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Um constitucionalismo oportunista

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Um constitucionalismo oportunista  
1 ABR
Publicado por Jregp
  
“Aqui tudo parece que é ainda construção e já é ruína” 
Caetano Veloso, Fora da Ordem     
A Constituição de 1988 sequer completou trinta anos, mas há quem já queira descartá-la. Não se pode dizer que essa ideia causa surpresa. O discurso de desqualificação do nosso modelo constitucional não é recente nem é avant garde. Na verdade, muitos fatores tornam a tentativa de desintegração do pacto constituinte previsível como uma maldição.
A demolição de obras inacabadas é um traço do constitucionalismo da América do Sul. Usar a engenharia constitucional como arma para ampliar e remoldar os poderes de ocasião é estratégia antiga e conhecida na região. Como disse Paulo Bonavides: “a história, nas repúblicas periféricas, é um cemitério de Constituições”.
David Landau, há poucos anos, cunhou o termo constitucionalismo abusivo ao descrever o fenômeno pelo qual os instrumentos de reforma ou renovação constitucional são usados para perpetuar quem está no poder e debilitar os controles democráticos. A expressão, embora nova, descreve um fenômeno que aparece tanto em realidades recentes, como as da Venezuela e Hungria, como nas experiências constitucionais mais antigas. Muito cedo se percebeu que as expressões constituição e constituinte funcionam como rótulos de legitimação, sob os quais coisas velhas passam por novas e práticas autoritárias ganham verniz democrático.
Por outro lado, os setores insatisfeitos com parte dos compromissos firmados em 1988 sempre estiveram à espera de uma oportunidade de romper o ajuste constituinte e eliminar as cláusulas em que foram forçados a fazer concessões. O projeto de desfazer o pacto, além de atender a interesses circunstanciais e setorizados, é reforçado por nossa incapacidade ancestral de respeitar acordos, de avançar dentro de balizas consensuais e de construir a história do país sem reinventar nossos fracassos a cada ciclo democrático de poucas dezenas de anos. Pensar a constituição como um entrave, e não como um alicerce que tem o valor autônomo de transcender às circunstâncias, faz da construção da ordem jurídica nacional um trabalho como o de Sísifo, em que todo o esforço empreendido está fadado a ser desfeito.
Por último, nossa cultura política é impregnada pela síndrome do “pai fundador”. Os que assumem o poder costumam encarar tudo que foi edificado antes de sua chegada como obsoleto e descartável. A única certeza que temos, nos mais diversos cenários, é que aqueles em posições de liderança buscarão redesenhar as instituições a fim de imprimir a própria marca e ver seus nomes gravados em placas de bronze. Incapazes de agir construtivamente nos contextos dados, os que ocupam os espaços de poder se apresentam como criadores de uma nova era. Mas seus feitos também estão condenados à transitoriedade. Os aspirantes a “pais fundadores” fabricarão novidades de museu, que só durarão até que os próximos pretendentes ao posto cheguem ao poder, buscando demolir ou reformar tudo novamente, numa eloquente alegoria do país onde as obras recém-inauguradas viram ruínas.

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