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Administração Bacharelado SERVIÇO PÚBLICO FEDERAL Ministério da Educação Fundação Universidade Federal do Rio Grande Universidade Aberta do Brasil Administração – Bacharelado Módulo 1 Revolução Industrial e Economia de Mercado Prof. Márcio Bauer Observe as imagens abaixo. O homem da foto é Adam Smith, economista escocês que escreveu, em 1776, o livro A Riqueza das Nações. Do lado direito de Smith temos uma máquina a vapor e do lado esquerdo algumas ovelhas. Agora responda: qual delas melhor representa a Revolução Industrial? Talvez você escolha a máquina a vapor, afinal ela representa o início da mecanização do trabalho, o que possibilitou o surgimento das modernas fábricas em substituição às manufaturas. Mas talvez você escolha Adam Smith, afinal ele é o pai do liberalismo e defensor da divisão do trabalho como elemento impulsionador da economia. É dele a célebre frase: “Assim, o mercador ou comerciante, movido apenas pelo seu próprio interesse egoísta (auto- interesse), é levado por uma mão invisível a promover algo que nunca fez parte do interesse dele: o bem-estar da sociedade.” (veja mais no link http://pt.wikipedia.org/wiki/Adam_Smith). Porém, é pouco provável que você se escolha aquelas ingênuas ovelhas, uma imagem difícil de associar com indústria, muito menos com revolução. Ao final deste texto você verá que existe sim muita relação entre elas e a Revolução Industrial. Convém salientar que esta versão dos fatos não é muito encontrada nos livros de TGA. O porquê disso tem a ver com a primeira aula sobre ciência e administração, principalmente em relação aos paradigmas. Mas deixemos esta discussão para outro momento. Neste texto procurei apresentar uma interpretação um pouco diferente dos fatos, baseada em autores como Omar Aktouf e Karl Polanyi. O objetivo é que se compreenda os antecedentes e as características da Revolução Industrial. Administração Bacharelado Convém, antes de tudo, livrar-nos de certas falsas verdades e ambigüidades cultivadas, durante muito tempo, a propósito da gênese da Revolução Industrial. Geralmente, retêm-se três fatores explicativos: os empreendedores, a ciência e a técnica. Ora, quando se empreende uma análise histórica, conclui-se que como empreendedores [...] não temos somente, como quer a tradição, artesãos ou mestres que se tornaram industriais graças a seu “gênio” e suas “técnicas”. Claro que este tipo de artesão se tornou industrial, mas estava longe de ser maioria, como se quer fazer crer. Os novos industriais do século XVIII e XIX eram comerciantes, sobretudo de tecidos, que tinham juntado dinheiro bastante, baixando constantemente os salários dos tecelões, para dispor de dezenas de trabalhadores reunidos num só lugar. Sua habilidade mais particular era a de disciplinar e controlar o trabalho como jamais se fizera antes. Quanto às ciências e às técnicas, cuja imagem típica invocada é a da máquina a vapor, bastará precisar [...] que esta só apareceu bem mais tarde, muito depois de instalada [...] a indústria têxtil. Foram necessários muitos anos para que James Watt a desenvolvesse, sob contrato com um industrial já estabelecido e rico: John Roebuck. Aliás, as teorias da física da época não permitiam nenhuma aplicação capaz de resultar na concepção de um sistema do tipo da máquina a vapor, com um rendimento eficaz. Sabe-se também, por exemplo, que os comerciantes que se tomaram progressivamente industriais se arranjaram não somente para obter o monopólio da modelagem e da distribuição, mas também a interdição de transformar o equipamento! São eles que estão também na origem da impopularidade e do exílio imposto a William Lee, o inventor, já no fim do século XVI, de uma máquina para tricotar meias (stocking frame)1. Aktouf lembra que a instalação da classe de industriais no Ocidente se fez pela destruição do sistema sociopolítico preexistente: o feudalismo e a aristocracia. A industrialização nascente quebrou os últimos restos de comunidade e solidariedade tradicionais, legados pela Idade Média. Sob o feudalismo a terra e o trabalho formavam parte da própria organização social e o dinheiro ainda não se tinha desenvolvido no elemento principal da indústria. A terra, o elemento crucial da ordem feudal, era a base do sistema militar, jurídico e político; seu status e 1 AKTOUF, Omar. A administração entre a tradição e a renovação. São Paulo: Atlas, 1996. p. 102. Módulo 1 função eram determinados por regras legais e costumeiras (consuetudinárias). Se a sua posse era transferível ou não era uma questão que ficava à parte da organização de compra e venda e sujeita a um conjunto inteiramente diferente de regulamentações institucionais. O mesmo também se aplicava ao trabalho. Sob o sistema de guildas, as motivações e as circunstâncias das atividades produtivas estavam inseridas na organização geral das sociedades. As relações do mestre, do jornaleiro e do aprendiz; as condições do artesanato; o número de aprendizes; os salários dos trabalhadores, tudo era regulado pelo costume e pelas regras de guilda da cidade. Mesmo o mercantilismo, com toda sua tendência em direção à comercialização, jamais atacou as salvaguardas que protegiam estes dois elementos básicos da produção (trabalho e terra)2. Quais fatores, então, estiveram mais diretamente ligados à origem da Revolução Industrial? De acordo com Aktouf, primeiramente, a revolução agrícola que aconteceu entre os séculos XVII e XVIII, em seguida, as leis sobre o cercamento dos campos e, por fim, a capacidade de reunir, sob o mesmo teto, dezenas de trabalhadores não-artesãos e muito mal pagos, quando o eram. A revolução agrícola vem da Holanda, onde se desenvolvem técnicas de grande eficácia para rentabilizar terras duramente ganhas e protegidas contra a invasão das águas e do mar. Estas técnicas vão beneficiar a produção de cereais e, exportadas para a Inglaterra, lá vão também gerar excedentes consideráveis. A renda suplementar daí decorrente dirige-se principalmente para o consumo de produtos têxteis, que estimula a produção de lonas e tecidos (cuja matéria prima era o algodão e a lã)3. O aumento do volume do comércio expandia o número de empregos o que influenciava o êxodo rural. O boato distante de salários elevados tornava os camponeses insatisfeitos com suas condições na agricultura. Embora o número absoluto de empregos no comércio crescesse, as suas flutuações geravam um número muito maior de desempregados, e acabavam por formar um “exército industrial de reserva” que superava o exército industrial propriamente dito4. A prática do cercamento dos campos, iniciada desde os séculos XVII, objetivava a criação de rebanhos de ovelhas em maior escala, já que a lã era cada vez mais procurada pela indústria têxtil5. Os cercamentos foram chamados, de uma forma adequada, de revolução dos ricos contra os pobres. Os senhores e os nobres 2 POLANYI, Karl. A Grande Transformação. Rio de Janeiro: Elsevier, 2000. p. 91. 3 AKTOUF, Op. Cit.p. 103 4 POLANYI, Op. Cit. 5 AKTOUF, Op. Cit. Administração Bacharelado estavam perturbando a ordem social, destruindo as leis e os costumes tradicionais, às vezes pela violência, às vezes por pressão e intimidação. Eles literalmente roubavam o pobre na sua parcela de terras comuns, demolindo casas que até então, por força de antigos costumes, os pobres consideravam como suas e de seus herdeiros.O tecido social estava sendo destruído; aldeias abandonadas e ruínas de moradias humanas testemunhavam a ferocidade da revolução, ameaçando as defesas do país, depredando suas cidades, dizimando sua população, transformando seu solo sobrecarregado em poeira, atormentando seu povo e transformando- o de homens e mulheres decentes numa malta de mendigos e ladrões6. Para Polanyi, a guerra contra as habitações do campo, a absorção das hortas e terrenos que rodeavam essas habitações e o confisco dos direitos sobre as terras comuns, privaram a indústria doméstica (artesanal) de suas duas bases: os rendimentos familiares e a retaguarda agrícola (canteiros de horta, pedaços de terra ou pastagens). Enquanto a indústria doméstica era por elas suplementada, não havia a dependência do trabalhador em relação a rendimentos monetários. Sem isso, as massas de operários miseráveis se multiplicavam nas cidades enquanto as fortunas realizadas cresciam rapidamente. Esta relação inversa, entre industriais que se enriqueciam consideravelmente e trabalhadores que se empobreciam ou permaneciam pobres não deixava de inquietar os pensadores da época, particularmente os economistas [...]. Os clássicos viam a pobreza como um tipo de tara ou de vício, devidos à propensão desenfreada a procriar das “camadas inferiores” da sociedade, enquanto os neoconservadores se vangloriavam de ser “cientistas” preocupados com fatos e medidas, com o único fim de explicá-los e predizê-Ios, sem se preocupar com quem dominava o quê em detrimento de quem, o que seria “não-científico”7. Neste período, inúmeras leis tentavam dar conta do fenômeno da pobreza. Na Inglaterra, por exemplo, foi criada a Lei dos Pobres, que responsabilizava cada paróquia pelo cuidado com os pobres e indigentes. Acontece que muitas delas não tinham recursos para tal cuidado, enquanto outras, em melhor situação, eram invadidas por “indigentes profissionais”. 6 POLANYI. Op. Cit. p. 53 7 AKTOUF, Op. Cit. P. 104 Módulo 1 Tentou-se criar mecanismos legais para impedir a migração dos pobres, mas eles foram criticados (pelo próprio Adam Smith, inclusive) por imobilizar os trabalhadores, impedindo-os de encontrar emprego útil, da mesma forma que impedia os capitalistas de encontrar empregados. Finalmente com a revogação da lei foi possível a criação de um mercado de trabalho em escala nacional, o que não impediu o agravamento das condições de pobreza. De acordo com Aktouf, todo o processo de expropriação dos trabalhadores de seus meios de produção e subsistência autônoma foi feito dentro da observância da lei. Leis eram necessárias, pois era preciso liberar os proprietários das obrigações do direito consuetudinário, que impunha, entre outras coisas, a ligação do servo à terra. A fim de poder criar carneiros, ou somente remembrar os terrenos para cultivar trigo, segundo as novas técnicas mais rentáveis, era preciso expulsar uma boa parte dos camponeses ainda estabelecidos nas terras senhoriais. Aqui também se legislou. Mas isto reforçou o êxodo rural e o fluxo de massas de servos e de pequenos camponeses que perderam emprego e terra e não possuíam nenhum outro ofício. A tecelagem era então o setor em expansão, e para ela se encaminhava diretamente a mão- de-obra excedente. Tudo isso teve conseqüências muito importantes. As mais determinantes foram a queda dramática da renda dos tecelões, devido ao excedente de mão-de-obra que chegava para o trabalho de tecelagem, e, com sua ruína, a possibilidade para o mascate de tecidos de reunir muitos tecelões num mesmo lugar. Os teares e matérias-primas passaram também para sua propriedade. Este lugar será o verdadeiro ancestral da empresa moderna. Ele se distingue radicalmente dos ateliês e butiques de artesãos, mesmo dos de tamanho respeitável: nele a mão-de-obra é cada vez mais sem qualificação, a hierarquia é piramidal e não-rotativa (o aprendiz podia, um dia, tornar-se mestre e dono da butique), o tempo e o ritmo de trabalho são impostos e controlados. Era pela força que neles se enfiavam, segundo Mantoux, pobres, órfãos, mulheres etc. Freqüentemente a prisão ou o hospício forneciam a mão-de-obra, que recebia salários de fome ou um leito e uma ração miseráveis8. 8 Idem,. p. 103 Administração Bacharelado Diante deste cenário, é possível compreender a Revolução Industrial não como um instante no tempo, mas como um processo que representou uma profunda transformação social. Mas quais seriam as características básicas da Revolução Industrial? Será que foi o aparecimento de cidades fabris, a emergência de favelas, as longas horas de trabalho das crianças, os baixos salários de certas categorias de trabalhadores, o aumento da taxa populacional, ou a concentração das indústrias? Imaginamos que todos esses elementos foram apenas incidentais em relação a uma mudança básica, o estabelecimento da economia de mercado, e que a natureza dessa instituição não pode ser inteiramente apreendida até que se compreenda o impacto da máquina numa sociedade comercial. Não pretendemos afirmar que foi a máquina que causou esta mudança, mas insistimos que quando as máquinas complicadas e esta belecimentos fabris começaram a ser usados para a produção numa sociedade comercial, começou a tomar corpo a idéia de um mercado auto-regulável. A utilização de máquinas especializadas numa sociedade agrária e comercial deve produzir efeitos típicos. Uma sociedade como essa consiste de agricultores e mercadores que compram e vendem o pro- duto da terra. A produção com a ajuda de ferramentas e fábricas especializadas, complicadas, dispendiosas só pode se ajustar a uma tal sociedade tornando isto incidental ao ato de comprar e vender. O mercador é a única pessoa disponível para assumir isto, e ele estará disposto a desempenhar essa atividade desde que ela não importe em prejuízo. Ele venderá as mercadorias da mesma forma como já vinha vendendo outras àqueles que delas precisavam. Entretanto, ele vai procurá-las de modo diferente, isto é, não mais adquiriu-as já prontas, mas comprando o trabalho necessário e a matéria- prima. Esses dois elementos combinados, sob as instruções do mercador, mais o tempo de espera em que ele poderá incorrer, resultam em um novo produto. Esta não é a descrição apenas de uma indústria doméstica, ou de “fazer-se ao mar”, mas de qualquer espécie de capitalismo industrial, inclusive o do nosso tempo. Seguem-se importantes conseqüências para o sistema social. Uma vez que as máquinas complicadas são dispendiosas, elas só são rentáveis quando produzem grande quantidade de mercadorias. Elas só podem trabalhar sem prejuízo se a saída de mercadorias é Módulo 1 razoavelmente garantida, e se a produção não precisar ser interrompida por falta das matérias-primas necessárias para alimentar as máquinas. Para o mercador isto significa que todos os fatores envolvidos têm que estar à venda, isto é, eles precisam estar disponíveis, nas quantidades necessárias, para quem quer que esteja em condições de pagar por eles. A menos que essa condição seja preenchida, a produção com a ajuda de máquinas especializadas torna-se demasiado arriscada para ser empreendida, tanto do ponto de vista do mercador, que empata seu dinheiro, como da comunidade como um todo, que passa a depender de uma produção contínua para conseguir renda, emprego e provisões. Ora, numa sociedade agrícola tais condições não surgiram natural- mente - elas teriam que ser criadas. O fato de terem sido criadasgra- dualmente de maneira alguma afeta a natureza surpreendente das mudanças envolvidas. A transformação implica uma mudança na motivação da ação por parte dos membros da sociedade: a motivação do lucro passa a substituir a motivação da subsistência. Todas as transações se transformam em transações monetárias e estas, por sua vez, exigem que seja introduzido um meio de intercâmbio em cada articulação da vida industrial. Todas as rendas devem derivar da venda de alguma coisa e, qualquer que seja a verdadeira fonte de renda de uma pessoa, ela deve ser vista como resultante de uma venda. É isto o que significa o simples termo “sistema de mercado” pelo qual designamos o padrão institucional descrito. Mas a peculiaridade mais surpreendente do siste ma repousa no fato de que, uma vez estabelecido, tem que se lhe permitir funcionar sem qualquer interferência externa. Os lucros não são mais garantidos e o mercador tem que auferir seus lucros no mercado. Os preços devem ter a liberdade de se auto-regularem. É justamente esse sistema auto-regulável de mercados o que queremos dizer com economia de mercado.9 De acordo com Polanyi não foi o aparecimento da máquina que mudou completamente a relação do mercador com a produção, mas o aparecimento de “maquinarias e fábricas complicadas”. Quanto mais complicada se tornou a produção industrial, mais numerosos passaram a ser os elementos da indústria que exigiam garantia de fornecimento. Três deles eram de importância fundamental: o trabalho, a terra e o dinheiro. 9 POLANYI, Op. Cit. p. 59-60. Administração Bacharelado De acordo com Polanyi, a sociedade do século XIX revelou-se, de fato, um ponto de partida singular, no qual a atividade econômica foi isolada e imputada a uma motivação econômica distinta. Para o autor, uma economia de mercado só poderia funcionar em uma sociedade de mercado e isso significava a possibilidade de comercialização de todos os componentes da indústria (o trabalho, a terra e o dinheiro). “Acontece, porém, que o trabalho e a terra nada mais são do que os próprios seres humanos nos quais consistem todas as sociedades, e o ambiente natural no qual elas existem. Incluí-los no mecanismo de mercado significa subordinar a própria substância da sociedade às leis do mercado”10. Vimos nesta breve descrição como estes elementos se tornaram administráveis e comercializáveis. Se hoje isso é para nós algo muito natural não podemos esquecer o quão radical, e muitas vezes violento, foi este processo. Não é para menos que inúmeros movimentos de contestação e revolta surgiram, e muitos intelectuais denunciaram os perigos do livre mercado. Concluo este texto com um trecho do livro de Polanyi, bastante oportuno para os nossos dias, se julgarmos que ele foi escrito há 67 anos. Esta suposta mercadoria, a força de trabalho, não pode ser impelida, usada indiscriminadamente, ou até mesmo não utilizada, sem afetar também o indivíduo humano que acontece ser o portador dessa mercadoria peculiar. Ao dispor da força de trabalho de um homem, o sistema disporia também, incidentalmente, da entidade física, psicológica e moral do “homem” ligado a essa etiqueta. Despojados da cobertura protetora das instituições culturais, os seres humanos sucumbiriam sob os efeitos do abandono social; morreriam vítimas de um agudo transtorno social, através do vício, da perversão, do crime e da fome. A natureza seria reduzida a seus elementos mínimos, conspurcadas as paisagens e os arredores, poluídos os rios, a segurança militar ameaçada e destruído o poder de produzir alimentos e matérias-primas. Finalmente, a administração do poder de compra por parte do mercado liquidaria empresas periodicamente, pois as faltas e os excessos de dinheiro seriam tão desastrosos para os negócios como as enchentes e as secas nas sociedades primitivas11. 10 Idem, p. 93. 11 POLANYI, Op. Cit. p. 94-95.
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