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Imagem e Cotidiano: ensaios de cultura visual.

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Imagem	&	Cotidiano
Ensaios	de	Cultura	Visual
Paulo	Carneiro	da	Cunha	Filho,	
Diego	Andres	Salcedo,	
Raquel	de	Holanda	(orgs.)
©	Copyright	2014.	Todos	os	direitos	reservados.	Nenhuma	parte	deste	livro	pode
ser	reproduzida	de	qualquer	forma	ou	em	qualquer	meio,	seja	eletrônico	ou
mecânico,	sem	permissão	escrita	da	editora	ou	dos	autores.
Coleção	E-CIT:	Publicações	digitais	nas	áreas	de	Comunicação,	Informação	e
Tecnologia.
FICHA	TÉCNICA
Este	livro	é	um	produto	da	Editora	da	UFPE,	e	foi	editado	em	agosto	de	2014.
Editoração	Eletrônica
Cassandra	Brito
Daniel	Venegas
Thiago	Moreira
Conselho	Editorial
Prof.	Dr.	Diego	Andres	Salcedo	-	UFPE
Prof.	Dr.	Javier	Diaz-Noci	-	Univ.	Pompeu	Fabra,	Barcelona	-	Espanha
Prof.	Dr.	José	Afonso	Jr.	-	UFPE
Prof.	Dr.	Marcos	Galindo	-	UFPE
Prof.	Dr.	Marcos	Silva	Palacios	-	UFBA
Prof.	Dr.	Paulo	Carneiro	da	Cunha	-	UFPE
Prof.	Dr.	Paulo	César	Boni	-	UEL
Contatos
ecit.ufpe@gmail.com
Telefone:	(81)	2126-8429
Sumário
Sobre	os	autores
A	construção	do	cotidiano	visual:	derivas	com	Michel	de	Certeau
Paulo		Carneiro	da	Cunha	Filho
Cotidiano	e	Identidade:	construções	entrelaçadas	no	cinema
Raquel	Holanda
Observar	ao	redor,	observar	e	sentir:	o	cotidiano	como	catalisador	de	sensações
Iomana	Rocha	de	Araújo	Silva
O	cotidiano	dos	colecionadores	de	imagens
Diego	Andres	Salcedo
Sertão	e	messianismo:	explícito	e	implícito	em	Árido	Movie
José	Carlos	Gomes	da	Silva
Filesharing	e	outros	espaços	de	Cinema
Bernardo	Queiroz	de	Siqueira	Santos
O	cotidiano	na	trilogia	amorosa	de	Wong	Kar-Wai
Amanda	Mansur	Custódio	Nogueira
Fotografia	e	cotidiano	na	Caixa	de	Sapato
Eduardo	Queiroga
		Sobre	os	autores
Paulo	Carneiro	da	Cunha	Filho
Pesquisador	 2	 do	 CNPq,	 avaliador	 voluntário	 da	 CAPES	 e	 professor	 Associado	 4	 na
Universidade	 Federal	 de	 Pernambuco.	 Doutor	 em	 Artes	 e	 Ciências	 da	 Arte	 pela
Universidade	de	Paris	 I	 -	Panthéon-Sorbonne	 (1989),	 fez	 cinema	experimental	 (sobretudo
curtas	 em	 super-8	 e	 em	 16	 milímetros).	 Foi,	 durante	 dois	 anos,	 membro	 do	 seminário
fechado	em	Teoria	do	Cinema	de	Christian	Metz	na	École	des	Hautes	Études	en	Sciences
Sociales	de	Paris,	onde	também	obteve	o	diploma	sob	orientação	do	historiador	Marc	Ferro.
Está	vinculado,	como	membro	permanente,	ao	Programa	de	Pós-Graduação	em	Design	da
UFPE.	 Seus	 livros	 mais	 recentes	 foram	 publicados:	 A	 Utopia	 Provinciana:	 Recife,	 Cinema,
Melancolia	 (2010),	 Imagem	 e	 Cotidiano:	 ensaios	 de	 cultura	 visual	 (2012)	 e	 A	 Imagem	 e	 seus
Labirintos:	o	cinema	clandestino	do	Recife,	1930-1964	(2014).
Raquel	Holanda
Doutoranda	 em	 Comunicação	 pelo	 Programa	 de	 Pós-Graduação	 da	 Universidade	 de
Brasília.	 Mestra	 em	 Comunicação	 pelo	 Programa	 de	 Pós-Graduação	 da	 Universidade
Federal	de	Pernambuco	(2012).	Investigada	nas	produções	audiovisuais	temas	como	cenário
cinematográfico,	espaços	e	paisagens	urbanos,	estética	e	cultura	visual.
Iomana	Rocha	de	Araíjo	Silva
Professora	 do	 Curso	 de	 Cinema	 e	 Audiovisual	 da	 UFPA,	 Doutora	 e	 mestre	 em
Comunicação	pela	UFPE,	graduada	em	Arte	e	Mídia	Pela	UFCG.	Tem	interesse	em	poéticas
cinematográficas,	 cinema	 independente/experimental,	 arte	 contemporânea,	 cinema
expandido,	hibridismos	entre	artes	e	cinema	e	estudos	relacionados	à	Direção	de	arte	no
cinema.	 Desenvolve	 também	 trabalhos	 práticos	 em	 cinema,	 especialmente	 na	 área	 de
Direção	de	Arte.
Diego	Andres	Salcedo
Bacharel	 em	 Biblioteconomia	 (UFPE),	 Mestre	 e	 Doutor	 em	 Comunicação	 (UFPE).
Professor	 no	 Departamento	 de	 Ciência	 da	 Informação	 da	 UFPE.	 Integrou	 a	 equipe	 de
Orientador	 do	Ministério	 da	 Educação	 no	 projeto	Mídias	 na	 Educação	 (SEED).	Membro
pesquisador	no	Laboratório	de	Tencologia	de	Conhecimento	(LIBER/UFPE).	Na	temática	da
Filatelia	publicou	os	seguintes	livros:	A	ciência	nos	selos	postais	comemorativos	brasileiros:	1900-
2000.	(2010);	Pernambuco	nos	Selos	Postais:	fragmentos	verbo-visuais	de	pernambucanidade	 (2011);
Bibliofilatelia:	fontes	de	informação	para	o	estudo	do	mundo	postal	(2014).
José	Carlos	Gomes	da	Silva
Bacharel	em	Jornalismo	pela	Universidade	Católica	de	Pernambuco	(1981),	Especialista
em	Jornalismo	e	Crítica	Cultural	pela	Universidade	Federal	de	Pernambuco	(2007)	e	Mestre
em	comunicação	pela	UFPE	(2012).	É	assistente	administrativo	da	Universidade	Federal	de
Pernambuco.	 Tem	 experiência	 na	 área	 de	 Comunicação,	 com	 ênfase	 em	 Jornalismo	 e
Produção	de	Textos.
Bernardo	Queiroz	de	Siqueira	Santos
Jornalista	formado	pela	Universidade	Católica	de	Pernambuco	(2005),	pós-graduado	em
Estudos	Cinematográficos	(2007)	e	Mestre	em	Comunicação	pela	Universidade	Federal	de
Pernambuco	(2012).	Trabalhou	como	réporter	e	editor	em	TV	e	portais	de	internet,	além	de
atuar	 como	 professor	 de	 Jornalismo,	 Cinema	 e	 Publicidade.	 Pesquisa	 as	 relações	 entre
cultura,	estética,	cinema	e	novas	mídias	audiovisuais.	Atualmente	é	Doutorando	pela	PUC
de	 São	 Paulo	 na	 área	 de	 Comunicação	 e	 Semiótica.	 Continua	 insone,	 viciado	 em
dispositivos	 com	 telas	 e	 nerd	 assumido.	Não	 crê	 que	 isso	 vai	mudar	 em	nenhum	 futuro
visível.
Amanda	Mansur	Custódio	Nogueira
Doutora	pelo	Programa	de	Pós-Graduação	em	Comunicação	da	Universidade	Federal	de
Pernambuco.	Possui	Mestrado	em	Comunicação	pela	mesma	instituição.	Como	professora
ministrou	 aulas	 nos	 cursos	 de	 Bacharelado	 em	 Cinema	 e	 Publicidade	 e	 Propaganda	 das
faculdades	 Marista,	 AESO	 e	 Mauricio	 de	 Nassau.	 Além	 de	 oficinas	 e	 mini-cursos	 sobre
teoria	 e	 prática	 do	 audiovisual.	 Dentre	 as	 suas	 atividades	 profissionais	 destacam-se	 a
cinematográfica,	atuando	como	assistente	de	direção	e	continuísta.	É	autora	do	livro	O	Novo
Ciclo	 de	 Cinema	 em	 Pernambuco:	 a	 questão	 do	 estilo,	 lançado	 pela	 Editora	 Universitária	 da
UFPE.	No	momento,	 atua	como	Professora	 substituta	do	Departamento	de	Comunicação
Social,	na	Universidade	Federal	de	Pernambuco.
Eduardo	Queiroga
Possui	 graduação	 em	Comunicação	 Social	 -	 Jornalismo	pela	Universidade	Católica	 de
Pernambuco	 (1991)	 e	 mestrado	 em	 Comunicação	 pelo	 Programa	 de	 Pós-Graduação	 em
Comunicação	da	Universidade	Federal	de	Pernambuco	(PPGCOM-UFPE).	Doutorando	em
Comunicação	 pelo	 PPGCOM-UFPE.	 Coordenador	 e	 educador	 do	 Projeto	 Fotolibras.	 Foi
professor	e	 coordenador	do	Bacharelado	em	Fotografia	das	Faculdades	 Integradas	Barros
Melo.	 Tem	 experiência	 na	 área	 de	 Comunicação,	 com	 ênfase	 em	 Fotografia,	 atuando
principalmente	 nos	 seguintes	 temas:	 imagem	 e	 educação,	 fotografia	 e	 história,
fotojornalismo	e	fotografia	contemporânea.
A	construção	do	cotidiano	visual:	derivas	com	Michel	de	Certeau
Paulo	Carneiro	da	Cunha	Filho
A	missa	de	despedida	de	Michel	de	Certeau	foi	comovente,	na	manhã	de	inverno	de	9	de
janeiro	de	1986.	Durante	a	cerimônia	de	adeus,	a	pedido	dele,	se	escutou	uma	velha	gravação
de	 Edith	 Piaf,	 interpretando	 Non,	 je	 ne	 regrette	 rien.	 Que	 sentidos	 pretendeu	 produzir
Certeau,	 depois	 de	 morto,	 com	 aquela	 canção?	 Que	 trajetória	 teria	 sido	 esta,	 que	 não
deixava	lugar	para	o	remorço?	Primeiro,	o	óbvio,	é	claro:	tinha	enfrentado	de	peito	aberto	o
destino	 que	 lhe	 coube	 vida	 clara,	 na	 acepção	 pasoliniana,	 constituída	 também	 pelos
episódios	 mesquinhos	 ou	 grandiosos	 que	 a	 vida	 reserva	 a	 todos,	 guardadas	 as	 devidas
proporções.	 Sem	 arrependimentos,	 portanto.	 Mas,	 e	 talvez	 aqui	 tenhamos	 um	 segundo
sentido	não	sem	pecados,	na	medida	em	que	os	erros	 fazem	parte	de	 todo	 trajeto.	Havia
então,	na	voz	de	Edith	Piaf	uma	dupla	visão	das	coisas	da	vida:	o	gesto	de	ouvir,	na	nave	de
uma	 igreja,	as	palavras	de	certo	ser	 impuro,	 incerto;	e	a	mensagem	que	a	 letra	da	canção
afirmava:	 apesar	 de	 tudo,	 teria	 sido	 assim:	 o	 arco	do	possível	 se	 estendendo	por	 sobre	 o
chão	 da	 utopia.	 Então,	 naqueleinstante,	Michel	 de	 Certeau	 reiterava	 a	metodologia	 que
desenvolveu	durante	décadas,	pacientemente:	ouvir	a	voz	dos	que	não	têm	voz;	e	deslocar	o
sentido	das	coisas,	ao	transtornar	os	espaços	usuais	de	circulação	dos	homens	e	dos	objetos.
Dedicado	inicialmente	ao	estudo	do	século	18,	Michel	de	Certeau	foi	um	historiador	que
tomou	consciência	de	que	não	se	pode	escapar	do	tempo	presente	e	de	suas	derivas:	não	se
foge	dos	desvios,	do	estranho,	do	surpreendente	que	nos	habita	no	instante	mesmo	em	que
somos.	O	acesso	para	o	arrebatamento	do	inusitado	só	está	real-	mente	aberto	para	quem
sabe	 olhar	 para	 as	 dimensões	 do	 tempo	 presente.	 A	 história,	 então,	 é	 uma	 permanente
reinvenção	do	passado,	a	partir	da	vida	que	vivemos	hoje.
Para	 Certeau,	 isso	 tudo	 era	 claro,	 sobretudo	 quando	 ele	 olhava	 para	 as	 bruxas,	 os
possessos,	os	místicos	ensandecidos.	Mas	também	quando	prestava	atenção	nas	pequenas
coisas,	 nas	 “artes	 de	 fazer”,	 nos	 “jeitinhos”	 (como,	 afinal,	 traduzir	 o	 francês	 ruses?).
“Astúcias”,	 ele	 vai	 dizer,	 mas	 também	 “trampolinagem”.	 Táticas	 e	 estratégias	 do	 viver
simples,	do	modo	de	ser	do	humano	“comum”.	 “Não	tome	as	pessoas	por	 idiotas”.	Nunca
suponha	que	a	vida	cotidiana,	dos	que	aparentemente	não	têm	poder,	dos	que	muitas	vezes
se	perdem	na	multidão,	 seja	 apenas	 essa	homogeneidade	aparente,	 essa	passiva	 adesão	a
algo	 que	 seria	 um	 avassalador	 poder	 institucional.	 Certeau	 foi	 um	 antídoto	 para	 os	 que
acham	 que	 a	 vida	 da	 maioria	 das	 pessoas	 não	 tem	 graça	 alguma,	 dos	 que	 operam	 com
noções	como	 “massa”,	 “burguesia”	ou	 “proletariado”	 -	 esquecendo	que	há	mais	diferenças
táticas	entre	os	“iguais”	do	que	pensa	certa	sociologia.
Ali,	aonde	parece	haver	apenas	o	conformismo,	ou	a	força	incontrolável	do	mercado,	ou
a	 submissão	 absoluta	 aos	 cânones	 estabelecidos,	 se	 esconde	 a	 invenção.	 A	multidão	 tem
olhos.	Age.	Pensa.	Resiste.	O	poder	do	mercado	existe,	evidentemente,	e	os	bens	culturais,	e
não	apenas	os	materiais,	são	de	fato	objetos	de	consumo.	No	entanto,	algo	sempre	foge	do
controle.	 Algo	 escapa.	O	 conjunto	 de	 forças	 que	 frequenta	 a	multidão	 retoma,	 reinventa,
apropria-se,	ressignifica.	Leva	a	vida	para	longe	de	toda	previsibilidade,	do	que	havia	sido
programado.	 “Indisciplina”.	 E	 as	 desobediências	 são	 vistas	 como	 focos	 de	 resistência	 ao
homogêneo,	 ao	 que	 parecia	 fazer	 a	 vida	 inevitavelmente	 linear.	 A	 esperança	 singela	 de
Michel	de	Certeau	é	a	 seguinte:	não	existe	uniformização,	mas	uma	contínua	e	 luminosa
tensão	entre	campos	de	poder.
Os	textos	que	compõem	esta	coletânea	surgiram	no	quadro	da	disciplina	Cultura	Visual,
do	Programa	de	Pós-graduação	em	Comunicação	da	Universidade	Federal	de	Pernambuco.
O	pequeno	grupo	de	pesquisadores	reunidos	nas	aulas	era	muito	diverso,	sobretudo	no	que
se	referia	à	temática	dos	projetos	individuais	de	pesquisa.	Num	determinado	momento	do
ano,	percebemos	que	a	questão	do	cotidiano	poderia	sugerir	um	recorte	comum	aos	vários
trabalhos	 e	 decidimos	 fazer	 um	 retorno	 à	 obra	 de	Michel	 de	 Certeau.	 O	 resultado	 foi	 a
produção	dos	textos	reunidos	aqui,	todos	interessados	por	produtos	culturais	nos	quais	é
possível	 detectar	 alguma	 forma	 de	 “marcar	 socialmente	 a	 distância”,	 seja	 pelos
consumidores	no	ato	de	consumir,	seja	pelos	criadores	no	instante	da	criação.
Nosso	 desafio	 foi,	 desde	 o	 início,	 articular	 a	 observação	 das	 práticas	 e	 dos	 usos	 das
representações	 visuais	 na	 condição	 de	 “criações	 anônimas”,	 presentes	 na	 vida	 cotidiana,
mas	 igualmente	 das	 representações	 dessas	mesmas	 práticas	 e	 usos	 em	 objetos	 culturais
“assinados”,	vinculados	à	grande	produção	industrial	e,	nessa	perspectiva,	verificar	nesses
objetos	 de	 segunda	 ordem,	 reconhecidamente	 “artísticas”	 os	 traços	 das	 artimanhas	 do
cotidiano.	 Afinal,	 essa	 produção	 “de	mercado”,	 “erudita”,	 também	 poderia	 ser	 revisitada
enquanto	 território	 de	 transformação,	 um	 lugar	 em	 que	 as	 práticas	 de	 consumo
eliminariam	 o	 fechamento	 do	 objeto,	 permitindo	 que	 o	 observador	 (o	 consumidor)
reinventasse-o,	produzisse	novos	sentidos.
Cada	 texto,	 portanto,	 tenta	 definir	 um	 conjunto	 de	 “microresistências”,	 pequenas
utopias	que	reintegram	aquilo	que	é,	de	fato,	vivenciado	nas	representações	visuais.	Nosso
olhar,	assim,	é	o	mesmo	da	gente	“simples”,	 “ordinária”,	aquele	que	necessariamente	está
longe	 dos	 centros	 do	 poder.	 São	 as	 nossas	 circunstâncias	 que	 explicam	 isso:	 estamos,
conscientemente,	 na	 periferia	 da	 periferia,	 como	 acadêmicos	 e	 como	 consumidores	 ou
produtores	de	imagem.	Essa,	longe	de	ser	nossa	fraqueza,	é	nossa	potência.
Mesmo	sem	poder	adotar	o	princípio	de	que	nossas	temáticas	surgiam	do	anonimato,
na	medida	em	que	muitas	das	imagens	que	observamos	tinham	“nome	próprio”,	um	“nome
de	 autor”,	 o	 nosso	 olhar	 foi	 sempre	mais	 sensível	 às	 resistências,	 às	 táticas	 complexas	 e
sutis	que	fazem	face	aos	projetos	do	sistema	dominante.	Então,	o	conceito	de	cotidiano	que
vale	para	o	conjunto	de	textos	aqui	reunidos	parte	do	princípio	de	que	os	 indivíduos	e	os
grupos	sociais	são	capazes	de	se	confrontar	com	os	modelos	disciplinares,	com	a	Ordem,	de
formas	 muito	 complexas	 e	 muito	 sutis,	 construindo	 movimentos	 de	 defesa	 e	 de
antagonismo	que	vão	além	dos	padrões	mais	reconhecíveis	de	contestação.
É	 no	 cotidiano	 que	 se	 dá,	 dessa	 forma,	 este	 conjunto	 de	 curiosas	 formulações	 contra
toda	sorte	de	vontade	imposta	pelos	centros	hegemônicos	de	poder.
Para	nós,	valia	sobretudo	investigar	como	as	imagens	participam	desses	jogos.	Ou	seja:
trazer	 à	 tona	 um	 conceito	 mais	 amplo	 de	 Cultura	 Visual	 do	 que	 aquele	 normalmente
adotado	pela	academia.	De	que	modo	os	objetos	da	cultura	visual	fossem	considerados	na
sua	 capacidade	 de	 interagir	 com	 a	 vivência	 cotidiana	 ̶	 seja	 na	 sua	materialidade,	 seja	 na
imaterialidade:	 a	 condição	 efetiva	 de	 produzir	 um	 espaço	 secundário,	 derivado	 da	 vida
social,	uma	espécie	de	teatro	da	vida	aonde	igualmente	se	estruturam	as	tensões	da	ordem	e
da	desordem.
Havia	um	desafio	que	consistiu	em	evitar	fazer	Michel	de	Certeau	dizer	o	que	não	disse.
É	evidente	que	partíamos	da	ideia	de	que	o	mercado	tentava	impor	sua	lógica	e	constituía,
mesmo	no	campo	cultural,	produtos	de	consumo.	Também	consideramos	que	essa	tentativa
seguia	um	roteiro	muitas	vezes	diverso	do	que	pressupunha	a	própria	lógica	do	mercado.
Como	lidar	com	o	fato	de	que	nossos	temas	de	pesquisa	eram	tanto	os	modos	de	uso	dos
objetos	 visuais	 como	 os	 próprios	 usos	 representados	 dentro	 desses	 mesmos	 objetos?
Finalmente,	 relemos	 um	 texto	 crucial	 de	Michel	 de	 Certeau,	 que	 serviu	 para	 elucidar	 os
caminhos	que	tomamos	na	elaboração	dos	textos	dessa	coletânea.	Justo	aquele	que	trata	de
"Uma	 'arte'	 brasileira"	 (CERTEAU,	 1990,	 p.	 76),	 e	 explora	 os	 campos	 estratificados	 dos
camponeses	nordestinos	e	as	missões	do	místico	Frei	Damião	de	Bozzano,	um	capuchinho
italiano	que	percorreu	o	Nordeste,	tornando-se	um	dos	homens	mais	venerados	na	região.
Tratava-se,	na	visão	de	Michel	de	Certeau,	de	um	espaço	bipolar,	 capaz	de	 fazer	coexistir
um	 campo	 “polemológico”,	 (sócio-econômico,	 clivado	 pela	 ancestral	 disputa	 entre
poderosos	e	pobres,	e	no	qual	estes	são	sempre	os	derrotados)	e	um	espaço	 “utópico”,	no
qual	se	afirma	o	milagre,	a	redenção	onde	os	pobres	encontram	uma	dimensão	que	lhes	é
mais	favorável.
Ora,	nesse	 texto	magnífico,	o	autor	estabelece	uma	ponte	entre	o	discurso	místico	do
capuchinho	 Frei	 Damião	 de	 Bozzano,	 constituído	 pelos	 relatos	 de	 milagres,	 e	 o	 filme	 A
Cecília,	 de	 Jean-Louis	 Comolli,	 com	 seus	 cantos	 anarquistas.	 Descobríamos	 ali	 o
desdobramento	que	nos	faltava:	o	espaço	“real”	e	bipolar	do	Nordeste	e	o	espaço	simbólico
da	 experiência	 cinematográfica	 e	 doseu	 dispositivo.	 Estava,	 portanto,	 na	 própria
“metodologia”	certaliana	uma	ponte	entre	o	ordinário	cotidiano,	essa	arte	dos	não	artistas,
e	 a	 produção	 das	 imagens	 técnicas,	 tomada	 como	 espaço	 em	 si	 ̶	 representando	 outros
espaços	 “reais”	nos	quais	 situam-se	outras	 “artimanhas”,	outras	 ressignificações	passíveis
de	interpretação.
Era	o	que	precisávamos	para	tentar.
Referências
CERTEAU,	Michel	de.	L’étranger,	ou	l’union	dans	la	différence.	Paris,	Desclée	De	Brouwer,	1991.
______.	La	possesion	de	Loudun.	Paris,	Gallimard,	1990.
______.	La	culture	au	pluriel.	Paris,	Seuil,	1993.
______.	L’écriture	de	l’histoire.	Paris,	Gallimard,	1984.
______.	La	fable	mystique	XVIe-XVIIe.	Paris,	Gallimard,	1987.
______.	L’invention	du	quotidien,	I:	arts	de	faire.	Paris,	Gallimard,	1990.
______.	L’invention	du	quotidien,	II:	habiter,	cuisiner.	Paris,	Gallimard,	1990.
Cotidiano	e	Identidade:	construções	entrelaçadas	no	cinema
Raquel	Holanda
A	 intenção	 deste	 ensaio	 é	 compreender	 como	 se	 dão	 as	 construções	 identitárias	 nos
filmes	analisando-as	a	partir	das	relações	das	personagens	e	dos	lugares	com	seus	espaços	e
usos	 cotidianos,	 acrescentando	 ao	 cotidiano	 este	 caráter	 de	 marco	 da	 identidade.
Formalizando,	 desta	 forma,	 as	 práticas	 cotidianas	 como	 elementos	 fundamentais	 na
constituição	de	uma	cultura.	Até	onde	este	 cotidiano	não	se	 constitui	 enquanto	 limite	de
determinado	lugar	das	identidades?	De	que	forma	se	dá	o	entrelaçamento	entre	identidade
e	cotidiano	nos	filmes?	Estas	são	alguns	pontos	a	busca-se	elucidar	ao	término	deste	ensaio.
E	ao	propor	analisar	as	imagens	difundidas	pelo	cinema	feito	no	Nordeste,	a	intenção	é
tê-las	como	objetos	de	uma	própria	cultura,	não	se	delimitando	a	algo	marcado	ou	ligado	a
tradição,	 mas	 ao	 fato	 de	 ser	 um	 fruto	 de	 um	 pertencimento	 a	 algo,	 uma	 narrativa
construída	 a	 partir	 da	 vivência	 com	 sua	 cultura.	O	 corpus	 deste	 trabalho	 é	 composto	 por
produções	contemporâneas,	mas	a	relação	do	Nordeste	com	o	cinema	não	é	recente,	sendo
tecida	deste	o	início	das	atividades	cinematográficas	no	país	-	de	maneira	que	não	somente
o	espaço	territorial	desperta	interesse	nos	cineastas,	mas	a	própria	cultura	das	pessoas	que
habitam	esta	 região.	Exemplos	de	 filmes	 com	este	 foco	 são	muitos,	dentre	eles:	Sob	 o	 céu
nordestino,	 de	 Walfredo	 Rodriguez	 (1928);	 O	 Canto	 do	 mar,	 de	 Alberto	 Cavalcanti	 (1952);
Aruanda,	de	Linduarte	Noronha	(1963);	Deus	e	o	diabo	na	terra	do	sol,	de	Glauber	Rocha	(1964),
além	de	muitos	que	adaptaram	obras	literárias	para	o	cinema.
Numa	breve	apresentação	dos	filmes	aqui	trabalhados,	Karim	Aïnuoz,	diretor	cearense,
em	seu	segundo	 longa-metragem	O	Céu	de	Suely	 (2006),	conta	a	história	de	Hermila,	uma
jovem	de	21	anos	que	após	dois	anos	morando	em	São	Paulo	com	o	pai	de	seu	filho	retorna
para	a	sua	cidade	natal,	Iguatu	no	interior	do	Ceará.	As	conseqüências	deste	regresso	são	o
confronto	 dos	 desejos	 da	 personagem	 com	 a	 sua	 realidade,	 o	 abandono	 do	 seu
companheiro,	a	necessidade	de	se	movimentar	num	espaço	onde	tudo	é	estável	e	imutável	e
sua	ideia	de	se	rifar	como	forma	de	conseguir	juntar	recursos	para	fugir	dessa	situação.
Fruto	 da	 união	 de	 Karim	 Aïnouz	 e	 do	 pernambucano	 Marcelo	 Gomes,	 Viajo	 Porque
Preciso,	 Volto	 Porque	 Te	 Amo	 (2010),	 é	 um	 filme	 que	 traz	 o	 protagonista	 José	 Renato	 num
relato	sobre	sua	separação	e	sua	viagem	a	trabalho	como	possibilidade	de	fugir	da	dor	que	a
situação	 lhe	 traz.	 Se	 dividindo	 entre	 a	 narração	 de	 cartas	 para	 a	 amada	 e	 de	 seus
sentimentos	 neste	 movimento	 de	 isolamento,	 José	 Renato	 corta	 as	 estradas	 do	 sertão
cearense	e	pernambucano,	percorrendo	as	áreas	que	supostamente	irão	receber	o	canal	que
levará	água	para	a	região.
No	contexto	em	que	a	compreensão	da	cultura	provém	de	uma	assimilação	das	relações
simbólicas	de	poder	inseridas	na	vivência	dos	sujeitos,	ela	se	coloca	como	uma	mediadora
fundamental	da	sociedade.	E	neste	jogo	de	apropriações	de	sentidos	no	qual	os	signos	são
interpretados	a	partir	de	sua	representação	simbólica	em	determinada	cultura,	esta	acaba
de	tornando	um	espaço	de	luta	e	de	produção	de	significados.
Seguindo	esta	visão	hermenêutica	da	cultura	é	possível	fazer	uma	leitura	dialética	dela,
concebendo-a	 como	 um	 processo	 que	 objetiva	 um	 entendimento	 pelo	 diálogo	 e	 pela
discussão.	 Então,	 se	 aqui	 se	 propõe	 analisar	 os	 filmes	 feitos	 no	 Nordeste	 pretende-se
apreender	como	a	cultura	e	a	identidade	dos	nordestinos	e	do	próprio	Nordeste	-	enquanto
espaço	 -	 são	 colocadas	 a	 partir	 do	material	 audiovisual	 que	 o	 filme	 apresenta,	 no	 qual	 é
possível	 se	 perceber	 as	 experiências	 dos	 sujeitos	 na	 sociedade	 e	 quais	 tipos	 de	 sentidos
estão	sendo	negociados	a	partir	desta	vivência.
E	 por	 se	 tratar	 de	 um	 estudo	 sobre	 a	 vivência	 de	 uma	 cultura,	 suas	 formas	 e
consequências,	 é	necessário	que	 tanto	a	 cultura	como	a	 identidade	sejam	examinadas	em
contexto,	ou	seja,	em	que	situação	elas	são	produzidas,	que	história	pré-existe	a	elas,	qual	o
cotidiano	que	vivem.	Sendo	o	sujeito	tomado	como	algo	condicionado	a	suprir	na	sociedade
suas	 necessidades	 de	 vida,	 costumes,	 habitação	 e	 saúde	 (GRAMSCI,	 1989),	 a	 fazer	 da	 sua
prática	da	cultura	algo	diluído	em	todas	as	suas	práticas	cotidianas,	construindo-se	a	partir
do	que	é	vivido	e	não	pensado.	E	a	capacidade	de	ser	performático	diante	dessas	situações	e
de	se	moldar	a	todas	as	atividades	às	quais	é	submetido	é	que	desperta	interesse	em	se	fazer
esta	investigação	do	modo	de	vida	do	homem	na	contemporaneidade.
A	 capacidade	 de	 mudança,	 de	 reflexão	 e	 de	 transformação	 da	 cultura	 diante	 desta
concepção	 direciona	 a	 compreensão	 para	 o	 fato	 de	 que	 ela	 deve	 ser	 pensada	 e	 analisada
como	uma	experiência	ordinária.	Como	coloca	Williams	(WILLIAMS,	1989),	a	cultura	é	uma
propriedade	 de	 toda	 uma	 sociedade	 e	 se	 constitui	 mediante	 uma	 mesma	 experiência
coletiva,	a	qual	leva	os	indivíduos	a	interpretarem	os	signos	que	estão	em	jogo	nesta	relação
simbólica	e	negociarem	os	sentidos	que	essas	práticas	devem	ter.
Tudo	isto	faz	com	que	a	cultura	não	se	construa	de	forma	sólida	e	única,	ela	é	algo	em
contínua	 ressignificação,	 cuja	 construção	 coletiva	 a	 partir	 da	 experiência	 de	 vida	 dos
sujeitos	 transpõe	 para	 o	 centro	 destas	 relações	 todas	 suas	 práticas	 cotidianas.	 E	 neste
processo	de	materializar	as	suas	relações	nos	elos	culturais	que	o	homem	acaba	por	trazer
para	a	própria	cultura	tudo	o	que	é	ordinário,	comum,	consequentemente,	agrega	todas	as
formas	 ligadas	 por	 um	 coletivo,	 ou	 seja,	 valores	 e	 significados	 que	 são	 partilhados.
Significados	estes	que	transitam	em	contínuo	e	condicionados	pelas	próprias	experiências
em	grupo.
Ao	se	considerar	a	maneira	como	este	espaço	de	vivência	é	transportado	para	o	cinema,
em	filmes	como	O	Céu	de	Suely	e	Viajo	Porque	Preciso,	Volto	Porque	Te	Amo	percebemos	que	eles
dialogam.	 A	 exemplo	 da	 construção	 de	 suas	 narrativas	 a	 partir	 da	 visão	 de	 personagens
oriundos	de	classes	mais	baixas,	que	percorrem	ambientes	considerados	à	margem	do	que	é
oferecido	 como	 nobre	 dentro	 de	 suas	 culturas,	 seja	 na	 castigada	 Iguatu,	 no	 interior	 do
Ceará,	que	se	torna	cenário	de	O	Céu	de	Suely,	ou	ainda	o	sertão	percorrido	por	José	Renato
em	Viajo	Porque	Preciso,	Volto	Porque	Te	Amo.
Unanime	em	todos	estes	contextos,	a	negociação	de	sentidos	conduz	o	movimento	das
relações.	As	concordâncias	e	as	disparidades	fazem	com	que	os	fatores	que	as	influenciam
desloquem-se	dos	elementos	que	 se	 relacionam	e	 incorporem	 tudo	aquilo	que	 se	 situa	ao
redor	desses	elementos.	Os	lugares	que	ocupam	e	as	situações	que	vivenciam,	assim	como
as	ações	que	executam	e	as	relações	de	poder	a	que	pertencem.
Nos	filmes	em	questão,	no	entanto,	o	movimentoao	qual	se	faz	referência	nem	sempre
se	 limita	 a	 um	 lugar	 fixo,	 o	 deslocamento	 das	 personagens	 de	 espaços	 e	 lugares	 é	 outro
ponto	evidente.	No	filme	O	Céu	de	Suely,	Hermila	parte	e	retorna	à	cidade	de	Iguatu	e	em
Viajo	 Porque	 Preciso,	 Volto	 Porque	 Te	 Amo	 mostra	 o	 percurso	 de	 José	 Renato	 que	 sai	 de
Fortaleza	 para	 uma	 viagem	 longa	 pelo	 sertão	 nordestino.	 Aqui	 o	 deslocamento	 pode	 ser
entendido	como	algo	confluente	no	cinema	feito	no	Nordeste	de	maneira	mais	abrangente,
e	que	no	caso	dos	 filmes	aqui	 falados	é	uma	ação	realizada	por	 todos	os	protagonistas.	O
peculiar	nisto	é	que	o	sair	de	‘seu	lugar’	nem	sempre	tem	destino	certo,	a	fuga	do	próximo
deseja	ganhar	corpo	e	forma	num	‘lugar	qualquer’,	apenas	longe	dos	seus	conflitos,	de	suas
angústias.	 A	 cultura	 desses	 lugares	 internaliza	 esta	 característica,	 a	 encenação	 de	 suas
identidades	 adiciona	 esta	 fluidez	 ao	 seu	 repertório	 cultural	 específico,	 não	 só	 refletindo
como	 organizam	 sua	 personalidade	 como	 também	 a	 maneira	 como	 utilizam	 os	 espaços
urbanos,	dando	sentido	ao	seu	modo	de	vida.
Essa	forma	de	ver	a	cultura	vai	de	encontro	com	os	pensamentos	de	Michel	de	Certeau
(2003,	p.	100)	à	medida	que	desloca	o	foco	das	ações	individuais	e,	acima	de	tudo,	coloca	o
cotidiano	como	um	elemento	fundamental	para	se	compreender	a	cultura.	E	ao	se	colocar
como	 objeto	 deste	 estudo	 o	 cinema	 feito	 no	 Nordeste	 não	 se	 dispõe	 a	 observar	 as
assimilações	 feitas	 a	 partir	 destas	 produções,	 partindo	 assim	 para	 o	 campo	 da	 recepção,
mas	quais	contratos	são	estabelecidos	pelo	próprio	objeto	ao	se	situar	numa	rede	de	lugares
e	relações.
Utilizando-se	a	maneira	como	Michel	de	Certeau	apreendeu	para	formalizar	as	práticas
cotidianas,	nesta	pesquisa	observa-se	como	se	dão	as	construções	da	identidade	nos	filmes	a
partir	das	práticas	de	espaço,	dos	usos	das	ritualizações	cotidianas,	etc.
Diante	desse	contexto,	é	importante	frisar	estudos	feitos	sobre	a	cultura	nordestina	até
agora,	 como	 os	 feito	 por	 Durval	 Muniz	 Albuquerque	 Jr,	 que	 coloca	 que	 esta	 região,
Nordeste,	fora	criada	nos	anos	20	do	século	passado	e	fundamentada	como	uma	‘paisagem
imaginária’	mergulhada	em	sentimentos	como	saudade	e	tradição.	Estariam	estes	pontos
presentes	nos	filmes?	Pode-se	identificar	tanto	a	saudade	como	a	tradição	como	princípios
que	 movem	 esta	 cultura?	 Até	 que	 ponto	 identidade	 e	 cultura	 são	 concebidas	 por	 essas
características?
Uma	 das	 discussões	 centrais	 das	 ciências	 sociais	 desde	 o	 final	 do	 século	 passado	 é	 a
questão	 da	 identidade.	 Como	 elemento	 relacional,	 a	 identidade	 tem	 sua	 estrutura
estabelecida	por	uma	marcação	simbólica	relativa	ao	outro	e	ao	contexto	no	qual	o	sujeito
está	inserido,	sendo	interpelada	tanto	pelas	condições	sociais	como	materiais.	A	identidade
é	 algo	moldável,	 criado	 e	 recriado	à	medida	que	a	 vida	 e	 o	 contexto	 social	 se	modificam,
cabendo	 às	 identidades	 assumidas	 pelo	 indivíduo	 serem	 reconhecidas	 e	 aceitas	 na
sociedade.	 Nesse	 processo	 as	 características	 dessas	 identidades	 ora	 trazem	 marcas	 que
sempre	 estiveram	 presentes	 na	 sua	 formação,	 ora	 trazem	 traços	 adquiridos	 através	 do
cotidiano.
Seguramente,	 a	 relação	 com	o	 outro	 é	 um	 fator	 preponderante	 quando	o	 assunto	 é	 a
construção	 de	 identidades,	 uma	 vez	 que	 é	 em	 relação	 ao	 outro	 que	 se	 torna	 possível	 a
identificação	 ou	 a	 diferenciação	 com	 determinado	 fato	 ou	 característica.	 Esse	 processo
incessante	proporciona	a	continuidade	e/ou	a	permanência	de	certos	modos	de	ser,	estilos,
gostos	 e	 pensamentos.	 Se	 a	 identidade	 é	 vista	 por	 estas	 características	 anteriormente
descritas	poder-se-ia,	assim,	inseri-la	no	campo	tático?
De	 acordo	 com	 Certeau	 (2003)	 –	 que	 analisa	 a	 cultura	 como	 uma	 combinatória	 de
operações	 que	 levam	 em	 consideração	 tanto	 as	 ações	 individuais	 como	 também	 todo	 o
contexto	 ao	 seu	 redor	 –	 a	 tática	 é	 uma	 ação	 calculada	 e	 determinada,	 exatamente,	 pela
ausência	 de	 um	 próprio,	 não	 tendo	 por	 lugar	 senão	 o	 do	 outro.	 Como	 um	 movimento
interior	às	relações,	a	tática	se	dá	pela	visão	do	outro	e	pelo	espaço	que	por	ele	é	controlado,
portanto	 não	 se	 concebe	 um	 lugar	 específico	 para	 ela	 e	 “este	 não-lugar	 lhe	 permite	 sem
dúvida	 mobilidade,	 mas	 numa	 docilidade	 aos	 azares	 do	 tempo,	 para	 captar	 no	 vôo	 as
possibilidades	oferecidas	por	um	instante”	(CERTEAU,	2003,	p.93).	As	táticas	apontam	para
uma	hábil	 utilização	do	 tempo,	 das	 ocasiões	 que	 se	 apresentam	e	 também	dos	 jogos	 que
introduzem	as	 fundações	de	um	poder,	 pois	 elas	 se	determinam	pela	 ausência	de	poder.
Como	Certeau	(2003,	p.102)	coloca:
As	 táticas	 são	 procedimentos	 que	 valem	 pela	 pertinência	 que	 dão	 ao	 tempo	 ‒	 às
circunstâncias	 que	 o	 instante	 preciso	 de	 uma	 intervenção	 transforma	 em	 situação
favorável,	à	 rapidez	de	movimentos	que	mudam	a	organização	do	espaço,	às	 relações
entre	 momentos	 sucessivos	 de	 um	 ‘golpe’,	 aos	 cruzamentos	 possíveis	 de	 durações	 e
ritmos	heterogêneos,	etc.
Conforme	 esta	 definição	 de	 tática	 supõe-se	 a	 identidade	 como	 uma	 consequência	 de
uma	ação	decorrente	de	uma	disputa	do	ser	com	o	outro,	neste	espaço	não	‘próprio’	em	que
é	 possível	 sentir	 como	 suas	 percepções	 respondem	 as	 situações,	 como	 se	 interpreta	 as
relações	 a	 cada	momento,	 paralelamente	 a	 este	 jogo	 as	 identidades	 do	 sujeito	 vão	 sendo
construídas.
Voltando-se	 para	 o	 objeto	 desta	 investigação,	 a	 narrativa	 construída	 nos	 filmes
possibilita	 a	 localização	 das	 identidades,	 dos	 locais	 de	 fala	 de	 uma	 individualidade	 cujo
lugar	 de	 atuação	 é	 composto	 de	 uma	 pluralidade	 incoerente	 de	 suas	 determinações
relacionais.	 Esta	 contradição	muitas	 vezes	 justificada	 pela	 ininterrupta	 trajetória	 da	 sua
formação	 levantam	pontos	 que	 se	 condensam	em	 certas	 identidades.	E,	 claro,	 os	 espaços
cotidianos	 de	 sociabilidade	 nesta	 relação	 se	 consolidam	 como	 um	 marco	 para	 esta
construção,	mediante	sua	capacidade	de	tirar	proveito	e	beneficiar-se	disto,	sem	o	domínio
do	tempo.
Diante	de	uma	relação	onde	o	tempo	torna-se	primordial,	é	a	partir	de	sua	vivência	que
o	lugar	é	delineado.	O	lugar	não	é,	portanto,	algo	estável,	mas	algo	que	veio	a	ser,	um	espaço
comum	 construído	 através	 da	 interação	 social.	 As	 práticas	 dos	 espaços	 determinam	 as
maneiras	de	se	frequentá-los,	instaurando	confiabilidade	ou	não	nas	situações	vividas	neles.
No	 campo	 da	 análise	 do	 filme,	 a	 cultura,	 a	 identidade	 e	 o	 cotidiano	 são	 observados
através	das	 conversas	 e	discursos	das	personagens.	Não	obstante,	 as	práticas	dos	 sujeitos
também	habilitam	a	captação,	registro	e	mesmo	abordam	como	eles	se	comportam,	quais
são	suas	encenações,	como	se	sentem	acerca	de	determinado	lugar.
As	 incoerências	 do	 percurso	 traçado	 pelos	 sujeitos	 refletem	 uma	 mobilidade	 plural
tanto	de	 interesses	como	de	prazeres,	por	 isso	nesta	análise	o	 local	do	objeto	e	não	o	 seu
discurso	vem	a	ser	mais	importante.	Em	sociedade,	a	definição	de	um	comum	desencadeia
uma	 série	 de	 possibilidades	 de	 ações,	 de	 relações	 e	 de	 trajetórias.	 E,	 por	 exemplo,	 ao	 se
pensar	 o	 lugar	 como	 este	 comum,	 ele	 pode	 pertencer	 a	 qualquer	 um	 que	 viva	 nesta
sociedade.
As	personagens	José	Renato	e	Hermila	de	Viajo	Porque	Preciso,	Volto	Porque	Te	Amo	e	O	Céu
de	 Suely,	 respectivamente,	 criam	 um	 espaço	 diferente	 daqueles	 que	 ocupam	 fisicamente.
Uma	verdade	que	coexiste	 com	aquele	 lugar	de	uma	experiência	 sem	 ilusões.	O	posto	no
qual	Hermila	 desembarca	 ao	 retornar	 para	 Iguatu,	 o	mesmo	 que	 frequenta	 quando	 sai	 à
noite	e	se	diverte	com	a	tia	e	uma	amiga,	ou	ainda	o	seu	local	de	trabalho	temporário	que	se
torna	 muitas	 vezes	 um	 ‘não-lugar’.	 Demaneira	 semelhante,	 José	 Renato	 transcorre	 as
rodovias	 que	 cortam	 o	 Ceará	 e	 Pernambuco	 sertão	 adentro,	 construindo	 uma	 relação
diferente	 da	maioria	 das	 pessoas	 que	 ali	 vivem.	Aquela	 vegetação,	 o	 Sol,	 a	 paisagem	que
nunca	muda	é	um	lugar	inexpugnável	e	que	para	ele	é	uma	chance	de	fuga,	de	isolamento.
As	 práticas	 cotidianas	 possibilitam	 o	 reemprego	 de	 sistemas	 sociais,	 de	 ações	 que
ganham	usos	diferentes,	modificando	o	funcionamento	deste	sistema.	Isto	cria	modos	de
fazer	sem	se	sair	do	lugar,	instaurando	a	pluralidade	à	ordem	imposta	de	um	lugar.	Certeau
sobre	 isto	 discorre	 que	 “essas	 operações	 de	 emprego	 ou	 melhor,	 de	 reemprego	 se
multiplicam	com	a	extensão	dos	fenômenos	da	aculturação,	ou	seja,	com	os	deslocamentos
que	 substituem	 maneiras	 ou	 ‘métodos’	 de	 transitar	 pela	 identificação	 com	 o	 lugar”
(CERTEAU,	2003,	p.	93).	Uma	ilustração	deste	reemprego	do	sistema	vigente	na	sociedade	é
a	ação	de	Hermila	ao	utilizar-se	da	rifa,	uma	prática	cotidiana	do	interior	do	Nordeste,	para
conseguir	dinheiro	para	fugir	de	Iguatu.	Enquanto	ação	ela	não	 instaurou	nenhuma	nova
aplicação,	visto	que	os	compradores	da	rifa	adquirem	um	bilhete	e	concorrem	como	todos
os	 outros	 ao	 prêmio,	 e	 é	 justamente	 este	 o	 elemento	 inusitado	 e	 que	 rompe	 que	 as	 leis
sociais	impostas.	Hermila	rifa	um	objeto	como	qualquer	rifa	comum,	só	que	ela	transforma
o	seu	corpo	num	objeto	‘rifável’,	e	aqui	é	estabelecido	um	novo	conceito,	uma	nova	relação
da	sociedade	com	esta	prática.
Até	agora	 se	 falou	numa	abordagem	da	cultura	e	da	 identidade	a	partir	da	análise	do
cotidiano,	 a	 maneira	 como	 este	 elemento	 é	 capaz	 de	 revelar	 especificidades	 de	 uma
sociedade	e	os	jogos	constantes	de	validação	de	significados.	No	entanto,	como	se	observa
estes	pontos	em	filmes,	se	faz	necessária	uma	pequena	consideração	sobre	as	imagens	e	o
próprio	material	audiovisual.
Por	 lidar	 com	 um	 objeto	 audiovisual,	 as	 imagens	 são	 tomadas	 como	 o	 lugar	 das
percepções	diretas,	cujo	significado	varia,	constantemente,	mediante	sua	captação	através
da	visão	e	 realçada	pelos	demais	 sentidos.	Os	 sinais,	 símbolos	e	alegorias	que	 formam	as
imagens	se	utilizam	de	meios,	no	caso	deste	estudo	do	cinema,	para	construir	seu	processo
narrativo.	 E	 como	 em	 todo	 momento	 de	 leitura	 e	 interpretação	 atribuí-lhe	 o	 caráter
temporal,	 aqui	 este	 caráter	 se	 fixa	 na	 contemporaneidade,	 tendo	 em	 vista	 que	 os	 filmes
aqui	analisados	são	produções	recentes,	datadas	dos	anos	2000	para	cá.
Levando	em	consideração	as	implicações	sociais	e	políticas	observadas	nos	filmes,	esta
pesquisa	pincela	ponderações	das	 relações	desta	visualidade	com	a	estética	e	a	política.	À
medida	 que	 se	 investiga	 traços	 do	 processo	 de	 construção	 de	 identidades	 através	 dos
filmes,	cuja	materialidade	está	submetida	às	relações	simbólicas	desenvolvidas	no	campo	da
cultura,	 se	 objetiva	 conhecer,	 ou	mesmo	 dar,	 um	 sentido	 aos	 elementos	 observados	 nas
produções	cinematográficas.
Aqui	se	busca	superar	a	ideia	de	Leal	(LEAL,	1982),	demonstrando	que	o	cinema	feito	no
Nordeste	 também	 é	 capaz	 de	 ser	 um	 elemento	 possível	 de	 análise	 a	 partir	 de	 sua
autenticidade,	 pertencimento	 e	 reconhecimento	 à	 cultura	 desta	 região.	O	 autor	 teorizou
que
Colocando-se	 à	margem	os	 filmes	mais	 importantes,	 o	 cinema	 feito	 no	Nordeste	 (...)
ainda	 não	 concebeu	 uma	 forma	 regional,	 autêntica,	 para	 dizer	 da	 problemática
nordestina,	em	nível	de	originalidade	e	de	valor	humano.	Se	algumas	dessas	películas,
por	 causalidade,	 mais	 do	 que	 por	 condições	 intrínsecas,	 chegaram	 a	 obter	 prêmios
internacionais,	 elas	não	 conseguiram,	 todavia,	por	motivos	 complexos	 (...)	 retratar	a
verdadeira	 alma	 do	Nordeste.	 E	 o	 que	 temos	 presenciado,	 na	maioria	 dos	 casos,	 é	 o
embuste,	o	 jogo	fácil	de	nossas	variantes	folclóricas,	os	demagogos	protestos	de	cunho
político-	social,	a	exaltação	de	um	misticismo	exagerado	e/ou	fantasmagórico	(LEAL,
1982,	p.	47).
O	 Céu	 de	 Suely	 é	 um	 filme	 que	 revela	 a	 trajetória	 da	 Hermila	 num	 contexto
contemporâneo,	no	qual	apresenta	logo	na	abertura	lembranças	da	personagem	do	período
em	que	engravidou	e	na	sequência	 seguinte	mostra	o	 seu	 retorno	para	o	 sertão	cearense.
Hermila	havia	 ido	 tentar	a	vida	com	Mateus,	pai	de	 seu	 filho,	 em	São	Paulo	e	motivados
pelas	dificuldades	que	enfrentaram	eles	resolveram	voltar	a	sua	cidade	natal,	combinados
que	Hermila	 viria	 primeiro	 e	 ele	 depois,	 juntamente	 com	 uma	máquina	 de	 gravar	 CD	 e
DVD	para	 ser	 a	 fonte	 de	 renda	da	 família.	 Embora	 os	 planos	 de	Hermila	 fossem	este	 de
continuar	a	viver	com	o	marido	e	o	 filho	Mateuzinho,	a	vida	 tomou	outro	 rumo,	ela	 fora
abandonada	pelo	marido	e	teve	que	seguir	sozinha	em	Iguatu,	contando	com	o	apoio	de	sua
avó	e	 tia.	No	entanto,	a	personagem	não	estava	satisfeita	com	a	situação,	com	o	modo	de
vida	que	as	pessoas	da	cidade	 levavam	e	muito	menos	com	as	possibilidades	de	emprego
que	 ali	 surgiam,	 estes	 foram	 alguns	 dos	 motivos	 que	 a	 levou	 a	 decidir	 partir	 dali	 para
qualquer	 lugar,	 tendo	 como	 único	 critério	 um	 lugar	 que	 fosse	 o	 mais	 longe	 possível	 de
Iguatu.	Com	uma	condição	de	vida	precária,	Hermila	resolve	se	rifar	para	conseguir	juntar
dinheiro	 para	 fugir	 daquela	 situação.	 “Uma	 noite	 no	 paraíso”	 era	 o	 prêmio	 da	 rifa	 que
passou	 a	 vender	pela	 cidade,	 levantando	 a	 ira	de	 alguns,	 o	desprezo	de	 outros	 e	 gerando
polêmicas	 em	 torno	 de	 questões	 morais.	 Ao	 final,	 mesmo	 sofrendo	 com	 sua	 escolha,
Hermila	alcança	seu	objetivo,	reúne	dinheiro	suficiente	e	consegue	deixar	Iguatu	e	o	modo
de	vida	que	ela	despreza.
Retomando	 o	 debate	 sobre	 cultura	 como	 um	 espaço	 de	 lutas,	 um	 território	 de
incompletudes	em	permanente	mudança,	pode-se	identificar	em	O	Céu	de	Suely	este	diálogo
sobre	permanências	e	continuidades	ao	longo	de	toda	a	trama.	O	filme	tem	seu	início	e	fim
marcados,	 justamente,	 pelo	movimento,	 chegada	 e	 saída,	 representações	 de	 fugas	 e	 uma
contínua	 busca	 por	 um	 espaço	 de	 identificação.	 Com	 começo	 e	 término	 marcados	 pelo
deslocamento	visível	de	um	espaço	físico,	isto	deixa	margem	para	se	pensar	um	movimento
bem	mais	intenso	e	subjetivo	que	se	passa	no	imaginário	invisível	da	personagem	Hermila.
O	 percurso	 para	 se	 chegar	 ao	 final	 desta	 história,	 embora	 bastante	 envolvente	 e	 bem
amarrado,	condiciona	o	espectador	a	refletir	acerca	dos	pontos	de	diferenciação	entre	o	que
seriam	 as	 construções	 imaginárias	 dos	 personagens	 e	 a	 realidade.	 Até	 que	 ponto	 as
mentiras	inventadas	por	Hermila	de	que	ela	passara	um	tempo	morando	em	São	Paulo	não
se	 transformaria	numa	fantasia	para	ela	mesma?	A	 fantasia,	desta	 forma,	é	algo	presente
desde	 o	 início	 desta	 narrativa.	 E	 os	 desencontros	 entre	 verdade/realidade	 e	 a	 fantasia
inventada	pela	personagem	podem	ser	ilustradas,	por	exemplo,	na	cena	em	que	ela	chega	a
Iguatu,	 desce	 do	 ônibus	 na	 estrada	 e	 fica	 esperando	 por	 sua	 tia	 num	 posto	 de	 gasolina;
contrapondo-se	ao	momento	em	que	vai	procurar	por	Mateus,	pai	de	seu	filho,	que	dissera
que	retornaria	para	sua	cidade	natal	um	mês	após	a	esposa,	e	se	dirige	à	rodoviária	para	se
informar	sobre	o	ônibus	que	saíra	de	São	Paulo.	Por	que	o	local	de	chegada	dos	personagens
seria	diferente	se	ambos	tinham	a	mesma	origem?
Os	 espaços	 urbanos	 de	 vivência	 desta	 cidade	 são	 projetados	 de	 forma	 que	 percorrem
lugares	 de	 relações	 de	 trabalho	 e	 lazer.	 Transitando	 pela	 cidade	 percebe-se	 a	 escassez	 de
ruas	pavimentadas,	construções	precárias,	a	existência	de	um	círculo	vicioso	de	ambientes
como	 feiras,	 bares,	 lanchonetes,	 mercados	 e	 o	 posto.	 Aqui,	 atento-me	 as	 operações
realizadas	neste	último	espaço,	no	qual	práticas	cotidianas	tanto	de	trabalho	como	de	lazer
ocorrem.O	posto	 é	 o	 local	de	 acolhimento	de	Hermila	 assim	que	 chega	à	 cidade,	 o	 lugar
para	onde	sai	para	se	divertir,	o	ambiente	de	trabalho	e	o	local	que	marca	sua	mudança.
A	história	narrada	em	O	Céu	de	Suely	se	consolida	numa	forma	simples,	na	qual	vozes	do
cotidiano	 são	 as	 responsáveis	 pelo	 tecer	 desta	 narrativa,	 mesclando	 suas	 próprias
contradições	naturais,	deixando	de	lado	toda	aquela	construção	folclórica	e	demagoga	que
Leal	(1982)	associava	ao	cinema	feito	no	Nordeste.
A	construção	da	narrativa	em	O	Céu	de	Suely	propicia	situações	que	constroem	um	lugar
comum	 nesta	 cultura,	 a	 maneira	 como	 se	 narra	 às	 práticas	 do	 espaço,	 as	 maneiras	 de
frequentar	um	lugar,	os	modos	de	instaurar	uma	confiabilidade	nas	situações	sofridas	são
formas	 de	 se	 construir	 uma	 narrativa	 de	 um	 pertencimento	 comum	 as	 situações	 ou
espaços.	 Abrindo	 uma	 possibilidade	 de	 vivê-las	 dentro	 de	 uma	 mobilidade	 plural	 de
interesses.	 A	 protagonista	 da	 história	 aos	 poucos	 vai	 definindo	 um	 lugar	 comum	 aos
personagens,	que	no	caso	do	 filme,	podemos	conceber	alguns	 lugares	de	vivência	 como	o
posto	de	gasolina	ou	o	mercado,	por	exemplo,	como	ambientes	de	pertencimento	de	muitos
personagens,	um	 local	de	encontro	e	desencontros	com	seus	sentimentos,	um	espaço	que
embora	represente	uma	passagem	física	consegue	ter	elementos	de	identificação	com	quem
os	vive.
A	narrativa	construída	em	todo	o	filme	dá	a	impressão	de	um	movimento	dialético,	ora
de	personagens	que	saem	e	retornam,	ora	daqueles	que	estão	 limitados	a	um	movimento
preso.	 Uma	 contradição	 que	 evidencia	 o	 caráter	 de	 imobilidade	 desta	 ação.	 A	 própria
Hermila	 é	 uma	 personagem	 construída	 desta	 forma.	 As	 perspectivas	 de	 uma	 vida	 num
lugar	de	passagem,	como	Iguatu,	no	qual	 todos	permanecem	não	demonstra	ser	algo	que
lhe	apraz.	Colocando	a	narrativa	como	um	local	de	fala	de	uma	individualidade	cujo	lugar
de	 atuação	 é	 composto	 de	 uma	 pluralidade	 incongruente	 de	 suas	 ordens	 sociais	 e
relacionais.	 Uma	 narrativa	 que	 esclarece	 quais	 os	 espaços	 cotidianos	 de	 sociabilidade	 da
personagem	Hermila,	transformando-os	em	marcos	de	sua	identidade.
É	 interessante	salientar	que	não	são	apenas	alguns	espaços	 físicos	que	ganham	voz	ao
longo	do	filme,	a	geladeira	torna-se	um	elemento	importante	na	narrativa,	podendo-a	ser
vista	como	um	espaço	no	qual	a	condição	econômico-social	se	revela,	demonstrando	a	oferta
do	que	se	comer;	ou	ainda	como	sinônimo	de	poder	social,	ascensão	social.	Como	exemplo
de	melhoria	social	temos	o	momento	em	que	a	mãe	de	Mateus	revela	que	o	filho	lhe	ajudara
a	dar	entrada	na	compra	deste	eletrodoméstico,	e	fala	isto	alegremente,	expondo	toda	sua
satisfação	com	a	posse	deste	bem.	Este	mesmo	objeto	também	é	utilizado	como	uma	forma
de	escapar	o	calor	da	região	–	uma	das	características	mais	conhecidas	da	região	Nordeste:	o
calor	–,	que	exceto	quando	a	personagem	Hermila	fala	com	Mateus	ao	telefone	e	diz	que	o
filho	Mateuzinho	não	estava	adaptado	ao	clima	da	cidade,	o	filme	revela	essa	peculiaridade
climática	 através	 da	 ausência	 de	 diálogos	 verbais,	 como	 no	momento	 em	 que	Hermila	 e
Georgina	se	refrescam	ficando	dentro	da	geladeira,	deixando	sua	porta	aberta	e	passando
alguns	 minutos	 imersas	 no	 eletrodoméstico	 como	 forma	 de	 fugir	 do	 calor	 que	 faz	 na
cidade.
O	som	ao	longo	de	todo	o	filme	também	reflete	essa	construção	narrativa	envolvida	por
uma	busca	de	um	lugar	comum,	uma	identificação	com	aquilo	que	a	cerca.	A	trilha	sonora
perpassa	diferentes	estilos,	fazendo	uma	co-relação	com	a	própria	trajetória	da	personagem
Hermila.	O	brega	 e	 o	 forró	 se	 fazem	de	 som	ambiente	de	momentos	de	descontração	da
personagem,	enquanto	os	sons	eletrônicos	remetem	às	vivências	sublimes	de	Hermila,	seus
momentos	de	introspecção.	Além	ainda	dos	sons	ambientes	que	constituem	falas	ao	longo
de	 todo	 o	 filme,	 sejam	 dos	 pássaros,	 das	motos	 que	 transitam	 pela	 cidade,	 do	 trem	 que
passa,	dos	auto-falantes	do	carro,	 todos	são	cimento	da	construção	do	espaço	que	o	 filme
está	representando.
Num	 espaço	 onde	 o	 jogo	 e	 apostas	 fazem	 parte	 do	 cotidiano	 das	 pessoas,	 Hermila
também	 encontra	 nesta	 prática	 a	 chance	 de	 mais	 uma	 fuga.	 Aludindo	 à	 tática	 que
condiciona	 ações	 a	 organizar	 o	 espaço	 a	 sua	 volta,	 fazendo	 o	 reemprego	 de	 sistemas	 já
existentes,	que	no	caso	do	 filme	é	a	 reutilização	de	uma	prática	como	a	 rifa.	A	estratégia
usada	por	Hermila	ao	assumir	o	codinome	Suely	para	se	rifar	foi	a	maneira	encontrada	para
sair	de	Iguatu	com	destino	a	um	lugar	qualquer,	tendo	como	único	propósito	fugir	para	o
lugar	mais	longe	que	pudesse.	Assim,	observa-se	que	os	comportamentos	dos	personagens
vão	 muito	 além	 do	 lugar	 físico	 que	 ocupam,	 um	 exemplo	 disto	 foi	 quando	 Hermila	 ao
recriar	espaços	e	maneiras	de	fazer	ao	decidir	rifar	seu	próprio	corpo	transformou	a	forma
como	ocupava	determinado	espaço,	redefiniu	limites	e	construções	tudo	isso	sem	ter	saído
do	mesmo	lugar	que	ocupara	antes.
As	 relações	 estabelecidas	 pela	 personagem	 com	 os	 moradores	 da	 cidade	 são	 muito
tênues,	de	maneira	que	com	a	família	chefiada	pela	avó	é	notória	a	rigidez	de	uma	formação
matriarcal,	na	qual	as	ações	de	qualquer	membro	da	família	devem	ser	aprovadas	por	ela.
Embora	Hermila	tenha	saído	de	Iguatu	motivada	pela	paixão	por	Mateus,	seu	retorno	para
a	cidade	também	marca	a	transição	para	o	abandono	deste	sentimento	que	é	confortado	por
João,	um	amigo	da	personagem	que	nutre	uma	antiga	paixão	pela	mesma,	ficando	sempre	a
espera	de	um	reencontro.
O	confronto	de	valores	também	é	um	ponto	forte	das	relações	da	cultura	e,	claro,	algo
bem	visível	em	O	Céu	de	Suely.	A	resignificação	de	valores	de	maneira	contínua	é	percebida,
por	 exemplo,	 tanto	 na	 ação	 de	 se	 rifar	 da	 personagem	 principal,	 como	 também	 na	 sua
própria	construção	do	conceito	de	prostituição,	uma	prática	cotidiana	da	cidade	e	que	tem
sua	presença	marcante	no	posto	à	beira	da	estrada.
Hermila	 insere	sua	experiência	como	fonte	de	mudança	baseado	no	que	ela	entende	e
coloca	 como	prática	da	 função	de	prostituta.	Para	 ela,	 o	 fato	de	 se	 rifar	não	 a	 torna	uma
prostituta,	apenas	ela	se	coloca	como	mercadoria	para	ser	oferecida	e	que	por	trás	disso,	ela
guarda	 a	 sua	 vontade	 de	 juntar	 dinheiro	 para	mais	 uma	 fuga,	mais	 uma	 tentativa	 de	 se
encontrar	num	lugar	qualquer.	E	por	se	comportar	de	maneira	oposta	à	grande	maioria	dos
que	 vivem	em	 Iguatu,	Hermila	 vivencia	 esse	 campo	de	 lutas	 que	 é	 a	 cultura,	 no	 qual	 são
produzidos	significados	de	maneira	constante	e	a	cultura	se	coloca	como	um	mediador	de
todos	esses	valores	simbólicos.
Nos	momentos	 finais	do	 filme,	enquanto	dá	banho	em	seu	 filho,	Hermila	escuta	uma
voz,	 parecida	 com	 a	 de	 sua	 avó,	 chamando-a	 como	 Suely.	 Seria	 o	 seu	 inconsciente	 já
antecipando	 a	 sua	 nova	 tentativa	 de	 encontrar	 o	 seu	 “céu”,	 um	 lugar	 que	 possa	 se	 sentir
pertencida,	um	lugar	para	chamar	de	“seu”?
No	 filme	 Viajo	 porque	 preciso,	 volto	 porque	 te	 amo	 inicia-se	 com	 um	 elemento	 ao	 qual
sempre	se	remete	quando	se	pensa	no	termo	viagem:	uma	estrada.	Com	uma	trilha	sonora
composta	 pela	 programação	 de	 uma	 rádio	 que	 traz	 como	 repertório	 em	 sua	 maioria	 a
música	 brega.	 A	 projeção	 continua	 sempre	 mostrando	 para	 o	 espectador	 o	 que	 o
protagonista	vê.
Inicialmente,	o	protagonista-narrador,	José	Renato,	descreve	o	que	levara	para	a	viagem
e	faz	a	leitura	objetiva	de	seu	‘diário	de	bordo’	dia	após	dia,	imaginando	que	a	trajetória	pela
BR-432	 tem	 como	 objetivo	 único	 a	 observação	 da	 região	 que	 será	 desapropriada	 para	 a
travessia	de	um	canal.	E	assim	são	descritos	o	solo,	a	vegetação	e	os	moradores	da	região,
até	então	parece	ser	apenas	uma	investigação	para	o	seu	trabalho.
A	 tranquilidade	 até	 então	demonstrada	na	descriçãodos	 locais	 por	 onde	passa	 logo	 é
deixada	de	 lado,	quando	 José	Renato	 coloca	a	 ‘Galega’	 como	 receptora	desta	 conversa.	Na
verdade,	 o	 protagonista	 passa	 a	 ler	 cartas	 que	 supostamente	 escrevera	 para	 a	 sua	 ex-
mulher,	nas	quais	deixa	explícito	o	seu	 lamento	pela	situação,	a	falta	que	sente	dela	e	sua
tristeza	pela	separação.	A	contagem	aqui	muda	seu	rumo,	antes	o	que	era	crescente	(dia	um,
dia	dois)	torna-se	decrescente:	“Agora	faltam	27	dias	e	12	horas	para	acabar	a	viagem.	Parece
uma	eternidade”,	comenta	José	Renato.	Aqui,	o	protagonista	cria	um	imaginário	no	qual	ele
ainda	permanece	casado	com	Joana	(nome	verdadeiro	de	Galega),	cujas	cartas	relatam	seu
dia-a-dia	enquanto	estão	afastados,	exclusivamente,	pela	viagem.	Este	 imaginário	envolve
um	processo	que	articula	uma	série	de	conflitos	que	volta	e	meia	se	legitimam,	conduzindo
a	uma	série	de	incoerências	na	própria	construção	das	identidades	do	personagem.
A	rádio	é	 sua	companheira	nesta	viagem	solitária,	o	que	a	 torna	algo	mais	duradouro
ainda.	 “A	viagem	mal	 começou	e	 tudo	me	 irrita”,	 é	 com	esta	 frase	que	 José	Renato	 relata
como	está	 sendo	sua	viagem.	A	paisagem	que	não	muda,	 levando	a	 crer	não	sai	do	 lugar,
passando	e	repassando	sempre	pelo	mesmo	espaço,	“que	agonia	este	lugar,	tudo	se	arrasta”,
comenta	 o	 protagonista.	 Ele	 ainda	 reforça	 que	 as	 lembranças	 da	 sua	 amada,
carinhosamente	apelidada	de	 ‘Galega’	é	o	que	o	faz	feliz	durante	a	viagem,	muito	embora
pela	monotonia	da	viagem	e	por	pensar	demais	nela	isto	chega	a	cansá-lo.
Numa	parada	num	posto	de	gasolina	algo	o	chama	atenção:	uma	pintura	na	parede	com
a	 frase	 “Viajo	 porque	 preciso,	 volto	 porque	 te	 amo”.	 Em	mais	 um	 diálogo	 fictício	 com	 a
amada,	José	Renato	comenta	que	a	sua	viagem	a	trabalho	é	algo	que	fora	necessário	e	que
seu	retorno	à	Fortaleza	se	deve	por	amá-la.
Saudade	 é	 um	 sentimento	 relembrado	 durante	 o	 filme	 constantemente,	 assim	 como
Hermila	em	O	Céu	de	Suely.	Outra	semelhança	entre	os	filmes	são	alguns	elementos	como	a
própria	estrada,	que	se	faz	presente	no	filme	de	Karim	Aïnouz	como	local	de	fluxo	dos	que
passam	por	Iguatu;	o	outro	elemento	é	o	restaurante	na	beira	da	estrada,	em	Viajo	Porque
Preciso,	 Volto	 Porque	 Te	 Amo	 ele	 é	 o	 ambiente	 onde	 José	 Renato	 encontra	 a	 figura	 que	 lhe
chama	atenção,	é	o	local	que	recorre	quando	tem	fome,	já	em	O	Céu	de	Suely	ele	é	o	local	de
trabalho	da	avó	de	Hermila.
As	 incoerências	entrelaçadas	no	discurso	de	 José	Renato	se	dão	 justamente	quando	se
refere	 à	 Joana.	 Embora	 ele	 não	 suporte	 a	 ideia	 de	 ficar	 só,	 as	 lembranças	 que	 tem	 dela
acabam	 tornando-se	 o	 único	 fator	 triste	 da	 sua	 viagem.	 Incoerência	 ainda	 podemos
considerar	o	motivo	de	sua	viagem,	que	não	fora	motivada	unicamente	pela	necessidade	do
trabalho,	 mas	 pelo	 seu	 desejo	 de	 fugir	 de	 Fortaleza,	 fugir	 do	 término	 de	 seu
relacionamento,	 utilizar-se	 da	 viagem	 de	 30	 dias	 como	 tempo	 necessário	 para	 superar	 a
perda	e	retomar	sua	vida.	Neste	filme	esta	fuga	não	consegue	seu	propósito	final,	já	em	O
Céu	de	Suely	isto	fica	em	aberto,	na	cena	final	vê-se	a	protagonista	indo	embora	para	o	mais
longe	que	pode,	neste	caso	Porto	Alegre,	se	lá	ela	conseguiu	fugir	dos	sentimentos	que	lhe
afligia	o	diretor	deixou	para	que	cada	espectador	tirasse	suas	próprias	conclusões.
Em	 Viajo	 Porque	 Preciso,	 Volto	 Porque	 Te	 Amo	 o	 movimento	 de	 buscar	 o	 isolamento
também	 é	 rompido	 com	 a	 própria	 necessidade	 do	 protagonista	 de	 se	 relacionar	 com
pessoas,	 tanto	 que	 atrasa	 sua	 viagem	 numa	 estada	 em	 Caruaru,	 em	 Pernambuco,	 onde
busca	na	 feira	 a	 companhia	de	pessoas.	Ou	mesmo	quando	 foge	da	 rota	de	 sua	 viagem	e
chega	a	Juazeiro,	no	Ceará,	para	apenas	estar	entre	pessoas,	numa	cidade	que	segundo	ele
nunca	está	vazia.	Lá	ele	apela	para	o	sentimento	geral	que	toma	a	cidade,	de	devoção	a	Padre
Cícero	e	de	crença	em	seus	milagres,	e	procura	a	sala	dos	milagres	para	lá	deixar	uma	foto
de	seu	casamento	na	tentativa	que	o	santo	atenda	seu	desejo.	O	desespero	do	protagonista	é
claro	 no	 seu	 discurso,	 que	 revela	 também	 a	 sua	 não	 religiosidade:	 “Tá	 todo	 mundo
procurando	um	milagre,	inclusive	eu”,	relata.
A	contraposição	entre	seus	desejos	é	constante	em	todo	o	filme,	a	monotonia	da	viagem,
da	paisagem	só	o	 incomoda,	 a	 viagem	que	 antes	 tinha	 como	objetivo	 esquecer	 Joana,	 em
certo	 momento	 do	 filme	 tem	 como	 finalidade	 encontrar	 uma	 flor	 que	 a	 sua	 ex-mulher
procurava	 para	 uma	 pesquisa.	 O	 abandono	 de	 José	 Renato	 o	 faz	 sentir	 “amores	 e	 ódios
repentinos	por	você”,	como	mesmo	fala	o	protagonista	quando	se	lembra	de	Joana.
Como	 forma	 de	 tentar	 esquecê-la,	 além	 de	 observar	 os	 lugares	 por	 onde	 passa	 e	 as
famílias	que	visita,	José	Renato	também	começa	a	analisar	o	cotidiano	da	região,	o	que	as
pessoas	fazem	como	trabalho,	a	dinâmica	das	cidades	e	em	mais	de	uma	delas	ele	se	envolve
com	prostitutas.	A	forma	como	elas	agem,	a	maneira	como	vêm	a	vida	é	algo	que	interessa
ao	 protagonista,	 e	 aqui,	 focamos	 uma	 que	 ele	 conheceu	 em	 Caruaru,	 a	 qual	 revelou	 um
sonho	que	despertou	curiosidade	de	José	Renato,	ela	sonhava	em	ter	uma	‘vida	lazer’.	Esta
vida	seria	uma	vida	na	qual	ela	 seria	correspondida	no	amor,	e	mais	uma	vez	o	amor	é	o
elemento	de	maior	desejo	de	uma	pessoa.	Vale	lembrar	que	quando	José	Renato	descrevia	as
famílias	que	entrevistou,	ele	sempre	relatava	algo	que	remetia	a	este	sentimento,	como	o
casal	 de	 senhores	 que	 estavam	 casados	 há	 50	 anos	 e	 nunca	 haviam	 se	 separado	 por	 uma
noite	sequer.
Embora	o	cansaço	da	viagem,	a	não	satisfação	com	todo	o	cotidiano	que	traçou	durante
dela	e	a	com	a	solidão	que	o	acompanhará,	José	Renato	ao	fim	do	filme	começa	a	contar	seus
dias	não	tendo	como	marco	a	dia	que	saiu	de	viagem,	mas	o	dia	em	que	se	separou.	Começa
a	refletir	em	como	se	comportou	logo	após	ela,	com	imobilidade	a	qualquer	situação,	e	sua
decisão	por	 fazer	 a	 viagem	como	 tentativa	de	 se	movimentar,	de	 voltar	 a	 andar	 e	 a	 fazer
suas	atividades	rotineiras,	enfim	voltar	a	viver.	O	processo	para	isto	não	foi	fácil	e	nem	se
concluiu	ao	longo	do	que	se	vê	no	filme,	mas	as	transformações	pelas	quais	o	personagem
passava	 exemplificava	 as	 contradições	 que	 a	 própria	 constituição	 de	 uma	 identidade
remete.
Fundamentada	 na	 proposta	 da	 identidade	 como	 uma	 celebração	 móvel,	 formada	 e
transformada	 continuamente	 diante	 das	 práticas	 cotidianas	 do	 sujeito,	 e
subsequentemente,	na	ideia	da	cultura	como	algo	plural,	acredito	que	tanto	O	Céu	de	Suely	e
Viajo	 Porque	 Preciso,	 Volto	 Porque	 Te	 Amo	 como	 grande	 parte	 da	 produção	 cinematográfica
feita	 no	 Nordeste	 na	 contemporaneidade,	 são	 coerentes	 com	 esses	 princípios,	 com	 a
realidade	que	se	vive	e	com	a	multiplicidade	de	maneiras	de	ser	dos	sujeitos	de	hoje.	Numa
visão	 particular,	 os	 filmes	 analisados	 neste	 ensaio	 me	 parecem	 bem	 sensível	 a	 estas
questões,	a	fluidez	com	que	as	ações	acontecem,	as	histórias	dos	personagens	se	entrelaçam,
personagens	 e	 locais	 são	 construídos	 em	meio	 a	 uma	disputa	 de	 valores,	 numa	 contínua
negociação	de	relações	simbólicas,	onde	valores,	poder	e	a	própria	cultura	estão	em	jogo.
Referências
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Observar	ao	redor,	observar	e	sentir:	o	cotidiano	como
catalisador	de	sensações
Iomana	Rocha	de	Araíjo	Silva
Pode-se	 dizer	 que	 é	 comum,	 diante	 de	 imagens	 do	 cotidiano	 apresentadas	 por	meio
cinematográfico,	 que	 o	 espectador	 tenda	 a	 se	 identificar,	 buscando	 se	 ver	 nas
representações,	romantizar	situações	corriqueiras,	evocar	lembranças	e	sensações.
A	relação	com	o	espaço	e	com	o	tempo	é	inerente	à	existência	humana.	Mas	a	forma	de
percepção	destes	elementos	sofre	uma	evolução	histórica.	A	indústria	cultural,	por	sua	vez,
influencia	 diretamente	 na	 construção	 destas	 formas	 de	 percepção,	 bem	 como	 na	 relação
afetiva	com	o	passado.	Andreas	Huyssen	(2000)	aponta	que	um	dos	fenômenos	culturais	e
políticos	mais	surpreendentes	dos	anos	recentes	é	a	emergência	da	memória	como	uma	das
preocupações	culturais	e	políticas	centrais.
Neste	 artigo,	 observa-se	 a	 utilização	 de	 imagens	 do	 cotidiano	 pelos	 filmes	 de	 Danilo
Carvalho,	Supermemórias	 (2010)	 e	de	Marcelo	Gomes	 e	Karim	Ainouz,	Viajo	 por	 que	 preciso,
volto	por	que	te	amo	 (2010),	focando	na	poetização	que	é	dada	a	estas	imagens	e	também	na
potencialidade	destas	em	catalisar	sensações	no	espectador,	em	especial,	sensações	ligadas	à
lembranças	de	um	imaginário	que	se	mostra	hora	coletivo,	hora	individual.
Supermemórias	é	um	filme	que	resulta	de	um	projeto	maior,	de	mesmo	nome,	no	qual	o
diretor	recebe	doações	espontâneas	de	filmes	de	arquivo	em	super	8,	filmados	pelos	mais
diversos	moradores	 da	 cidade	 de	 Fortaleza/CE.	 A	 partir	 destas	 imagens	 o	 diretor	 cria	 e
ressignifica,	 resultando	 em	 filmes	 documentários	 experimentais.	 O	 projeto
“Supermemórias:	mais	uma	memória	para	uma	cidade	sem	lembranças”	nasce	no	quadro
do	Primeiro	Edital	das	Artes	promovido	pela	Prefeitura	Municipal	de	Fortaleza	através	da
Fundação	de	Cultura,	 Esporte	 e	 Turismo	 (FUNCET),	 que	 objetivava	 fazer	 uma	 tipografia
poética	 da	 cidade	 e	 seus	 habitantes	 através	 da	 revisitação	 de	 imagens	 de	 arquivo	 de
moradores	locais.
Essas	 imagens	 de	 arquivos	 pessoais	 são	 uma	 série	 de	 filmes	 caseiros	 captados
originalmente	para	o	registro	da	memória	pessoal,	e	que	estariam	certamente	renegados	ao
esquecimento	 se	não	 fosse	o	projeto.	Tais	 fragmentos	mostram	 famílias,	 amigos,	 lugares
que	já	não	são	os	mesmos,	atos	cotidianos	em	um	passado	recente	da	cidade	de	Fortaleza.
Memórias	 doadas,	 seja	 pessoalmente,	 ou	 pelo	 site	 do	 projeto
(http://www.filmesupermemorias.com.br/),	 de	 forma	 colaborativa,	 visando	 o
desenvolvimento	de	uma	poesia	coletiva.
A	partir	desses	registros,	busca-se	a	construção	de	um	olhar	poético	sobre	a	memória	da
cidade.	O	objetivo	do	diretor	é	fazer	uma	tipografia	da	cidade	e	seus	habitantes.	Segundo
ele:
O	resultado	dessa	experimentação	simboliza	 toda	uma	época,	através	das	 suas	cores,
texturas	 e	 ritmo	 de	 filmagem.	 Além	 da	 estética,	 a	 carga	 emocional	 inerente	 a	 essas
imagens	 também	 contribui	 para	 a	 noção	 de	 história	 que	 esses	 registros	 evocam
(CARVALHO,	2010).
Observa-se	neste	projeto,	uma	ode	ao	romantismo	das	 ‘imagens	granuladas’.	O	uso	de
películas	com	bitola	praticamente	em	desuso	(8mm)	explora	a	nostalgia	que	tal	estética	trás
consigo.	A	cor	e	a	textura	destas	imagens	se	mostram	como	um	catalisador	da	experiência
nostálgica,	 ou	 da	 experiência	 estética	 acarretada	 por	 estes	 elementos	 nostálgicos.	 E	 tal
experiência	 irá	 incidir	não	apenas	naqueles	que	se	 identificam	mais	afetivamente	com	as
imagens	 os	 moradores	 de	 Fortaleza,	 mas	 em	 qualquer	 um	 que	 as	 veja,	 devido	 à
potencialidade	nostálgica	inerente	ao	super8	em	si.
Outro	 aspecto	 importante	 é	 a	 temática	 das	 imagens,	 trata-se	 de	 imagens	 que
representam	o	cotidiano	em	seus	momentos	mais	variados,	 típicos	de	praticamente	 todo
núcleo	familiar,	grupo	de	amigos,	casal,	como	é	o	caso	de	imagens	de	nascimento	dos	filhos,
casamentos,	festas	de	aniversário,	feriados	na	praia,	almoços	de	família,	entre	outros.	Estas
imagens	 geram	 uma	 identificação	 direta	 e	 afetiva	 com	 o	 espectador,	 que	 se	 vê	 naqueles
momentos,	se	identifica	com	aquelas	imagens	que,	de	certa	forma,	soa	familiar.
Estas	imagens	de	memórias	e	sentimentos	gerais	potencializam	uma	fruição	na	qual	o
espectador	associa	tais	imagens	a	suas	próprias	vidas	e	suas	próprias	memórias,	através	das
sensações	que	estas	lhe	remetem,	e	que	podem	inclusive	ser	positivas	ou	não,	dependendo
da	relação	de	cada	um	com	suas	memórias	pessoais	do	cotidiano.
Neste	 filme,	 o	 cotidiano	 é	 apresentado	 de	 forma	 despersonalizada,	 não	 existe	 a
apresentação	 de	 personagens	 específicos,	 mas	 uma	 homogeneização	 de	 memórias	 e
sentimentos,	 que	 são	 catalizadoras	 por	 sua	 vez	 de	 fruições	 pessoais.	 Tais	 representações
generalistas	 do	 cotidiano	 se	 transformam	 na	 fruição	 individual	 do	 espectador.	 O	 filme
romantiza	e	poetifica	a	relação	com	o	cotidiano,	de	modo	que	este	passa	a	ser	um	cotidiano
comum	a	qualquer	um.
Já	 em	Viajo	 porque	 preciso,	 volto	 porque	 te	 amo	 o	 filme	 foi	 realizado	 a	 partir	 de	 imagens
gravadas	pelos	diretores,	nos	mais	diversos	suportes	(16mm,	super	8,	câmeras	fotográficas,
VHS,	etc)	no	decorrer	de	um	período	de	mais	de	dez	anos.	Foi	gerado	um	enorme	material
bruto	de	imagens	contendo	o	que,	para	os	diretores,	lhe	arrebatavam	no	sertão	nordestino,
e	ao	mesmo	tempo	era	carregado	de	nostalgia.	Sem	nenhum	roteiro	prévio,	os	diretores	se
puseram	 a	 interrelacionar	 tais	 imagens	 e	 fazer	 significar.	 Para	 unir	 tais	 imagens	 foi
inserido	uma	narrativa	póética,	e	um	personagem	sem	rosto.
Tal	 narrativa	 relata	 a	 trajetória	 de	 José	 Renato,	 um	 geólogo,	 que	 é	 enviado	 para	 o
interior	do	Nordeste	a	fim	de	realizar	uma	pesquisa	de	campo.	No	entanto,	seu	pensamento
é	constantemente	desviado	por	questões	e	devaneios	relativos	à	sua	vida	pessoal.	Sabemos
de	seus	pensamentos	e	de	sua	história	pregressa	conforme	ele	vai	os	relembrando.
O	espectador	é	assim	convidado	a	embarcar	nesta	jornada,	contextualizada	por	imagens
que	nos	dão	um	panorama	bastante	poético	 e	 realista	do	Nordeste	 brasileiro,	mostrando
figuras	 curiosas,	 estabelecimentos	 inóspitos,	 além	 das	 tradicionais	 paisagens	 e	 sons	 do
sertão.	 Imagens	 resultantes	 da	 passagem	 dos	 diretores	 pelo	 sertão	 nordestino,	 e	 da
interrelaçao	com	o	lugar.
O	filme	pode	ser	visto	como	um	diário	de	viagens,	próprio	dos	diretores,	Karim	Ainouz
e	Marcelo	Gomes,	que	é	exposto	ao	público.	Um	álbum	de	fotografias	móvel,	lembranças	em
movimento,	documentos	de	um	 lugar,	e	 sobretudo	de	pessoas.	Desenvolvem	assim	o	que
para	Tarkovski	 seria	 a	 função	 exata	do	 cinema:	 construir	um	vasto	 edifício	de	memórias
(1998,	p.	67).
As	poéticas	 imagens	deixam	exalar	um	estado	de	desgaste,	que	ressignifica	 toda	uma
relação	nostálgica	e	emotiva	dos	diretores	com	esta	região	e	seus	personagens.	Sobre	este
aspecto	de	desgaste	inerente	às	imagens	deste	filme,	retoma-se	Tarkovski,	apontando	sua
relação	com	o	conceito	da	palavra	japonesa	Saba,	que	significa	‘corrosão’,	o	desgaste	natural
da	 matéria,	 a	 marca	 do	 tempo,	 e	 que	 é	 visto	 pelos	 japoneses	 como	 elemento	 do	 belo,
corporificando	a	relação	entre	arte	e	natureza	(1998,	p.67).
Em	 sua	 viagem,	 o	 narrador	 só	 vê	 solidão.	 Estradas	 sem	movimento,	 caminhos	 quase
desertos	parecem	de	um	mundo	inabitado.	Artifício	e	miséria	convivem,	 lado	a	 lado.	Nos
poucos	 contatos	 humanos,	 as	 pessoas	 posam,	 mudas	 e	 imobilizadas,	 para	 serem
fotografadas.
Flores	de	plástico	encontradas	no	caminho	da	viagem	do	personagem	revelam	a	crisedo
que	parecia	uma	relação	idílica.	Pensando	na	volta,	o	narrador	especula:	“Se	eu	chego	com
essa	 flor,	 quem	 sabe	 volte	 a	 reinar	 a	 alegria?”	Afinal,	 comenta	 que	houve	uma	 separação.
Tem	 dificuldade	 em	 trabalhar.	 Busca	 consolo	 nos	 motéis	 com	 prostitutas	 de	 beira	 da
estrada.	Já	não	pensa	na	volta:	“Não	quero	que	essa	viagem	acabe	nunca”.
É	então	que	muda	a	maneira	de	observar.	Pela	primeira	vez	quem	filma	interage	com
quem	é	filmado.	Simone	da	Silva,	olhando	para	a	câmera,	diz:	“Queria	ter	uma	vida	lazer.
Queria	ter	um	amor	reservado	só	para	mim.”	O	narrador	também	quer	“ter	uma	vida	lazer”.
Passa	a	dizer:	“não	volto	por	que	ainda	te	amo.”
Documentário	 e	 ficção	 se	 encontram	 borrados.	 Tem	 como	 ponto	 forte	 a	 construção
poética,	 não	 só	 imagética,	 mas	 sonora.	 É	 ao	 mesmo	 tempo	 uma	 experimentação	 de
linguagem,	e	um	filme	homenagem.	Homenagem	ao	sertão	nordestino,	e	a	tudo	aquilo	que
foi	responsável	pela	construção	do	imaginário	dos	diretores.
O	 filme	 parte	 exatamente	 da	 revisitação	 deste	 imaginário	 -	 pessoas,	 locais,	 imagens,
costumes	vividos	pelos	diretores	em	seus	tempos	passados,	reavivados	de	forma	bastante
poética,	 e	 carregado	 de	 nostalgia.	 Assim	 como	 coloca	 Tarkovski,	 o	 tempo	 não	 pode
desaparecer	 sem	deixar	 vestígios,	pois	 é	uma	categoria	 espiritual	 e	 subjetiva.	 “e	o	 tempo
por	nós	vivido	fixa-se	em	nossa	alma	como	uma	experiência	situada	no	interior	do	tempo”
(TARKOVSKI,	1998,	p.	66).	O	filme	se	mostra	assim	como	uma	compilação	de	vestígios	de
lembranças	próprias	dos	diretores.
Essa	 revisitação	 se	mostra	 de	 fato	 como	 uma	 relação	 de	 causa	 e	 efeito,	 que	 segundo
Tarkovski,	são	mutuamente	dependentes,	tanto	no	sentido	de	sua	projeção	para	o	futuro,
como	em	seu	caráter	retrospectivo.	Um	gera	o	outro.	O	vínculo	de	causa	e	efeito	constitui
também	 a	 forma	 de	 existência	 do	 tempo,	 o	 meio	 através	 do	 qual	 ele	 se	 materializa	 na
pratica	cotidiana.	Pode-se	dizer	que:	“Num	sentido	moral,	causa	e	efeito	podem	ser	ligados
por	 um	 processo	 de	 retroação,	 quando,	 então,	 por	 assim	 dizer,	 uma	 pessoa	 volta	 a	 seu
passado”	(TARKOVSKI,	1998,	p.	66)
O	 direcionamento	 dado	 ao	 filme	 em	 si,	 por	 sua	 vez,	 busca	 levar	 o	 espectador	 a	 se
identificar	com	aquelas	lembranças,	lugares,	pessoas,	a	sentir	essa	sensação	de	nostalgia,	de
identificação,	a	imergir	em	todo	aquele	contexto	do	sertão,	a	sentir	toda	a	solidão,	tristeza,
e	desestabilidade	associada	ao	personagem,	e	que	é	um	reflexo	do	cotidiano	e	do	imaginário
vivido	pelos	diretores.
E	tal	imersão	se	dá	mesmo	que	o	espectador	não	tenha	aquela	referência	de	cotidiano,	o
que	é	facilitado	pela	fotografia	de	caráter	realista	e	por	vezes	suja	e	granulada,	e	pela	bem
construída	paisagem	sonora	(representação	das	características	sonoras	de	algum	ambiente
a	 partir	 dos	 sons	 que	 lhes	 são	 naturalmente	 próprios),	 que	 tem	 o	 poder	 de	 levar	 o
espectador	a	 fruir	as	 reminiscências	poéticas	do	sertão,	e	a	olhar	as	 imagens	com	a	carga
nostálgica	proposta	pelos	diretores.
Um	fato	observado	com	os	exemplos	citados	é	a	 comprovação	de	que,	 segundo	coloca
Andreas	Huyssen	(2000),	embora	os	discursos	de	memória	possam	parecer,	de	certo	modo,
um	 fenômeno	 global,	 no	 seu	 núcleo	 eles	 permanecem	 ligados	 às	 histórias	 de	 nações	 e
estados	específicos.	O	que	se	comprova	diante	das	especificidades	da	abordagem	em	cada
filme:	 ligadas	a	um	cotidiano	regional,	no	caso	de	Viajo	porque	preciso,	volto	porque	 te	amo,	e
pessoal,	no	caso	de	Supermemórias	(porém	focado	no	contexto	específico	local	de	Fortaleza).
Nestes	filmes	observa-se	uma	quebra	com	a	leitura	rígida	e	dirigida	do	sistema	clássico,
que	 tende	 a	 produzir	 enunciados	 unívocos.	 Nota-se	 nestes	 filmes	 se	 incita	 a	 cooperação
ativa	 do	 espectador	 na	 construção	 do	 sentido,	 permitindo	 assim	 o	 surgimento	 de
resultados	plurívocos.
Dentro	 desta	 relação	 de	 cooperação,	 é	 importante	 se	 observar	 a	 questão	 cultural	 e
ideológica,	 seja	 as	 que	 já	 estão	 entranhadas	 na	 própria	 obra,	 seja	 as	 características
individuais	de	cada	espectador.
Essas	 questões	 culturais	 e	 ideológicas	 individuais	 são	 responsáveis	 pela
heterogeneização	 das	 interpretações	 das	 obras.	 Quando	 se	 analisa,	 ou	 se	 participa	 da
realização	 de	 uma	 obra,	 toda	 a	 carga	 de	 referências	 e	 experiências	 que	 cada	 indivíduo
adquiriu	durante	a	vida	irá	determinar	a	forma	como	esse	formará	seus	conceitos	sobre	a
obra,	 influenciará	na	 forma	 como	 esse	 gerará	 o	 sentido	desta.	 Serão	 essas	 características
individuais	que	determinarão	as	escolhas	dos	espectadores	na	construção	desta.
Para	 Comolli	 (2009),	 um	 dos	 vetores	 de	 maior	 importância	 para	 entendermos	 a
dinâmica	do	documentário	é	o	confronto	com	o	outro,	com	a	mise-en-scène	deste	outro,	pois
a	partir	daí	se	estabelecem	as	crises	de	representação	e	o	acesso	ao	que	seriam	os	rastros	do
real,	 que	 estarão	 visíveis,	 talvez,	 à	 sombra	 do	 espetáculo,	 dos	 olhares	 cruzados	 entre
espectador,	 cineastas	 e	 personagens.	 É	 importante	 notar,	 todavia,	 que	 essa	 interrelação
entre	aspectos	pessoais	e	culturais	e	as	 imagens	que	se	apresentam	ocorre	não	apenas	na
relação	entre	a	obra	e	o	espectador,	mas	também	no	próprio	momento	de	criação	entre	obra
e	realizador.
No	que	diz	respeito	a	esta	interrelação,	Comolli	(2009)	coloca	que	uma	vez	que	durante
o	processo	de	confecção	de	um	documentário	não	é	apenas	o	olhar	do	cineasta	que	orienta	a
construção	 de	 sentidos,	 mas	 o	 olhar	 cruzado	 do	 mundo,	 das	 pessoas,	 dos	 objetos,	 dos
espectadores.	 Assim,	 podemos	 afirmar	 que	 o	 cotidiano	 e	 seus	 sujeitos	 possuem	 também
influencia	direta	na	realização	destas	obras	cinematográficas.
Segundo	 afirma	 Salles	 (2006,	 p.	 151)	 a	 criatividade	 do	 sujeito	 é	 constituído	 por	 seus
engajamentos,	 dificuldades,	 conflitos.	 E	 é	 situado,	 espacialmente,	 temporalmente,
historicamente.	Ao	tratar	deste	descentramento	do	sujeito	criativo,	Salles	ressalta	a	relação
artista	 obra	 e	 a	 observância	 dos	 processos	 de	 criação	 como	 espaço	 de	 constituição	 da
subjetividade.	Bem	como	ressalta	Colapietro	(1989)	que	o	sujeito	não	é	uma	esfera	privada,
mas	um	agente	comunicativo.	Obras	e	artistas	não	só	estão	imbricados	de	modo	vital,	como
estão	sempre	em	mobilidade,	são	seres	em	permanente	constituição.
Aponta-se	então	para	a	presença,	nestes	filmes,	da	valorização	de	uma	interrelação	entre
o	diretor	e	o	mundo	e	entre	o	resultado	desta	-	a	obra	-	e	o	espectador.	Gerando,	a	partir	de
imagens	do	cotidiano,	uma	relação	dinâmica	e	aberta,	onde	o	sujeito	(seja	ele	o	diretor	ou	o
espectador)	 é	 visto	 como	 uma	 combinatória	 de	 experiências,	 passível	 a	 constantes
mutações.
A	ligação	com	o	cotidiano	e	com	a	nostalgia	presente	nestas	produções	é	vista,	segundo
Svetlana	Boym	 (2001),	 como	um	mecanismo	de	defesa	para	 os	 tempos	 acelerados	 atuais.
Trata-se	da	construção	da	ilusão	de	um	passado,	de	um	anseio	por	um	lugar	seguro,	mítico,
que	nunca	existiu	de	fato,	apontando	para	faltas	e	desejos.
Diante	da	observação	deste	filmes	foi	possível	notar	que	ocorre,	por	parte	dos	diretores,
algo	 como	 uma	 fuga	 diante	 de	 uma	 plastificação	 da	 imagem	 cinematográfica	 e	 da
superficialidade	dos	temas	abordados	pela	produção	cada	vez	mais	comercial.	Eles	vêem	no
cotidiano	e	no	que	é	real	uma	forma	de	resistência,	de	fuga.	Há	por	traz	da	valorização	do
cotidiano,	uma	valorização	do	mínimo,	do	singelo,	do	que	é	real	ao	homem	comum.
Referências
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CARVALHO,	Danilo.	Supermemórias:	mais	uma	memória	para	uma	cidade	sem	lembranças.	Disponível	em:
http://www.filmesupermemorias.com.br/.	Acesso	em:	20/07/2010.
SALLES,	Cecília	Almeida.	Redes	de	criação:	construção	da	obra	de	arte.	São	Paulo:	Horizonte,	2006.
COMOLLI,J.	L.	Ver	e	poder,	a	inocência	perdida:	cinema,	televisão,	ficção,	documentário.	Belo	Horizonte:	Ed.	Da	UFMG,
2009.
COLAPIETRO,	Vincent	M.	Abordagem	de	Peirce	sobre	o	Indivíduo.	Uma	Perspectiva	Semiótica	na	Subjetividade
Humana.	New	York:	State	University	of	New	York	Pres,	1989.
HUYSSEN,	Andreas.	Seduzidos	pela	memória:	arquitetura,	monumentos,	mídia.	Rio	de	Janeiro:	Aeroplano,	2000.
TARKOVSKI,	Andrei.	Esculpir	o	tempo.	São	Paulo:	Martins	Fontes,	1998.
O	cotidiano	dos	colecionadores	de	imagens
Diego	Andres	Salcedo
Existe	 um	 registro	 no	 Times,	 de	 Londres	 (1841),	 que	 nos	 revela	 o	 interesse	 de	 uma
pessoa,	que	assinava	por	 "E.	D.",	 em	adquirir	 selos	postais	 adesivos	usados	 e	 em	grandes
quantidades	 para	 forrar	 as	 paredes	 de	 seu	 quarto.	 Esses	 artefatos,	 atualmente	 raros	 e
financeiramente	 rentáveis,	 foram	 os	 primeiros	 selos	 postais	 emitidos,	 no	 mundo,	 pelo
correio	 britânico,	 em	 1840.	 O	 fato	 citado	 sugere	 algumas	 particularidades.	 A	 pessoa	 não
queria	 selos	 postais	 novos,	 também	 não	 os	 queria	 para	 taxar	 alguma	 missiva	 e,	 muito
menos,	 para	 ajuntar,	 colecionar,	 expor,	 classificar,	 catalogar,	 criar	 listas	 hierárquicas	 e
temáticas.	Nesse	mesmo	 período,	 o	 gentilhomme	M.	 Vetzel,	 de	 Lille	 (França),	 reconstituía
folhas	 inteiras	 do	 primeiro	 selo	 postal	 adesivo	 -	 Penny	 Black	 -	 no	 seu	 diário,	 sendo
considerado	 desde	 então,	 apesar	 da	 improbabilidade	 desse	 fato,	 um	 dos	 pioneiros	 no
colecionismo	do	selo	postal.
Vale	ressaltar,	que	o	colecionismo	sistemático	do	selo	postal,	na	Europa	e	para	além	de
suas	fronteiras,	possibilitou	e	ainda	suscita	muitas	especulações,	como	mostram	os	irmãos
Williams	(1965,	p.	64):
Não	se	sabe	ao	certo	sequer	quem	foi	o	primeiro	coleccionador	de	selos	de	correio,	mas	a
idéia	de	 formar	uma	coleção	talvez	tenha	partido	de	John	Bourke	que,	em	1774,	como
Recebedor	Geral	 do	 Imposto	 do	Selo	na	 Irlanda,	 iniciou	uma	 coleção	 de	 estampilhas
fiscais	 que	 saíram	 pela	 primeira	 vez	 nesse	 ano.	 Talvez	 o	 Dr.	 John	 Edward	 Gray,
funcionário	 do	 Museu	 Britânico,	 que	 em	 1862	 escreveu	 que	 tinha	 principiado	 a
colecionar	 selos	 de	 correio	 pouco	 depois	 de	 o	 sistema	 entrar	 em	 vigor,	 tivesse	 ouvido
falar	de	Bourke	e	decidido	seguir-lhe	o	exemplo;	mas	mesmo	assim	é	possível	que	Gray
não	tenha	sido	o	primeiro	coleccionador	de	selos	de	correio	 [...].	Outro	pretendente	ao
título	 de	 primeiro	 coleccionador	 de	 selos	 é	 John	 Tomlynson	 que	 recebeu	 um	 Penny
Black	 e	 um	 sobrescrito-Mulready	 no	 dia	 seguinte	 à	 sua	 emissão,	 colocando-os	 num
livro	como	ponto	de	partida	para	a	sua	coleção	[...]	e	também	um	tal	E.	van	der	Beeck,
um	russo	mencionado	em	The	Stamp	Collector,	por	W.	J.	Hardy	e	E.	D.	Bacon,	como
tendo	começado	a	coleccionar	em	1854	e	continuado	nessa	atividade	em	1897	quando	o
livro	foi	publicado.
Tanto	o	neófito	colecionador	francês,	que	colava	os	selos	postais	nas	folhas	de	seu	diário,
quanto	a	cidadã	inglesa,	que	utilizava	os	selos	postais	para	forrar	as	paredes	de	seu	quarto,
são	meus	relatos	sobre	algumas	das	possíveis	práticas	de	pessoas	comuns.	Esses	dois	atores
sociais,	 em	 seus	 tempos	 históricos,	 escolheram	 utilizar	 esses	 objetos	 na	 busca	 por	 uma
satisfação	pessoal,	não	obedecendo	às	regras	impositivas	estatais	de	uma	cultura	de	massa
eurocêntrica,	mas,	seguindo	códigos	culturais	e	referenciais	particulares.
A	partir	desses	dois	relatos,	parece	coerente	propor	que	exista	alguma	relação	entre	a
atividade	do	 colecionismo,	utilizando	o	 selo	postal	 como	objeto	de	 enfoque,	 e	 os	 estudos
sobre	 a	 “Invenção	 do	 Cotidiano”	 (CERTEAU,	 1994;	 1996),	 admitindo	 alguns	 conceitos
postulados	pelo	autor.	Para	 isso,	num	primeiro	momento,	enfatizo	alguns	apontamentos
breves	sobre	o	colecionismo	(admitindo	que	seja	uma	temática	que	está	encarnada	no	meu
cotidiano,	 visto	 que,	 eu	 mesmo,	 sou	 um	 colecionador	 de	 selos	 postais).	 Em	 seguida,
produzo	 uma	 narrativa	 com	 o	 objetivo	 de	 esclarecer	 a	 proposta,	 tentando	 relacionar	 os
“modos	 de	 fazer”	 do	 colecionador	 com	 os	 conceitos	 binominais	 “lugar/espaço”	 e
“estratégia/tática”.
Inicialmente,	parece	oportuno	esclarecer	o	que	penso	sobre	colecionismo.	Não	pretendo
realizar	 uma	 revisão	 bibliográfica,	 pois	 algumas	 dimensões	 teóricas	 concernentes	 aos
estudos	 sobre	 essa	 categoria,	 já	 foram	 analisadas	 e	 debatidas	 em	 vasta	 literatura
internacional.	 A	 pequena	 lista	 a	 seguir,	 ordenada	 alfabéticamente	 pelo	 sobre	 nomes	 dos
autores	e	que	não	tem	a	pretensão	de	ser	exaustiva,	mostra	àquilo	que	o	discurso	científico
chama	 de	 estado	 da	 arte,	 e	 que,	 aqui,	 representa	 uma	 parcela	 dos	 estudos	 sobre	 o
colecionismo	 na	 Europa	 e	 nas	 Américas:	 Alsop,	 1982;	 Baudrillard,	 2008;	 Belk,	 1995;
Benjamin,	 1987;	 Blom	 2003;	 Bourdieu	 e	 Darbel,	 2003;	 Codet,	 1921;	 Cooper,	 1963;
Csikszentmihalyi	 e	 Rochberg-Halton,	 1981;	 Dittmar,	 1992;	 Elsner	 e	 Cardinal,	 1994;
Muensterberger,	1994;	Pearce,	1993,	1995	e	1998;	Poirier,	2006;	Pomian,	1984	e	1990;	Rheims,
1961;	Sánchez,	1999;	Taylor,	1960	etc.
Por	 sua	 vez,	 é	 a	 partir	 dessa	 literatura	 que	 ocorrem	 os	 escassos,	 incipientes	 e
inexpressivos	 debates,	 no	 Brasil,	 sobre	 o	 colecionismo,	 os	 objetos	 de	 coleção,	 os
protagonistas	 envolvidos	 num	 sistema	 que	 entendo	 ser	 um	 complexo	 laboratório
contemporâneo.	 De	 fato,	 penso	 que	 o	 enquadramento	 desses	 debates	 permanecem
limitadas	à	algumas	áreas,	como	a	Museologia	e	a	Antropologia,	o	que	acarreta	a	dominação
de	 doutrinas	 isolantes	 e	 reduzem,	 sobremaneira,	 as	 posibilidades	 de	 ampliação	 dos
enfoques	e	dos	sentidos	inerentes	a	esse	campo	de	reflexão.
Posto	 isso,	 resulta	 dos	 múltiplos	 sentidos	 que	 atribuo	 ao	 termo	 colecionismo	 a	 sua
trajetória	etimológica.	Não	cabe	aqui	realizar	esse	estudo	de	forma	aprofundada,	por	 isso
aceitarei	 a	 sugestão	 de	Marshall	 (2005,	 p.	 13).	 A	 etimologia	 desse	 termo	 “encontra-se	 no
proto-indoeuropeu,	universo	semântico	quadrimilenar	em	que	se	formou	a	raiz	leg.	Nesta
formação,	 assinala-se	 o	 vínculo	 originário	 entre	 'coletar'	 e	 'falar',	 assim	 como	 os	 traços
genéticos	e	efeitos	civilizatórios	do	colecionar”.	A	sugestão	desse	autor	provoca	e	permite
uma	reflexão:	que,	 apesar	da	mesma	raiz	etimológica,	 existe	uma	diferença	 fundamental
nos	significados	dos	termos	colecionar	e	colecionismo.
Ao	contrário	do	que	algumas	pessoas	podem	defender,	penso	que	a	ação	de	colecionar	é
constituinte	 da	 condição	 e	 natureza	 do	 “bicho-homem”	 (MORRIS,	 2004,	 p.	 9).	 Essa	 ação
específica	é	transversal	ao	desenvolvimento	cognitivo	e	sócio-cultural	da	auto-denominada
espécie	 humana,	 desde	 o	 ancestral	 do	 Homo-Sapiens	 até	 o	 “Pós-humano”	 de	 Fukuyama
(2003).	Colecionar	está,	direta	e	necessariamente,	relacionado	a	escolher,	é	uma	imanência
humana,	 a	 “práxis”	 aristotélica	 (GOBRY,	 2007,	 p.	 120).	 Por	 sua	 vez,	 a	 ação	 de	 escolher
pressupõe	 a	 capacidade	 simbólica	 humana,	 da	 qual	 “dependem	nossas	 ações”	 (SAVATER,
2004,	p.	23).	Assim,	colecionar	não	sugere	relação,	mas	ação.
Por	outro	lado,	colecionismo	ou	“colecionamento”	(GONÇALVES,	2007,	p.	24)	não	é	uma
ação	ou	uma	prática,	mas	um	processo	que	indica,	para	além	da	ação,	uma	relação.	Ela	pode
ocorrer	tanto	entre	uma	pessoa,	um	grupo	de	pessoas	ou	uma	instituição	com	um	ou	mais
objetos,	 quanto	 no	 deslocamento	 do	 objeto	 de	 sua	 função	 primeira	 (ligada	 à
produção/utilização),	para	a	função	de	“possuído”	(BAUDRILLARD,	2008,	p.	94),	ou	ainda,
ao	 ultrapassar	 o	 estágio	 da	 coleta	 e	 passar	 ao	 do	 ajuntamento,	 acondicionamento,
armazenamento	e	colecionamento.	É	uma	atividade	do	homem	sobre	e	com	os	objetos	para
além	 da	 práxis,	 é	 a	 “poiésis”	 de	 Aristóteles	 (GOBRY,	 2007,	 p.	 118).	 Na	 prática	 do
colecionismo	reside	a

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