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573 oxigenadores do Direito Civil, especialmente à luz da boa-fé objetiva. É que não faz sentido prejudicar o terceiro de boa-fé (diligente, sério e cuidadoso) que, em confiança e com as necessárias cautelas, adquiriu um direito cuja perfeita regularidade era evi- dente (embora não real). Tal situação importaria verdadeiro caos, em total instabilida- de, nas relações sociais, especialmente nos negócios de compra e venda. Em página magistral, ALBERTO TRABUCCHI analisa a questão, em capítulo bem intitu- lado La tutela dell’affidamento (ou seja, a tutela da confiança), concluindo, a partir dos novos paradigmas norteadores do Direito Civil, que “as exigências da vida impõem uma aplicação mais humana e menos rígida dos dogmas e princípios e, dentro dessa linha, no Direito moderno, aprecia-se o fato de que também criar aparências de rea- lidade contratual ou permitir que estas se criem implica o nascimento de situações que, como consequência imediata, não devem prejudicar os que, no mundo negocial, confiam nessas aparências, dignas de crédito. A proteção da boa-fé baseia-se, especial- mente, nessa valoração objetiva das situações, quando o interessado tinha motivos para fiar-se nas aparências”.217 Trata-se da aplicação da teoria da aparência também em sede de negócios jurídicos, evidenciando ser pertinente elastecer as soluções jurídicas contempladas no Código Civil para outras hipóteses (é o caso do herdeiro aparente, em que se protege o terceiro adquirente de boa-fé, como se extrai do art. 1.828 do Código Civil). Em última análise, inclusive, a consagração da tutela do direito aparente (pelo ad- quirente de boa-fé) traz como pano de fundo a própria exigência de um comportamento ético pelos contratantes (boa-fé objetiva). 11.1 Advertência prévia Lamentavelmente, é do senso comum estabelecer uma (simplória) relação implica- cional entre a ilicitude civil e a ilicitude penal, como se os fatos ilícitos, necessariamen- te, tivessem de caracterizar, concomitantemente, um crime ou uma contravenção penal. Em uma compreensão mais aprofundada sobre o tema, no entanto, sobreleva escla- recer que a ilicitude civil é categoria autônoma e independente e que, consequentemen- te, nem todo fato ilícito civil repercutirá no âmbito do Direito Penal. De igual modo, é preciso desvincular o fato ilícito da responsabilidade civil, desatre- lando os institutos. Com efeito, a responsabilidade civil (isto é, o dever de indenizar da- nos causados a terceiros) é um dos efeitos possíveis decorrentes da ilicitude, mas não é, com toda convicção, a sua causa ou origem. Não há, pois, uma correlação necessária entre a ilicitude civil e a responsabilidade civil: a obrigação de reparar danos poderá ser a consequência de determinados fatos ilícitos, mas não será de todos. 217 VELOSO, Zeno. Invalidade do negócio jurídico, op. cit., p. 296. 574 Por outro turno, a responsabilidade civil poderá decorrer de fatos rigorosamente líci- tos, evidenciando a inexistência de relação implicacional. Bastaria lembrar as hipóteses de responsabilidade objetiva previstas na legislação, nas quais o dever de reparar prejuí- zos poderá defluir de condutas lícitas, como no âmbito do Direito Ambiental e do Direito do Consumidor. Outrossim, podemos lembrar da hipótese mencionada nos arts. 929 e 930 da Codificação Reale, reconhecendo o dever de reparar danos causados a terceiros em estado de necessidade. Exemplificando: se um motorista, para se livrar de alguém que dirige em contramão de direção, descamba para o acostamento e derruba um muro ou cerca pertencente a terceiro, haverá o dever de reparar o dano, com direito regressivo em relação ao causador do perigo, apesar de a conduta ser reconhecida como lícita, nos termos do art. 188, II, do próprio Código.218 Prosseguindo na exemplificação, o art. 1.285 da Lei Civil estabelece o dever de reparar os danos causados ao dono de um prédio pelo vizinho que exerce o seu direito de passagem forçada, obtendo acesso à via pública.219 Nessa ordem de ideias, infere-se, com tranquilidade, a distinção entre os conceitos de ilicitude e de responsabilidade civil e, sobretudo, a autonomia conceitual dos con- tornos do fato ilícito. É que, “ainda que a maioria dos ilícitos civis importe em dever de indenizar, isso, decerto, não pode servir como escusa para que se lance as demais espécies (de fatos ilícitos) para debaixo do tapete”, como leciona FELIPE PEIXOTO BRAGA NETTO.220 Enfim, é impertinente correlacionar a ilicitude e a responsabilidade civil, de maneira a encapsular um conceito no outro.221 Dúvida inexiste de que é possível um fato ilícito sem gerar o dever de indenizar e, por igual, também se detecta responsabi- lidade civil decorrente de condutas lícitas. O fato ilícito nada mais é do que o fato antijurídico, isto é, aquele acontecimento cujos potenciais efeitos jurídicos são contrários ao ordenamento jurídico. É o motorista que dirige acima da velocidade permitida, abalroando um automóvel de terceiro, ou o pai que aplica a um filho um castigo imoderado (atentando, assim, contra o art. 1.634 do Código Civil). Em ambos os casos, haverá um fato ilícito. Fixada essa premissa, não se pode olvidar, ademais, que os contornos dogmáticos da ilicitude são, sem dúvida, dos mais genéricos de toda a ciência jurídica, em virtude de se espalhar por todos os ramos do Direito, convivendo harmonicamente o ilícito civil, o ilícito penal, o ilícito administrativo, o ilícito processual, o ilícito eleitoral etc. 218 A jurisprudência já teve oportunidade de reconhecer a tese em caso bastante semelhante: “A empresa cujo preposto, buscando evitar atropelamento, procede a manobra evasiva que culmina no abalroamento de outro veículo, causando danos, responde civilmente pela reparação, ainda que não se configure na espécie, a ilicitude do ato, praticado em estado de necessidade” (STJ, Ac. 4a T., REsp. 124.527/SP, Rel. Min. Aldir Passarinho Jr., RSTJ 143: 362). 219 CC, art. 1.285: “O dono do prédio que não tiver acesso à via pública, nascente ou porto, pode, mediante pagamento de indenização cabal, constranger o vizinho a lhe dar passagem, cujo rumo será judicialmente fixado, se necessário”. 220 BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Teoria dos ilícitos civis, op. cit., p. 14. 221 Em sentido inverso, ao nosso viso equivocadamente, MARIA HELENA DINIZ conceitua o fato ilícito como aquele “praticado em desacordo com a ordem jurídica, violando direito subjetivo individual”, com prejuízo a outrem, e “criando o dever de reparar tal prejuízo (art. 927), seja ele moral ou patrimonial” (Curso de Direito Civil Brasileiro, op. cit., p. 456). 575 11.2 Noções conceituais O Código Civil de 2002, no seu art. 186, apresentou uma concepção subjetiva de ilicitude, como se pode notar: Art. 186, Código Civil: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”. Com isso, não é difícil definir o fato ilícito como a violação de uma obrigação ju- rídica preexistente imposta ao agente. Enfim, é a transgressão a um dever jurídico, imposto a alguém. De modo simplificado, percebe-se que a ilicitude nasce, fundamentalmente, de uma contrariedade ao direito, por se configurar em situações nas quais é detectada uma vio- lação da ordem jurídica. Esse é o seu dado objetivo. Complementando a noção fun- damental de ilicitude, detecta-se, ainda, a presença de um outro elemento, agora de índole subjetiva: a imputabilidade do agente, que diz respeito à capacidade de compreen- são do caráter ilícito da conduta que se pratica. É a chamada culpa lato sensu. A partir dessas breves referências, já será razoável compreender o fato ilícito como “todo fato, conduta ou evento, contrário a direito que seja imputável a alguém com capa- cidade delitual (= de praticarato ilícito)”, nas palavras de MARCOS BERNARDES DE MELLO.222 Como se nota, a ilicitude civil se refere a toda e qualquer conduta (comissiva ou omissiva), culposa, praticada por pessoa imputável que, violando um dever jurídico (imposto pelo ordenamento jurídico ou por uma relação negocial), cause prejuízo a outrem, implicando em efeitos jurídicos. Por isso, bem percebe SÉRGIO CAVALIERI FILHO que o ato ilícito é “o ato voluntário e consciente do ser humano, que transgride um dever jurídico”.223 Acrescente-se que o ilícito civil pode decorrer da transgressão de um dever jurídico originado de duas diferentes fontes: (i) pode resultar de um dever proveniente direta- mente do sistema jurídico, seja de normas-regras ou de normas-princípios; (ii) pode, ainda, resultar de um dever emanado da própria vontade individual manifestada em negócio jurídico. Fixando: embora produza, fundamentalmente, os mesmos efeitos, o ilícito civil extracontratual deflui da violação a um dever jurídico imposto pela lei, enquanto o ilícito civil contratual decorre da afronta a uma obrigação estipulada em sede negocial (contratual). Por isso, no ilícito contratual a culpa do agente é presumida, enquanto no ilícito aquiliano tem de ser provada pela vítima. Em qualquer hipótese, para o reconhecimento do fato ilícito é imprescindível com- provar a presença de alguns elementos essenciais, que podem ser sintetizados: (i) a conduta do agente (comissiva ou omissiva) contrária ao ordenamento jurídico; (ii) a culpa (lato sensu, abarcando, a um só tempo, o dolo, e a culpa strito sensu, caracterizada pela 222 MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do Fato Jurídico: Plano da Existência, op. cit., p. 206. 223 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil, op. cit., p. 22. 576 imprudência, negligência e imperícia); (iii) o dano causado a terceiro (de ordem patrimo- nial ou não patrimonial);224 (iv) o nexo de causalidade entre a conduta culposa e o prejuízo imposto ao ofendido. Observe-se, porque necessário, que a culpa (como evidencia o art. 186 do Código de 2002) é elemento do ato ilícito genericamente tratado, explicitando uma concepção subjetiva de ilicitude. Trata-se de um erro de conduta, intencional ou não, afrontando a norma jurídica, seja uma regra ou um princípio. Pouco interessa, a propósito, o grau dessa culpa, se grave, leve ou levíssima. 11.3 Efeitos jurídicos decorrentes da ilicitude Dúvida inexiste de que o fato ilícito produz consequências, efeitos, no âmbito jurídico. De saída, sobreleva evidenciar a existência de uma gama infinita de efeitos jurídicos potenciais decorrentes da ilicitude. Se o fato ilícito é um acontecimento contrário ao ordenamento jurídico, certamente, o próprio sistema jurídico poderá reconhecer dife- rentes consequências à prática desse comportamento desconforme a ordem jurídica. Bem por isso, é necessário perceber a multiplicidade de espécies de fatos ilícitos a partir de sua eficácia, embora esse critério não seja único. Trilhando essas pegadas, vale relembrar a premissa fundamental: nem todo fato ilícito gera a responsabilização civil do agente, com o dever de reparar o dano causado, seja in natura ou através de indenização pecuniária. Não se chegue, pois, à falsa conclu- são de que a responsabilidade civil somente surge do fato ilícito e de que toda ilicitude implicará em responsabilidade civil. Lembre-se que é possível a responsabilização civil do agente até mesmo em decorrência de condutas lícitas, nas hipóteses, por exemplo, de responsabilidade objetiva, nas quais não se discute a licitude da conduta, mas ape- nas o resultado lesivo – objetivamente considerado. Há de se reconhecer, então, uma pluralidade de consequências para o fato jurídico, amplamente considerado. Dele podem advir efeitos indenizantes, caducificantes, invalidan- tes ou autorizantes, dentre outros. Em primeiro plano, o mais comum de todos os efeitos da ilicitude, seguramente, é a obrigação de reparar o dano causado a outrem. Isto é, a classificação mais comum da ilicitude é indenizante. Bastaria imaginar a veiculação de uma notícia falsa, atentatória à honra e à dignidade de alguém, através de veículo de imprensa. Na hipótese, o efeito decorrente da prática do ato ilícito será o dever de reparar o dano moral causado. Por outro turno, se um dos genitores, no exercício do poder familiar, aplicar ao fi- lho um castigo imoderado, consistente em retirá-lo do ensino fundamental, praticará um ato ilícito, cujo efeito será a possibilidade de destituição ou suspensão do poder 224 A Súmula 37 do Superior Tribunal de Justiça estabelece, dando aplicação prática à previsão constitucional, que “são cumuláveis as indenizações por dano material e dano moral oriundos do mesmo fato”. 577 familiar do pai. Equivale a dizer, haverá um efeito caducificante decorrente do ilícito, sem existir, contudo, qualquer dever de reparar o dano. Seguindo a trilha, vale lembrar, ademais, que será ilícito o contrato tendente ao transporte de substância entorpecente. Considerando que, no caso, o transportador tenha cumprido a sua obrigação, não será possível a execução do contrato porque o seu objeto é ilícito, gerando a invalidade absoluta do negócio jurídico, como reza o art. 166 do Código Civil. Aqui, tem-se um ilícito invalidante, sem qualquer efeito indenizatório. Noutra dimensão, em um contrato de doação, se o donatário (o beneficiário) se comportar de forma ingrata, ignóbil, contra o doador, será possível a revogação da doação por ingratidão, como sinaliza o art. 557 da Lei Civil. Nesse caso, a prática da ilicitude (a ingratidão do donatário)225 autoriza o doador a revogar a doação, evidenciando um efeito bastante distinto da indenização. Como pontua FELIPE PEIXOTO BRAGA NETTO, “no ilícito autorizante, o ordenamento relaciona ao ilícito uma autorização que, sem o ilí- cito, não existiria”.226 Essa breve lista dos efeitos da ilicitude não é exaustiva. Decerto, o fato ilícito pode implicar em inúmeros e incontáveis efeitos, que decorrem da própria norma jurídica. A título ilustrativo, vale o registro da possibilidade de efeitos sancionatórios para um fato ilícito. A mais importante conclusão a que se pode chegar, nesse momento, seguramente, é a desvinculação da ilicitude e da responsabilidade civil, afastando a falsa ideia de que todo fato ilícito importa em dever de indenizar o dano causado. Por certo, o espectro de incidência da ilicitude é mais amplo e aberto, não se satisfazendo com soluções aprio- rísticas, que implicariam em menoscabo de sua própria conceituação. Enfim, o sistema jurídico apresenta infinitos efeitos para a ilicitude, impondo ao intérprete e aplicador da norma atentar para a riqueza conceitual e eficacial dos fatos ilícitos. 11.4 Tutela preventiva e tutela reparatória da ilicitude Considerada a vasta amplitude conceitual dos fatos ilícitos e, por igual, afirmada a independência e autonomia conceitual entre a ilicitude e a responsabilidade civil, é imperioso asseverar a existência de diferentes formas de proteção jurídica. Diferentemente do sistema anterior (que estava assentado em visão patrimonialista e, por conseguinte, reparatória), o Código Civil de 2002 alinhou-se à técnica avançada do Código de Defesa do Consumidor (art. 84) e do Código de Processo Civil (art. 461), 225 Vem se entendendo, doutrinária e jurisprudencialmente, que o rol das hipóteses de ingratidão, previstas no art. 557 do Código Civil, é meramente exemplificativo, admitidas outras hipóteses não expressamente contempladas, mas ajustáveis à ratio essendi de cada um dos tipos legais ali mencionados. É uma tipicidade fina- lística, admitidas outras situações compatíveis. Até porque as hipóteses de ingratidão de um ser humano são infinitas... Nessa esteira, cimentou o Enunciado 33 da Jornada de Direito Civil: “O Código Civil estabeleceu um novosistema para a revogação da doação por ingratidão, pois o rol legal previsto no art. 557 deixou de ser taxativo, admitindo, excepcionalmente, outras hipóteses”. 226 BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Teoria dos ilícitos civis, op. cit., p. 106. 578 abraçando a possibilidade de tutela jurisdicional não apenas reparatória, mas, igualmen- te, preventiva. É a ruptura definitiva do binômio lesão-sanção. Na dinâmica da sociedade contemporânea, não mais é possível aguardar, em berço esplêndido, a frustração ou violação de um direito, para, somente depois, pleitear uma providência jurisdicional. Na pós-modernidade, urge a obtenção de respostas efetivas e concretas, práticas e céleres, contra a ilicitude. Com isso (e lembrando que a existência de um dano – moral ou material – é um dos elementos da ilicitude), facilmente decorre a conclusão de que o sistema jurídico almeja a eliminação ou diminuição da ilicitude, sem prejuízo de reparar o dano já cau- sado a alguém. Equivale a dizer: se o dano, decorrente de uma ilicitude, ainda não ocorreu, o sis- tema quer obstar a sua efetivação; se ele já se efetivou, pretende-se impedir que ele se mantenha ou que se alastre, diminuindo a sua incidência (e, via de consequência, o prejuízo da vítima). Sob o prisma processual, é a chamada tutela específica, que permite ao juiz adotar quaisquer providências para a obtenção do resultado prático equivalente, qual seja, eliminar o ilícito ou o dano dele decorrente. Para tanto, na forma do § 5o do art. 461 do Código Instrumental, o juiz poderá, de ofício ou a requerimento do interessado, adotar toda e qualquer medida. Pode o juiz determinar a busca e apreensão de bens, retirada de objetos, a restrição de direitos, o mandado de distanciamento (como no exemplo do namorado, marido ou companheiro que, ilicitamente, invade a privacidade da outra parte) etc. O certo é que a parte interessada não está obrigada a esperar a efetivação ou a ampliação do seu prejuízo decorrente da ilicitude para buscar a proteção jurisdicional. Poderá, também, o juiz fixar multa diária (apelidada de astreintes) para atuar inibitoria- mente, exortando o devedor ao cumprimento da sua obrigação.227 É o exemplo da ilicitude decorrente da negativa indevida do Poder Público de forne- cimento de medicamento imprescindível à saúde do particular. Caso a medida jurisdi- cional não seja concedida preventivamente, perecerá, por certo, o direito tutelado, em decorrência do ilícito, e restará esvaziada a tutela reparatória. Bem por isso, o Superior Tribunal de Justiça firmou o seu entendimento nesse sentido: “A maioria dos compo- nentes da Primeira Seção tem considerado possível a concessão de tutela específica para determinar o bloqueio de valores em contas públicas a fim de garantir o custeio de trata- mento médico indispensável, como meio de concretizar o princípio da dignidade da pessoa humana e do direito à vida e à saúde” (STJ, Ac. Unân., 2a T., REsp. 868.038/RS, Rel. Min. Eliana Calmon, j. 27.5.2008, DJU 12.6.2008). 227 A orientação jurisprudencial é pacífica: “Além de prever a possibilidade de concessão da tutela específica e da tutela pelo equivalente, o CPC armou o julgador com uma série de medidas coercitivas, chamadas na lei de ‘medidas necessárias’, que têm como escopo o de viabilizar o quanto possível o cumprimento daquelas tutelas. As medidas previstas no § 5o do art. 461 do CPC foram antecedidas da expressão tais como, o que de- nota o caráter não exauriente da enumeração. Assim, o legislador deixou ao prudente arbítrio do magistrado a escolha das medidas que melhor se harmonizem às peculiaridades de cada caso concreto. Em casos como o dos autos, em que a efetivação da tutela concedida está relacionada à preservação da saúde do indivíduo, a ponderação das normas constitucionais deve privilegiar a proteção do bem maior que é a vida” (STJ, Ac. Unân., 2a T., REsp. 1062564/RS, Rel. Min. Castro Meira, j. 16.9.2008, DJU 23.10.2008). 579 11.5 Excludentes de ilicitude Tal qual o sistema penal, o Direito Civil reconhece situações nas quais a ilicitude resta afastada. São hipóteses excludentes de antijuridicidade, acobertando o fato com o manto da licitude. Com esse propósito, esclarece a Codificação: Art. 188, Código Civil: “Não constituem atos ilícitos: I – os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito reconhecido; II – a deterioração ou destruição da coisa alheia, ou a lesão a pessoa, a fim de remover perigo iminente”. A partir da clareza solar do dispositivo legal, enxerga-se que o sistema (com visível inspiração na sistemática do Código Penal)228 afasta a antijuridicidade das condutas praticadas em (i) legítima defesa própria; (ii) exercício regular de um direito; e (iii) estado de necessidade. De fato, quem pratica um ato em legítima defesa não adentra à zona da ilicitude por- que está preservando a sua própria pessoa ou patrimônio contra um ataque injusto de terceiro. Exatamente por isso, “se o exercício da legítima defesa acarreta dano a tercei- ro, ao agente cumpre indenizá-lo, sem prejuízo de ação regressiva contra o agressor”, consoante a advertência de JAMES EDUARDO OLIVEIRA.229 No que tange à legítima defesa, convém o registro de que devem estar presentes os mesmos elementos exigidos para a sua caracterização em sede penal. Por isso, a repulsa deve ser a uma ofensa atual ou iminente, bem como proporcional à injusta agressão, com o uso moderado dos meios à disposição do agente. Vale pontuar, ademais, que o Direito Civil, reversamente ao sistema penal, não ad- mite a legítima defesa putativa ou de terceiro, somente reconhecendo, como causa de afastamento da ilicitude, a legítima defesa própria.230 Em idêntica projeção, o ato praticado em exercício regular de um direito está inserido no campo da licitude.231 Contudo, vale pontuar que o exercício irregular ou excessivo de um direito caracteriza abuso do direito – que é modalidade de ato ilícito. Os refe- renciais para descobrir se o exercício de um direito é, ou não, abusivo são os limites 228 Art. 23, CP: “Não há crime quando o agente pratica o fato: I – em estado de necessidade; II – em legítima defesa; III – em estrito cumprimento do dever legal ou no exercício regular de direito”. 229 OLIVEIRA, James Eduardo. Código Civil Anotado e Comentado, op. cit., p. 173. 230 A jurisprudência já se posicionou nesse sentido: “A legítima defesa putativa supõe a negligência na apre- ciação dos fatos e, por isso, não exclui a responsabilidade civil pelos danos que dela decorreram” (STJ, Ac. 3a T., REsp. 513.891/RJ, Rel. Min. Ari Pargendler, DJU 16.4.2007, p. 181). 231 Um bom exemplo de exercício legítimo e regular de um direito é a propositura de ação penal, através do oferecimento de denúncia, pelo representante do Ministério Público, com base em investigação policial, mesmo quando absolvido o réu da imputação criminal, com o reconhecimento da improcedência do pedido. Nesse sentido: STJ, Ac. Corte Especial, AgRgRepresentação 221/MT, Rel. Min. Fernando Gonçalves, DJU 10.6.2002, p. 125. 580 impostos, naturalmente, pela boa-fé objetiva, pelos bons costumes e pela função social e econômica. O estado de necessidade, por sua vez, consiste na agressão de um bem jurídico pertencente a outrem para eliminar um perigo atual ou iminente causado injustamente ao agente. São, portanto, elementos do estado de necessidade: (i) perigo atual ou imi- nente; (ii) causado por outrem; (iii) inevitabilidade de conduta diversa; (iv) preservação de um direito próprio, existencial ou patrimonial; (v) inexistência de dever jurídico de enfrentar o perigo. Exemplificando, pratica ato lícito, por conta do estado de necessi- dade, aquele que, dirigindo o seu automóvel regularmente, destrói um muro ou cerca no acostamento para evitar colisão com outro veículo que vinha, indevidamente, em contramão de direção.Cumpre sublinhar que o ato praticado em estado de necessida- de, apesar de encartado na moldura da licitude, poderá gerar consequências indenizan- tes. Efetivamente, a partir da leitura do comando dos arts. 929 e 930 da Codificação, conclui-se que: Se o fato praticado em estado de necessidade implicar em sacrifício de um bem jurídico pertencente a um terceiro, apesar do seu caráter lícito, haverá o dever de reparar o dano causado (responsabilização civil do agente), com direito de regresso em relação ao causador do pe- rigo; porém, se o estado de necessidade gerar o sacrifício de um bem jurídico pertencente ao próprio causador do perigo, o fato será lícito, sem o dever de reparar o dano causado.232 12.1 Noções introdutórias e referências históricas A teoria do abuso do direito somente despontou no final do século XIX, como supe- ração de concepções individualistas, que entendiam o direito subjetivo como poder da vontade e da expressão maior da liberdade individual, e, assim, ilimitado. Concedida a liberdade e a autodeterminação ao ser humano racional, deveria ele, eventualmente, arcar com a responsabilidade pelas condutas ofensivas ao ordenamento jurídico e, por- tanto, ilícitas. A introdução do abuso do direito permite vislumbrar uma via intermedi- ária entre o permitido e o proibido. Construída pela doutrina e pela jurisprudência ao longo do século XX, a teoria do abuso de direito deita nítidas raízes no Direito medieval, identificado nos atos emulati- vos (aemulatio), denominação emprestada àqueles atos praticados pelos proprietários ou vizinhos com o objetivo de prejudicar a terceiros. Através das normas da aemulatio foi relativizado o direito subjetivo de propriedade (até então compreendido em caráter absoluto), buscando-se verdadeira função social. O leading case, em matéria de abuso do direito, data de 1912. É o caso Clement Bayard, julgado pela Corte de Amiens, no qual foi acolhida, expressamente, a teoria 232 A situação mereceu a idêntica conclusão do Superior Tribunal de Justiça: “O motorista que age em estado de necessidade e causa dano em terceiro que não provocou o perigo, deve a este indenizar, com direito re- gressivo contra o que criou o perigo” (STJ, Ac. 4a T., REsp. 209.062/RJ, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar Jr., DJU 5.8.2002, p. 345).
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