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Imagem & Cotidiano Ensaios de Cultura Visual Paulo Carneiro da Cunha Filho, Diego Andres Salcedo, Raquel de Holanda (orgs.) © Copyright 2014. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida de qualquer forma ou em qualquer meio, seja eletrônico ou mecânico, sem permissão escrita da editora ou dos autores. Coleção E-CIT: Publicações digitais nas áreas de Comunicação, Informação e Tecnologia. FICHA TÉCNICA Este livro é um produto da Editora da UFPE, e foi editado em agosto de 2014. Editoração Eletrônica Cassandra Brito Daniel Venegas Thiago Moreira Conselho Editorial Prof. Dr. Diego Andres Salcedo - UFPE Prof. Dr. Javier Diaz-Noci - Univ. Pompeu Fabra, Barcelona - Espanha Prof. Dr. José Afonso Jr. - UFPE Prof. Dr. Marcos Galindo - UFPE Prof. Dr. Marcos Silva Palacios - UFBA Prof. Dr. Paulo Carneiro da Cunha - UFPE Prof. Dr. Paulo César Boni - UEL Contatos ecit.ufpe@gmail.com Telefone: (81) 2126-8429 Sumário Sobre os autores A construção do cotidiano visual: derivas com Michel de Certeau Paulo Carneiro da Cunha Filho Cotidiano e Identidade: construções entrelaçadas no cinema Raquel Holanda Observar ao redor, observar e sentir: o cotidiano como catalisador de sensações Iomana Rocha de Araújo Silva O cotidiano dos colecionadores de imagens Diego Andres Salcedo Sertão e messianismo: explícito e implícito em Árido Movie José Carlos Gomes da Silva Filesharing e outros espaços de Cinema Bernardo Queiroz de Siqueira Santos O cotidiano na trilogia amorosa de Wong Kar-Wai Amanda Mansur Custódio Nogueira Fotografia e cotidiano na Caixa de Sapato Eduardo Queiroga Sobre os autores Paulo Carneiro da Cunha Filho Pesquisador 2 do CNPq, avaliador voluntário da CAPES e professor Associado 4 na Universidade Federal de Pernambuco. Doutor em Artes e Ciências da Arte pela Universidade de Paris I - Panthéon-Sorbonne (1989), fez cinema experimental (sobretudo curtas em super-8 e em 16 milímetros). Foi, durante dois anos, membro do seminário fechado em Teoria do Cinema de Christian Metz na École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris, onde também obteve o diploma sob orientação do historiador Marc Ferro. Está vinculado, como membro permanente, ao Programa de Pós-Graduação em Design da UFPE. Seus livros mais recentes foram publicados: A Utopia Provinciana: Recife, Cinema, Melancolia (2010), Imagem e Cotidiano: ensaios de cultura visual (2012) e A Imagem e seus Labirintos: o cinema clandestino do Recife, 1930-1964 (2014). Raquel Holanda Doutoranda em Comunicação pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade de Brasília. Mestra em Comunicação pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Pernambuco (2012). Investigada nas produções audiovisuais temas como cenário cinematográfico, espaços e paisagens urbanos, estética e cultura visual. Iomana Rocha de Araíjo Silva Professora do Curso de Cinema e Audiovisual da UFPA, Doutora e mestre em Comunicação pela UFPE, graduada em Arte e Mídia Pela UFCG. Tem interesse em poéticas cinematográficas, cinema independente/experimental, arte contemporânea, cinema expandido, hibridismos entre artes e cinema e estudos relacionados à Direção de arte no cinema. Desenvolve também trabalhos práticos em cinema, especialmente na área de Direção de Arte. Diego Andres Salcedo Bacharel em Biblioteconomia (UFPE), Mestre e Doutor em Comunicação (UFPE). Professor no Departamento de Ciência da Informação da UFPE. Integrou a equipe de Orientador do Ministério da Educação no projeto Mídias na Educação (SEED). Membro pesquisador no Laboratório de Tencologia de Conhecimento (LIBER/UFPE). Na temática da Filatelia publicou os seguintes livros: A ciência nos selos postais comemorativos brasileiros: 1900- 2000. (2010); Pernambuco nos Selos Postais: fragmentos verbo-visuais de pernambucanidade (2011); Bibliofilatelia: fontes de informação para o estudo do mundo postal (2014). José Carlos Gomes da Silva Bacharel em Jornalismo pela Universidade Católica de Pernambuco (1981), Especialista em Jornalismo e Crítica Cultural pela Universidade Federal de Pernambuco (2007) e Mestre em comunicação pela UFPE (2012). É assistente administrativo da Universidade Federal de Pernambuco. Tem experiência na área de Comunicação, com ênfase em Jornalismo e Produção de Textos. Bernardo Queiroz de Siqueira Santos Jornalista formado pela Universidade Católica de Pernambuco (2005), pós-graduado em Estudos Cinematográficos (2007) e Mestre em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco (2012). Trabalhou como réporter e editor em TV e portais de internet, além de atuar como professor de Jornalismo, Cinema e Publicidade. Pesquisa as relações entre cultura, estética, cinema e novas mídias audiovisuais. Atualmente é Doutorando pela PUC de São Paulo na área de Comunicação e Semiótica. Continua insone, viciado em dispositivos com telas e nerd assumido. Não crê que isso vai mudar em nenhum futuro visível. Amanda Mansur Custódio Nogueira Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco. Possui Mestrado em Comunicação pela mesma instituição. Como professora ministrou aulas nos cursos de Bacharelado em Cinema e Publicidade e Propaganda das faculdades Marista, AESO e Mauricio de Nassau. Além de oficinas e mini-cursos sobre teoria e prática do audiovisual. Dentre as suas atividades profissionais destacam-se a cinematográfica, atuando como assistente de direção e continuísta. É autora do livro O Novo Ciclo de Cinema em Pernambuco: a questão do estilo, lançado pela Editora Universitária da UFPE. No momento, atua como Professora substituta do Departamento de Comunicação Social, na Universidade Federal de Pernambuco. Eduardo Queiroga Possui graduação em Comunicação Social - Jornalismo pela Universidade Católica de Pernambuco (1991) e mestrado em Comunicação pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco (PPGCOM-UFPE). Doutorando em Comunicação pelo PPGCOM-UFPE. Coordenador e educador do Projeto Fotolibras. Foi professor e coordenador do Bacharelado em Fotografia das Faculdades Integradas Barros Melo. Tem experiência na área de Comunicação, com ênfase em Fotografia, atuando principalmente nos seguintes temas: imagem e educação, fotografia e história, fotojornalismo e fotografia contemporânea. A construção do cotidiano visual: derivas com Michel de Certeau Paulo Carneiro da Cunha Filho A missa de despedida de Michel de Certeau foi comovente, na manhã de inverno de 9 de janeiro de 1986. Durante a cerimônia de adeus, a pedido dele, se escutou uma velha gravação de Edith Piaf, interpretando Non, je ne regrette rien. Que sentidos pretendeu produzir Certeau, depois de morto, com aquela canção? Que trajetória teria sido esta, que não deixava lugar para o remorço? Primeiro, o óbvio, é claro: tinha enfrentado de peito aberto o destino que lhe coube vida clara, na acepção pasoliniana, constituída também pelos episódios mesquinhos ou grandiosos que a vida reserva a todos, guardadas as devidas proporções. Sem arrependimentos, portanto. Mas, e talvez aqui tenhamos um segundo sentido não sem pecados, na medida em que os erros fazem parte de todo trajeto. Havia então, na voz de Edith Piaf uma dupla visão das coisas da vida: o gesto de ouvir, na nave de uma igreja, as palavras de certo ser impuro, incerto; e a mensagem que a letra da canção afirmava: apesar de tudo, teria sido assim: o arco do possível se estendendo por sobre o chão da utopia. Então, naqueleinstante, Michel de Certeau reiterava a metodologia que desenvolveu durante décadas, pacientemente: ouvir a voz dos que não têm voz; e deslocar o sentido das coisas, ao transtornar os espaços usuais de circulação dos homens e dos objetos. Dedicado inicialmente ao estudo do século 18, Michel de Certeau foi um historiador que tomou consciência de que não se pode escapar do tempo presente e de suas derivas: não se foge dos desvios, do estranho, do surpreendente que nos habita no instante mesmo em que somos. O acesso para o arrebatamento do inusitado só está real- mente aberto para quem sabe olhar para as dimensões do tempo presente. A história, então, é uma permanente reinvenção do passado, a partir da vida que vivemos hoje. Para Certeau, isso tudo era claro, sobretudo quando ele olhava para as bruxas, os possessos, os místicos ensandecidos. Mas também quando prestava atenção nas pequenas coisas, nas “artes de fazer”, nos “jeitinhos” (como, afinal, traduzir o francês ruses?). “Astúcias”, ele vai dizer, mas também “trampolinagem”. Táticas e estratégias do viver simples, do modo de ser do humano “comum”. “Não tome as pessoas por idiotas”. Nunca suponha que a vida cotidiana, dos que aparentemente não têm poder, dos que muitas vezes se perdem na multidão, seja apenas essa homogeneidade aparente, essa passiva adesão a algo que seria um avassalador poder institucional. Certeau foi um antídoto para os que acham que a vida da maioria das pessoas não tem graça alguma, dos que operam com noções como “massa”, “burguesia” ou “proletariado” - esquecendo que há mais diferenças táticas entre os “iguais” do que pensa certa sociologia. Ali, aonde parece haver apenas o conformismo, ou a força incontrolável do mercado, ou a submissão absoluta aos cânones estabelecidos, se esconde a invenção. A multidão tem olhos. Age. Pensa. Resiste. O poder do mercado existe, evidentemente, e os bens culturais, e não apenas os materiais, são de fato objetos de consumo. No entanto, algo sempre foge do controle. Algo escapa. O conjunto de forças que frequenta a multidão retoma, reinventa, apropria-se, ressignifica. Leva a vida para longe de toda previsibilidade, do que havia sido programado. “Indisciplina”. E as desobediências são vistas como focos de resistência ao homogêneo, ao que parecia fazer a vida inevitavelmente linear. A esperança singela de Michel de Certeau é a seguinte: não existe uniformização, mas uma contínua e luminosa tensão entre campos de poder. Os textos que compõem esta coletânea surgiram no quadro da disciplina Cultura Visual, do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco. O pequeno grupo de pesquisadores reunidos nas aulas era muito diverso, sobretudo no que se referia à temática dos projetos individuais de pesquisa. Num determinado momento do ano, percebemos que a questão do cotidiano poderia sugerir um recorte comum aos vários trabalhos e decidimos fazer um retorno à obra de Michel de Certeau. O resultado foi a produção dos textos reunidos aqui, todos interessados por produtos culturais nos quais é possível detectar alguma forma de “marcar socialmente a distância”, seja pelos consumidores no ato de consumir, seja pelos criadores no instante da criação. Nosso desafio foi, desde o início, articular a observação das práticas e dos usos das representações visuais na condição de “criações anônimas”, presentes na vida cotidiana, mas igualmente das representações dessas mesmas práticas e usos em objetos culturais “assinados”, vinculados à grande produção industrial e, nessa perspectiva, verificar nesses objetos de segunda ordem, reconhecidamente “artísticas” os traços das artimanhas do cotidiano. Afinal, essa produção “de mercado”, “erudita”, também poderia ser revisitada enquanto território de transformação, um lugar em que as práticas de consumo eliminariam o fechamento do objeto, permitindo que o observador (o consumidor) reinventasse-o, produzisse novos sentidos. Cada texto, portanto, tenta definir um conjunto de “microresistências”, pequenas utopias que reintegram aquilo que é, de fato, vivenciado nas representações visuais. Nosso olhar, assim, é o mesmo da gente “simples”, “ordinária”, aquele que necessariamente está longe dos centros do poder. São as nossas circunstâncias que explicam isso: estamos, conscientemente, na periferia da periferia, como acadêmicos e como consumidores ou produtores de imagem. Essa, longe de ser nossa fraqueza, é nossa potência. Mesmo sem poder adotar o princípio de que nossas temáticas surgiam do anonimato, na medida em que muitas das imagens que observamos tinham “nome próprio”, um “nome de autor”, o nosso olhar foi sempre mais sensível às resistências, às táticas complexas e sutis que fazem face aos projetos do sistema dominante. Então, o conceito de cotidiano que vale para o conjunto de textos aqui reunidos parte do princípio de que os indivíduos e os grupos sociais são capazes de se confrontar com os modelos disciplinares, com a Ordem, de formas muito complexas e muito sutis, construindo movimentos de defesa e de antagonismo que vão além dos padrões mais reconhecíveis de contestação. É no cotidiano que se dá, dessa forma, este conjunto de curiosas formulações contra toda sorte de vontade imposta pelos centros hegemônicos de poder. Para nós, valia sobretudo investigar como as imagens participam desses jogos. Ou seja: trazer à tona um conceito mais amplo de Cultura Visual do que aquele normalmente adotado pela academia. De que modo os objetos da cultura visual fossem considerados na sua capacidade de interagir com a vivência cotidiana ̶ seja na sua materialidade, seja na imaterialidade: a condição efetiva de produzir um espaço secundário, derivado da vida social, uma espécie de teatro da vida aonde igualmente se estruturam as tensões da ordem e da desordem. Havia um desafio que consistiu em evitar fazer Michel de Certeau dizer o que não disse. É evidente que partíamos da ideia de que o mercado tentava impor sua lógica e constituía, mesmo no campo cultural, produtos de consumo. Também consideramos que essa tentativa seguia um roteiro muitas vezes diverso do que pressupunha a própria lógica do mercado. Como lidar com o fato de que nossos temas de pesquisa eram tanto os modos de uso dos objetos visuais como os próprios usos representados dentro desses mesmos objetos? Finalmente, relemos um texto crucial de Michel de Certeau, que serviu para elucidar os caminhos que tomamos na elaboração dos textos dessa coletânea. Justo aquele que trata de "Uma 'arte' brasileira" (CERTEAU, 1990, p. 76), e explora os campos estratificados dos camponeses nordestinos e as missões do místico Frei Damião de Bozzano, um capuchinho italiano que percorreu o Nordeste, tornando-se um dos homens mais venerados na região. Tratava-se, na visão de Michel de Certeau, de um espaço bipolar, capaz de fazer coexistir um campo “polemológico”, (sócio-econômico, clivado pela ancestral disputa entre poderosos e pobres, e no qual estes são sempre os derrotados) e um espaço “utópico”, no qual se afirma o milagre, a redenção onde os pobres encontram uma dimensão que lhes é mais favorável. Ora, nesse texto magnífico, o autor estabelece uma ponte entre o discurso místico do capuchinho Frei Damião de Bozzano, constituído pelos relatos de milagres, e o filme A Cecília, de Jean-Louis Comolli, com seus cantos anarquistas. Descobríamos ali o desdobramento que nos faltava: o espaço “real” e bipolar do Nordeste e o espaço simbólico da experiência cinematográfica e doseu dispositivo. Estava, portanto, na própria “metodologia” certaliana uma ponte entre o ordinário cotidiano, essa arte dos não artistas, e a produção das imagens técnicas, tomada como espaço em si ̶ representando outros espaços “reais” nos quais situam-se outras “artimanhas”, outras ressignificações passíveis de interpretação. Era o que precisávamos para tentar. Referências CERTEAU, Michel de. L’étranger, ou l’union dans la différence. Paris, Desclée De Brouwer, 1991. ______. La possesion de Loudun. Paris, Gallimard, 1990. ______. La culture au pluriel. Paris, Seuil, 1993. ______. L’écriture de l’histoire. Paris, Gallimard, 1984. ______. La fable mystique XVIe-XVIIe. Paris, Gallimard, 1987. ______. L’invention du quotidien, I: arts de faire. Paris, Gallimard, 1990. ______. L’invention du quotidien, II: habiter, cuisiner. Paris, Gallimard, 1990. Cotidiano e Identidade: construções entrelaçadas no cinema Raquel Holanda A intenção deste ensaio é compreender como se dão as construções identitárias nos filmes analisando-as a partir das relações das personagens e dos lugares com seus espaços e usos cotidianos, acrescentando ao cotidiano este caráter de marco da identidade. Formalizando, desta forma, as práticas cotidianas como elementos fundamentais na constituição de uma cultura. Até onde este cotidiano não se constitui enquanto limite de determinado lugar das identidades? De que forma se dá o entrelaçamento entre identidade e cotidiano nos filmes? Estas são alguns pontos a busca-se elucidar ao término deste ensaio. E ao propor analisar as imagens difundidas pelo cinema feito no Nordeste, a intenção é tê-las como objetos de uma própria cultura, não se delimitando a algo marcado ou ligado a tradição, mas ao fato de ser um fruto de um pertencimento a algo, uma narrativa construída a partir da vivência com sua cultura. O corpus deste trabalho é composto por produções contemporâneas, mas a relação do Nordeste com o cinema não é recente, sendo tecida deste o início das atividades cinematográficas no país - de maneira que não somente o espaço territorial desperta interesse nos cineastas, mas a própria cultura das pessoas que habitam esta região. Exemplos de filmes com este foco são muitos, dentre eles: Sob o céu nordestino, de Walfredo Rodriguez (1928); O Canto do mar, de Alberto Cavalcanti (1952); Aruanda, de Linduarte Noronha (1963); Deus e o diabo na terra do sol, de Glauber Rocha (1964), além de muitos que adaptaram obras literárias para o cinema. Numa breve apresentação dos filmes aqui trabalhados, Karim Aïnuoz, diretor cearense, em seu segundo longa-metragem O Céu de Suely (2006), conta a história de Hermila, uma jovem de 21 anos que após dois anos morando em São Paulo com o pai de seu filho retorna para a sua cidade natal, Iguatu no interior do Ceará. As conseqüências deste regresso são o confronto dos desejos da personagem com a sua realidade, o abandono do seu companheiro, a necessidade de se movimentar num espaço onde tudo é estável e imutável e sua ideia de se rifar como forma de conseguir juntar recursos para fugir dessa situação. Fruto da união de Karim Aïnouz e do pernambucano Marcelo Gomes, Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo (2010), é um filme que traz o protagonista José Renato num relato sobre sua separação e sua viagem a trabalho como possibilidade de fugir da dor que a situação lhe traz. Se dividindo entre a narração de cartas para a amada e de seus sentimentos neste movimento de isolamento, José Renato corta as estradas do sertão cearense e pernambucano, percorrendo as áreas que supostamente irão receber o canal que levará água para a região. No contexto em que a compreensão da cultura provém de uma assimilação das relações simbólicas de poder inseridas na vivência dos sujeitos, ela se coloca como uma mediadora fundamental da sociedade. E neste jogo de apropriações de sentidos no qual os signos são interpretados a partir de sua representação simbólica em determinada cultura, esta acaba de tornando um espaço de luta e de produção de significados. Seguindo esta visão hermenêutica da cultura é possível fazer uma leitura dialética dela, concebendo-a como um processo que objetiva um entendimento pelo diálogo e pela discussão. Então, se aqui se propõe analisar os filmes feitos no Nordeste pretende-se apreender como a cultura e a identidade dos nordestinos e do próprio Nordeste - enquanto espaço - são colocadas a partir do material audiovisual que o filme apresenta, no qual é possível se perceber as experiências dos sujeitos na sociedade e quais tipos de sentidos estão sendo negociados a partir desta vivência. E por se tratar de um estudo sobre a vivência de uma cultura, suas formas e consequências, é necessário que tanto a cultura como a identidade sejam examinadas em contexto, ou seja, em que situação elas são produzidas, que história pré-existe a elas, qual o cotidiano que vivem. Sendo o sujeito tomado como algo condicionado a suprir na sociedade suas necessidades de vida, costumes, habitação e saúde (GRAMSCI, 1989), a fazer da sua prática da cultura algo diluído em todas as suas práticas cotidianas, construindo-se a partir do que é vivido e não pensado. E a capacidade de ser performático diante dessas situações e de se moldar a todas as atividades às quais é submetido é que desperta interesse em se fazer esta investigação do modo de vida do homem na contemporaneidade. A capacidade de mudança, de reflexão e de transformação da cultura diante desta concepção direciona a compreensão para o fato de que ela deve ser pensada e analisada como uma experiência ordinária. Como coloca Williams (WILLIAMS, 1989), a cultura é uma propriedade de toda uma sociedade e se constitui mediante uma mesma experiência coletiva, a qual leva os indivíduos a interpretarem os signos que estão em jogo nesta relação simbólica e negociarem os sentidos que essas práticas devem ter. Tudo isto faz com que a cultura não se construa de forma sólida e única, ela é algo em contínua ressignificação, cuja construção coletiva a partir da experiência de vida dos sujeitos transpõe para o centro destas relações todas suas práticas cotidianas. E neste processo de materializar as suas relações nos elos culturais que o homem acaba por trazer para a própria cultura tudo o que é ordinário, comum, consequentemente, agrega todas as formas ligadas por um coletivo, ou seja, valores e significados que são partilhados. Significados estes que transitam em contínuo e condicionados pelas próprias experiências em grupo. Ao se considerar a maneira como este espaço de vivência é transportado para o cinema, em filmes como O Céu de Suely e Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo percebemos que eles dialogam. A exemplo da construção de suas narrativas a partir da visão de personagens oriundos de classes mais baixas, que percorrem ambientes considerados à margem do que é oferecido como nobre dentro de suas culturas, seja na castigada Iguatu, no interior do Ceará, que se torna cenário de O Céu de Suely, ou ainda o sertão percorrido por José Renato em Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo. Unanime em todos estes contextos, a negociação de sentidos conduz o movimento das relações. As concordâncias e as disparidades fazem com que os fatores que as influenciam desloquem-se dos elementos que se relacionam e incorporem tudo aquilo que se situa ao redor desses elementos. Os lugares que ocupam e as situações que vivenciam, assim como as ações que executam e as relações de poder a que pertencem. Nos filmes em questão, no entanto, o movimentoao qual se faz referência nem sempre se limita a um lugar fixo, o deslocamento das personagens de espaços e lugares é outro ponto evidente. No filme O Céu de Suely, Hermila parte e retorna à cidade de Iguatu e em Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo mostra o percurso de José Renato que sai de Fortaleza para uma viagem longa pelo sertão nordestino. Aqui o deslocamento pode ser entendido como algo confluente no cinema feito no Nordeste de maneira mais abrangente, e que no caso dos filmes aqui falados é uma ação realizada por todos os protagonistas. O peculiar nisto é que o sair de ‘seu lugar’ nem sempre tem destino certo, a fuga do próximo deseja ganhar corpo e forma num ‘lugar qualquer’, apenas longe dos seus conflitos, de suas angústias. A cultura desses lugares internaliza esta característica, a encenação de suas identidades adiciona esta fluidez ao seu repertório cultural específico, não só refletindo como organizam sua personalidade como também a maneira como utilizam os espaços urbanos, dando sentido ao seu modo de vida. Essa forma de ver a cultura vai de encontro com os pensamentos de Michel de Certeau (2003, p. 100) à medida que desloca o foco das ações individuais e, acima de tudo, coloca o cotidiano como um elemento fundamental para se compreender a cultura. E ao se colocar como objeto deste estudo o cinema feito no Nordeste não se dispõe a observar as assimilações feitas a partir destas produções, partindo assim para o campo da recepção, mas quais contratos são estabelecidos pelo próprio objeto ao se situar numa rede de lugares e relações. Utilizando-se a maneira como Michel de Certeau apreendeu para formalizar as práticas cotidianas, nesta pesquisa observa-se como se dão as construções da identidade nos filmes a partir das práticas de espaço, dos usos das ritualizações cotidianas, etc. Diante desse contexto, é importante frisar estudos feitos sobre a cultura nordestina até agora, como os feito por Durval Muniz Albuquerque Jr, que coloca que esta região, Nordeste, fora criada nos anos 20 do século passado e fundamentada como uma ‘paisagem imaginária’ mergulhada em sentimentos como saudade e tradição. Estariam estes pontos presentes nos filmes? Pode-se identificar tanto a saudade como a tradição como princípios que movem esta cultura? Até que ponto identidade e cultura são concebidas por essas características? Uma das discussões centrais das ciências sociais desde o final do século passado é a questão da identidade. Como elemento relacional, a identidade tem sua estrutura estabelecida por uma marcação simbólica relativa ao outro e ao contexto no qual o sujeito está inserido, sendo interpelada tanto pelas condições sociais como materiais. A identidade é algo moldável, criado e recriado à medida que a vida e o contexto social se modificam, cabendo às identidades assumidas pelo indivíduo serem reconhecidas e aceitas na sociedade. Nesse processo as características dessas identidades ora trazem marcas que sempre estiveram presentes na sua formação, ora trazem traços adquiridos através do cotidiano. Seguramente, a relação com o outro é um fator preponderante quando o assunto é a construção de identidades, uma vez que é em relação ao outro que se torna possível a identificação ou a diferenciação com determinado fato ou característica. Esse processo incessante proporciona a continuidade e/ou a permanência de certos modos de ser, estilos, gostos e pensamentos. Se a identidade é vista por estas características anteriormente descritas poder-se-ia, assim, inseri-la no campo tático? De acordo com Certeau (2003) – que analisa a cultura como uma combinatória de operações que levam em consideração tanto as ações individuais como também todo o contexto ao seu redor – a tática é uma ação calculada e determinada, exatamente, pela ausência de um próprio, não tendo por lugar senão o do outro. Como um movimento interior às relações, a tática se dá pela visão do outro e pelo espaço que por ele é controlado, portanto não se concebe um lugar específico para ela e “este não-lugar lhe permite sem dúvida mobilidade, mas numa docilidade aos azares do tempo, para captar no vôo as possibilidades oferecidas por um instante” (CERTEAU, 2003, p.93). As táticas apontam para uma hábil utilização do tempo, das ocasiões que se apresentam e também dos jogos que introduzem as fundações de um poder, pois elas se determinam pela ausência de poder. Como Certeau (2003, p.102) coloca: As táticas são procedimentos que valem pela pertinência que dão ao tempo ‒ às circunstâncias que o instante preciso de uma intervenção transforma em situação favorável, à rapidez de movimentos que mudam a organização do espaço, às relações entre momentos sucessivos de um ‘golpe’, aos cruzamentos possíveis de durações e ritmos heterogêneos, etc. Conforme esta definição de tática supõe-se a identidade como uma consequência de uma ação decorrente de uma disputa do ser com o outro, neste espaço não ‘próprio’ em que é possível sentir como suas percepções respondem as situações, como se interpreta as relações a cada momento, paralelamente a este jogo as identidades do sujeito vão sendo construídas. Voltando-se para o objeto desta investigação, a narrativa construída nos filmes possibilita a localização das identidades, dos locais de fala de uma individualidade cujo lugar de atuação é composto de uma pluralidade incoerente de suas determinações relacionais. Esta contradição muitas vezes justificada pela ininterrupta trajetória da sua formação levantam pontos que se condensam em certas identidades. E, claro, os espaços cotidianos de sociabilidade nesta relação se consolidam como um marco para esta construção, mediante sua capacidade de tirar proveito e beneficiar-se disto, sem o domínio do tempo. Diante de uma relação onde o tempo torna-se primordial, é a partir de sua vivência que o lugar é delineado. O lugar não é, portanto, algo estável, mas algo que veio a ser, um espaço comum construído através da interação social. As práticas dos espaços determinam as maneiras de se frequentá-los, instaurando confiabilidade ou não nas situações vividas neles. No campo da análise do filme, a cultura, a identidade e o cotidiano são observados através das conversas e discursos das personagens. Não obstante, as práticas dos sujeitos também habilitam a captação, registro e mesmo abordam como eles se comportam, quais são suas encenações, como se sentem acerca de determinado lugar. As incoerências do percurso traçado pelos sujeitos refletem uma mobilidade plural tanto de interesses como de prazeres, por isso nesta análise o local do objeto e não o seu discurso vem a ser mais importante. Em sociedade, a definição de um comum desencadeia uma série de possibilidades de ações, de relações e de trajetórias. E, por exemplo, ao se pensar o lugar como este comum, ele pode pertencer a qualquer um que viva nesta sociedade. As personagens José Renato e Hermila de Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo e O Céu de Suely, respectivamente, criam um espaço diferente daqueles que ocupam fisicamente. Uma verdade que coexiste com aquele lugar de uma experiência sem ilusões. O posto no qual Hermila desembarca ao retornar para Iguatu, o mesmo que frequenta quando sai à noite e se diverte com a tia e uma amiga, ou ainda o seu local de trabalho temporário que se torna muitas vezes um ‘não-lugar’. Demaneira semelhante, José Renato transcorre as rodovias que cortam o Ceará e Pernambuco sertão adentro, construindo uma relação diferente da maioria das pessoas que ali vivem. Aquela vegetação, o Sol, a paisagem que nunca muda é um lugar inexpugnável e que para ele é uma chance de fuga, de isolamento. As práticas cotidianas possibilitam o reemprego de sistemas sociais, de ações que ganham usos diferentes, modificando o funcionamento deste sistema. Isto cria modos de fazer sem se sair do lugar, instaurando a pluralidade à ordem imposta de um lugar. Certeau sobre isto discorre que “essas operações de emprego ou melhor, de reemprego se multiplicam com a extensão dos fenômenos da aculturação, ou seja, com os deslocamentos que substituem maneiras ou ‘métodos’ de transitar pela identificação com o lugar” (CERTEAU, 2003, p. 93). Uma ilustração deste reemprego do sistema vigente na sociedade é a ação de Hermila ao utilizar-se da rifa, uma prática cotidiana do interior do Nordeste, para conseguir dinheiro para fugir de Iguatu. Enquanto ação ela não instaurou nenhuma nova aplicação, visto que os compradores da rifa adquirem um bilhete e concorrem como todos os outros ao prêmio, e é justamente este o elemento inusitado e que rompe que as leis sociais impostas. Hermila rifa um objeto como qualquer rifa comum, só que ela transforma o seu corpo num objeto ‘rifável’, e aqui é estabelecido um novo conceito, uma nova relação da sociedade com esta prática. Até agora se falou numa abordagem da cultura e da identidade a partir da análise do cotidiano, a maneira como este elemento é capaz de revelar especificidades de uma sociedade e os jogos constantes de validação de significados. No entanto, como se observa estes pontos em filmes, se faz necessária uma pequena consideração sobre as imagens e o próprio material audiovisual. Por lidar com um objeto audiovisual, as imagens são tomadas como o lugar das percepções diretas, cujo significado varia, constantemente, mediante sua captação através da visão e realçada pelos demais sentidos. Os sinais, símbolos e alegorias que formam as imagens se utilizam de meios, no caso deste estudo do cinema, para construir seu processo narrativo. E como em todo momento de leitura e interpretação atribuí-lhe o caráter temporal, aqui este caráter se fixa na contemporaneidade, tendo em vista que os filmes aqui analisados são produções recentes, datadas dos anos 2000 para cá. Levando em consideração as implicações sociais e políticas observadas nos filmes, esta pesquisa pincela ponderações das relações desta visualidade com a estética e a política. À medida que se investiga traços do processo de construção de identidades através dos filmes, cuja materialidade está submetida às relações simbólicas desenvolvidas no campo da cultura, se objetiva conhecer, ou mesmo dar, um sentido aos elementos observados nas produções cinematográficas. Aqui se busca superar a ideia de Leal (LEAL, 1982), demonstrando que o cinema feito no Nordeste também é capaz de ser um elemento possível de análise a partir de sua autenticidade, pertencimento e reconhecimento à cultura desta região. O autor teorizou que Colocando-se à margem os filmes mais importantes, o cinema feito no Nordeste (...) ainda não concebeu uma forma regional, autêntica, para dizer da problemática nordestina, em nível de originalidade e de valor humano. Se algumas dessas películas, por causalidade, mais do que por condições intrínsecas, chegaram a obter prêmios internacionais, elas não conseguiram, todavia, por motivos complexos (...) retratar a verdadeira alma do Nordeste. E o que temos presenciado, na maioria dos casos, é o embuste, o jogo fácil de nossas variantes folclóricas, os demagogos protestos de cunho político- social, a exaltação de um misticismo exagerado e/ou fantasmagórico (LEAL, 1982, p. 47). O Céu de Suely é um filme que revela a trajetória da Hermila num contexto contemporâneo, no qual apresenta logo na abertura lembranças da personagem do período em que engravidou e na sequência seguinte mostra o seu retorno para o sertão cearense. Hermila havia ido tentar a vida com Mateus, pai de seu filho, em São Paulo e motivados pelas dificuldades que enfrentaram eles resolveram voltar a sua cidade natal, combinados que Hermila viria primeiro e ele depois, juntamente com uma máquina de gravar CD e DVD para ser a fonte de renda da família. Embora os planos de Hermila fossem este de continuar a viver com o marido e o filho Mateuzinho, a vida tomou outro rumo, ela fora abandonada pelo marido e teve que seguir sozinha em Iguatu, contando com o apoio de sua avó e tia. No entanto, a personagem não estava satisfeita com a situação, com o modo de vida que as pessoas da cidade levavam e muito menos com as possibilidades de emprego que ali surgiam, estes foram alguns dos motivos que a levou a decidir partir dali para qualquer lugar, tendo como único critério um lugar que fosse o mais longe possível de Iguatu. Com uma condição de vida precária, Hermila resolve se rifar para conseguir juntar dinheiro para fugir daquela situação. “Uma noite no paraíso” era o prêmio da rifa que passou a vender pela cidade, levantando a ira de alguns, o desprezo de outros e gerando polêmicas em torno de questões morais. Ao final, mesmo sofrendo com sua escolha, Hermila alcança seu objetivo, reúne dinheiro suficiente e consegue deixar Iguatu e o modo de vida que ela despreza. Retomando o debate sobre cultura como um espaço de lutas, um território de incompletudes em permanente mudança, pode-se identificar em O Céu de Suely este diálogo sobre permanências e continuidades ao longo de toda a trama. O filme tem seu início e fim marcados, justamente, pelo movimento, chegada e saída, representações de fugas e uma contínua busca por um espaço de identificação. Com começo e término marcados pelo deslocamento visível de um espaço físico, isto deixa margem para se pensar um movimento bem mais intenso e subjetivo que se passa no imaginário invisível da personagem Hermila. O percurso para se chegar ao final desta história, embora bastante envolvente e bem amarrado, condiciona o espectador a refletir acerca dos pontos de diferenciação entre o que seriam as construções imaginárias dos personagens e a realidade. Até que ponto as mentiras inventadas por Hermila de que ela passara um tempo morando em São Paulo não se transformaria numa fantasia para ela mesma? A fantasia, desta forma, é algo presente desde o início desta narrativa. E os desencontros entre verdade/realidade e a fantasia inventada pela personagem podem ser ilustradas, por exemplo, na cena em que ela chega a Iguatu, desce do ônibus na estrada e fica esperando por sua tia num posto de gasolina; contrapondo-se ao momento em que vai procurar por Mateus, pai de seu filho, que dissera que retornaria para sua cidade natal um mês após a esposa, e se dirige à rodoviária para se informar sobre o ônibus que saíra de São Paulo. Por que o local de chegada dos personagens seria diferente se ambos tinham a mesma origem? Os espaços urbanos de vivência desta cidade são projetados de forma que percorrem lugares de relações de trabalho e lazer. Transitando pela cidade percebe-se a escassez de ruas pavimentadas, construções precárias, a existência de um círculo vicioso de ambientes como feiras, bares, lanchonetes, mercados e o posto. Aqui, atento-me as operações realizadas neste último espaço, no qual práticas cotidianas tanto de trabalho como de lazer ocorrem.O posto é o local de acolhimento de Hermila assim que chega à cidade, o lugar para onde sai para se divertir, o ambiente de trabalho e o local que marca sua mudança. A história narrada em O Céu de Suely se consolida numa forma simples, na qual vozes do cotidiano são as responsáveis pelo tecer desta narrativa, mesclando suas próprias contradições naturais, deixando de lado toda aquela construção folclórica e demagoga que Leal (1982) associava ao cinema feito no Nordeste. A construção da narrativa em O Céu de Suely propicia situações que constroem um lugar comum nesta cultura, a maneira como se narra às práticas do espaço, as maneiras de frequentar um lugar, os modos de instaurar uma confiabilidade nas situações sofridas são formas de se construir uma narrativa de um pertencimento comum as situações ou espaços. Abrindo uma possibilidade de vivê-las dentro de uma mobilidade plural de interesses. A protagonista da história aos poucos vai definindo um lugar comum aos personagens, que no caso do filme, podemos conceber alguns lugares de vivência como o posto de gasolina ou o mercado, por exemplo, como ambientes de pertencimento de muitos personagens, um local de encontro e desencontros com seus sentimentos, um espaço que embora represente uma passagem física consegue ter elementos de identificação com quem os vive. A narrativa construída em todo o filme dá a impressão de um movimento dialético, ora de personagens que saem e retornam, ora daqueles que estão limitados a um movimento preso. Uma contradição que evidencia o caráter de imobilidade desta ação. A própria Hermila é uma personagem construída desta forma. As perspectivas de uma vida num lugar de passagem, como Iguatu, no qual todos permanecem não demonstra ser algo que lhe apraz. Colocando a narrativa como um local de fala de uma individualidade cujo lugar de atuação é composto de uma pluralidade incongruente de suas ordens sociais e relacionais. Uma narrativa que esclarece quais os espaços cotidianos de sociabilidade da personagem Hermila, transformando-os em marcos de sua identidade. É interessante salientar que não são apenas alguns espaços físicos que ganham voz ao longo do filme, a geladeira torna-se um elemento importante na narrativa, podendo-a ser vista como um espaço no qual a condição econômico-social se revela, demonstrando a oferta do que se comer; ou ainda como sinônimo de poder social, ascensão social. Como exemplo de melhoria social temos o momento em que a mãe de Mateus revela que o filho lhe ajudara a dar entrada na compra deste eletrodoméstico, e fala isto alegremente, expondo toda sua satisfação com a posse deste bem. Este mesmo objeto também é utilizado como uma forma de escapar o calor da região – uma das características mais conhecidas da região Nordeste: o calor –, que exceto quando a personagem Hermila fala com Mateus ao telefone e diz que o filho Mateuzinho não estava adaptado ao clima da cidade, o filme revela essa peculiaridade climática através da ausência de diálogos verbais, como no momento em que Hermila e Georgina se refrescam ficando dentro da geladeira, deixando sua porta aberta e passando alguns minutos imersas no eletrodoméstico como forma de fugir do calor que faz na cidade. O som ao longo de todo o filme também reflete essa construção narrativa envolvida por uma busca de um lugar comum, uma identificação com aquilo que a cerca. A trilha sonora perpassa diferentes estilos, fazendo uma co-relação com a própria trajetória da personagem Hermila. O brega e o forró se fazem de som ambiente de momentos de descontração da personagem, enquanto os sons eletrônicos remetem às vivências sublimes de Hermila, seus momentos de introspecção. Além ainda dos sons ambientes que constituem falas ao longo de todo o filme, sejam dos pássaros, das motos que transitam pela cidade, do trem que passa, dos auto-falantes do carro, todos são cimento da construção do espaço que o filme está representando. Num espaço onde o jogo e apostas fazem parte do cotidiano das pessoas, Hermila também encontra nesta prática a chance de mais uma fuga. Aludindo à tática que condiciona ações a organizar o espaço a sua volta, fazendo o reemprego de sistemas já existentes, que no caso do filme é a reutilização de uma prática como a rifa. A estratégia usada por Hermila ao assumir o codinome Suely para se rifar foi a maneira encontrada para sair de Iguatu com destino a um lugar qualquer, tendo como único propósito fugir para o lugar mais longe que pudesse. Assim, observa-se que os comportamentos dos personagens vão muito além do lugar físico que ocupam, um exemplo disto foi quando Hermila ao recriar espaços e maneiras de fazer ao decidir rifar seu próprio corpo transformou a forma como ocupava determinado espaço, redefiniu limites e construções tudo isso sem ter saído do mesmo lugar que ocupara antes. As relações estabelecidas pela personagem com os moradores da cidade são muito tênues, de maneira que com a família chefiada pela avó é notória a rigidez de uma formação matriarcal, na qual as ações de qualquer membro da família devem ser aprovadas por ela. Embora Hermila tenha saído de Iguatu motivada pela paixão por Mateus, seu retorno para a cidade também marca a transição para o abandono deste sentimento que é confortado por João, um amigo da personagem que nutre uma antiga paixão pela mesma, ficando sempre a espera de um reencontro. O confronto de valores também é um ponto forte das relações da cultura e, claro, algo bem visível em O Céu de Suely. A resignificação de valores de maneira contínua é percebida, por exemplo, tanto na ação de se rifar da personagem principal, como também na sua própria construção do conceito de prostituição, uma prática cotidiana da cidade e que tem sua presença marcante no posto à beira da estrada. Hermila insere sua experiência como fonte de mudança baseado no que ela entende e coloca como prática da função de prostituta. Para ela, o fato de se rifar não a torna uma prostituta, apenas ela se coloca como mercadoria para ser oferecida e que por trás disso, ela guarda a sua vontade de juntar dinheiro para mais uma fuga, mais uma tentativa de se encontrar num lugar qualquer. E por se comportar de maneira oposta à grande maioria dos que vivem em Iguatu, Hermila vivencia esse campo de lutas que é a cultura, no qual são produzidos significados de maneira constante e a cultura se coloca como um mediador de todos esses valores simbólicos. Nos momentos finais do filme, enquanto dá banho em seu filho, Hermila escuta uma voz, parecida com a de sua avó, chamando-a como Suely. Seria o seu inconsciente já antecipando a sua nova tentativa de encontrar o seu “céu”, um lugar que possa se sentir pertencida, um lugar para chamar de “seu”? No filme Viajo porque preciso, volto porque te amo inicia-se com um elemento ao qual sempre se remete quando se pensa no termo viagem: uma estrada. Com uma trilha sonora composta pela programação de uma rádio que traz como repertório em sua maioria a música brega. A projeção continua sempre mostrando para o espectador o que o protagonista vê. Inicialmente, o protagonista-narrador, José Renato, descreve o que levara para a viagem e faz a leitura objetiva de seu ‘diário de bordo’ dia após dia, imaginando que a trajetória pela BR-432 tem como objetivo único a observação da região que será desapropriada para a travessia de um canal. E assim são descritos o solo, a vegetação e os moradores da região, até então parece ser apenas uma investigação para o seu trabalho. A tranquilidade até então demonstrada na descriçãodos locais por onde passa logo é deixada de lado, quando José Renato coloca a ‘Galega’ como receptora desta conversa. Na verdade, o protagonista passa a ler cartas que supostamente escrevera para a sua ex- mulher, nas quais deixa explícito o seu lamento pela situação, a falta que sente dela e sua tristeza pela separação. A contagem aqui muda seu rumo, antes o que era crescente (dia um, dia dois) torna-se decrescente: “Agora faltam 27 dias e 12 horas para acabar a viagem. Parece uma eternidade”, comenta José Renato. Aqui, o protagonista cria um imaginário no qual ele ainda permanece casado com Joana (nome verdadeiro de Galega), cujas cartas relatam seu dia-a-dia enquanto estão afastados, exclusivamente, pela viagem. Este imaginário envolve um processo que articula uma série de conflitos que volta e meia se legitimam, conduzindo a uma série de incoerências na própria construção das identidades do personagem. A rádio é sua companheira nesta viagem solitária, o que a torna algo mais duradouro ainda. “A viagem mal começou e tudo me irrita”, é com esta frase que José Renato relata como está sendo sua viagem. A paisagem que não muda, levando a crer não sai do lugar, passando e repassando sempre pelo mesmo espaço, “que agonia este lugar, tudo se arrasta”, comenta o protagonista. Ele ainda reforça que as lembranças da sua amada, carinhosamente apelidada de ‘Galega’ é o que o faz feliz durante a viagem, muito embora pela monotonia da viagem e por pensar demais nela isto chega a cansá-lo. Numa parada num posto de gasolina algo o chama atenção: uma pintura na parede com a frase “Viajo porque preciso, volto porque te amo”. Em mais um diálogo fictício com a amada, José Renato comenta que a sua viagem a trabalho é algo que fora necessário e que seu retorno à Fortaleza se deve por amá-la. Saudade é um sentimento relembrado durante o filme constantemente, assim como Hermila em O Céu de Suely. Outra semelhança entre os filmes são alguns elementos como a própria estrada, que se faz presente no filme de Karim Aïnouz como local de fluxo dos que passam por Iguatu; o outro elemento é o restaurante na beira da estrada, em Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo ele é o ambiente onde José Renato encontra a figura que lhe chama atenção, é o local que recorre quando tem fome, já em O Céu de Suely ele é o local de trabalho da avó de Hermila. As incoerências entrelaçadas no discurso de José Renato se dão justamente quando se refere à Joana. Embora ele não suporte a ideia de ficar só, as lembranças que tem dela acabam tornando-se o único fator triste da sua viagem. Incoerência ainda podemos considerar o motivo de sua viagem, que não fora motivada unicamente pela necessidade do trabalho, mas pelo seu desejo de fugir de Fortaleza, fugir do término de seu relacionamento, utilizar-se da viagem de 30 dias como tempo necessário para superar a perda e retomar sua vida. Neste filme esta fuga não consegue seu propósito final, já em O Céu de Suely isto fica em aberto, na cena final vê-se a protagonista indo embora para o mais longe que pode, neste caso Porto Alegre, se lá ela conseguiu fugir dos sentimentos que lhe afligia o diretor deixou para que cada espectador tirasse suas próprias conclusões. Em Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo o movimento de buscar o isolamento também é rompido com a própria necessidade do protagonista de se relacionar com pessoas, tanto que atrasa sua viagem numa estada em Caruaru, em Pernambuco, onde busca na feira a companhia de pessoas. Ou mesmo quando foge da rota de sua viagem e chega a Juazeiro, no Ceará, para apenas estar entre pessoas, numa cidade que segundo ele nunca está vazia. Lá ele apela para o sentimento geral que toma a cidade, de devoção a Padre Cícero e de crença em seus milagres, e procura a sala dos milagres para lá deixar uma foto de seu casamento na tentativa que o santo atenda seu desejo. O desespero do protagonista é claro no seu discurso, que revela também a sua não religiosidade: “Tá todo mundo procurando um milagre, inclusive eu”, relata. A contraposição entre seus desejos é constante em todo o filme, a monotonia da viagem, da paisagem só o incomoda, a viagem que antes tinha como objetivo esquecer Joana, em certo momento do filme tem como finalidade encontrar uma flor que a sua ex-mulher procurava para uma pesquisa. O abandono de José Renato o faz sentir “amores e ódios repentinos por você”, como mesmo fala o protagonista quando se lembra de Joana. Como forma de tentar esquecê-la, além de observar os lugares por onde passa e as famílias que visita, José Renato também começa a analisar o cotidiano da região, o que as pessoas fazem como trabalho, a dinâmica das cidades e em mais de uma delas ele se envolve com prostitutas. A forma como elas agem, a maneira como vêm a vida é algo que interessa ao protagonista, e aqui, focamos uma que ele conheceu em Caruaru, a qual revelou um sonho que despertou curiosidade de José Renato, ela sonhava em ter uma ‘vida lazer’. Esta vida seria uma vida na qual ela seria correspondida no amor, e mais uma vez o amor é o elemento de maior desejo de uma pessoa. Vale lembrar que quando José Renato descrevia as famílias que entrevistou, ele sempre relatava algo que remetia a este sentimento, como o casal de senhores que estavam casados há 50 anos e nunca haviam se separado por uma noite sequer. Embora o cansaço da viagem, a não satisfação com todo o cotidiano que traçou durante dela e a com a solidão que o acompanhará, José Renato ao fim do filme começa a contar seus dias não tendo como marco a dia que saiu de viagem, mas o dia em que se separou. Começa a refletir em como se comportou logo após ela, com imobilidade a qualquer situação, e sua decisão por fazer a viagem como tentativa de se movimentar, de voltar a andar e a fazer suas atividades rotineiras, enfim voltar a viver. O processo para isto não foi fácil e nem se concluiu ao longo do que se vê no filme, mas as transformações pelas quais o personagem passava exemplificava as contradições que a própria constituição de uma identidade remete. Fundamentada na proposta da identidade como uma celebração móvel, formada e transformada continuamente diante das práticas cotidianas do sujeito, e subsequentemente, na ideia da cultura como algo plural, acredito que tanto O Céu de Suely e Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo como grande parte da produção cinematográfica feita no Nordeste na contemporaneidade, são coerentes com esses princípios, com a realidade que se vive e com a multiplicidade de maneiras de ser dos sujeitos de hoje. Numa visão particular, os filmes analisados neste ensaio me parecem bem sensível a estas questões, a fluidez com que as ações acontecem, as histórias dos personagens se entrelaçam, personagens e locais são construídos em meio a uma disputa de valores, numa contínua negociação de relações simbólicas, onde valores, poder e a própria cultura estão em jogo. Referências ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz. A invenção do nordeste e outras artes. Recife: Massangana; São Paulo: Cortez, 1999. BHABHA, Homi K. O Local da Cultura. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2010. CERTEAU, Michel de. A Invenção do cotidiano 1: artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes, 2003. GRAMSCI, Antonio. “A formação dos intelectuais”. In: Os intelectuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1989. HALL, Stuart. A identidade na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Dp&A, 2005. ______. Da Diáspora. Identidades e Mediações Culturais. Belo Horizonte/Brasília: Ed. da UFMG/UMESCO, 2003. LEAL, Wills. 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Andreas Huyssen (2000) aponta que um dos fenômenos culturais e políticos mais surpreendentes dos anos recentes é a emergência da memória como uma das preocupações culturais e políticas centrais. Neste artigo, observa-se a utilização de imagens do cotidiano pelos filmes de Danilo Carvalho, Supermemórias (2010) e de Marcelo Gomes e Karim Ainouz, Viajo por que preciso, volto por que te amo (2010), focando na poetização que é dada a estas imagens e também na potencialidade destas em catalisar sensações no espectador, em especial, sensações ligadas à lembranças de um imaginário que se mostra hora coletivo, hora individual. Supermemórias é um filme que resulta de um projeto maior, de mesmo nome, no qual o diretor recebe doações espontâneas de filmes de arquivo em super 8, filmados pelos mais diversos moradores da cidade de Fortaleza/CE. A partir destas imagens o diretor cria e ressignifica, resultando em filmes documentários experimentais. O projeto “Supermemórias: mais uma memória para uma cidade sem lembranças” nasce no quadro do Primeiro Edital das Artes promovido pela Prefeitura Municipal de Fortaleza através da Fundação de Cultura, Esporte e Turismo (FUNCET), que objetivava fazer uma tipografia poética da cidade e seus habitantes através da revisitação de imagens de arquivo de moradores locais. Essas imagens de arquivos pessoais são uma série de filmes caseiros captados originalmente para o registro da memória pessoal, e que estariam certamente renegados ao esquecimento se não fosse o projeto. Tais fragmentos mostram famílias, amigos, lugares que já não são os mesmos, atos cotidianos em um passado recente da cidade de Fortaleza. Memórias doadas, seja pessoalmente, ou pelo site do projeto (http://www.filmesupermemorias.com.br/), de forma colaborativa, visando o desenvolvimento de uma poesia coletiva. A partir desses registros, busca-se a construção de um olhar poético sobre a memória da cidade. O objetivo do diretor é fazer uma tipografia da cidade e seus habitantes. Segundo ele: O resultado dessa experimentação simboliza toda uma época, através das suas cores, texturas e ritmo de filmagem. Além da estética, a carga emocional inerente a essas imagens também contribui para a noção de história que esses registros evocam (CARVALHO, 2010). Observa-se neste projeto, uma ode ao romantismo das ‘imagens granuladas’. O uso de películas com bitola praticamente em desuso (8mm) explora a nostalgia que tal estética trás consigo. A cor e a textura destas imagens se mostram como um catalisador da experiência nostálgica, ou da experiência estética acarretada por estes elementos nostálgicos. E tal experiência irá incidir não apenas naqueles que se identificam mais afetivamente com as imagens os moradores de Fortaleza, mas em qualquer um que as veja, devido à potencialidade nostálgica inerente ao super8 em si. Outro aspecto importante é a temática das imagens, trata-se de imagens que representam o cotidiano em seus momentos mais variados, típicos de praticamente todo núcleo familiar, grupo de amigos, casal, como é o caso de imagens de nascimento dos filhos, casamentos, festas de aniversário, feriados na praia, almoços de família, entre outros. Estas imagens geram uma identificação direta e afetiva com o espectador, que se vê naqueles momentos, se identifica com aquelas imagens que, de certa forma, soa familiar. Estas imagens de memórias e sentimentos gerais potencializam uma fruição na qual o espectador associa tais imagens a suas próprias vidas e suas próprias memórias, através das sensações que estas lhe remetem, e que podem inclusive ser positivas ou não, dependendo da relação de cada um com suas memórias pessoais do cotidiano. Neste filme, o cotidiano é apresentado de forma despersonalizada, não existe a apresentação de personagens específicos, mas uma homogeneização de memórias e sentimentos, que são catalizadoras por sua vez de fruições pessoais. Tais representações generalistas do cotidiano se transformam na fruição individual do espectador. O filme romantiza e poetifica a relação com o cotidiano, de modo que este passa a ser um cotidiano comum a qualquer um. Já em Viajo porque preciso, volto porque te amo o filme foi realizado a partir de imagens gravadas pelos diretores, nos mais diversos suportes (16mm, super 8, câmeras fotográficas, VHS, etc) no decorrer de um período de mais de dez anos. Foi gerado um enorme material bruto de imagens contendo o que, para os diretores, lhe arrebatavam no sertão nordestino, e ao mesmo tempo era carregado de nostalgia. Sem nenhum roteiro prévio, os diretores se puseram a interrelacionar tais imagens e fazer significar. Para unir tais imagens foi inserido uma narrativa póética, e um personagem sem rosto. Tal narrativa relata a trajetória de José Renato, um geólogo, que é enviado para o interior do Nordeste a fim de realizar uma pesquisa de campo. No entanto, seu pensamento é constantemente desviado por questões e devaneios relativos à sua vida pessoal. Sabemos de seus pensamentos e de sua história pregressa conforme ele vai os relembrando. O espectador é assim convidado a embarcar nesta jornada, contextualizada por imagens que nos dão um panorama bastante poético e realista do Nordeste brasileiro, mostrando figuras curiosas, estabelecimentos inóspitos, além das tradicionais paisagens e sons do sertão. Imagens resultantes da passagem dos diretores pelo sertão nordestino, e da interrelaçao com o lugar. O filme pode ser visto como um diário de viagens, próprio dos diretores, Karim Ainouz e Marcelo Gomes, que é exposto ao público. Um álbum de fotografias móvel, lembranças em movimento, documentos de um lugar, e sobretudo de pessoas. Desenvolvem assim o que para Tarkovski seria a função exata do cinema: construir um vasto edifício de memórias (1998, p. 67). As poéticas imagens deixam exalar um estado de desgaste, que ressignifica toda uma relação nostálgica e emotiva dos diretores com esta região e seus personagens. Sobre este aspecto de desgaste inerente às imagens deste filme, retoma-se Tarkovski, apontando sua relação com o conceito da palavra japonesa Saba, que significa ‘corrosão’, o desgaste natural da matéria, a marca do tempo, e que é visto pelos japoneses como elemento do belo, corporificando a relação entre arte e natureza (1998, p.67). Em sua viagem, o narrador só vê solidão. Estradas sem movimento, caminhos quase desertos parecem de um mundo inabitado. Artifício e miséria convivem, lado a lado. Nos poucos contatos humanos, as pessoas posam, mudas e imobilizadas, para serem fotografadas. Flores de plástico encontradas no caminho da viagem do personagem revelam a crisedo que parecia uma relação idílica. Pensando na volta, o narrador especula: “Se eu chego com essa flor, quem sabe volte a reinar a alegria?” Afinal, comenta que houve uma separação. Tem dificuldade em trabalhar. Busca consolo nos motéis com prostitutas de beira da estrada. Já não pensa na volta: “Não quero que essa viagem acabe nunca”. É então que muda a maneira de observar. Pela primeira vez quem filma interage com quem é filmado. Simone da Silva, olhando para a câmera, diz: “Queria ter uma vida lazer. Queria ter um amor reservado só para mim.” O narrador também quer “ter uma vida lazer”. Passa a dizer: “não volto por que ainda te amo.” Documentário e ficção se encontram borrados. Tem como ponto forte a construção poética, não só imagética, mas sonora. É ao mesmo tempo uma experimentação de linguagem, e um filme homenagem. Homenagem ao sertão nordestino, e a tudo aquilo que foi responsável pela construção do imaginário dos diretores. O filme parte exatamente da revisitação deste imaginário - pessoas, locais, imagens, costumes vividos pelos diretores em seus tempos passados, reavivados de forma bastante poética, e carregado de nostalgia. Assim como coloca Tarkovski, o tempo não pode desaparecer sem deixar vestígios, pois é uma categoria espiritual e subjetiva. “e o tempo por nós vivido fixa-se em nossa alma como uma experiência situada no interior do tempo” (TARKOVSKI, 1998, p. 66). O filme se mostra assim como uma compilação de vestígios de lembranças próprias dos diretores. Essa revisitação se mostra de fato como uma relação de causa e efeito, que segundo Tarkovski, são mutuamente dependentes, tanto no sentido de sua projeção para o futuro, como em seu caráter retrospectivo. Um gera o outro. O vínculo de causa e efeito constitui também a forma de existência do tempo, o meio através do qual ele se materializa na pratica cotidiana. Pode-se dizer que: “Num sentido moral, causa e efeito podem ser ligados por um processo de retroação, quando, então, por assim dizer, uma pessoa volta a seu passado” (TARKOVSKI, 1998, p. 66) O direcionamento dado ao filme em si, por sua vez, busca levar o espectador a se identificar com aquelas lembranças, lugares, pessoas, a sentir essa sensação de nostalgia, de identificação, a imergir em todo aquele contexto do sertão, a sentir toda a solidão, tristeza, e desestabilidade associada ao personagem, e que é um reflexo do cotidiano e do imaginário vivido pelos diretores. E tal imersão se dá mesmo que o espectador não tenha aquela referência de cotidiano, o que é facilitado pela fotografia de caráter realista e por vezes suja e granulada, e pela bem construída paisagem sonora (representação das características sonoras de algum ambiente a partir dos sons que lhes são naturalmente próprios), que tem o poder de levar o espectador a fruir as reminiscências poéticas do sertão, e a olhar as imagens com a carga nostálgica proposta pelos diretores. Um fato observado com os exemplos citados é a comprovação de que, segundo coloca Andreas Huyssen (2000), embora os discursos de memória possam parecer, de certo modo, um fenômeno global, no seu núcleo eles permanecem ligados às histórias de nações e estados específicos. O que se comprova diante das especificidades da abordagem em cada filme: ligadas a um cotidiano regional, no caso de Viajo porque preciso, volto porque te amo, e pessoal, no caso de Supermemórias (porém focado no contexto específico local de Fortaleza). Nestes filmes observa-se uma quebra com a leitura rígida e dirigida do sistema clássico, que tende a produzir enunciados unívocos. Nota-se nestes filmes se incita a cooperação ativa do espectador na construção do sentido, permitindo assim o surgimento de resultados plurívocos. Dentro desta relação de cooperação, é importante se observar a questão cultural e ideológica, seja as que já estão entranhadas na própria obra, seja as características individuais de cada espectador. Essas questões culturais e ideológicas individuais são responsáveis pela heterogeneização das interpretações das obras. Quando se analisa, ou se participa da realização de uma obra, toda a carga de referências e experiências que cada indivíduo adquiriu durante a vida irá determinar a forma como esse formará seus conceitos sobre a obra, influenciará na forma como esse gerará o sentido desta. Serão essas características individuais que determinarão as escolhas dos espectadores na construção desta. Para Comolli (2009), um dos vetores de maior importância para entendermos a dinâmica do documentário é o confronto com o outro, com a mise-en-scène deste outro, pois a partir daí se estabelecem as crises de representação e o acesso ao que seriam os rastros do real, que estarão visíveis, talvez, à sombra do espetáculo, dos olhares cruzados entre espectador, cineastas e personagens. É importante notar, todavia, que essa interrelação entre aspectos pessoais e culturais e as imagens que se apresentam ocorre não apenas na relação entre a obra e o espectador, mas também no próprio momento de criação entre obra e realizador. No que diz respeito a esta interrelação, Comolli (2009) coloca que uma vez que durante o processo de confecção de um documentário não é apenas o olhar do cineasta que orienta a construção de sentidos, mas o olhar cruzado do mundo, das pessoas, dos objetos, dos espectadores. Assim, podemos afirmar que o cotidiano e seus sujeitos possuem também influencia direta na realização destas obras cinematográficas. Segundo afirma Salles (2006, p. 151) a criatividade do sujeito é constituído por seus engajamentos, dificuldades, conflitos. E é situado, espacialmente, temporalmente, historicamente. Ao tratar deste descentramento do sujeito criativo, Salles ressalta a relação artista obra e a observância dos processos de criação como espaço de constituição da subjetividade. Bem como ressalta Colapietro (1989) que o sujeito não é uma esfera privada, mas um agente comunicativo. Obras e artistas não só estão imbricados de modo vital, como estão sempre em mobilidade, são seres em permanente constituição. Aponta-se então para a presença, nestes filmes, da valorização de uma interrelação entre o diretor e o mundo e entre o resultado desta - a obra - e o espectador. Gerando, a partir de imagens do cotidiano, uma relação dinâmica e aberta, onde o sujeito (seja ele o diretor ou o espectador) é visto como uma combinatória de experiências, passível a constantes mutações. A ligação com o cotidiano e com a nostalgia presente nestas produções é vista, segundo Svetlana Boym (2001), como um mecanismo de defesa para os tempos acelerados atuais. Trata-se da construção da ilusão de um passado, de um anseio por um lugar seguro, mítico, que nunca existiu de fato, apontando para faltas e desejos. Diante da observação deste filmes foi possível notar que ocorre, por parte dos diretores, algo como uma fuga diante de uma plastificação da imagem cinematográfica e da superficialidade dos temas abordados pela produção cada vez mais comercial. Eles vêem no cotidiano e no que é real uma forma de resistência, de fuga. Há por traz da valorização do cotidiano, uma valorização do mínimo, do singelo, do que é real ao homem comum. Referências BOYM, Svetlana. The future of nostalgia. New York: Library of Congress, 2001. CARVALHO, Danilo. Supermemórias: mais uma memória para uma cidade sem lembranças. Disponível em: http://www.filmesupermemorias.com.br/. Acesso em: 20/07/2010. SALLES, Cecília Almeida. Redes de criação: construção da obra de arte. São Paulo: Horizonte, 2006. COMOLLI,J. L. 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A pessoa não queria selos postais novos, também não os queria para taxar alguma missiva e, muito menos, para ajuntar, colecionar, expor, classificar, catalogar, criar listas hierárquicas e temáticas. Nesse mesmo período, o gentilhomme M. Vetzel, de Lille (França), reconstituía folhas inteiras do primeiro selo postal adesivo - Penny Black - no seu diário, sendo considerado desde então, apesar da improbabilidade desse fato, um dos pioneiros no colecionismo do selo postal. Vale ressaltar, que o colecionismo sistemático do selo postal, na Europa e para além de suas fronteiras, possibilitou e ainda suscita muitas especulações, como mostram os irmãos Williams (1965, p. 64): Não se sabe ao certo sequer quem foi o primeiro coleccionador de selos de correio, mas a idéia de formar uma coleção talvez tenha partido de John Bourke que, em 1774, como Recebedor Geral do Imposto do Selo na Irlanda, iniciou uma coleção de estampilhas fiscais que saíram pela primeira vez nesse ano. Talvez o Dr. John Edward Gray, funcionário do Museu Britânico, que em 1862 escreveu que tinha principiado a colecionar selos de correio pouco depois de o sistema entrar em vigor, tivesse ouvido falar de Bourke e decidido seguir-lhe o exemplo; mas mesmo assim é possível que Gray não tenha sido o primeiro coleccionador de selos de correio [...]. Outro pretendente ao título de primeiro coleccionador de selos é John Tomlynson que recebeu um Penny Black e um sobrescrito-Mulready no dia seguinte à sua emissão, colocando-os num livro como ponto de partida para a sua coleção [...] e também um tal E. van der Beeck, um russo mencionado em The Stamp Collector, por W. J. Hardy e E. D. Bacon, como tendo começado a coleccionar em 1854 e continuado nessa atividade em 1897 quando o livro foi publicado. Tanto o neófito colecionador francês, que colava os selos postais nas folhas de seu diário, quanto a cidadã inglesa, que utilizava os selos postais para forrar as paredes de seu quarto, são meus relatos sobre algumas das possíveis práticas de pessoas comuns. Esses dois atores sociais, em seus tempos históricos, escolheram utilizar esses objetos na busca por uma satisfação pessoal, não obedecendo às regras impositivas estatais de uma cultura de massa eurocêntrica, mas, seguindo códigos culturais e referenciais particulares. A partir desses dois relatos, parece coerente propor que exista alguma relação entre a atividade do colecionismo, utilizando o selo postal como objeto de enfoque, e os estudos sobre a “Invenção do Cotidiano” (CERTEAU, 1994; 1996), admitindo alguns conceitos postulados pelo autor. Para isso, num primeiro momento, enfatizo alguns apontamentos breves sobre o colecionismo (admitindo que seja uma temática que está encarnada no meu cotidiano, visto que, eu mesmo, sou um colecionador de selos postais). Em seguida, produzo uma narrativa com o objetivo de esclarecer a proposta, tentando relacionar os “modos de fazer” do colecionador com os conceitos binominais “lugar/espaço” e “estratégia/tática”. Inicialmente, parece oportuno esclarecer o que penso sobre colecionismo. Não pretendo realizar uma revisão bibliográfica, pois algumas dimensões teóricas concernentes aos estudos sobre essa categoria, já foram analisadas e debatidas em vasta literatura internacional. A pequena lista a seguir, ordenada alfabéticamente pelo sobre nomes dos autores e que não tem a pretensão de ser exaustiva, mostra àquilo que o discurso científico chama de estado da arte, e que, aqui, representa uma parcela dos estudos sobre o colecionismo na Europa e nas Américas: Alsop, 1982; Baudrillard, 2008; Belk, 1995; Benjamin, 1987; Blom 2003; Bourdieu e Darbel, 2003; Codet, 1921; Cooper, 1963; Csikszentmihalyi e Rochberg-Halton, 1981; Dittmar, 1992; Elsner e Cardinal, 1994; Muensterberger, 1994; Pearce, 1993, 1995 e 1998; Poirier, 2006; Pomian, 1984 e 1990; Rheims, 1961; Sánchez, 1999; Taylor, 1960 etc. Por sua vez, é a partir dessa literatura que ocorrem os escassos, incipientes e inexpressivos debates, no Brasil, sobre o colecionismo, os objetos de coleção, os protagonistas envolvidos num sistema que entendo ser um complexo laboratório contemporâneo. De fato, penso que o enquadramento desses debates permanecem limitadas à algumas áreas, como a Museologia e a Antropologia, o que acarreta a dominação de doutrinas isolantes e reduzem, sobremaneira, as posibilidades de ampliação dos enfoques e dos sentidos inerentes a esse campo de reflexão. Posto isso, resulta dos múltiplos sentidos que atribuo ao termo colecionismo a sua trajetória etimológica. Não cabe aqui realizar esse estudo de forma aprofundada, por isso aceitarei a sugestão de Marshall (2005, p. 13). A etimologia desse termo “encontra-se no proto-indoeuropeu, universo semântico quadrimilenar em que se formou a raiz leg. Nesta formação, assinala-se o vínculo originário entre 'coletar' e 'falar', assim como os traços genéticos e efeitos civilizatórios do colecionar”. A sugestão desse autor provoca e permite uma reflexão: que, apesar da mesma raiz etimológica, existe uma diferença fundamental nos significados dos termos colecionar e colecionismo. Ao contrário do que algumas pessoas podem defender, penso que a ação de colecionar é constituinte da condição e natureza do “bicho-homem” (MORRIS, 2004, p. 9). Essa ação específica é transversal ao desenvolvimento cognitivo e sócio-cultural da auto-denominada espécie humana, desde o ancestral do Homo-Sapiens até o “Pós-humano” de Fukuyama (2003). Colecionar está, direta e necessariamente, relacionado a escolher, é uma imanência humana, a “práxis” aristotélica (GOBRY, 2007, p. 120). Por sua vez, a ação de escolher pressupõe a capacidade simbólica humana, da qual “dependem nossas ações” (SAVATER, 2004, p. 23). Assim, colecionar não sugere relação, mas ação. Por outro lado, colecionismo ou “colecionamento” (GONÇALVES, 2007, p. 24) não é uma ação ou uma prática, mas um processo que indica, para além da ação, uma relação. Ela pode ocorrer tanto entre uma pessoa, um grupo de pessoas ou uma instituição com um ou mais objetos, quanto no deslocamento do objeto de sua função primeira (ligada à produção/utilização), para a função de “possuído” (BAUDRILLARD, 2008, p. 94), ou ainda, ao ultrapassar o estágio da coleta e passar ao do ajuntamento, acondicionamento, armazenamento e colecionamento. É uma atividade do homem sobre e com os objetos para além da práxis, é a “poiésis” de Aristóteles (GOBRY, 2007, p. 118). Na prática do colecionismo reside a
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