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O Papel da Memória (Livro completo)

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Ciência da Informação
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UFF/NDC Material: Livro
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Preço I(~ p~egão 06/08 )
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L .. José de Rezende Item 4-::f- l~'f
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Papel da memória / Pierre Achard ... [et at. 1
tradução e introdução: José Horta Nunes - 2' Edição, Campinas,
SP: Pontes Editores, 2007.
Outros autores: Jean Davallon, Jean-Louis Durand, Michel Pêcheux,
Eni P. Orlandi
Bibliografia.
ISBN 978- 85-7113-127-9
I. Análise do discurso 2. História 3. Linguagem e história
4 Memória (Filosofia) 5. Semiótica 6. Sociolinguística
I. Achard Pierre 11.Davallon, Jean 111.Durand, Jean-Louis
IV Pêcheux Michel V Orlandi, Eni P. VI. Nunes, José Horta
VII. Título
9-1431 CDD-401.4
Índice para catálogo sistemático:
l.Memória : Linguagem e História 401.4
Copyright © 2007 dos Autores
Direitos de tradução gentilmente cedidos para Pontes
Editores
Coordenação Editorial: Emesto Guimarães
Capa: Claudio Roberto Martini
Revisão: Equipe de revisores da Pontes Editores
ÍNDICE
Introdução 7
Memória e Produção Discursiva do Sentido ll
A Imagem, uma Arte de Memória 23
PONTES EDITORES
Av. Dr. Arlindo Joaquim de Lemos, 1333
Jardim Proença
13100-451 Campinas SP Brasil
Fone (19) 3252.6011
Fax (19) 3253.0769
ponteseditores@ponteseditores.com.br
Memória Grega 39
Papel da Memória .49
Maio de 1968: Os Silêncios da Memória 59
\
www.ponteseditores.com.br
2007
Impresso no Brasil
INTRODUÇÃO
o conjunto de quatro textos que ora apresentamos cons-
titui a sessão temática «Papel da Memória» inserida em Histó-
ria e Lingüística, uma publicação das Atas da Mesa Redonda
«Linguagem e Sociedade», realizada na Escola Normal Superi-
or de Paris em abril de 1983. Esse colóquio reuniu especialistas
de diversas áreas, tendo como ponto de encontro a relação entre
língua e história. O tema particularmente enfocado aqui, a me-
mória, é visto sob diferentes aspectos: lembrança ou reminis-
cência, memória social ou coletiva, memória institucional, me-
mória mitológica, memória registrada, memória do historiador.
Atravessando os artigos, a questão: o que é produzir memória?
Como a memória se institui, é regulada, provada, conservada,
ou é rompida, deslocada, restabelecida? De que modo os acon-
tecimentos - históricos, mediáticos, culturais - são inscritos ou
não na memória, como eles são absorvidos por ela ou produzem
nela uma ruptura?
Estas questões se desenvolvem nos artigos através de di-
ferentes perspectivas disciplinares, incluindo-se elementos de
história, semiótica, sociolingüística, análise de discurso. Além
7
disso; a memória é analisada em sua materialidade complexa,
com enfase para a relação do texto com a imagem, para a passa-
gem do visível ao nomeado. Por um lado, os textos fundadores
de memória: mitos, relatos, enunciados, paráfrases. Por outro a
eficácia simbólica da imagem: a reprodução pictórica, o meio
televisual e até objetos arqueológicos. Ficam expostas ao leitor
diferentes práticas memoriais presentes na sociedade ocidental
sejam aquelas da Grécia antiga, sejam as que emergem com as
recentes mudanças tecnológicas.
arquiteturas, etc.), como operadores de memória social, traba-
:ham no sentido de entrecruzar memória coletiva (lembrança,
conservação do passado, foco da tradição, monumento de remi-
niscência) e história (quadro dos acontecimentos, conhecimen-
to, documento histórico).
Analisando a construção discursiva do sentido e o funci-
onamento dos implícitos, Pierre Achard mostra que a memória
não pode ser provada, não pode ser deduzida de um corpus,
mas ela só trabalha ao ser reenquadrada por formulações no
discurso concreto em que nos encontramos. O implícito de um
enunciado (Achard analisa o enunciado: «Neste momento, o
crescimento da economia é da ordem de 0,5%») não contém sua
explicitação, não se pode provar que ele tenha existido em al-
gum lugar. O que funcionaria então seriam operadores
linguageiros imersos em uma situação, que condicionariam o
exercício de uma regularidade enunciativa. Haveria, deste modo,
a colocação em série dos contextos e das repetições formais,
numa oscilação entre o histórico e o lingüístico. Através das
retomadas e das paráfrases, produz-se na memória um jogo de
força simbólico que constitui uma questão social.
Do contemporâneo passamos para o antigo. Jean-Louis
Durand faz uma interrogação envolvendo as práticas memoriais
da Grécia clássica. Ele coloca uma questão de enunciação im-
portante: quem fala e com que direito, ao se produzir memória?
o caso da Grécia antiga, a produção da memória só se daria na
presença do poeta épico - de Homero - por meio de um texto
produzido fora do domínio da cidade. No entanto, há uma con-
tradição na memória, com a oposição dos valores de grupo, dos
textos homéricos, aos valores éticos, políticos, sociais em uma
dada situação. Ao examinar a imagem de um vaso grego, Durand
nota a possibilidade de remissão ao mesmo tempo a um herói da
epopéia e a um simples combatente da cidade, um guerreiro
anônimo. Se pensarmos nos sistemas atuais de memória, pode-
remos ver a relação das práticas memoriais gregas com as me-
mórias heróicas estabelecidas em nossa sociedade.
Jean Davallon aponta, depois do aparecimento da im-
prensa, o desenvolvimento dos meios de registro da imagem e
do som como fatores que deslocam a questão da memória soci-
al, que não se encontraria mais nas «cabeças» dos indivíduos,
mas nas mídias. O autor esboça uma reflexão sobre a imagem
contemporânea como operadora de memória. Pela análise do
registro televisual de um acontecimento (a posse do presidente
Mitterrand na França), é questionada a distância que separa a
«realidade» do «fato de significação». Davallon lança a hipóte-
se de que os objetos culturais (livros, escritos, imagens, filmes,
Em seguida o livro, o artigo de Pêcheux faz uma retoma-
da das exposições anteriores, situando-as no contexto das pes-
quisas em análise de discurso. Ele discute como as questões de
lingüística e de discurso aparecem nos estudos sobre memória,
introduzindo um debate sobre as disciplinas de interpretação.
Nesse sentido, ele pergunta: a lingüística é uma disciplina pura-
mente experimental ou ela tem algo a ver com as disciplinas de
interpretação? Por sua vez, a análise de discurso cada vez mais
busca se distanciar, afirma Pêcheux, das evidências da proposi-
ção, da frase e da estabilidade parafrástica. Ademais, ela permi-
te, após os trabalhos de Benveniste e Barthes com a noção de
«significância», avançar teoricamente e tecnologicamente na
relação do texto com a imagem.
8 9
Os textos aqui reunidos guardam as marcas do debate
em meio ao qual foram concebidos, com o tom um pouco colo-
quial e as freqüentes remissões a outros expositores. Como re-
sultado dessas discussões, salientamos o seguinte comentário
de Pêcheux: «A certeza que aparece, em todo caso, no fim desse
debate é que uma memória não poderiaser concebida como
uma esfera plena, cujas bordas seriam transcendentais históri-
cos e cujo conteúdo seria um sentido homogêneo, acumulado
ao modo de um reservatório: é necessariamente um espaço mó-
vel de divisões, de disjunções, de deslocamentos e de retoma-
das, de conflitos de regularização ... Um espaço de desdobra-
mentos, réplicas, polêmicas e contra-discursos». Pouco mais de
dez anos depois, este é um momento bastante apropriado para
retomar esse acontecimento, atualizá-Io, inseri-Io em nosso con-
texto para que produza sentido e memória.
MEMÓRIA E PRODUÇÃO DISCURSIVA DO
SENTIDO ..'
Acrescentamos ainda nessa edição o texto de Eni Orlandi
"Maio de 1968: os silêncios da memória", em que a autora apre-
senta uma reflexão sobre a relação entre memória e censura no
contexto da ditadura no Brasil. Neste caso mostra-se que há acon-
tecimentos que não se inscrevem na memória, como se não ti-
vessem ocorrido: os sentidos de Maio de 68, entre eles, os rela-
cionados à palavra "liberdade", são evitados em um processo
histórico-político silenciador, de modo que se estabelece uma
falta na memória.
José Horta Nunes
Se, a partir de uma posição de análise de discurso, que-
remos falar do papel da memória, e, por conseguinte, do estatu-
to dos implícitos, logo encontramo-nos em posição delicada,
Mas se este é um ponto em direção ao qual é perigoso se aven-
turar - sendo real o risco de uma interpretação psicologista dos
implícitos - é no entanto necessário se preocupar com ele. Ten-
tarei então falar sobre isso, considerando que a estruturação do
discursivo vai constituir a materialidade de uma certa memória
social. Bem entendido, não se trata de avançar o termo
"materialidade" como máscara retórica para explicações que
seriam da ordem do inefável ou do inconsciente coletivo, nem
de dar ao termo "memória social" um valor tal que não teríamos
finalmente outro meio de analisá-Ia senão colocá-lo.
Procurarei então mostrar que é possível colocar um cer-
to número de hipóteses concernentes ao funcionamento formal
no discurso, hipóteses a relacionar com a circulação dos.discur-
sos; esta relação deve permitir que nos afastemos de interpreta-
ções psicológicas da memória em termos de "realmente-já-ou-
10 11
vido", memória fono-magnética ou registro mecânico. Para isso,
apoiar-me-ei sobre alguns exemplos.
memorização de uma forma máxima completa. Além disso, esta
memorização repousaria sobre um consenso. Ora, se olhamos
mais de perto, a explicitação desses implícitos em geral não é
necessária a priori, e não existe em parte alguma um texto de
referência explícita que forneceria a chave. Essa ausência não
faz falta, a paráfrase de explicitação aparece antes como um
trabalho posterior sobre o explícito do que como pré-condição.
O que é pressuposto, esse consenso sobre o implícito, é somen-
te uma representação.
Meu primeiro exemplo concerne ao funcionamento da
palavra "crescimento" no domínio da Economia Política. Um
enunciado como: "Neste momento. o crescimento da economia
é da ordem de 0.5 %" faz apelo a um certo número de implíci-
tos, dos quais evocarei apenas alguns. O primeiro deles é indu-
zido pela pressuposição de que se pode aplicar uma "taxa" a um
"crescimento da economia", quer dizer, que a economia pode
ser medida (e não simplesmente "verificada", como se diz da
temperatura em física elementar). O segundo implícito, que é
também um implícito segundo (quer dizer, que só toma seu sen-
tido em relação ao primeiro), é a equivalência, do ponto de vista
da taxa, entre as diferentes medidas possíveis. Particularmente,
nesse caso, a diferença entre PIB e PNB não será pertinente.
Em terceiro lugar, pressupõe-se implicitamente que esse cresci-
mento seja calculado dentro do prazo de um ano, prazo consi-
derado como evidente. Enfim, numa ordem um pouco diferen-
te, o local desse crescimento não é indicado; isto implica que
me situo em um universo descritivo nacional, e que falo por
conseguinte do crescimento da economia francesa - ou, mais
exatamente, do crescimen to da economia que concerne à nação,
ao país no qual a enunciação se situa. É o que dá a este implícito
um estatuto diferente dos precedentes, já que ele remete mais à
"situação" que à "memória". A "memória" intervém, no entan-
to, para enquadrar implicitamente a situação no espaço nacio-
nal, pela falta. Esse enquadramento pode ser explicitamente
deslocado (podemos falar de "crescimento da economia mun-
dial") ou utilizado no seu nível abstrato através da retomada em
um percurso ("em média. no mundo, o crescimento foi ... ").
Um outro exemplo desse fato foi discutido na oficina
sobre os manuais escolares": ainda que se considere que eles
constituam uma vulgata em relação a textos mais "elaborados",
o exame dos manuais concretos e sua confrontação permite co-
locar em evidência não somente que eles estão sujeitos à crítica,
apresentam variações consideráveis de um a outro, são
insatisfatórios para o que se espera deles, mas ainda que é ao
nível dos próprios implícitos supostos por eles que eles chegam
a constituir a dita vulgata. Em suma, eles constituem a ilustra-
ção do fato de que, enquanto um registro discursivo supõe uma
vulgata para funcionar, a tentativa de esclarecimento, de
explicitação desta vulgata, jamais "contém" o que seria neces-
sário para funcionar na retomada, e constitui na melhor das hi-
póteses uma primeira retomada da vulgata.
A representação usual do funcionamento dos implícitos
consiste em considerar que estes são sintagmas cujo conteúdo é
memorizado e cuja explicitação (inserção) constitui uma pará-
frase controlada por esta memorização - no nosso exemplo,
Do ponto de vista discursivo, o implícito trabalha então
sobre a base de um imaginário que o representa como memori-
zado, enquanto cada discurso, ao pressupô-Io, vai fazer apelo a
sua (re)construção, sob a restrição "no vazio" de que eles res-
peitem as formas que permitam sua inserção por paráfrase. Mas
jamais podemos provar ou supor que esse implícito
(re)construído tenha existido em algum lugar como discurso
autônomo.
Se levamos em conta os elementos enunciativos que es-
ses implícitos comportam, podemos ver em que esse problema
12 13
de (re)construção dos implícitos corresponde também àquele
que Robert Lafont, em O trabalho e a língua, designa como
"regulagem do praxema'? . Com efeito, o funcionamento do dis-
curso (e é nisso que a noção de discurso se distingue da de fala
no sentido do CLG)3 supõe que os operadores linguageiros só
funcionam com relação à imersão" em uma situação, quer dizer,
levando-se em consideração as práticas de que eles são porta-
dores. De outro modo, o passado, mesmo que realmente memo-
rizado, só pode trabalhar mediando as reformulações que per-
mitem reenquadrá-lo no discurso concreto face ao qual nos en-
contramos.
Para ilustrar de maneira menos elementar a dialética en-
tre repetição e regularização, utilizarei, de modo metafórico,
um imaginário topológico. Creio que esta analogia é relativa-
mente bem fundada. Tomemos uma série numérica, que seja,
para utilizar um exemplo simples, a série O, 1/2, 2/3, 3/4, (00')'
Dizer que esta série tende a 1 pode ser formulado dizendo que
toda vizinhança de 1 contém toda a série exceto um número
finito de termos. Assim, se admitimos que o termo geral da série
é da forma s = (n - 1)/n, vemos que a vizinhança de 1 definida
como o conjunto dos números compreendidos entre 999 999
999/1 000000000 e 1 000000001/1 000000000 compreende
todos os termos da série exceto um número finito de termos (os
1000000000 primeiros). Bem entendido, só posso reconhecer
que esta série tende a 1 porque substituí a enumeração dos pri-
meiros termos pela regra que permite formular o termo geral.
Pelas necessidades da análise, vamos supor um funcio-
namento linguageiro que comporta apenas um registro
discursivo, e colocar aí o problema do "sentido de uma pala-vra". Admitiremos (como hipótese lexicológica) que o que ca-
racteriza a palavra é sua unidade, sua identidade a si mesma,
que permite reconhecê-Ia em seus diferentes contextos. De ou-
tro modo, colocarei aqui a palavra como uma unidade simbóli-
ca cujo reconhecimento a identificação permite definir em ter-
mos de repetição. Cada nova co-ocorrência dessa unidade for-
mal fornece então novos contextos, que vêm contribuir à cons-
trução do sentido de que essa unidade é o suporte. Mas para
poder atribuir um sentido a essa unidade, é preciso admitir que
suas repetições - essas repetições - estão tomadas por uma regu-
laridades. É uma regularidade desta ordem que supomos com o
termo "crescimento" no registro econômico. Essa regularidade,
no entanto, não se deduz do corpus, ela é de natureza hipotética,
ela constitui uma hipótese do analista. No caso do crescimento,
a hipótese de análise que utilizei consistiu em supor que "cres-
cimento" é um termo operador que comanda um certo número,
fixo, de posições. O aparecimento em diversos textos das dife-
rentes posições me permite fazer um inventário delas e estabe-
lecer suas regularidades, e me permite em seguida designar, lá
onde elas não são explicitamente instanciadas, os tipos de im-
plícito por que elas clamam.
Sem esta formulação, nada garante que, com relação a
uma vizinhança suficientemente pequena, o número das exce-
ções continue finito. E como existe certamente uma infinidade
de séries que começam pelos mesmos termos, nenhuma obser-
vação empírica do começo de uma série nos permite deduzir a
regra. Em termos lingüísticos, isso corresponde a constatar que
o corpus nunca é suficiente para fundar a gramática, e que a
regularização repousa sobre um jogo de força. Acrescentamos
aqui que o jogo de força pode designar o sentido como limite" .
Um procedimento desta ordem parece necessário se que-
remos abordar a semântica de outro modo que não como uma
semântica dos enunciados, que seria baseada em uma lista uni-
versal de traços semânticos pré-existentes e em sua combinatória.
A hipótese de uma construção discursiva do sentido é certa-
mente discutível, mas parece frutífera, pela abertura às práticas
que podemos estudar ao nível da dialética entre repetição e re-
gularização. Com efeito, o fechamento exercido por todo jogo
de força de regularização se exerce na retomada dos discursos e
constitui uma questão social. Se situamos a memória do lado,
14 15
não da repetição, mas da regularização, então ela se situaria em
uma oscilação entre o histórico e o lingüístico, na sua suspensão
em vista de um jogo de força de fechamento que o ator social ou
o analista vem exercer sobre discursos em circulação. Este even-
tual jogo de força é suportado pelas relações de formas, mas
estas são apenas o suporte dele, nunca estão isoladas. Elas estão
eventualmente envolvidas em relações de imagens e inseridas
em práticas.
A regularização se apóia necessariamente sobre o reco-
nhecimento do que é repetido. Esse reconhecimento é da ordem
do formal, e constitui um outro jogo de força, este fundador.
Não há, com efeito, nenhum meio empírico de se assegurar de
que esse perfil gráfico ou fônico corresponde efetivamente à
repetição do mesmo significante. É preciso admitir esse jogo de
força simbólico que se exerce no reconhecimento do mesmo e
de sua repetição. Por outro lado, uma vez reconhecida essa re-
petição, é preciso supor que existem procedimentos para esta-
belecer deslocamento, comparação, relações contextuais. É nessa
colocação em série dos contextos, não na produção das superfí-
cies ou da frase tal como ela se dá, que vemos o exercício da
regra. De outro modo, é engendrando, a partir do atestado
discursivo, paráfrases, a considerar como derivações de possí-
veis em relação ao dado, que a regularização estrutura a ocor-
rência e seus segmentos, situando-os dentro de séries. O que
desempenha nessa hipótese o papel de memória discursiva são
as valorizações diferentes, em termos por exemplo de familiari-
dade ou de ligação a situações, atribuídas às paráfrases, que
entretêm então, graças ao processo controlado de derivação, re-
lações reguladas com o atestado. Na hipótese discursiva, pois,
ao contrário do modelo chomskiano, o atestado constitui um
ponto de partida, não o testemunho da possibilidade de uma
frase, e a memória não restitui frases escutadas no passado mas
julgamentos de verossimilhança sobre o que é reconstituído pelas
operações de paráfrase. Estas considerações deslocam o estatu-
to do que é provável historicamente, porque a operação de reto-
16
mada se localiza nesse nível.
O que distingue então o analista de discurso do sujeito
histórico não é uma diferença radical mas um deslocamento. A
análise de discurso é uma posição enunciativa que é também
aquela de um sujeito histórico (seu discurso, uma vez produzi-
do, é objeto de retomada), mas de um sujeito histórico que se
esforça por estabelecer um deslocamento suplementar em rela-
ção ao modelo, à hipótese de sujeito histórico de que fal~. O
que proponho neste texto é um modelo de trabalho do anahs~a,
que tenta dar conta do fato de que a memória supost~ pe!o dis-
curso é sempre reconstruída na enunciação. A enunciaçao, en-
tão, deve ser tomada, não como advinda do locutor, mas como
operações que regulam o encargo, quer diz.~~a .retomada e a
circulação do discurso. Entre outras consequcncias desta con-
cepção, levaremos em conta o fato de que um texto dado traba-
lha através de sua circulação social, o que supõe que sua
estruturação é uma questão social, e que ela se di.ferenci.a s:-
guindo uma diferenciação das memórias e uma diferenciação
das produções de sentido a partir das restrições de uma forma
única.
Pierre Achard
17
BIBLIOGRAFIA
LAFONT, R. (1978), Le travail et Ia langue, Flamarion, Paris
SAUSSURE, F. (1964), Cours de linguistique générale, publ.
por charles Bailly e Albert Secheye, com a colab. de A.
Riedlinger, Payot, Paris (1ra. ed. 1915)
19
NOTAS
I. (NDT) As oficinas, exposições e textos do colóquio citados neste livro
encontram-se publicados em Histoire et Linguistique, Pierre Achard,
Max-Peter Gruenais, Dolores Jaulin (Orgs), Éditions de Ia Maison des
Sciences de I'Homme, Paris, 1984.
2. Lafont, 1978.
3. Saussure, 1964.
4. A noção de imersão ("plongement") - que, nas matemáticas, é um con-
ceito - supõe ao mesmo tempo a possibilidade de um ponto de vista
intrínseco, e propriedades induzidas pela consideração da situação no
espaço da imersão.
5. Esse efeito, aliás, é reforçado sobretudo pela existência de vários regis-
tros articulados nos discursos reais. Por exemplo, em economia da edu-
cação, o discurso econõmico desenvolve o papel de um registro maior
no qual são retomados e articulados os registros da pedagogia, registros
de considerações tecnológicas, políticas, etc., tomados como englobantes
ou englobados, conforme o caso, o que faz com que haja sempre; na
retomada metafórica das palavras, um deslocamento de uso que só pode
repousar sobre a regularização suposta do funcionamento da palavra no
registro fonte.
6. Bem entendido, os matemáticos não se interessariam tanto pelas séries
se elas convergissem sistematicamente a números, como I, já definidos
em outro lugar. É na medida em que as séries permitem definir novos
números que elas são interessantes. Do mesmo modo, a perspectiva que
proponho por analogia tem essencialmente por interesse propor pers-
pectivas para uma semântica que não se limite a uma combinatória de
semas pré-existentes.
21
A IMAGEM, UMA ARTE DE MEMÓRIA?
o aparecimento da imprensa parecia já ter tornado fora
de uso as "artes da memória" antigas e medievais I .Com razão
mais pertinente, o desenvolvimento dos meios de registro da
imagem e do som (essas extensões de nossos sentidos, se acre-
ditamos em Me Luhan), que permitem estocar depois restituir o
saber quase tão bem quantoos acontecimentos, parece hoje nos
afastar definitivamente da necessidade de situar uma parte da
memória social na "cabeça" dos (ou de certos) sujeitos sociais:
a memória social estaria inteiramente e naturalmente presente
nos arquivos das mídias.
Uma tal concepção tecnicista da memória social, que
em muitos pontos assimila esta à "memória" do computador,
supõe resolvidas duas questões maiores. A primeira é bastante
ingênua: registrar, descrever, representar a realidade (saber ou
acontecimento) é suficiente para produzir memória? Ou ainda:
a partir de quando, e do que, um acontecimento constitui me-
mória? A segunda é sociológica: o que ocorre, nessa redução
tecnicista, com os processos de manutenção da coesão social;
23
com a instituição/re-instituição societal de que o funcionamen-
to da memória é o lugar, e mais particularmente ainda, com a
reprodução das relações sociais e políticas fundada sobre a
dominância desse funcionamento da memória social?
Pensemos, a propósito, numa cerimônia política como
aquela da posse do Presidente da República: com os múltiplos
jogos que surgem entre a referência, de um lado, a uma memó-
ria social já existente (o Panteão, os heróis republicanos) e, de
outro lado, à produção de uma nova memória. Pois o registro do
"acontecimento" deve constituir memória, quer dizer: abrir a
dimensão, entre o passado originário e o futuro, a construir, de
uma comemoraçã02 •
/'
I
Com esta alusão rápida a um exemplo político contem-
porâneo, vemos que entre o simples registro da realidade e a
memória social; que entre a reprodução de um acontecimento e
a função social de instituição/re-instituição do tecido social atri-
buída à memória, há toda a distância que separa a "realidade"
do "fato de significação". Faria essa distância pensar, em suma,
que a memória, como fato social, comportaria uma dimensão
semió~ica e simbólica que lhe seria intrínseca?
"
Assim, é em vista dessa dupla dimensão da memória so-
cial (como fato societal e como fato de significação) que gosta-
ria de esboçar aqui uma reflexão sobre a imagem contemporâ-
nea como operadora de memória, mas convém antes indicar com
algumas palavras o que é preciso entender por memória social
quando nos interessamos pelos objetos culturais'.
24
Memória social e produções culturais
Uma primeira constatação se impõe imediatamente: para
que haja memória, é preciso que o aco~teciment? ?U o .sa~er
registrado saia da indiferença, que ele deixe o doml~lo da msig-
nificância. É preciso que ele conserve uma força a fim de poder
posteriormente fazer impressão. Porque é essa possib~lidade de
fazer impressão que o termo "lembrança" evoca na linguagem
corrente. Um sociólogo um pouco esquecido hoje, é verdade,
mas que uma sociologia do conhecimento não poderia ignorar -
a saber, M. Halbwachs - caracterizaria aliás a memória como "o
que ainda é vivo na consciência do grupo para o indivíduo e
íd d "4para a comum a e .
Uma segunda constatação complementa a primeira: le~-
brar um acontecimento ou um saber não é forçosamente mobili-
zar e fazer jogar uma memória social. Há necessidade de que o
acontecimento lembrado reencontre sua vivacidade; e sobretu-
do, é preciso que ele seja reconstruído a partir = dados e. de
noções comuns aos diferentes membros da comunidade SOCIal.
Esse fundo comum, essa dimensão intersubjetiva e sobretudo
grupal entre eu e os outros especific~, diz-~os Halbwach~, .a
memória coletivas. Mas a contrapartida sena que a memona
coletiva "só retém do passado o que ainda é vivo ou capaz de
viver na consciência do grupo que o mantém. Por definição, ela
não ultrapassa o limite do grupo'" .
Estas duas constatações convidam a salientar o caráter
paradoxal da memória coletiva: sua capacidade de co~se:var o
passado e sua fragilidade devida ao fato de que o que e VIV~ n.a
consciência do grupo desaparecerá com os membros deste últi-
mo. Aliás, em páginas que mereceriam uma outra atenção e uma
outra apresentação, que estas rápidas e alusivas :v.ocaçõe~ nã~
permitem, Halbwachs pode assim opor a memorta coletiva a
25
história, o "foco da tradição" ao "quadro dos acontecimentos"? ,
a "lembrança" (corrente de pensamento contínua no seio do gru-
po social) ao "conhecimento" (descontínuo e exterior ao pró-
prio grupo). Em compensação, a história resiste ao tempo; o
que não pode a memória.
Se a distinção efetuada por Halbwachs entre "memória
coletiva" e "história" permite desse modo compreender melhor
por que registrar ou ainda lembrar um acontecimento não é obri-
gatoriamente ipso facto um fato de memória social, ela nos in-
troduz acima de tudo em uma problemática dos 2bjetos cultu-
rais considerados como operadores de memória social. Eu me
explico.
,. Evoquemos novamente o exemplo da emissãotelevisionada que "representava" a posse do Presidente da Re-
pública. Compreenderemos muito facilmente a questão política
e a importância sociológica que estão ligadas à possibilidade de
"casar" história e memória coletiva: de entrecruzar, de aliar a
resistência ao tempo que caracteriza uma e o poder de impres-
são - vivacidade - da outra. Assim. o acontecimento, como acon-
tecimento "memorizado" poderá entrar na história (a memória
do grupo poderá perdurar e se estender além dos limites físicos
do grupo social que viveu o acontecimento); mas enquanto "his-
tórico", ele poderá se tornar, em compensação, elemento vivo
de uma memória coletiva. Esta última adquirirá então uma ou-
tra dimensão: aquela, se podemos dizer, de uma memória
societal. Como esse entrecruzamento se opera? Qual é o seu
instrumento? O acontecimento - no caso, a cerimônia do Panteão
-, por ser representado (o que é mais e outra coisa do que ser
simplesmente registrado ou difundido), tomará o valor de uma
espécie de ponto originário da comunidade social: o aconteci-
mento se dará em um momento singular do tempo; mas a essên-
cia do ato se encontrará para sempre na própria estrutura do
objeto que o representará (a emissão televisionada, por exem-
plo)". Ele se tornará indissociavelmente documento histórico e
•f.,
26
monumento de recordação.
Por conseguinte, apoiando-nos sobre essa oposição en-
tre "memória coletiva" e "história" para considerar os objetos
culturais, poderíamos adiantar, a título de hipótese, que estes
últimos vão no sentido não de um antagonismo, mas antes de
uma conjunção, de um entrecruzamento, de uma síntese entre
memória coletiva e história.
Trata-se aí de uma simples hipótese de trabalho, mas ela
não me parece sem interesse no quadro de uma reflexão sobre o
papel da memória. Ela torna com efeito a adiantar que os obje-
tos culturais abrem a possibilidade de um controle da memória
social; que esse controle está de fato estreitamente ligado ao
funcionamento formal e significante desses objetos; e que, por
último, ele é um fato social não desprezível. Eis, a meu ver, o
que merece ser examinado; embora não seja questão de preten-
der encarar, no estado atual, a verificação dessa hipótese, seria
em compensação uma atitude bastante heurística voltar-se so-
bre aquilo que autoriza sua formulação.
É o que veremos a propósito da imagem.
A imagem, operador de memória social
Por que a imagem? Porque ela oferece - ao menos em
um campo histórico que vai do século XVII até nossos dias -
uma possibilidade considerável de reservar a força: a imagem
representa a realidade, certamente; mas ela pode também con-
servar a força das relações sociais (e fará então impressão sobre
o espectador).
L. Marin aliás mostrou muito bem como, por exemplo,
no funcionamento do poder absoluto na idade clássica, o retrato
do rei expõe em uma viva pintura as qualidades reais descritas-
27
"contadas" - no relato de suas ações; de tal maneira que estas se
transformam em substância real. Do relato desse acontecimento
à imagem do rei, o que era o menos representável, o menos
memorizável (a força),torna-se o mais presente na ocasião da
representação do personagem histórico do rei. Posso somente
aqui remeter às análises de Marin no que concerne ao modo
como esse uso das imagens se apóia sobre seu próprio funcio-
namento".
"r.
•
Adicionemos que poderíamos, em contraponto a essa
análise e de um modo comparável, mostrar como a publicidade,
desta vez, utiliza a imagem em complementaridade com o enun-
ciado lingüístico para apresentar - tornar presentes - as qualida-
des de um produto e conduzir assim o leitor a se recordar de
suas qualidades, mas também a fazê-lo se posicionar em meio
ao grupo social dos consumidores desse produto; a se situar, a
se representar esse lugar. No entanto, desenvolver essas análi-
ses nos levaria longe demais e demandaria muito tempo; note-
mos então somente que esses dois exemplos indicam, para cer-
tos períodos e segundo diferentes modalidades, a eficácia da
imagem em poder se inscrever em uma problemática da memó-
ria societal.
Eis o que nos conduzirá talvez a encarar a imagem sob
um prisma particular: menos a nos interessar pelo que a imagem
pode representar (os objetos do mundo), ou ainda pela informa-
ção que ela pode oferecer, nem mesmo pelo modo como ela
efetua um ou outro desses processos, do que a prestar atenção à
maneira como certa imagem concreta é uma produção cultural-
quer dizer, a levar em consideração sua eficácia simbólica. Com
efeito, aquele que observa uma imagem desenvolve uma ativi-
dade de produção de significação; esta não lhe é transmitida ou
entregue toda pronta. Esse estado de coisas abre, como aliás
insistem em nos fazer observar, a uma liberdade de interpreta-
ção (o que quer dizer que o conteúdo "legível", ou antes "dizível",
pode variar conforme as leituras); mas o que faz também - e não
J 28
se poderia esquecer este ponto - com que a imagem comporte
um programa de leitura: ela assinala um certo lugar ao especta-
dor (ou melhor: ela regula uma série com a passagem de uma a
outra posição de receptor no curso da recepção) e ela pode
"rentabilizar" por si mesma a competência semiótica e social
desse espectador!". Este é um fato bastante conhecido pelos
publicitários.
Se procuramos o que serve de fundamento à eficácia sim-
bólica da imagem, duas características semióticas parecem en-
tão bastante consideráveis.
Em primeiro lugar, uma imagem pode ser compreendida
ou recebida segundo dois níveis diferentes. Cada um desses dois
níveis possui regras de funcionamento que lhes são, ao menos
parcialmente, próprias. Por exemplo, os códigos perceptivos
mudam menos rápido que os códigos iconológicos; por isso,
ficamos sensíveis a composições ou representações de quadros
da Renascença (ou de publicidades do início do século) de que
ignoramos parcialmente a significação: a potência perceptiva
perdura, enquanto as significações se perdem. Resta uma orga-
nização formal que continua a constituir um dispositivo.
Sabemos, desde o artigo em muitos aspectos fundador
de E. Benveniste, aparecido em Semiática em 1969, que exis-
tem dois modos de significação: um semiático, fundado sobre o
reconhecimento de unidades de significação previamente defi-
nidas (eu reconheço o sentido das palavras), outro semântico e
meta-semântico, fundado sobre a compreensão do sentido do
texto em sua totalidade (eu compreendo o sentido do conjunto
de uma frase, por exemplo) e que inclui os mecanismos da
enunciação. Benveniste adianta que a imagem funciona antes
de tudo sob o modo semântico e que ela não pode conjugar os
dois modos de significação (somente a língua poderia operar
essa conjunção) e há um largo acordo entre os semioticistas para
reconhecer que a imagem depende de uma abordagem textu-
29
al": De minha parte, resumirei as coisas como segue: existe
uma espécie de aproximação entre as oposições formais (de for-
ma, de cor e de topologia) e a instância textual e enunciativa: na
publicidade, por exemplo, certa relação de cor ou certo contras-
te de.forma retém o olhar e, ao mesmo tempo, quer nos dizer da
q~ahdade que.distingue um produto dos outros. Essa aproxima-
ça~ escamote~a - se po~so dizê-Io - um nível intermediário que
tena por homologo na linguagem o nível das palavras; a linzua-
gem supre aliás essa escamoteação (pode-se sempre descrever
uma imagem)" . Em compensação, essa aproximação possui a
v.antagem de trabalhar sobretudo com os sistemas de oposição e
sirnultaneamenrs c?m as relações entre emissor, receptor, men-
s~?em e contexto. E porque a imagem é antes de tudo um dispo-
SItIVOque pertence a uma estratégia de comunicação: dispositi-
vo qu~ tem a capacidade, por exemplo, de regular o tempo e as
modalIdades de recepção da imagem em seu conjunto ou a emer-
gência da significação!'. E é um dispositivo, lembremo-nos, que
por natureza é durável no tempo.
. .Em segundo lugar, a imagem é um operador de
simbolização, Conviria observar, a esse propósito, que a difi-
culdade, conhecida por todos os semioticistas da imagem, em
segmentar esta se deve menos a sua má-formação semiótica do
que à aproximação que eu assinalava logo acima entre oposi-
ções formais e instância textual e enunciativa, entre a
material idade e o sentido. Entrecruzando esses dois níveis a
imagem teria assim capacidade para integrar os elementos que a
compõem em uma totalidade. É porque compreenderíamos o
sentido global antes de reconhecer a significação dos elemen-
tos; e atingiríamos primeiro o efeito dessa integração; estaría-
mos sob o charme desse efeito formal, estético; toda imagem
pareceria assim se apresentar como única origem dela mesma
assim como de sua significação; e enfim, ela introduziria uma
diferença de natureza, um salto qualitativo entre os componen-
tes (os que a análise pode repertoriar) e ela mesma considerada
em sua totalidade.
30
Esse apagamento da passagem dos componentes à tota-
lidade tem por conseqüência essencial interditar que se reen-
contre a maneira como o efeito estético e significante é produzi-
do. A gênese se apaga; a (re )construção de uma origem mítica é
aberta, com mais um efeito de força viva. Então, começa a deri-
va indefinida (e não infinita) que caracteriza toda interpretação
de imagem; não obstante, se nos volvemos para essa deriva,
percebemos que essa busca, essa "reprodução" da significação
do dispositivo, se faz segundo o próprio programa trazido pelo
dispositivo. Do mesmo modo que a recitação do mito ou os ges-
tos litúrgicos seguem a estrutura do mito ou do ritual, cada lei-
tura é em si mesma uma pequena recitação. Momento central,
ato que fornece à imagem sua razão de ser, que está fora do
espaço da imagem, assim como, aliás, o acontecimento memo-
rizado.
Conclusão
Eis então o que leva a pensar a imagem como um opera-
dor de memória social no seio de nossa cultura. Assim, volte-
mos a nossa hipótese. Com efeito, se a imagem define posições
de leitor abstrato que o espectador concreto é convidado a vir
ocupar a fim de poder dar sentido ao que ele tem sob os olhos,
isso vai permitir criar, de uma certa maneira, uma comunidade -
um acordo - de olhares: tudo se passa então como se a imagem
colocasse no horizonte de sua percepção a presença de outros
espectadores possíveis tendo o mesmo ponto de vista. Do mes-
mo modo como - explicava Halbwachs - a reconstrução de um
acontecimento passado necessita, para se tornar lembrança, da
existência de pontos de vista compartilhados pelos membros da
comunidade e de noções que lhes são comuns'"; assim a ima-
gem, por poder operar o acordo dos olhares, apresentaria a ca-
pacidade de conferir ao quadro da história a força da lembran-
ça. Ela seria nesse momento o registro da relação intersubjetiva
e social.
31
Restaria, então e enfim, considerar como a imazem in-
, b
tervem concretamente no estabelecimento de uma forma de
memória societal própria à nossa época e à nossa sociedade; e
sobretudo, qual é a relação que se instaura entreo que podería-
mos chamar "a memória interna" (aquela situada nos membros
do grupo) e "a memória externa" (aquela dos objetos culturais),
mas isto seria perguntar sobre as características das estruturas
mentais de nossa cultura e se engajar na psicologia histórica" .
Jean Davallon
32
UFF-NDC'
BH3UOF,i·t-. C2i'irn.",L DO OOAGOAT í,
CÓD. Df" (H1P...·)c CÔD. DJ SXEM?L\R
1CJ111-5
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NOTAS
YATES, F. A. (1975), L'art de Ia mémoire, Trad. do inglês [The
art of memory, 1966] por D. Arasse, Paris, Gallimard.
I" Como assinala Yates, 1966. Lembremos que o autor define assim a arte
da memória: "Esta arte visa permitir a memorização graças a uma
técnica de 'lugares' e 'de imagens' que impressionam a memória".
2. Penso particularmente na "cerimônia da memória" que se desenrolou
durante as jornadas de posse de F. Mitterand, em 21 de março de 1981.
O que está então em jogo, para além da referência declarada ao cerimo-
nial republicano herdado em grande parte das festas revolucionárias
(ou ao menos de sua ideologia), é o estatuto que se atribui aos meios de
difusão e de representação do acontecimento - no caso: à emissão
televisionada desta cerimônia.
3. Entendo por "objetos culturais" o conjunto dos objetos concretos (li-
vros, escritos, imagens, filmes, arquiteturas, etc.) que resultam de uma
produção formal e que são destinados a produzir um efeito simbólico.
Sobre esse ponto ver Davallon, 1983.
4. Halbwachs, 1950, p. 70.
5. Ibid., p. 13: "Não basta reconstruir peça por peça 11 imagem de um
acontecimento passado para se obter uma lembrança. É preciso que
essa reconstrução se opere a partir de dados e de noções comuns que
se encontram tanto em nosso espírito quanto no dos outros, porque-
eles passam sem cessar destes àquele e reciprocamente. o que só é
possível se eles fazem e continuam afazer parte de uma mesma socie-
dade. Somente assim podemos compreender que uma lembrança possa
ser ao mesmo tempo reconhecida e reconstruí da".
34
35
13. Para a análise detalhada, ver: Davallon, 1983.
6. A memória coletiva: "é uma corrente de pensamento continuo, de uma
continuidade que não tem nada de artificial. pois ela só retém do pas-
sado o que dele ainda é vivo ou capaz de viver lia consciência do
grupo que o mantém" lbid., p. 70.
. b rtilha de um ponto de vista e14 Halbwachs insiste vánas vezes so re a p~ I d _
. sobre a comunhão dos dados de referência como fundamentos a me
rnória coletiva, por exemplo: op cit, pp. 3,48-53,61, etc.
7. Ibid., pp. 74-79. Na seqüência da exposição, empregarei o termo "es-
pectador 11111 movimellto que ultrapassa a simples compreensão do es-
petáculo proposto e se faz produtora de sentido. Composição. monta-
gemo ritmo conduzem da visão à compreensão", F. Albera, 1980, p. 9.
15 Com relação à memória coletiva, a memória individual estari~ ~a ver-
. tente o osta àquela em que se situa o objeto cultural. Uma a or agem
que se ~fira à psicologia histórica seria então possível (Meyerson, 1948).
8. Assim acontece com a representação do juramento no momento da
Revolução Francesa ou ainda com a representação do herói revolucio-
nário: 1. Davallon, 1981.
9. "De um lado. então, um icone que é a presença real e 'viva' do monar-
ca; de outro, IUII relato que é seu túmulo subsistindo para sempre. A
representação como poder, o poder como representação são um e ou-
tro um sacramento na imagem e um 'monumento' na linguagem. onde.
cambiando seus efeitos. o olhar deslumbrado e a leitura admirativa
consomem o corpo radioso do monarca, um recitando sua história em
sel/ retrato, o outro contemplando uma de suas perfeições no relato
que eterniza a manifestação". L. Marin, 1981. p.
10. Esta particularidade da imagem foi notavelmente bem estudada pela
semiologia do cinema. Como indica F. Albera, é ela que S. M. Eisenstein
designa pelo termo cinematismo: "O que caracteriza efetivamente es-
ses quadros (os de Greco, de Sérov, Toulouse-Lautrec, Van Gogh,
Outamaro, Sharaku. etc.) úteis a estudar para compreender esta no-
ção de 'cinematismo'Y É que sua construção impõe ao espectador um
movimento que ultrapassa a simples compreensão do espetáculo pro-
posto e se faz produtora de sentido. Composição. montagem, ritmo
conduzem da visão à compreensão", F. Albera, 1980, p. 9.
11. Esse artigo de E. Benveniste foi retomado em Problemas de lingüística
geral, t. 2., 1974. Essa dorninância do modo semântico e meta-semân-
tico foi reconhecida bem cedo pela semiologia (LL. Schefer, 1969: R.
Barthes, L. Martin, etc.), depois apoiada e corroborada pelas análises
da semiótica visual que se referem à teoria de A. J. Greimas.
12. Este ponto exigiria uma análise precisa e circunstanciada. Encontrare-
mos uma primeira e indispensável abordagem em Metz, 1975.
37
36
MEMÓRIA GREGA
,.
,.
Escolhi propor-lhes, para introduzir o debate desta ma-
nhã, não uma descrição de nossas próprias práticas memoriais,
uma análise de nossa própria gestão da memória, mas uma in-
terrogação envolvendo aquelas da Grécia antiga, da Grécia clás-
sica. Observar em que posição particular os gregos se coloca-
vam com relação à sua própria memória, à gestão que eles podi-
am fazer dela. Serei rápido, portanto esquemático, e aqueles
que conhecem esses problemas queiram desculpar a brutalida-
de deste esboço grosseiro. A discussão permitirá, espero, voltar
a todos os pontos que se desejar que eu retome.
Os gregos apresentam um problema com sua memória,
um problema muito simples. Não é possível para o não-grego,
digamos, para o bárbaro (o que não é um termo necessariamen-
te negativo), reconhecer-se grego sem referência a toda uma
série de relatos com todo seu peso, seu valor normativo, sejam
eles retomados coletivamente ou não, e sejam eles fixados ou
não em formas "literárias" precisas: o Mito, Mas o mito é tam-
bém algo de muito organizado, em uma forma codificada, diga-
39
mos, a epopéia. E imediatamente coloca-se o problema funda-
mental. Falo certamente aqui situando-me como observador em
uma Atenas do século V sempre tão mítica e sempre tão neces-
sária.
·1'
Se, como esse menino grego, sou educado através da
salmodia de Homero, ou se, como grande diva percorrendo as
cidades gregas, interpreto o poeta durante manifestações coleti-
vas, festas que organizam e estruturam o grupo, não produzo
uma epopéia. Quero dizer com isso que aquele que recita o tex-
to épico pode apenas retomar indefinidamente uma memória
organizada em um texto que se tornou fechado e em relação ao
qual ele mantém uma relação que podemos chamar demoníaca,
que ultrapassa então as estruturas da memória humana, uma re-
lação que o faz entrar em contato, de maneira quase possessória,
com o próprio poeta ou alguma coisa que resta dele e se trans-
mite por sua palavra. Por quê? Porque o poeta, ele mesmo, o
aedo, não possuifala própria. No momento em que recita as
proezas dos heróis, o aedo só o faz porque a Musa fala através
dele, por ele. Quer dizer que não há possibilidade de produção
da memória na cidade fora da presença do poeta épico, diga-
mos, para ser breve, de Homero. Os gregos apresentam, então,
como principal meio de reconhecimento de si mesmos, um dos
textos que se produziram e se fixaram fora de seu domínio e que
eles são forçados a repetir sem meios de modificá-Ios em fun-
.ção de novas exigências sociais. Textos que Ihes fornecem as
categorias de percepção do mundo no qual se encontram. O
garoto educado em Atenas aprende música, recita a epopéia, e
sabe assim definir o mar em oposição à terra, a tempestade em
oposição ao céu sereno, etc. Ele recebe toda uma série de meios
de categorizar o real, que o situam como grego. Em contraste
com os vizinhos persas, que possuem calças, modos de viver
diferentes, que percebem as coisas diferentemente, etc. O pro-
blema aí não é maior, isso funciona de modo bastante imediato.
Mas a partir do momento em que olhamos não mais as categori-
as de percepção da realidade, mas o sistema de valores éticos,
40
em resumo, valores políticos e sociais, no qual nos situamos, as
coisas se apresentam de outro modo e a contradição aparece.
Se pretendemos, por exemplo, fazer a guerra, a guerra
da cidade, como o fazia Aquiles, arriscamos com os nossos nas
piores dificuldades. Observemos o modo como as coisas se pas-
sam nesse texto célebre (analisado por P.Vidal Naquet)' , a cena
dos escudos em os Sete contra Tebas': O guerreiro do mito é
atingido pelo menos, esse furor que possui sua al~a e o rende.
Ele é invadido pela ira de matar, orientado para realizar os gran-
des feitos que são objeto do canto épico. Isto o coloca em ~on-
tradição total com as regras do grupo social no quadro da Cida-
de, regras que supõem uma guerra racional e democrática. A
igualdade dos combatentes é aí fundamental: não se trata de
combater para se fazer ilustre no combate mas de defender a
cidade com os companheiros de linha, cada um solidário um
com o outro, na falange. Há verdadeiramente uma contradição
inevitável em uma memória que estabelece ao mesmo tempo o
sistema categorial que nos define como partidários de nosso
grupo, e valores sociais que nos colocam em oposição a ele.
Isto teve como efeito imediato na produção cultural, para reto-
mar a fórmula proposta logo acima, a tragédia. A tragédia na
qual vemos estabelecidas ao mesmo tempo a necessidad~ do
mito e as dificuldades que ele provoca. Não podemos nos livrar
do Édipo nem se acomodar com ele. De onde a necessida?e de
interrogar o mito em função do sistema de valores da cldad.e
contemporânea, já que não podemos levã-lo tal qual em consi-
deração.
Por outro lado, existe a necessidade de se produzir uma
memória, um memorável válido para o tempo da cidade, e, de
certa forma, nos trabalhos de memória, estamos sempre em ri-
validade com Homero. Quando, por exemplo, as primeiras prá-
ticas historiadoras aparecem (F. Hartog, ausente da França, es-
taria melhor posicionado do que eu para falar disso), vemos
bem que a necessidade da pesquisa vem da necessidade de fa-
41
bricar um memorável adequado ao mundo dos contemporâne-
os. Ao mesmo tempo coloca-se a questão da enunciação. Quem
fala e com que direito? O poeta com suas garantias não está
mais aí para fazê-lo em meio aos seus. Aquele que produz o
memorável para a cidade, assim, tem sempre, de certo modo, a
nostalgia da epopéia definitivamente impossível. Quando a ci-
dade produz um discurso adequado pelo qual ela se funda, fa-
bricando seu próprio memorável mítico, quando ela pratica a
oração fúnebre, ela o faz em referência aos valores do epos (N.
Loraux, de novo aqui, seria bem melhor que eu para falar dis-
so). O orador oficial narra então a grandeza de Atenas pela gran-
deza de seus guerreiros mortos ao modo dos heróis, incorporan-
do os valores que servem a isso.
Para não multiplicar os casos de figura, gostaria agora
de observar o modo como a imagem pode se inserir nesse dis-
positivo de produção (seguindo desta vez F. Lissarrague que
não pode estar aqui hoje. Espero não trair ninguém, enfim não
muito, fazendo falar tantos amigos ausentes I).A imagem possui
uma vantagem fundamental: ela representa e ao mesmo tempo
produz sentido. De outro modo, quando a imagem é representa-
ção, ela pode representar um guerreiro da cidade, o hoplita car-
regando o corpo de seu companheiro morto. Através de alguns
elementos do dispositivo icônico, é possível mostrar que o guer-
reiro morto é um herói parecido com o da epopéia, com o guer-
reiro épico: a forma do escudo, o tipo de penteado, por exem-
plo. A imagem pode conter nomes, Aquiles, Ajax, com uma
referência evidente aos dados épicos. Ela é representação ou
motor de discursos, ocasião assim de reatualizar a memória para
retomar o que estava dito antes, a memória dos valores do epos.
Em uma cena desse gênero, podemos introduzir Atena. A deu-
sa, sabemos, mantém uma relação específica com os heróis do
ciclo troiano: ela pode então fazer parte dessas representações.
Se suprimimos as indicações de nomes, Atena continua reco-
nhecível graças aos elementos que a definem (armas, coruja,
etc.) mas o guerreiro carregador ou carregado, torna-se simples-
..,
42
mente um guerreiro em presença de Atena. O que faz com que
uma representação desse gênero seja ao mesmo tempo válida
para o herói e para a situação na qual o combatente da cidade, o
hoplita, é declarado comparável aos heróis, com uma verdadei-
ra metaforização interna à imagem. Podemos ir ainda mais lon-
ge, nesse sentido, adicionando por exemplo no dispositivo car-
regador/carregado, em presença de Atena, um leão que desfila
com os personagens da imagem, ao fundo do conjunto. O valor
metafórico da imagem é assim assinalado do interior do próprio
dispositivo. o leão não tendo outra significação possível em um
contexto como esse. Aliás, o ritual dos funerais públicos não
tinha rigorosamente nada o que fazer com o que era representa-
do nas imagens desse tipo (eu deveria, desculpem, tê-Ia dito no
começo), quer dizer com esse transporte individual do cadáver
incluído no universo épico. Os mortos celebrados pelo ritual
ateniense são anônimos, coletivamente honrados, etc. e disso a
imagem não diz nada. Podemos assim ver como a imagem pode
jogar nessa estratégia da memória onde as margens de mano-
bras são bastante reduzidas. Visto que as questões de enunciação
não se colocam mais no interior do novo conjunto onde a ima-
gem joga com suas condições específicas de produção, torna-se
possível praticar uma política de memória mais flexível nesse
mundo, somando-se tudo, tão complexo que é o domínio gre-
go. Penso que seria necessário desdobrar um pouco mais tudo
isso diante de vocês.
E isso para remeter, certamente, dentro de uma perspec-
tiva antropológica. que eu defendia ontem em uma outra ofici-
na, à nossa própria prática memorial, no sistema com memória
institucional que é o nosso. Temos historiadores, universidades
onde se ensina a história. Gostaria simplesmente que nos inter-
rogássemos, enquanto produtores de memória, com relação ao
funcionamento grego da prática memorial. E gostaria, para ter-
minar e à guisa de incitar a discussão. de me perguntar se o fato
de que a primeira memória heróica produzida no curso do esta-
belecimento de nossa história republicana gire em torno de per-
43
sonagens como Vercingétorix ou Joana d' Are. que eu diria
massivamente "mfticos" à grega. é um acaso ou se isso coloca
questões sobre nossa própria gestão da memória no quadro da
instituição que a produz. BIBLIOGRAFIA
Jean-Louis Durand
VIDAL-NAQUET. P. (1978). "Les bouc1iers des héros ...",
Revue des Études grecques, no XVI.
ESCHYLE. Les Sept contre Thêbes, texto elaborado e traduzi-
do por Paul Mazon, Paris. Les Belles Lettres, Ia ed .• 1963; re-
vistaem 1966.
44 45
NOTAS
J. Vidal-Naquet. P.• 1978. Les boucliers des héros ...• Revue des Études
grecques, no XVI.
2. Eschyle. Les Sepl contre Thêbes, texto elaborado e traduzido por Paul
Mazon, Paris. Les Belles Lettres, Ia ed .• 1963. revista em 1966.
47
PAPEL DA MEMÓRIA
Não pretendo fornecer um levantamento exaustivo do
trabalho da manhã, nem resumir as três apresentações de que
nos beneficiamos. Gostaria simplesmente de dar a tonalidade
delas, acentuando o que me pareceu ser as nervuras principais
do debate.
De início, uma observação de conjunto sobre as três apre-
sentações: Pierre Achard trabalha em sociolingüística e em aná-
lise de discurso, Jean Davallon em semiótica e sociosemiótica
do espaço e Jean-Louis Durand efetua pesquisas semióticas so-
bre o gestual na antiguidade ateniense clássica.
Corríamos o risco então de ter discussões agradavelmente
paralelas, sem ponto de contato: por exemplo, uma sobre os
textos e os discursos, e outra sobre a imagem. De fato, a questão
do papel da memória permitiu um encontro efetivo entre temas
a princípio bastante diferentes. Esta questão conduziu a abordar
as condições (mecanismos, processos ...) nas quais um aconteci-
mento histórico (um elemento histórico descontínuo e exterior)
49
é suscetível de vir a se inscrever na continuidade interna, no
espaço potencial de coerência próprio a uma memória.
Memória deve ser entendida aqui não no sentido direta-
mente psicologista da "memória individual", mas nos sentidos
entrecruzados da memória mítica, da memória social inscrita
em práticas, e da memória construída do historiador. O risco
evocado de uma vizinhança flexível de mundos paralelos se deve
de fato à diversidade das condições supostas com essa inscri-
ção: é a dificuldade - com a qual é preciso um dia se confrontar
- de um campo de pesquisas que vai da referência explícita e
produtiva à lingüística, até tudo o que toca as disciplinas de
Interpretação: logo a ordem da língua e da discursividade a da
"linguagem", a da "significância" (Barthes), do simbólico e da
sirnbolização ...
Não é de se admirar, nessas condições, que a idéia de
uma fragilidade, de uma tensão contraditória no processo de
inscrição do acontecimento no espaço da memória tenha sido
constantemente presente, sob uma dupla forma-limite que de-
sempenhou o papel de ponto de referência:
. _- o acontecimento que escapa à inscrição, que não chega
a se Inscrever;
- o acontecimento que é absorvido na memória, como se
não tivesse ocorrido.
No que concerne aos múltiplos registros evocados aci-
~a, que formam uma continuidade problemática entre a lingüís-
tica ~ as disciplinas de interpretação (restando saber em que
medida a própria lingüística é ou não uma disciplina de inter-
pretação), um acordo muito amplo se manifestou, nas apresen-
50
tações e na discussão, sobre a especificidade da ordem propria-
mente lingüística (definida por exemplo como a da variação
combinatória, à qual J.-c. Milner se referiu em sua apresenta-
ção), em relacão à ordem do discursivo, e afortiori em relação
às do icônico, do simbólico ou da simbolização.
O fato de que possa existir localização de traços distinti-
vos e de oposições pertinentes na esfera do icônico, por exem-
plo, não conduziu ninguém a supor que, mesmo para uma
sincronia dada, haveria universais do icônico (pessoalmente, a
impensabilidade de uma sintaxe do icônico me parece marcada
pela inexistência da negação e da interrogação no interior da
imagem). A questão de uma possível combinatória culturalmente
determinada dos segmentos gestuais (a propósito da qual J.-L.
Durand mencionou certos trabalhos etnológicos americanos re-
centes) coloca provavelmente um problema bem diferente, mas
não desemboca mais em impossíveis universais gestuais.
Concebemos desde então que o fato incontornável da
eficácia simbólica ou "significante" da imagem tenha atraves-
sado o debate como um enigma obsediante, e que, por seu lado,
os fatos de discurso, enquanto inscrição material em uma me-
mória discursiva, tenham podido aparecer como uma espécie
de problemática-reserva. Essa negociação entre o choque de um
acontecimento histórico singular e o dispositivo complexo de
uma memória poderia bem, com efeito, colocar emjogo a nível
crucial uma passagem do visível ao nomeado, na qual a imagem
seria um operador de memória social, comportando no interior
dela mesma um programa de leitura, um percurso escrito
discursivamente em outro lugar: tocamos aqui o efeito de repe-
tição e de reconhecimento que faz da imagem como que a reci-
tação de um mito. Na transparência de sua compreensão, a ima-
gem mostraria como ela se lê, quer dizer, como ela funciona
enquanto diagrama, esquema ou trajeto enumerativo. Refiro-
me a tudo o que Jean DavaIlon adiantou a esse respeito.
51
Tocamos aqui um dos pontos de encontro com a questão
da memória como estruturação de materialidade discursiva com-
plexa, estendida em uma dialética da repetição e da regulariza-
ção: a memória discursiva seria aquilo que, face a um texto que
surge como acontecimento a ler, vem restabelecer os "implíci-
tos" (quer dizer, mais tecnicamente, os pré-construídos, elemen-
tos citados e relatados, discursos-transversos, etc.) de que sua
leitura necessita: a condição do legível em relação ao próprio
legível. Ora, acontece que esta é uma das questões cruciais atu-
almente abordadas pela análise de discurso: uma discussão aberta
a esse respeito, que - sem ser puro negócio de butique - reveste
apesar de tudo um caráter relativamente "técnico". A questão é
saber onde residem esses famosos implícitos, que estão "ausen-
tes por sua presença" na leitura da seqüência: estão eles dispo-
níveis na memória discursiva como em um fundo de gaveta, um
registro do oculto? P. Achard levanta a hipótese de que não en-
contraremos nunca, em nenhuma parte, explicitamente, esse dis-
curso- vulgata do implícito, sob uma forma estável e sedimentada:
haveria, sob a repetição, a formação de um efeito de série pelo
qual uma "regularização" (termo introduzido por P.Achard) se
iniciaria, e seria nessa própria regularização que residiriam os
implícitos, sob a forma de remissões, de retomadas e de efeitos
de paráfrase (que podem a meu ver conduzir à questão da cons-
trução dos estereótipos). Mas, sempre segundo P. Achard, essa
regularização discursiva, que tende assim a formar a lei da série
do legível, é sempre suscetível de ruir sob o peso do aconteci-
mento discursivo novo, que vem perturbar a memória: a memó-
ria tende a absorver o acontecimento, como uma série matemá-
tica prolonga-se conjeturando o termo seguinte em vista do co-
meço da série, mas o acontecimento discursivo, provocando
interrupção, pode desmanchar essa "regularização" e produzir
retrospectivamente uma outra série sob a primeira, desmascarar
o aparecimento de uma nova série que não estava constituída
enquanto tal e que é assim o produto do acontecimento; o acon-
tecimento, no caso, desloca e desregula os implícitos associa-
dos ao sistema de regularização anterior.
52
Haveria assim sempre um jogo de força na memória, sob
o choque do acontecimento:
_ um jogo de força que visa manter uma regularização
pré-existente com os implícitos que ela veicula.' confor~á-Ia co~o
"boa forma", estabilização parafrástica negociando a mtegraçao
do acontecimento, até absorvê-Io e eventualmente dissolvê-Io;
_ mas também, ao contrário, o jogo de força de uma
"desregulação" que vem perturbar a rede dos "implícitos".
Em relação com a questão da regularização, a da repeti-
ção (dos itens lexicais e dos enunciados) prolongou o debate: a
repetição é antes de tudo um efeito material que funda comut~-
ções e variações, e assegura - sobretudo ao nível da f:as.e eSCrI-
ta' - o espaço de estabilidade de uma vulgata parafrástica pro-
duzida por recorrência, quer dizer, por repetição literal dessa
identidade material.Mas a recorrência do item ou do enunciado pode tam-
bém (este é um ponto introduzido por Jean-Marie Marandin na
discussão) caracterizar uma divisão da identidade material do
item: sob o "mesmo" da material idade da palavra abre-se então
o jogo da metáfora, como outra possibilidade de articulaç~o
discursiva ... Uma espécie de repetição vertical, em que a pro-
pria memória esburaca-se, perfura-se antes de desdobrar-se em
paráfrase.
Esse efeito de opacidade (correspondente ao ponto de
divisão do mesmo e da metáfora), que marca o momento em
que os "implícitos" não são mais recons:r~tíveis, ~ provavel-
mente o que compele cada vez mais a análise de discurso a. s.e
distanciar das evidências da proposição, da frase e da estabili-
dade parafrástica, e a interrogar os efeitos materiais de monta-
gens de seqüências, sem buscar a princípio e antes de tudo sua
53
significação ou suas condições implícitas de interpretação.
Trata-se, de outro modo, de retirar-se provisoriamente,
taticamente, da questão do sentido, sabendo ao mesmo tempo
que a questão da interpretação é incontornável e retornará sem-
pre. A esse propósito, devo fazer um esclarecimento a respeito
da fala de Sylvain Auroux, que me atribuiu uma controvérsia
com l-C. Milner sobre a questão de saber se ele se estimava ou
não ser colega de Beauzée: parece-me útil explicar um pouco
de que se trata! A questão concerne de fato ao estatuto da lin-
güística frente às disciplinas de interpretação. Eu tinha pergun-
tado a Vidal-Naquet (a partir da alusão ao artigo de Nicole
Loraux "Tucfdides não é um colega", muito citado no decorrer
dessas jornadas), se, para ele, Tucídides, sem ser seu colega, era
não obstante um historiador; questão à qual P.Vidal-Naquet res-
pondeu: "Sim, certamente!", o que implica que não há começo
histórico assinalável para a disciplina histórica, na medida em
que a história é uma disciplina de interpretação: para um físico,
por exemplo, o problema de saber se Aristóteles é um colega
não se coloca. Aristóteles não é para ele nem um colega, nem
um físico. Minha questão a J.-C. Milner concernia então de fato
à posição da lingüística a respeito da interpretação. Perguntar-
se se há ou não um momento histórico assinalável em que se
pode dizer de alguém "é um lingüista", não é então colocar um
mero poblema de datação, mas levantar a questão de saber se a
lingüística é uma disciplina puramente "experimental", ou se
ela tem necessariamente algo a ver (de modo complexo, equí-
voco, ambíguo ... mas algo a ver) com as disciplinas de interpre-
tação, desde a história até a psicanálise.
Fecho este parêntese para retomar à questão da interpre-
tação em análise de discurso: P.Achard caracterizou esse movi-
mento de retirada provisório da questão do sentido e da vontade
de interpretar, lembrando o provérbio chinês "Quando lhe mos-
tramos a lua, o imbecil olha o dedo"; Com efeito, por que não?
Por que a análise de discurso não dirigiria seu olhar sobre os
54
gestos de designação antes que sobre os designata, sobre os pro-
cedimentos de montagem e as construções antes que sobre as
significações? A questão da imagem encontra assim a análise
de discurso por um outro viés: não mais a imagem legível na
transparência, porque um discurso a atravessa e a constitui, mas
a imagem opaca e muda, quer dizer, aquela da qual a memória
"perdeu" o trajeto de leitura (ela perdeu assim um trajeto que
jamais deteve em suas inscrições).
A imagem muda é por exemplo o choque opaco de uma
imagem de vaso grego: a arquelogia possui apenas o olho, quer
dizer, imagens e textos, sem coincidência, e não, como a antro-
pologia de hoje, o "a mais" do ouvido (a voz, a "trilha sonora").
O que evoco aqui remete à apresentação de J.-L. Durand, que
mostrou como a epopéia heróica grega fazia irrupção nas cenas
visuais da democracia ateniense (em particular as cenas funerá-
rias), através de telescopias burlescas por seu anacronismo (mais
ou menos como se mostrássemos Vercingétorix a bordo de um
avião a jato).
No outro extremo, o choque opaco do acontecimento
televisual é também algo que não se inscreve, na medida em
que está sempre "já lá", no retorno de um paradigma pesado
que se repete no interior de sua aparição instantânea: por exem-
plo (intervenção de Maurice Mouillaud), a história do submari-
no soviético perdido no Báltico, quando este vem à superfície
da tela de TV; o submarino está sempre lá, não necessariamente
no fundo do mar, mas nas profundezas de um paradigma que
estrutura o retorno do acontecimento sem profundidade.
Reencontramos assim, para finalizar, a questão da rela-
ção entre a imagem e o texto: no entrecruzamento desses dois
objetos, onde estamos, tecnologicamente e teori~mente, hoje,
com relação a esse problema que, após Benveniste, Barthes de-
signou com o termo ~significância"?
55
Em que pé estamos com relação a Barthes? Barthes era
tanto lingüista dos textos como teórico das imagens, ou de pre-
ferência não era nem um nem outro (quer dizer, nem lingüista,
nem semiólogo, nem analista) mas antes de tudo o esboço con-
traditório de gestos que tentamos hoje reencontrar, e que ele
soube agenciar à sua maneira talvez única, quer dizer, em pes-
soa - logo também, e de maneira equívoca: como pessoa?
A certeza que aparece, em todo caso, no fim desse deba-
te é que uma memória não poderia ser concebida como uma
esfera plena, cujas bordas seriam transcendentais históricos e
cujo conteúdo seria um sentido homogêneo, acumulado ao modo
de um reservatório: é necessariamente um espaço móvel de di-
visões, de disjunções, de deslocamentos e de retomadas, de con-
flitos de regularização ... Um espaço de desdobramentos, répli-
cas, polêmicas e contra-discursos.
E o fato de que exista assim o outro interno em toda
memória é, a meu ver, a marca do real histórico como remissão
necessária ao outro exterior, quer dizer, ao real histórico como
causa do fato de que nenhuma memória pode ser um frasco sem
exterior' .
Michel Pêcheux
56
NOTAS
I. Assinale-~e a esse propósito uma intervenção de Françoise Madré
problem~t~zando a relação escrito/ora] do ponto de vista da repetição e'
da memona.
2. Penso nas teses des~nvolvidas por Paul Veyne, que poderiam bem ilus-
trar esse pantextualIsmo que foi designado como risco constante no
decorrer dos debates. O último livro de P Veyne "Les G 'I.
à te h" dá . recs 0111-1 S cru
urs myt es a uma Idéia desse frasco ideal do relativismo absoluto.
57
• I\
MAIO DE 1968: OS SILÊNCIOS DA MEMÓRIA *
Introdução
Falando de história e de política, não há como não consi-
derar o fato de que a memória é feita de esquecimentos, de si-
lêncios. De sentidos não ditos, de sentidos a não dizer, de silên-
cios e de silenciamentos.
Os sentidos se constróem com limites. Mas há também
limites construídos com sentidos. E quando penso maio de 68, o
que vem à frente da cena - política e histórica - é o silcnciamento,
são os sentidos que impõem limites. A tortura, a censura, a agres-
são da ditadura à sociedade, à cidadania.
Mais do que ver no acontecimento maio-68 a constatação
dessa violência, interessa vê-I o, enquanto acontecimento
discursivo, justamente, como fato desencadeador de um pro-
cesso de produção de sentidos que, reprimido, vai desembocar
na absoluta dominância do discurso (neo)liberal. No entanto,
enquanto tal, no momento em que apareceu, maio-68 abria para
uma nova discursividade, produzindo efeitos metafóricos que
afetavam a história e a sociedade, de maneira explosiva, em várias
59
direções: politicamente, culturalmente, moralmente. E o que vai
se dar com essa discursividade no futuro? O que significa maio
de 68 hoje?
. Para trazermos essa questão para a reflexão, podemos
referir o texto de M. Pêcheux (p. 33 aqui mesmo), no qual ele
procura compreender, junto a lingüistas, semioticistas e histori-
adores, a fragilidade no processo de inscrição doacontecimen-
to no espaço da memória que, segundo ele, joga em uma dupla
form.a: a. o acontecimento que escapa à inscrição, que não che-
ga a Inscrever-se, e b. o acontecimento que é absorvido na me-
mória como se não tivesse ocorrido.
. . O caso que estou apresentando não se enquadra nem na
primeira, nem na segunda possibilidade. É uma nuance entre
elas: é como se n~o.tiv~sse ocorrido (b), não porque foi absorvi-
do m~s: ao contrario, justamente porque escapa à inscrição na
memor.Ia (a). E este, penso eu, o caso da censura em geral. Nes-
se sentido, embora eu explore aqui uma situação particular de
c~nsura, ess~ minha reflexão pode contribuir para a compreen-
sao da relaçao entre memória e censura em geral. .
Um pouco de teoria
É já conhecido, na análise de discurso, que há interpela-
ç.ão do indivíduo em sujeito pela ideologia. É assim que se con-
sidera que o sujeito se constitui em sujeito por ser afetado pelo
si~ból~c? ~aí seu assujeitamento, ou seja, para que o sujeito
seja sujeito e necessário que ele se submeta à língua. E é por
estar sujeito à lingua, ao simbólico, que ele, por outro lado, pode
ser sujeito de.
Além disso, é preciso que a língua se inscreva na história
60
para significar. E é isso a materialidade discursiva, isto é,
linguístico-histórica. Da interpelação do indivíduo em sujeito
pela ideologia resulta a forma-sujeito histórica. Em nosso caso,
a forma-sujeito histórica capitalista corresponde ao sujeito-jurí-
dico constituído pela ambrguidade que joga entre a autonomia e
a responsabilidade sustentada pelo vai-e-vem entre direitos e
deveres. Podemos dizer, então, que a condição inalienável para
a subjetividade é a língua, a história e o mecanismo ideológico
pelo qual o sujeito se constitui.
Por outro lado, esse sujeito, uma vez constituído, sofre
diferentes processos de individualização (e de socialização) pelo
Estado. Assim, se temos o indivíduo como ponto de partida para
o assujeitamento ao simbólico - e, quanto a este assujeitamento
o sujeito não tem controle pois ele se passa "antes, em outro
lugar e independentemente" - temos sobre esse sujeito proces-
sos que o individualizam e que derivam das diferentes formas
de poder. E aí as Instituições e o Poder constituído têm um
papel determinante. É nessa instância que se dão as lutas, os
confrontos e onde podemos observar os mecanismos de imposi-
ção, de exclusão e os de resistência.
Pois bem, é assim, partindo dessa posição teórica, que
procuraremos compreender o que tenho chamado de "proces-
sos de de-significação" que estão presentes em discursividades
como as que incidem sobre maio de 68. Portanto, não tratare-
mos o sujeito como algo que se trabalha do ponto de vista de
uma sua essência, mas pensando sua existência como constituí-
da pela sua relação com a língua e com a história onde se con-
frontam o simbólico e o político.
E a nossa questão é: o que aconteceu com os sentidos
que constituem o evento maio-68?
Para falar disso retomamos o fato de que falar é esque-
cer. Esquecer para que surjam novos sentidos mas também es-
61
quecer apagando os novos sentidos que já foram possíveis mas
foram estancados em um processo histórico-político silenciador.
São sentidos que são evitados, de-significados.
Formações Discursivas e Esvaziamento de Sentido
A definição de formação discursiva diz que ela delimita
"aquilo que pode e deve ser dito por um sujeito em uma posição
discursiva em um momento dado em uma conjuntura dada"
(Haroche, Henry, Pêcheux, 1975).
• '" i~
• ~ • Rr' f,
I
No modo como o político se simboliza nos anos 60 há
todo um possível dizer da sociedade, da cultura que coloca os
sujeitos em medida de uma transformação histórica e social de
grande dimensão. Essa possibilidade eclode nos movimentos
de 68 tendo a palavra liberdade como carro-chefe. No mundo
todo há manifestações de rua em que uma discursividade can-
dente trabalha os muitos sentidos postos na reivindicação das
liberdades concretas necessárias à sociedade em suas novas
posssíveis formas.
São assim enunciados que funcionam em suas relações
parafrásticas, relacionando-se em suas diferentes formulações
ao que pode significar "liberdade":
a. "É proibido proibir!".
b. "Faça amor e não faça guerra !" que deriva ainda para
"Paz e Amor!".
c. "Boulot, Metro, Dodo!" em português: "Trabalho,
Condução e Cama!".
Que, em suas diferentes formas de dizer, afirmam a re-
62
cusa a uma vida reduzida a regras e a um trabalho que, por sua
vez, reduz o homem em suas possibilidades de vida.
Uma paráfrase agora, com o tempo já deslocado, mostra
a conversão desse discurso em um processo que o de-signifi-
cou. Essa paráfrase aparece, em maio de 1998, em um poster
de propaganda no metrô de Paris: um casal nu, tatuado com
flores no peito, dirigindo-se a uma exposição, e, embaixo, os
dizeres "Entrada livre. Isso faria sonharem seus pais ...".
Esse enunciado por sua vez mostra a forma como os sen-
tidos concretos e explosivos de liberdade, que estavam levando
à uma revolução social e cultural, a novos sentidos para os su-
jeitos e para à história, foram barrados violentamente pelo status
quo. Pelas instituições, pelo poder. E, no caso do Brasil, mais
violentamente ainda porque estávamos em uma ditadurae 'era
bem diferente dizer "É proibido proibir" aqui em uma rua de
São Paulo e em uma rua de Paris ...
No poster dos anos 90 "entrada livre" e gratuita reduz o
sentido de liberdade ao preço de um parque de diversões.
o interditado que toma a forma do impossível
Então, sentidos possíveis, historicamente viáveis foram
politicamente interditados. E tornaram-se inviáveis. Essa im-
possibilidade, posta pela censura e pela força, se naturaliza e
funciona como um pre-construído restritivo a certos sentidos de
liberdade, de tal maneira, que eles parecem impossíveis. Foram
assim desmoralizados, amolecidos, inviabilizados, de-signifi-
cados, postos fora do discurso. E a palavra "liberdade" aparece
feito florzinha que se prende com um bottom numa roupinha
maneira ... Ao mesmo tempo, pela outra mão, a da direita, nesse
mesmo processo, se estabelecem as bases do discurso neo-libe-
63
ral em que se individualiza a questão da liberdade, destituindo-
a da força concreta histórica que ela tinha na outra formação
discursiva - a da esquerda, em que o partido comunista propu-
nha em seu programa a necessidade de construção de uma de-
mocracia fundada nas liberdades concretas necessárias para as
novas formas sociais - em que haviam se alocado sentidos ex-
plosivos de liberdade. E o que é silenciado em uma formação
discursiva é acolhido em outra formação discursiva, esta, domi-
nante, que corresponde ao viés pragmático e empresarial da
política neo-liberal desembaraçada dos sentidos mais corrosi-
vos, transformadores do político. Essa liberdade sem determi-
nações concretas, agora generalizada, pode ser reivindicada,
individualizando-se, até pelos neo-nazistas que, em nome dela,
exigem o direito de usar a suástica em suas roupas opressivas.
o que é isto companheiro?
Não é nada disso, companheiro, diz uma paráfrase de
José Simão que, com seu humor, evoca o jogo discursivo que
atravessa esse enunciado em sua memória, agora transformada
de romance em filme.
E a questão é, sem dúvida uma questão de memória. No
sentido discursivo. A memória - o interdiscurso, como defini-
mos na análise de discurso - é o saber discursivo que faz com
que, ao falarmos, nossas palavras façam sentido. Ela se consti-
tui pelo já-dito que possibilita todo dizer.
Pois bem, como dissemos no início, o sujeito é
assujeitado, pois para falar precisa ser afetado pela língua. Por
outro lado, para que suas palavras tenham sentido é preciso que
já tenham sentido. Assim é que dizemos que ele é historicamen-
te determinado, pelo interdiscurso, pela memória do dizer: algo
fala antes, em outro lugar, independentemente. Palavras já

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