prisão para a alma,
que aqui foi
encerrada pela divindade para seu castigo. Enquanto a alma estiver no corpo, tem necessidade dele porque só por seu intermédio pode sentir; mas quando estiver fora dele vive num mundo superior uma vida incorpórea nu __e se purificou durante a vida corpórea, a alma regressa a esta vida; no caso contrário, retoma depois da morte a cadeia das transmigrações.
§ 13. A ESCOlA DE PITÁGORAS -- A Escola de Pitágoras foi uma associação religiosa é política além de filosófica; Parece que a admissão na sociedade estava subordinada a provas rigorosas e à observância de um sigilo de vários anos. Era necessário absterem-se de certos alimentos (carne, favas) e observar o celibato. Além disso,
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nos graus mais elevados os Pitagóricos viviam em plena comunhão de bens. Mas o fundamento histórico de todas estas notícias é bastante inseguro. Muito provavelmente, o pitagorismo foi uma das muitas seitas que celebravam mistérios a cujos iniciados era imposta uma certa disciplina e certas regras de abstinência, que não deviam ser pesadas. 
O carácter político da seita determinou uma revolução Contra o governo aristocrático, tradicional nas cidades gregas da Itália meridional, a que davam o seu apoio os Pitagóricos, levantou-se um movimento democrático que provocou revoluções e tumultos. Os Pitagóricos transformaram-se em objecto de perseguições: a sede da sua escola foi incendiada, eles mesmos foram massacrados ou fugiram; e só tempos depois os exilados puderam regressar à pátria. É provável que Pitágoras tenha sido forçado a trocar Crotona pelo Metaponto justamente devido a tais movimentos inssurreccionais.
Após a dispersão das comunidades itálicas temos conhecimento de filósofos pitagóricos fora da Grande Grécia. O primeiro deles é Filólau. que era contemporâneo de Sócrates e de Demócrito e viveu em Tebas nos últimos decénios do século V. No mesmo período coloca Platão Timeu de Locres, do qual nem sabemos com segurança se se trata de uma personagem histórica. Na segunda metade do século IV o pitagorismo assumiu nova importância política através da obra de Arquitas, senhor de Tarento, de quem foi hóspede Platão durante a sua viagem à Grande Grécia. Depois de Arquitas a filosofia pitagórica parece ter-se extinguido até na Itália. Junta-se ao pitagorismo, embora não tenha sido (como há quem diga) discípulo de Pitágoras, o médico de Crotona Aleméon, que repete algumas das doutrinas típicas do pitagorismo; mas é sobretudo notável por ter considerado o cérebro o órgão da vida espiritual do homem.
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A doutrina dos pitagóricos tinha essencialmente carácter religioso. Pitágoras apresenta-se como o depositário de uma sabedoria que lhe foi transmitida pela divindade; a esta sabedoria não podiam os seus discípulos trazer nenhuma modificação, mas deviam permanecer fiéis à palavra do mestre (ipse dixit). Além disso, eram obrigados a conservar o segredo e por esta razão a escola se cobria de mistérios e de símbolos que ocultam o significado da doutrina aos profanos.
§ 14. A METAFÍSICA DO NÚMERO
A doutrina fundamental dos Pitagóricos é que a Substância das coisas é o número. Segundo Aristóteles (Met., I, 5)os Pitagóricos, que haviam sido os primeiros a fazer progredir a matemática, acreditariam que os princípios da matemática eram os -princípios de todas as coisas; e uma vez que os
princípios da matemática são, os números, parece-lhes ver nos números, mais do que no fogo, na terra ou no ar, muitas semelhanças com as coisas que são ou que devem. Aristóteles considera, por isso, que os Pitagóricos atribuíram ao número a função de causa material que os jónios atribuíam a um elemento corpóreo: o que é sem dúvida nenhuma uma indicação precisa para compreender o significado do pitagorismo, mas não é ainda suficiente para torná-lo claro.
Na realidade, se os jónios recorriam a uma substância corpórea para explicar a ordem do mundo, os Pitagóricos fazem dessa própria ordem a substância do mundo---O número como substância do mundo é a hipótese da ordem mensurável e A grande descoberta dos Pitagóricos, dos fenómenoS a descoberta que lhes determina a importância na história da ciência ocidental, consiste precisamente
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na função fundamental que eles reconheceram à medida matemática para compreender a ordem e a unidade do mundo. Veremos que a última fase do pensamento platónico é dominada pela mesma preocupação: encontrar a ciência da medida que é simultaneamente o fundamento do ser em si e da existência humana. Primeiro que todos, os Pitagóricos deram expressão técnica à aspiração fundamental do espírito grego para a medida, aspiração que Sólon exprimia dizendo: "A coisa mais difícil de todas é captar a invisível medida da sageza, a única que traz em si os limites de todas as coisas". Como substância do mundo, o número é o modelo originário das coisas (lb., 1, 6, 987 b, 10) pois que constitui, na sua perfeição ideal, a ordem nelas implícita.
O conceito de número como ordem mensurável permite eliminar a ambiguidade entre significado aritmético e significado espacial no número pitagórico, ambiguidade que dominou as interpretações antigas e recentes do pitagorismo. Aristóteles diz que os Pitagóricos trataram os números como grandezas espaciais (1b., XIII, 6, 1080b. 18) e alega ainda a opinião de que as figuras geométricas são os elementos substanciais de que consistem os corpos _,Ib., VII, 2, 1028b, 15). "s seus comentadores vão ainda mais longe, sustentando que os Pitagóricos consideraram as figuras geométricas como princípios da realidade corpórea e reduziram estas figuras a um conjunto de pontos, considerando os pontos como unidades extremas (Alexandre, -20r sua vez, co
In met., 1, 6, 687b, 33, ed. Bonitz, p. 41). E alguns intérpretes recentes insistem em conservar o significado geométrico como o único que permite compreender o princípio pitagórico de que, no fim de contas, tudo é composto de números.
Na verdade, se por número se entende a ordem mensurável do mundo, o significado aritmético e o
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significado geométrico aparecem fundidos, uma vez que a medida supõe sempre uma grandeza espacial ordenada, logo geométrica, e ao mesmo tempo um número que a exprime" Pode dizer-se que o verdadeiro significado do número pitagórico está expresso naquela figura sacra, a tetraktys, por que os Pitagóricos tinham o hábito de jurar e que era a seguinte:
A tetraktys representa o número 10 como o triângulo que tem o 4 como lado. A figura constitui, portanto, uma disposição geométrica que exprime um número ou um número expresso numa disposição geométrica: o conceito que ela pressupõe é o da ordem mensurável.
- Se o número é a substância das coisas, todas as disposições das coisas se reduzem a oposições --,)entre números.' Ora a oposição fundamental das coisas com respeito à ordem mensurável que constitui a sua substância é a de limite e de ilimitado: o limite, que torna possível a medida, e o ilimitado que a exclui. A esta oposição corresponde a oposição fundamental dos números, par e ímpar: o ímpar corresponde ao limite, o par ao ilimitado. E, com efeito, no número ímpar a unidade díspar constitui o limite do processo de numeração, enquanto no número par este limite falta e o processo fica, por conseguinte, inconcluso. A unidade é, pois, o par/ímpar visto que o acrescentamento dela torna par o ímpar e o ímpar o par. À oposição do ímpar e do par, correspondem nove outras oposições fundamentais e resulta daí a lista seguinte: 1.o Limite, ilimitado; 2.<' ímpar, par; 3.O Unidade, multiplicidade, 4.O Direita, esquerda, 5.1> Macho, fêmea;
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6.o Quietude. movimento; 7.o Recta, curva; 8.o Luz, trevas; 9.o Bem, mal; 10.- Quadrado, rectângulo.
O limite, isto é, a ordem, é a perfeição; por isso, tudo o que se encontra do mesmo lado na série dos opostos é bom, o que se encontra do outro lado é mau. Os Pitagóricos pensam, todavia, que a luta entre os opostos se concilia por meio de um princípio de harmonia; e a harmonia, como vínculo dos mesmos

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