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CAPÍTULO 11 Experiência e pensamento 1. A natureza da experiência. – Só pode ser compreendida a natureza da experiência, observando-se que encerra em si um elemento ativo e outro passivo, especialmente combinados. Em seu aspecto ativo, a experiência é tentativa – significação que se torna manifesta nos termos experimento, experimentação que lhe são associados. No aspecto passivo, ela é sofrimento, passar por alguma coisa. Quando experimentamos alguma coisa, agimos sobre ela, fazendo alguma coisa com ela; em seguida sofremos ou sentimos as conseqüências. Fazemos alguma coisa ao objeto da experiência, e em seguida ele nos faz em troca alguma coisa: essa é a combinação específica de que falamos. A conexão dessas duas fases da experiência mede o fruto o valor da mesma. A simples atividade não constitui experiência. É dispersiva, centrífuga, dissipadora. A experiência na sua qualidade de tentativa subentende mudança, mas a mudança será uma transição em significação se não se relacionar conscientemente com a onda de retorno das conseqüências que dela defluam. Quando uma atividade continua pelas conseqüências que dela decorrem a dentro, quando a mudança feita pela ação se reflete em uma mudança operada em nós, esse fluxo e refluxo são repassados de significação. Aprendemos alguma coisa. Não existe experiência quando uma criança simplesmente põe o dedo no fogo; será experiência quando o movimento se associa com a dor que ela sofre, em conseqüência daquele fato. De então por diante o fato de se pôr o dedo no fogo significa uma queimadura. Ser queimado será apenas uma simples modificação física, como o queimar-se um pedaço de lenha, se não for percebido como conseqüência de uma outra ação. Os impulsos cegos e caprichosos impelem-nos irreflexivamente de uma coisa para outra. Enquanto isto acontece, é 153 Experiência e pensamento como se escrevêssemos na água. Nada existe daquele desenvolvimento acumulativo que constitui uma experiência em qualquer dos sentidos vitais deste termo. Por outra parte, acontecem- nos muitas coisas que constituem prazer e dor e que não associamos a qualquer ato nosso anterior. Elas são mais ou menos simples acidentes, na proporção em que nos interessem. Nada existe antes ou depois desta experiência; nenhuma vista retrospectiva nem previsão, e por conseqüência nenhuma significação, nenhum sentido. Nada aprendemos que possamos utilizar para prever o que poderá suceder em seguida, nem adquirimos nenhuma nova aptidão para nos adaptarmos àquilo que vai acontecer – não há aumento do nosso domínio sobre o meio. Só com muita condescendência pode-se chamar tal coisa uma experiência. “Aprender da experiência” é fazer uma associação retrospectiva e prospectiva entre aquilo que fazemos às coisas e aquilo que em conseqüência essas coisas nos fazem gozar ou sofrer. Em tais condições a ação torna-se uma tentativa; experimenta-se o mundo para se saber como ele é; o que sofrer em conseqüência torna-se instrução – isto é, a descoberta das relações entre as coisas. Disto decorrem duas conclusões importantes para a educação. 1) A experiência é, primariamente, uma ação ativo- passiva; não é, primariamente, cognitiva. 2) a medida do valor de uma experiência reside na percepção das relações ou continuidades a que nos conduz. Ela inclui a cognição na proporção em que seja cumulativa ou conduza a alguma coisa ou tenha significação. Os que recebem instrução nas escolas são habitualmente considerados como se adquirissem conhecimentos na qualidade de puros espectadores, de espírito que absorvem os conhecimentos pela energia direta da inteligência. A própria palavra aluno quase chega a significar uma pessoa que não está a passar por experiências frutíferas, senão que está a absorver diretamente os conhecimentos. Costumamos separar a coisa que se chama espírito ou consciência, dos órgãos físicos da atividade. Considera-se o espírito ou a consciência, como faculdade puramente intelectual e cognitiva, e aqueles últimos como fatores físicos instrusos e sem importância. Rompe-se a união íntima da atividade com as conseqüências que nos faz reconhecer o sentido das coisas; temos, em vez dela, dois fragmentos; de uma parte, a simples ação do corpo; e, por outro lado, as significações e sentidos hauridos diretamente pela atividade “espiritual”. 154 Democracia e educação Impossível seria expor perfeitamente os maus resultados que dimanaram desse dualismo – espírito e corpo – e, muito menos, exagerá-los. Podem-se, todavia, enumerar alguns dos seus efeitos mais visíveis. a) A atividade corporal torna-se em parte uma intrusa. Como se acredita que ela nada tem que ver com a atividade mental, torna- se distração, um mal que se deve combater. Mas, o aluno tem um corpo e leva-o à escola juntamente com seu espírito. E o corpo é, por sua natureza, uma fonte de energia; ele tem que fazer alguma coisa. Como, entretanto, essa atividade não está sendo utilizada em coisas significativas, ela deve ser contrariada e impedida. Ela faz o aluno esquecer-se da lição com que seu “espírito” se deve ocupar; é fonte de malefícios. A principal fonte do “problema da disciplina” nas escolas é que o professor tem quase sempre de passar a maior parte do tempo impedindo a atividade corporal que alheia o espírito do objeto da lição. Prometem-se prêmios para os que ficarem fisicamente mais quietos, para os que guardarem mais silêncio e mais rígida uniformidade de postura e movimentos, e melhor simularem atitudes maquinais de inteligente interesse. O problema dos professores é obter dos alunos tal procedimento e punir os desvios que inevitavelmente ocorrem. A tensão e a fadiga nervosas, para o professor e para o aluno, são a conseqüência necessária da anormalidade da situação de estar a atividade corpórea divorciada da atividade perceptiva. Alternam-se então a indiferença total e explosões intermitentes de caprichos. Como o corpo esquecido não encontra o derivado de uma atividade frutífera, desmanda-se, sem saber como nem porque, em turbulência inútil, ou em peraltices igualmente sem significação – coisas essas mui diversas dos brincos normais das crianças. As fisicamente ativas tornam-se irrequietas e indisciplinadas; quanto às mais acomodadas, a quem chamam de ajuizadas, gastam a energia deque dispõem na tarefa negativa de recalcar seus instintos e suas tendências ativas, em vez de empregá-las na tarefa positiva de planejar e de agir construtivamente; não são, assim, educadas para a responsabilidade do uso significativo e harmonioso das aptidões corpóreas, e sim no dever imposto de não lhes dar livre expansão. Pode-se asseverar firmemente que uma das causas principais dos notáveis frutos da educação grega é que nunca esta se deixou desviar por falsas noções para uma separação entre o espírito e o corpo. 155 Experiência e pensamento b) No entanto, mesmo com referência às lições que têm de ser aprendidas por meio da “mente” ou “espírito” é indispensável usar algumas atividades corporais. Cumpre empregar os sentidos – especialmente a vista e o ouvido – no que dizem o livro, o mapa, o quadro-negro, o professor. Necessita-se usar os lábios, os órgãos vocais, e as mãos, para reproduzir, falando ou escrevendo, o que foi armazenado no espírito. Consideram-se então os sentidos como espécies de misteriosos condutos por meio dos quais os conhecimentos são veiculados do mundo exterior para o espírito; fala-se deles como de portas e avenidas para o conhecimento. Manter o olhar preso ao livro e ter os ouvidos abertos para as palavras do mestre, é uma fonte misteriosa de milagres intelectuais. Mais ainda: ler, escrever e contar – importantes artes escolares – exigem adestramento muscular ou motor. De acordo com isso,necessitam-se exercitar os músculos dos olhos, da mão e dos órgãos vocais como canais para fazerem os conhecimentos voltarem do espírito, transformando-se em atos exteriores. Pois acontece que usar do mesmo modo e repetidamente os músculos fixa neles uma automática tendência para a repetição. O resultado patente de tudo isso é o uso maquinal da atividade corpórea que (a despeito do caráter geralmente obstrutor e metediço do corpo nos atos mentais) tem de ser mais ou menos empregado. Com efeito, os sentidos e os músculos são usados não como os participantes como os participantes orgânicos de uma experiência educativa, mas como condutos exteriores de entrada e saída para o espírito. Antes de ir a criança para a escola, ela aprende a usar de suas mãos, de seus olhos e ouvidos porque são fatores no processo de fazer-se alguma coisa com sentido, alguma coisa de que resultam novas significações. O menino que “empina” um papagaio tem de conservar o olhar fixo neste e de notar as variações da pressão do fio na mão. Seus sentidos são avenidas para os conhecimentos, não porque os fatos exteriores sejam de certo modo “veiculados” para o cérebro, e sim por serem usados para fazer alguma coisa com determinado objetivo. As qualidades das coisas vistas e sentidas têm alcance sobre o que está fazendo e são, por isso mesmo, vivamente percebidas; possuem uma significação, possuem um sentido. Mas quando se fazem os discípulos utilizar-se da vista para observar as formar das palavras, 156 Democracia e educação independentemente de sua significação, com o fim de reproduzi-las escrevendo ou lendo, o adestramento resultantes desse ato é simplesmente o de órgãos dos sentidos ou músculos isolados. É a circunstância de isolar-se assim um ato de seu objetivo que torna o referido ato maquinal. Os professores costumam insistir com os alunos para lerem com expressão, a fim de porem em relevo o sentido de que lêem. Mas se desde o começo aprenderam a técnica sensório-motora da leitura – a aptidão de reconhecer as formas das palavras e reproduzir os sons que elas substituem – por meio de métodos que não chamavam a atenção para a significação, estabeleceu-se um hábito maquinal que torna em seguida difícil ler compreendendo-se o sentido daquilo que se lê. Os órgãos vocais foram exercitados para desempenharem sua função automaticamente e isolados, e não podemos, por isso, associar, a essa função, quando o quisermos, a significação das frases. O desenho, o canto e a escrita podem ser ensinados pelo mesmo processo mecânico; pois, repetimos, é mecânico todo o processo de ensino que restringe a atividade corpórea ao ponto de chegar-se à separação do corpo e do espírito – isto é, da percepção do sentido do que se está fazendo. Do mesmo mal sofrem as matemáticas até em seus mais altos ramos, quando se insiste indevidamente na técnica do cálculo, e também as ciências, quando os exercícios de laboratório são ministrados pelo mérito que têm em si mesmos. c) Quanto ao aspecto intelectual, a separação do “espírito”, do trato direto das coisas, dá exagerada importância às coisas, em detrimento de suas relações ou associações. É muito comum separarem-se dos juízos as percepções e até mesmo as idéias. Pensa-se que aqueles venham depois das últimas, com o fim de compará-las. Alega-se que o espírito percebe as coisas independentemente de suas relações – e que concebe idéias dessas coisas, sem atender às suas associações – ao que as anteceda ou suceda. Apela-se em seguida para o ato de julgar ou de raciocinar, para combinar os elementos destacados do “conhecimento”, de modo que se patenteie sua semelhança ou associação casual. O fato é, entretanto, que toda a percepção e toda a idéia nada mais é do que o senso do alcance, do uso e da causa de alguma coisa. Nós não conhecemos uma cadeira ou temos dela uma idéia catalogando e enumerando seus vários e isolados característicos em conexão 157 Experiência e pensamento com alguma outra coisa – com o seu destino, que faz dela uma cadeira e não uma mesa – ou com a diferença entre a espécie de cadeira a que estamos acostumados, ou com a “época” que ela representa, e assim por diante. Não reconhecemos um carro depois de juntarmos todas as suas partes; é a relação característica entre essas partes que faz que ele seja um carro. E essas relações não são as de meras justaposições físicas; elas subentendem a associação com os animais que o puxam, com as coisas nele transportadas, e assim por diante. Emprega-se o ato de julgar na própria percepção; de outro modo, a percepção seria simples excitação sensorial, ou então reconhecimento do resultado de um juízo anterior, como no caso de objetos familiares. As palavras, fichas das idéias, são, entretanto, facilmente tomadas pelas idéias. E exatamente na proporção em que a atividade mental se separa de um interesse ativo pelo mundo, em que se separa do ato de se fazer alguma coisa e de se relacionar essa coisa com aquilo que se está sentindo, as palavras, os símbolos tomam o lugar das idéias. A substituição é tanto mais sutil quanto subsiste algum sentido, alguma significação. Mas habituamo-nos facilmente a contentar-nos com um mínimo de sentido e a deixar de notar quão restrita é nossa percepção das relações que dão às coisas as suas verdadeiras significações. Acostumamo-nos tão completamente a uma espécie de pseudo-idéia, de meia percepção, que não temos acordo de quanto é semimorta nossa atividade mental e quanto mais penetrantes e extensas seriam nossas observações e idéias, se as formássemos em meio às condições de uma experiência vivificante que requeresse, de nossa parte, o esforço de pensar e o uso do raciocínio: fazendo-nos procurar as conexões das coisas com que nos ocupamos. Não há divergência de opinião quanto à parte teórica da matéria. Todas as autoridades estão de acordo sobre o ponto de que discernirem-se as relações é a parte genuinamente intelectual – e, portanto, genuinamente educativa. O erro provém de acreditar-se que se possam perceber as relações sem a experiência – sem a combinação do tentar e do sofrer as conseqüências a que já nos referimos. Presume-se que para o “espírito” apreendê-las basta-lhe prestar atenção e que se pode prestar essa atenção à vontade, independentemente da situação. Daí a infinidade de meias observações, de idéias 158 Democracia e educação verbais e de “conhecimentos” inassimilados que assolam o mundo. Uma onça de experiência vale mais que uma tonelada de teorias simplesmente porque é só pela experiência que qualquer teoria tem importância vital e verificável. Uma experiência, uma humílima experiência, é capaz de originar ou de conduzir qualquer quantidade de teoria (ou conteúdo intelectual), mas uma teoria, à parte da experiência, não pode nem mesmo ser definidamente apreendida como teoria. Ela tende a converter-se em meras fórmulas verbais, numa série de “deixas” utilizadas para tornar desnecessários e impossíveis o ato de pensar ou elaboração de verdadeiras teorias. Devido à nossa educação, empregamos palavras, pensando que elas são idéias para expor as questões, acarretando essas exposições um tal obscurecimento da percepção, que nos impede de ver a dificuldade mais a fundo. 2. A reflexão da experiência. – O pensamento ou a reflexão, conforme virtualmente (se não expressamente) já vimos, é o discernimento da relação entre aquilo que tentamos fazer e o que sucede em conseqüência. Sem algum elemento intelectual não é possível nenhuma experiência significativa. Mas podemos diferençar duas espécies de experiências conforme a proporção de reflexão que elas contenham. Todas as nossas experiências passam pela fase do “cortar para experimentar”, que os psicólogos denominam o método de “experiênciae erro”. Limitamo-nos a fazer alguma coisa, e, se esta se malogra, fazemos alguma outra coisa, diversa e continuamos a tentar até atingir algo operante, e, então, passamos a adotar essa “solução” em nossa conduta posterior. Algumas experiências contêm em si pouquíssima coisa mais além desse método de tentativa de erro ou acerto. Vemos que se associam certo modo de proceder e certa conseqüência, mas ignoramos como se associam. Escapam-nos as particularidades da conexão; faltam elos na corrente. Nosso discernimento foi grosseiro. Em outros casos, porém, levamos mais longe a observação. Analisamos para ver com justeza o que existe entre as duas coisas, de modo a ligar a causa ao efeito, a atividade e a conseqüência. Esta extensão de nossa compreensão das coisas torna a previsão mais completa e compreensiva. A ação que repousa unicamente no método de tentativas e erros fica à mercê das circunstâncias; podem estas mudar, de forma que o ato praticado não atue do modo que 159 Experiência e pensamento é esperado. Mas se soubermos minudenciosamente do que depende o resultado, poderemos verificar se existem as circunstâncias requeridas. Este método amplia nosso domínio sobre as coisas; pois, se faltar alguma das condições, poderemos, desde que saibamos quais são os necessários antecedentes de um efeito, tratar de suprir- lhe a falta; semelhantemente, se as condições forem tais que produzam indesejáveis efeitos, poderemos eliminar algumas das causas supérfluas e com isso poupar esforços. Na descoberta minuciosa das relações entre os nossos atos e o que acontece em conseqüência deles, surge o elemento intelectual que não se manifesta nas experiências de tentativa e erro. À medida que se manifesta esse elemento aumenta proporcionalmente o valor da experiência. Com isto muda-se a qualidade desta; e a mudança é tão significativa, que poderemos chamar reflexiva esta espécie de experiência – isto é, reflexiva por excelência. O cultivo deliberado deste elemento intelectual torna o ato de pensar uma experiência característica. Por outras palavras – pensar é o esforço intencional para descobrir as relações específicas entre uma coisa que fazemos e a conseqüência que resulta, de modo a haver continuidade entre ambas. Desaparece seu isolamento, e, por conseguinte, sua justaposição puramente arbitrária: e toma seu lugar uma situação unificada a desenvolver-se. Compreende-se agora a ocorrência; esta ficou explicada; e achamos razoável, como costumamos dizer, que as coisas acontecem de tal modo. Pensar equivale, assim, a patentear, a tornar explícito o elemento inteligível de nossa experiência. Tornar possível o proceder-se tendo um fim em vista. É a condição para podermos ter objetivos. Logo que um infante, para dar um exemplo, começa a esperar, começa a considerar alguma coisa atual como sinal de alguma coisa que se vai seguir, está, embora de modo muito simples, a formar juízos. Pois toma uma coisa como prova de uma outra, reconhecendo, assim, uma relação entre ambas. Qualquer futuro desenvolvimento, por mais apurado que seja, será apenas um prolongamento e um aperfeiçoamento daquela simples inferência. Tudo o que o homem mais sábio pode fazer é observar o que está ocorrendo com mais amplitude e minudência, e em seguida selecionar com mais cuidado, daquilo que notou, precisamente aqueles fatores que indicam alguma coisa a acontecer. Mais uma vez diremos que 160 Democracia e educação o oposto de uma ação reflexiva é a rotina e o procedimento caprichoso. A primeira admite aquilo que é de hábito suceder como a medida completa das possibilidades e esquece de tomar em conta as relações das coisas determinadas que se estão fazendo. O último dá valor a um ato momentâneo, desprezando as associações de nossa atividade pessoal com as energias do ambiente. Quem assim procede é como se dissesse: “Devo fazer as coisas como neste momento o quero”, ao passo que a rotina diz de fato: “Deixemos que as coisas continuem a ser como as encontramos”. Ambos recusam- se a reconhecer sua responsabilidade pelas futuras conseqüências oriundas da ação atual. A reflexão é a aceitação dessa responsabilidade. O ponto de partida de todo o processo de pensar, de todo pensamento, é alguma coisa em marcha, alguma coisa que, do modo em que está, é incompleta ou não realizada. Seu ponto principal, sua significação, reside literalmente naquilo que vai suceder, e em como cai suceder. Enquanto isto está sendo escrito (1), o mundo está cheio do fragor de exércitos em luta. Para quem participa ativamente da guerra, é claro que o importante é o desenlance, são as futuras conseqüências disto ou daquilo que está a acontecer. Ele identifica- se pelo menos nessa ocasião, com o desenlace; seu destino depende do curso que as coisas estão tomando. Mas até para um observador em um país neutro, a significação de todos os movimentos feitos, de um avanço aqui e de uma retirada ali, está naquilo que os mesmos prognosticam. Pensar sobre as notícias que nos chegam é tentar ver o resultado provável ou possível sugerido por elas. Converter nossas cabeças em livros de pregar recortes de jornais, enchendo-as com estas e aquelas informações, considerando-as como coisas completas por si mesmas, não é pensar. É transformar-nos em máquinas registradoras. Pensar é considerar o influxo da ocorrência sobre o que pode suceder, mas ainda não sucedeu. Não será diferente a natureza reflexiva da experiência se substituirmos a distância no espaço pela distância no tempo. Imaginemos que a guerra já tenha terminado e que um futuro historiador a esteja a referir. Os episódios, pela nossa hipótese, são já passados. Mas ele não pode fazer uma narração compreensível da guerra, se não respeitar a seqüência dos acontecimentos no tempo; a significação de cada fato a que se refere ______ 1) Este livro foi escrito em 1916 (N. do E.) 161 Experiência e pensamento está naquilo que era o futuro para o mencionado fato, embora já não o fosse para o historiador. Considera-lo em si mesmo como uma coisa completa, será apreciá-lo irreflexivamente. A reflexão subentende também interesse pelo desenlace – uma certa identificação simpática de nosso próprio destino, pelo menos imaginativamente, com o resultado do curso dos acontecimentos. Para o general, em plena guerra, para um simples soldado, ou para um cidadão de um dos países beligerantes, o estímulo para pensar é direto e urgente. Para os neutros é indireto e depende da imaginação. Mas o flagrante pendor para o partidarismo, da natureza humana, é prova de tendência a identificar-nos com um possível curso de acontecimentos, e repelir outro, como se nos fosse estranho. Se não podemos tomar partido em plena ação e arremessar nosso pequeno peso para contribuir a determinar o resultado final, tomamo-lo sentimental e imaginariamente. Desejamos este ou aquele desfecho. Uma pessoa a quem seja totalmente indiferente o resultado não acompanha os acontecimentos nem pensa absolutamente a respeito. Desta dependência em que se acha o ato de pensar de um senso de participação nas conseqüências, deriva um dos principais paradoxos do pensamento. Gerado na parcialidade para que possa realizar o seu trabalho, ele deve conseguir uma certa imparcialidade indiferente. Cometerá seguramente erros em seus cálculos o general que permitir que suas esperanças e desejos influam em suas observações e interpretações das situações existentes. Se as esperanças e temores forem o principal motivo para um observador, e num país neutro, acompanhar reflexivamente os sucessos da guerra, também suas reflexões serão ineficazes na proporção em que suas preferências modificam a matéria de suas observações e raciocínios. Não há, contudo, incompatibilidade alguma entre a circunstânciade que a reflexão se manifesta com a participação pessoal naquilo que está ocorrendo e a circunstância de que o valor da reflexão depende de conservar-se a pessoa alheia à mesma situação. A quase insuperável dificuldade de conseguir-se esta imparcialidade é prova de que a reflexão se origina em situações em que o ato de pensar é parte no curso dos acontecimentos e se destina a influir no resultado destes. Só aos poucos, e com o crescer do tempo de visão, por meio do desenvolvimento das simpatias sociais, o ato de pensar se expande até incluir o que se acha 162 Democracia e educação além dos nossos interesses diretos: fato este de grande monta para a educação. Dizer que a reflexão se manifesta em situações incompletas que ainda evoluem, é dizer que a mesma reflexão ocorre quando as coisas são incertas, duvidosas ou problemáticas. Só é completamente seguro o que está acabado e completo. Onde há reflexão há incerteza. O objeto do ato de pensar é contribuir para chegar-se a uma conclusão, para planejar-se uma possível terminação tomando por base aquilo que é já conhecido. Outros fatos relativos ao ato de pensar se prendem, ainda, a este mesmo aspecto. Uma vez que o ato de pensar surge em situações em que existe dúvida, esse ato é um meio de investigar, de inquerir, de perquirir, de observar as coisas. Adquirir é sempre ato secundário, e sempre serve de instrumento para o ato de inquirir. Este é uma procura, uma pesquisa daquilo que não se acha à mão. Falamos algumas vezes como se a “pesquisa original” fosse prerrogativa particular de cientistas ou, pelo menos, de estudantes adiantados. Mas todo o ato de pensar é investigação, é pesquisa e pesquisa pessoal, original, da pessoa que faz, mesmo que todo o resto do mundo já conheça aquilo que ela procura descobrir. Conclui-se, ainda, que todo o ato de pensar encerra em si um risco. Não se pode garantir antecipadamente a certeza. A penetração no desconhecido é por sua natureza uma aventura; não podemos ter antecipada segurança. As conclusões da reflexão, até que os acontecimentos as confirmem, são, por conseqüência, mais ou menos tateantes ou hipotéticas. Afirmar dogmaticamente sejam uma perfeita verdade não é coisa que se possa fazer antes da sua manifestação como um fato. Os gregos formularam incisivamente a questão: Como poderemos saber as coisas? Pois ou já sabemos o que buscamos saber ou então não sabermos. Em nenhum desses casos é possível saber-se; no primeiro, porque já sabemos; no segundo, porque não sabemos o que estamos a procurar, de modo que, mesmo se por acaso o encontrássemos, não saberíamos dizer se era aquilo o que buscávamos. O dilema não abre margem para o vir a saber, para o aprender; ele presume o conhecimento completo, ou a completa ignorância. No entanto, existe a zona crespuscular da investigação, da reflexão. O dilema grego esqueceu-se da possibilidade de conclusões hipotéticas, de tentativas de obtenção de resultados. As incertezas da situação sugerem certos caminhos a seguir. 163 Experiência e pensamento Tentamos trilhar esses caminhos e ou chegamos ao cabo de um deles, no caso de encontramos aquilo que procurávamos, ou a situação se torna mais sombria e confusa - e, neste caso, sabemos que continuamos na ignorância. Fazer tentativas significa experimentar, seguir provisoriamente algum caminho. Considerado em si mesmo, o argumento grego é um belo fragmento de lógica formal. Mas é também verdade que, enquanto os homens mantiveram nítida separação entre o conhecimento e a ignorância, a ciência fez apenas lentos e casuais progressos. Começou o progresso sistemático das invenções e descobertas quando os homens reconheceram que poderiam utilizar-se da dúvida para fins de pesquisa, fazendo conjeturas para guiar a ação em explorações- tentativas, cujo desenvolvimento confirmaria, desmentiria ou modificaria as conjeturas guiadoras. Ao passo que os gregos tinham o saber em maior conta que o aprender, a ciência moderna considera os conhecimentos armazenados simples meios para aprender, para descobrir. Recorramos ao nosso exemplo. Em general, comandante de um exército, não pode basear seus atos em uma absoluta certeza, nem na absoluta ignorância. Ele dispõe de certo acervo de informações, que presumiremos ser razoavelmente fidedignas. Ele infere das mesmas certos movimentos possíveis, dando assim significação à nudez dos fatos da situação dada. Sua ilação é mais ou menos duvidosa e hipotética. Mas o general procede de acordo com ela. Traça um plano de ação, um meio de proceder naquelas circunstâncias. As conseqüências que se seguem diretamente a esse seu modo de proceder, que adotou de preferência a outro, põem em prova e revelam o valor de seus raciocínios. Aquilo que se já sabe tem atuação e valor para aquilo de que ele está a ter conhecimento. Mas aplicar-se-á, o que foi exposto, ao caso de alguém num país neutro, que a refletir acompanhe do melhor modo que pode o desenrolar dos acontecimentos? Abstratamente, na forma, sim, embora não, naturalmente, no conteúdo. É por isso mesmo evidente que suas conjeturas sobre o futuro, orientadas pelos dados atuais, conjeturas por meio das quais ele tenta dar significação a grande número de dados desconexos, não podem servir de base a um método de proceder que surta efeito na campanha. Esse não é seu problema. Mas na proporção em que esteja a refletir, não 164 Democracia e educação se limitando a acompanhar o curso dos sucessos, as inferências que tenta tirar surtirão efeito em um modo de proceder adequado à situação dele. Preverá certos futuros movimentos, e alerta ficará para ver se acontecem ou não. Quanto mais ele estiver intelectualmente interessado ou atento tanto mais ativamente estará em expectativa; ele dará passos que, embora não influam na campanha, modificam de algum modo seus próprios atos subseqüentes. De outro modo, ao dizer mais tarde: “Eu não lhes disse”! essa frase não teria absolutamente inteligibilidade, não indicaria nenhuma comprovação ou verificação do pensamento anterior, mas apenas uma coincidência que produz satisfação emocional – e encerra um grande fator de autodecepções possíveis. Este caso é comparável ao de um astrônomo que de determinados dados foi levado a prever (inferir) um futuro eclipse. Por maiores que sejam as probabilidades matemáticas, a inferência é hipotética – é questão de probabilidades (1). A hipótese sobre a data e lugar do eclipse previsto torna-se um material para elaboração de uma ação futura. Preparam-se os aparelhos; é possível que se faça alguma expedição a algum lugar longínquo do globo. Em qualquer caso são dados ativamente alguns passos que mudam, concretamente, algumas condições físicas. E a não ser com tais passos e a consequente modificação da situação, não se completa o ato de pensar. Este fica suspenso. Os conhecimentos já adquiridos dirigem a reflexão e a tornam frutífera. Isto é o que se refere aos aspectos gerais de uma experiência reflexiva. São eles: 1) perplexidade, confusão e dúvida, devidas ao fato de que a pessoa está envolvida em uma situação incompleta cujo caráter não ficou plenamente determinado ainda; 2) uma previsão conjetural – uma tentativa de interpretação dos elementos dados, atribuindo-lhes uma tendência para produzir certas conseqüências; 3) um cuidadoso exame (observação, inspeção, exploração, análise) de todas as considerações possíveis que definam e esclareçam o problema a resolver; 4) a consequente elaboração de uma ______ 1) É da máxima importância para a prática científica o poderem os homens, em muitos casos, calcular o grau de probabilidade de acerto e de prováveis erros implicados em uma solução, mas isso não modifica os aspectos da situação que descrevemos. Torna-osmais patentes. 165 Experiência e pensamento tentativa de hipótese para torná-lo mais preciso e mais coerente, harmonizando-se com uma série maior de circunstâncias; 5) tomar como base a hipótese concebida, para o plano de ação aplicável ao existente estado de coisas; fazer alguma coisa para produzir o resultado previsto e por esse modo pôr em prova a hipótese. A extensão e a perfeição dos atos terceiro e quarto são que distinguem uma experiência claramente reflexiva de outra no nível do método de experiência e erro. Eles tornam o ato de pensar em uma experiência. Todavia, nunca nos livraremos totalmente das situações de tentativas e erros. Nossos pensamentos mais lúcidos e racionalmente mais coerentes têm que ser postos em prova no mundo e, por esse maio, experimentados. E, como jamais se podem tomar em linha de conta todas as relações, aqueles pensamentos nunca poderão prever com perfeita exatidão todas as conseqüências das coisas. Mesmo assim, sendo um reflexivo exame das condições e a previsão dos resultados, feitos com cuidado, temos o direito de diferenciar a experiência reflexiva, dos mais grosseiros métodos de investigação que são os de “experiência e erro”. Resumo. – Determinando o papel da reflexão na experiência, observamos primeiramente, que esta subentende uma associação do fazer ou experimentar, com alguma coisa que em conseqüência a pessoa sofre ou sente. A separação do aspecto ativo do fazer, do aspecto passivo do sofrer ou sentir, destrói a significação vital de uma experiência. Pensar é o ato cuidadoso e deliberado de estabelecer relações entre aquilo que se faz e as suas conseqüências. Por ele nota-se não somente que estas coisas estão relacionadas, como também as particularidades da sua associação. Tornam-se patentes, em forma de relações, os elos existentes. Aparece o estímulo do ato de pensar quando queremos determinar a significação de algum ato realizado ou a realizar-se. Pelo pensamento nós prevemos as conseqüências. Isto subentende que a situação do modo que ela é, quer por si mesma, quer para nós, é incompleta e, por isso, indeterminada. A antevisão de conseqüências significa uma solução proposta ou tentada. Para se aperfeiçoar esta hipótese, devem ser cuidadosamente analisados as condições existentes e o conteúdo da hipótese adotada – ato que se chama raciocínio. Então a solução sugerida – a idéia ou teoria – tem que ser posta em prova, procedendo-se de acordo com ela. Se acarretar 166 Democracia e educação certas conseqüências, determinadas mudanças no mundo, admite-se como valiosas. Se tal não se der, modificamo-la e fazemos novas experiências. O ato de pensar implica todos estes atos - a consciência de um problema, a observação das condições, a formação e a elaboração racional de uma conclusão hipotética e o ato de a pôr experimentalmente em prova. Ao mesmo tempo em que o ato de pensar resulta em conhecimento, em última análise o valor do conhecimento subordina-se ao seu uso no ato de pensar. Pois não vivemos em um mundo fixo e acabado, e sim, em um mundo que evolui e onde nossa principal tarefa é a visão prospectiva e onde a visão retrospectiva - todo o conhecimento como coisa distinta da reflexão é retrospectivo – tem valor na proporção da solidez, segurança e fecundidade com que garante os nossos negócios com o futuro.
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