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Apontamentos em torno da ideia de liberdade em Hannah Arendt (1)

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In: AMARAL JR., Alberto do; PERRONE-MOISÉS, Cláudia (orgs.). O Cinquentenário da Declaração 
Universal dos Direitos do Homem. São Paulo: EDUSP, 1999. 
!
APONTAMENTOS EM TORNO DA IDÉIA DE LIBERDADE 
EM HANNAH ARENDT 
 Christina Miranda Ribas *
Resta essa obstinação em não fugir do labirinto 
na busca desesperada de alguma porta 
quem sabe inexistente (...) 
e essa pequenina luz indecifrável 
a que os poetas às vezes tomam por esperança. 
(Vinicius de Moraes) 
!
I. 
A palavra liberdade é usada nos mais variados contextos, com incontáveis significações. 
Está em noticiários e muros, em sonhos e poemas; nas preocupações de liberais e conservadores, 
reformistas e revolucionários. Visionários, pessimistas, céticos... põem em dúvida, negam, 
vislumbram a liberdade. Em torno da liberdade travam-se intermináveis controvérsias , com um 1
significado emotivo que não pode ser relegado a um plano secundário. Para o senso comum, 
liberdade indica, freqüentemente, ausência de limites; nos meios de comunicação, é muitas vezes 
associada a uma vida de aventuras espetaculares, fantasias e perigos simbólicos, ou ao dolce far 
niente de lugares paradisíacos. No plano teórico, aparecem as dicotomias liberdade interior e 
exterior, liberdade antiga e moderna, liberdade formal e real, liberdade positiva e negativa, 
liberdade individual e liberdade política. 
!
No discurso jurídico, a liberdade é tema recorrente, se não aporético. Toda a construção 
teórica do estado liberal - pensado a partir de limitações ao poder do estado - teve como 
inspiração a idéia de direito como liberdade. Nessa tradição, essas limitações se devem ao fato 
do homem conservar, na sociedade civil, seus direitos naturais, que o estado deve garantir, sendo 
 Doutora em Filosofia do Direito pela Universidade de São Paulo. Mestre em Direito Civil pela Universidade de *
São Paulo. Professora de Filosofia do Direito na Universidade Estadual de Ponta Grossa, Paraná. 
 “To raise the question, what is freedom? seems to be a hopeless enterprise.” ARENDT, Hannah. What is freedom? 1
In:------. Between Past and Future. New York : The Viking Press, 1968. Reprinted by Penguim Books, 1993. p. 
143.
! 2!!!
esta, aliás, sua finalidade essencial. Locke vai dizê-lo expressamente . Montesquieu vai construir 2
o sistema de divisão de poderes tendo como escopo sua inibição recíproca, vista como garantia 
da liberdade . Kant vai definir o direito - e a própria justiça - em função da liberdade. O tema da 3
liberdade vai aparecer cada vez mais relacionado ao tema, essencialmente moderno , dos direitos 4
do homem. 
!
II. 
Na Déclaration des droits d l’homme et du citoyén, é veementemente afirmada a idéia de 
que o homem é titular de direitos naturais, para cuja proteção constitui o estado civil. Lê-se, ali, 
que “os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos”, sendo o objetivo da 
associação política “a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem”, como a 
liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão. A liberdade é definida como o 
direito de “poder fazer tudo o que não prejudique os outros”, tendencialmente ilimitado, não se 
podendo restringi-lo senão no tocante às “ações nocivas à sociedade”. É a síntese da 
modernidade, centrada no indivíduo, como momento anterior e condicionante da vida política e 
social . 
!
 A liberdade é vista como não-impedimento, concebendo-se uma espécie de “área em que 
o homem pode agir sem sofrer a obstrução dos outros” . Afirma-se que há uma ampla esfera de 5
atuação que deve ser necessariamente reservada à escolha de cada um, na qual o poder político 
deve abster-se de intervir, possibilitando a plena expansão do homem, através do seu próprio 
 O estado de natureza, em Locke, é um estado de perfeita liberdade e igualdade. Quando os homens deixam o 2
estado de natureza através de seu próprio consentimento, o fazem para evitar o estado de guerra, que é um estado 
de inimizade e destruição. Mas, ao formar a sociedade civil, os homens não renunciam a sua natural liberdade; pelo 
contrário. Unem-se para conservá-la, assim como a vida e os bens (“a propriedade”) afastando-se dos perigos e 
temores constantes do estado de natureza. Segundo tratado sobre o Governo. São Paulo : Abril Cultural, 1973.
 “Montesquieu, na verdade, via na divisão de poderes muito mais um preceito de arte política do que um princípio 3
jurídico. Ou seja: não se tratava de um princípio para a organização do sistema estatal e de distribuição de 
competências, mas sim meio para se evitar o despotismo real.” FERRAZ JR., Tércio Sampaio. O Judiciário frente à 
divisão de poderes: um princípio em decadência? Revista USP, São Paulo, nº 21, pp. 12-21, 1994. p. 14.
 Falar em direitos humanos no mundo antigo é um anacronismo. A liberdade não era pensada como um direito 4
subjetivo ou, pelo menos, não como um direito subjetivo no sentido que hoje é atribuído à expressão. O próprio 
conceito de direito subjetivo é resultado de uma lenta evolução, que passa pela atribuição a todos os homens da 
qualidade de sujeitos de direito - entendidos como livres e iguais - e que exigiu as noções de pessoa e livre-arbítrio, 
ambas amadurecidas na filosofia cristã. 
 BERLIM, Isaiah. Quatro ensaios sobre a liberdade. Brasília : UnB, 1981. p.136.5
! 3!!!
engenho, no exercício de sua natural liberdade. É a liberdade “do” estado, que deixa tempo e 
condições para que cada um, a seu próprio modo, busque sua felicidade e construa seu caminho. 
Por isso o estado deve ser mínimo, não interferindo nas preferências pessoais de cada cidadão, 
deixando-lhe livre curso à iniciativa e aos empreendimentos, ao mesmo tempo que resguarda-lhe 
os direitos fundamentais. 
!
 Significativo dessa posição é o célebre discurso de Benjamin Constant , no qual aparece 6
a distinção entre liberdade dos antigos e liberdade dos modernos, que se celebrizou. Ao 
contrário da liberdade dos modernos, pensada como esfera de não-interferência, a liberdade dos 
antigos - historicamente ligada à democracia grega - refere-se a “partilha do poder social entre 
todos os cidadãos de uma mesma pátria” . Seja porque a democracia direta não é mais possível , 7 8
seja porque a vida moderna oferece formas de felicidade que “variam ao infinito” , para 9
Constant “a liberdade individual é a verdadeira liberdade moderna”. Ele vê tal liberdade como 
a superior conquista dos modernos e afirma que “não se deve nunca pedir seu sacrifício para 
estabelecer a liberdade política” . Assim, diz Constant, “quanto mais o exercício de nossos 10
direitos políticos nos deixar tempo para nossos interesses privados, mais a liberdade nos será 
preciosa” . 11
!
 No liberalismo clássico a liberdade como não-impedimento é a principal liberdade 
reivindicada. A liberdade positiva é importante para a garantia da liberdade negativa; nessa 
 CONSTANT, Benjamin. Da liberdade dos antigos comparada à dos modernos. Revista de Filosofia Política, 6
Porto Alegre, n°2, pp. 9-28, 1985. 
 Id. Ibid, p.15.7
 “Perdido na multidão, o indivíduo quase nunca percebe a influência que exerce. Sua vontade não marca o 8
conjunto; nada prova, a seus olhos, a sua cooperação.” Id., ibid., loc. cit. 
 “Que ela (a autoridade) se limite a ser justa; nós nos encarregaremos de ser felizes”. Id., ibid. p. 24. Bobbio afirma 9
que muito embora nos Bill of Rights americanos alguns direitos sejam protegidos porque permitem a busca da 
felicidade, com o estado liberal e de direito foi abandonada a idéia de que fosse tarefa do estado assegurar a 
felicidade, afirmando-se que “a verdadeira finalidade do Estado deve ser apenas dar aos súditos tanta liberdade 
que lhes permita buscar, cada um deles, a seu modo, a suaprópria felicidade”. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: 
Campus, 1992. p 89 e 90.
 CONSTANT, Benjamin. Op. cit., pp. 21 e 19. 10
 Id., ibid., p. 23.11
! 4!!!
medida, passa a ser um tema relevante para os liberais. Os direitos políticos somam-se aos 
direitos civis, sob a ótica da liberdade assim configurada. 
!
III. 
Hannah Arendt vai referir-se - para contrapor-se - à idéia de liberdade da política, que 
traduz a convicção de que quanto mais política, menos liberdade. Para Hannah Arendt a 
liberdade aparece, na experiência humana, justamente no campo da política e dos assuntos 
humanos. O âmbito da política é o espaço de aparição da liberdade, não se podendo conceber 
ação e política sem admitir a liberdade. Por isso, para ela, a idéia de liberdade da política é, em 
si, contraditória. Através dessa idéia o liberalismo, paradoxalmente, contribuiu para eliminar a 
liberdade do contexto político . 12
!
 No instigante texto “What is freedom?” , que passaremos a examinar, Hannah Arendt 13
afirma que liberdade e política são coincidentes, buscando entender as razões pelas quais essa 
afirmativa soa tão estranha, tanto em termos da tradição filosófica como da experiência política 
presente. 
!
 Ela começa apontando as perplexidades geradas pela transposição do problema da 
liberdade para o campo do pensamento ou da vontade, quando não é aí que a liberdade surge. 
Onde a liberdade não é um problema, mas um fato, é no âmbito da política. Para Hannah Arendt, 
na política está-se sempre às voltas com a questão da liberdade. Ela é o motivo pelo qual os 
homens convivem politicamente organizados. É a liberdade que confere significado a política. 
!
 A razão de ser da política é a liberdade, e seu domínio de experiência é a ação. Esse o 
leitmotiv. Para entendê-lo, é preciso introduzir a distinção arendthiana entre as três atividades da 
vida ativa, ação, obra e trabalho . Na Antigüidade, o trabalho exercia-se na oikia ou casa, onde 14
 “... liberalism (...) has done its share to banish the notion of liberty from the political realm.” ARENDT Hannah. 12
What is Freedom ? In: ------. Between Past and Future. p. 155.
 In: Between Past and Future. Cit. Que é liberdade? In: Entre o Passado e o Futuro. São Paulo : Perspectiva, 13
1992. 
 A Condição Humana. Rio de Janeiro : Forense Universitária, 1987, passim. Utilizei-me também da leitura de 14
Tércio Sampaio Ferraz Jr. Introdução ao Estudo do Direito. São Paulo : Atlas, 1987. pp. 26 e seguintes. A tradução 
das atividades da vida ativa foi alterada. 
! 5!!!
se reconhecia o governo de um só; era o reino da necessidade, ligado as exigências da condição 
animal do homem: alimentar-se, repousar, procriar. Era, portanto, a esfera privada (de privus, 
estar privado de), na qual o homem, como animal laborans, buscava os meios necessários à 
sobrevivência. O trabalho tinha a ver com o processo ininterrupto de produção de bens de 
consumo, isto é, daqueles bens que eram integrados no corpo após a sua produção e que não 
tinham uma permanência no mundo, que pereciam. Na casa, o anseio de sobrevivência domina 
de tal forma que a vida é limitada a seu próprio processo biológico. O espaço privado não era o 
espaço da liberdade; todos aí, estavam sob a coação da necessidade. 
!
 Os cidadãos tinham o privilégio de libertar-se dessa condição, exercendo na polis sua 
atividade. O governo de um só, típico da esfera privada, era incompatível com a esfera pública. 
Nela se reconhecia o governo de muitos. O cidadão era visto como um igual entre iguais e, na 
esfera pública, sua atividade era livre. Essa atividade era a ação, fugaz e fútil: um contínuo sem 
finalidade pré-concebida. O terreno da ação, o espaço do politikon zoon, era o espaço da 
dignificação do homem, do encontro de homens livres que se governavam. 
!
 Entre a ação e o trabalho se achava a obra, dominada pela relação meio/fim, com um 
termo previsível: o produto ou bem de uso. O produto, ao contrário do resultado do trabalho, 
adquire permanência no mundo; o processo de fabricação, ao contrário da ação, não é 
irreversível: tudo o que é produzido por mãos humanas pode ser destruído por elas. O espaço da 
obra é o espaço do homo faber, que constrói um mundo que lhe é próprio. O fazer tem em si a 
nota da violência. 
!
 A liberação das necessidades - que pressupunha domínio sobre outros homens - era 
fenômeno pré-político. O ser político, o viver numa polis, significava que tudo era decidido 
mediante a palavra e a persuasão, e não através da força ou da violência. Por isso a ação e o 
discurso são as atividades políticas por excelência e a vida política exclui tudo o que seja apenas 
necessário ou útil. 
!
 O homem livre é o que está liberto da necessidade e, ao mesmo tempo, possui o seu lar, o 
seu lugar no mundo. Para ela, a consciência da liberdade aparece primariamente no 
! 6!!!
relacionamento do homem com outros homens. A liberdade é o estado do homem livre, que o 
capacita a mover-se, a afastar-se de casa, a sair pelo mundo e a se encontrar com outros homens 
em palavras e atos. Essa liberdade é o oposto da liberdade interior - sobre a qual o homem nada 
saberia se não tivesse experimentado a condição de ser livre como uma realidade humana 
tangível. Para Hannah Arendt, embora os antigos não tivessem um conceito teórico de liberdade 
que fosse adequado a grandiosidade de suas experiências e de suas instituições, a liberdade 
vivenciada na ação nunca mais foi articulada com a clareza da Antigüidade clássica . Embora 15
não tenha sido um tema filosófico - o modo de vida do filósofo era oposto ao biós politikós - a 
liberdade era a idéia central da política, tendo sido vivenciada na polis grega e na res publica 
romana. Quando essa experiência se perdeu, é que começaram a surgir tentativas de transpor a 
liberdade para outros domínios, ou seja, diz Hannah Arendt, a separação entre a liberdade e a 
política é fruto de uma tentativa consciente de chegar a uma formulação onde fosse possível ser 
escravo e ao mesmo tempo ser livre. 
!
 A liberdade exige um espaço público comum, isto é, um mundo politicamente 
organizado onde o homem possa inserir-se em palavras e atos: um espaço para a liberdade 
aparecer. A finalidade da política é construir esse espaço de aparição da liberdade. A ação não é 
possível no isolamento. A liberdade como realidade concreta pressupõe a companhia de outros 
igualmente liberados das necessidades da vida. Por isso, nem toda a forma de convivência se 
caracteriza pela liberdade. Ser livre é agir entre iguais. Para Hannah Arendt, os homens não 
nascem iguais, mas se tornam iguais como membros de um grupo em virtude de uma decisão 
conjunta de garantirem-se reciprocamente direitos iguais. A igualdade não é um dado, mas um 
construído. A igualdade na esfera pública é uma igualdade de desiguais , uma enorme 16
equalização de diferenças produzida pela cidadania. Daí, como afirma Celso Lafer, “a 
indissolubilidade da relação entre o direito individual do cidadão de autodeterminar-se 
politicamente, em conjunto com seus concidadãos, através do exercício de seus direitos 
 Tanto o latim como o grego, diz Hannah Arendt, possuíam dois verbos para o que chamamos agir. No grego, o 15
verbo árkhein exprime a liberdade vivenciada com espontaneidade; é o começar, o conduzir, o governar. Só com o 
outro é possível, contudo, levar a cabo (práttein) o que se começou. Também em latim o verbo agere vai expressar 
por alguma coisa em movimento. A liberdade é o legado da fundação, à qual é preciso dar continuidade permanente 
e sustentadora (gerere).
 “Nossa vida política baseia-se na suposição de que podemos produzir igualdade através da organização, porque 16
o homem pode agir sobre o mundo comum e mudá-lo e construi-locom seus iguais, e somente com os seus iguais”. 
As Origens do Totalitarismo. São Paulo : Companhia das Letras, 1989. p. 335. 
! 7!!!
políticos, e o direito da comunidade de autodeterminar-se, construindo convencionalmente a 
igualdade” . O espaço público é o palco onde a liberdade atua. Os homens são livres enquanto 17
agem, nem antes nem depois. Ser livre e agir são a mesma coisa. É só na ação que a liberdade 
aparece. 
!
 Para Hannah Arendt nem o conceito de liberdade como fenômeno do pensamento nem a 
noção cristã do livre-arbítrio têm qualquer sentido na experiência política. Para ela, a liberdade 
relacionada à política não é um fenômeno da vontade, ou seja, não é livre-arbítrio, possibilidade 
de escolha inerente a liberdade de cada um, no sentido de decidir-se entre duas coisas dadas, mas 
é antes chamar a existência o que não existia. A ação livre não é dirigida nem pela vontade nem 
pelo intelecto, porque identificar uma meta e comandar a execução não são questões de liberdade 
mas de julgamento e de força ou fraqueza. Tanto que a idéia de livre-arbítrio era desconhecida 
na antigüidade clássica, onde a liberdade era um conceito político, e vai aparecer com os cristãos 
primitivos em termos de uma liberdade que não tinha relação com a política. Para Hannah 
Arendt, é curioso que a liberdade tenha se tornado um tema filosófico quando foi vivenciada 
como algo que ocorre no relacionamento entre mim e mim mesmo, não no inter-relacionamento 
humano. Os antigos não conheciam a vontade como uma faculdade distinta. Descobriram a 
vontade ao vivenciar sua impotência, não seu poder. A precariedade da vontade a torna ávida de 
poder; a vontade de poder se torna vontade de opressão, o que nos leva a equacionar poder com 
governo sobre outros homens. Dessa maneira, o ideal de liberdade torna-se soberania. Ora, isso é 
complicado - e ela exemplifica com Rousseau - porque a vontade, sozinha, não é uma faculdade 
política. Para ela, liberdade e soberania conservam tão pouca identidade que sequer podem 
existir simultaneamente; sua identificação talvez seja a conseqüência mais perniciosa da equação 
filosófica da liberdade com o livre-arbítrio. Isso porque não é o homem que habita o mundo, mas 
são os homens que o habitam. A pluralidade é condição para a ação e o discurso e, portanto, para 
a liberdade, tendo um duplo aspecto de igualdade e diferença. O homem vive como ser distinto e 
singular entre iguais e só aí ele é livre. Daí a dignidade da política e a idéia do espaço público 18
como espaço de aparição da liberdade. 
!
A Reconstrução dos Direitos Humanos. São Paulo : Companhia das Letras, 1988. p. 150.17
 “A pluralidade humana é a paradoxal pluralidade de seres singulares”. A Condição Humana. p. 189.18
! 8!!!
 Mas não apenas a tradição filosófica, que entendia a vida contemplativa como livre e 
superior, e a tradição cristã, que pregava a isenção da política, vão explicar a dificuldade de se 
entender liberdade e política como interdependentes. A experiência política presente, diz Hannah 
Arendt, nos faz duvidar não só da coincidência entre liberdade e política, mas de sua própria 
compatibilidade. Desde a era moderna a política é relacionada a garantia da segurança; a 
liberdade refere-se a atividades que ocorrem fora do âmbito político. Para Hannah Arendt, o 
liberalismo, ao relacionar a política à manutenção da vida, aos imperativos da sobrevivência, 
torna o governo protetor menos da liberdade que do processo vital, dos interesses da sociedade e 
dos indivíduos. O processo vital não se acha ligado à liberdade, mas a uma necessidade que lhe é 
própria. A velha distinção entre a esfera pública, relacionada às atividades pertinentes a um 
mundo comum, e a esfera privada, ligada às necessidades de manutenção da vida, hoje é difusa, 
diz Hannah Arendt, porque vemos “as comunidades políticas como uma família cujos negócios 
diários devem ser atendidos por uma administração doméstica nacional e gigantesca” . O 19
século XIX, que havia começado cheio de promessas, vê o cidadão transformar-se em burguês, 
que usa e julga todas as instituições públicas pela medida de seus interesses privados . 20
!
 A política torna-se um meio de proteger a sociedade. A esfera do social é uma esfera 
híbrida, na qual as necessidades privadas ganham relevância pública, cuja ascendência, diz 
Hannah Arendt, eleva as atividades econômicas ao nível público; a administração doméstica e 
todas as questões antes pertinentes à esfera privada da família transformam-se em interesse 
coletivo; público e privado confundem-se no próprio processo da vida . 21
!
 A ação cada vez mais perde sua especificidade e se torna fabricação; o fazer, por sua vez, 
vai se identificando ao trabalho; A economia extrapola os muros da casa e privatiza, no sentido 
antigo, as relações entre os homens, que passam a ser regidas, em todos os níveis, pela 
necessidade. A liberdade é apenas o limite que o governo não pode transpor sem ameaçar a vida 
e as necessidades vitais. Torna-se fenômeno marginal. A política, nesse sentido, deixa de ser a 
 A Condição Humana. p. 37.19
 Nesse sentido, para Hannah Arendt, “a filosofia política da burguesia era sempre totalitária; supunha sempre que 20
a política, a economia e a sociedade fossem uma coisa só, na qual as instituições políticas serviam apenas de 
fachada para os interesses privados”. As Origens do Totalitarismo. p. 386.
 A Condição Humana. pp. 42 e 43. 21
! 9!!!
esfera da ação, para se tornar a esfera do homo faber - na qual as relações entre os homens são 
sempre mediadas por produtos e denominadas pela relação meio/fim - ou a esfera do animal 
laborans. Não há aí espaço para o politikon zoon. Não há aí espaço para a liberdade. 
!
IV. 
Ao refletir sobre a sociedade de consumidores, Hannah Arendt afirma que é possível que 
ela venha a constituir-se na era mais estéril que a história já conheceu. As três atividades da vida 
ativa que ela distingue são reduzidas ao trabalho que, por sua vez, também corre o risco de 
extinção. Dominado pela necessidade, o homem, como animal laborans, exerce sua atividade de 
forma extremamente isolada; já não age, comporta-se, regido pelos imperativos da 
sobrevivência. Não se trata apenas do conformismo e das tendências niveladoras comuns a toda 
sociedade. A sociedade de consumidores “requer de seus membros um funcionamento puramente 
automático, como se a vida individual realmente houvesse sido afogada no processo vital da 
espécie, e a única decisão ativa exigida do indivíduo fosse deixar-se levar, por assim dizer, 
abandonar a sua individualidade, as dores e as penas do viver ainda sentidas individualmente, e 
aquiescer num tipo funcional de conduta entorpecida e tranqüilizante” . A satisfação das 22
necessidades da vida, pré-condição para a liberdade, acaba sendo elevada a único objetivo 
humano. Seu preenchimento não se dá em termos de uma liberação para alcançar-se a liberdade 
no mundo, mas de alimentar um imenso processo vital, devorador e sempre recorrente. 
!
 Escapar desse processo talvez seja, hoje, o grande desafio. Significa lidar com os 
imperativos da sobrevivência de modo a conseguir essa liberação e, ao mesmo tempo, permitir a 
inserção dos homens num espaço público construído com base na igualdade, onde eles possam 
revelar-se, em suas identidades pessoais e singulares. Resta perguntar, nos marcos do 
pensamento de Hannah Arendt, se é possível enfrentar esse desafio nos dias de hoje, criando um 
espaço para a experiência da liberdade. A resposta parece, a princípio, negativa. Não o será, 
entretanto, se tivermos em conta que, para a autora, o que permanece nas épocas de petrificação 
e ruína é a faculdade da própria liberdade, enquanto capacidade de começar . Essaidéia de 23
liberdade como pura espontaneidade Hannah Arendt vai buscar em Agostinho: “initium ut esset 
 ARENDT, Hannah. A Condição Humana. p. 335. 22
 Entre o Passado e o Futuro. p. 217.23
! 10!!!
homo creatus est”, uma de suas citações preferidas. O homem foi criado para que houvesse um 
começo; a liberdade é um caráter da existência humana no mundo. Porque é um começo, o 
homem pode começar. Ser humano e ser livre são a única e a mesma coisa. Deus criou o homem 
para introduzir no mundo a faculdade de começar: a liberdade. Nesse sentido, o homem pode 
realizar milagres, entendidos como interrupções de uma série de acontecimentos, em algum 
processo automático em cujo contexto constituem o absolutamente inesperado. 
!
 Dessa forma, embora tudo possa continuar igual, há sempre a possibilidade do agir 
conjunto na construção do novo. O dom da liberdade não some nunca. O homem pode sempre 
vir a quebrar a cadeia das infinitas improbabilidades. Por isso a reflexão de Hannah Arendt é 
dominada pela esperança, essa pequenina luz indecifrável que nos empurra na direção de uma 
nova manhã. 
BIBLIOGRAFIA 
ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Rio de Janeiro : Forense Universitária, 1987. 
------. As Origens do Totalitarismo. São Paulo : Companhia das Letras, 1989. 
------. Que é liberdade? In: ------. Entre o Passado e o Futuro. São Paulo : Perspectiva, 1992. 
------. What is freedom? In: ------. Between Past and Future. New York : The Viking Press, 
1968. Reprinted by Penguim Books, 1993. 
BERLIM, Isaiah. Quatro ensaios sobre a liberdade. Brasília : UnB, 1981. 
BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro : Campus, 1992. 
CONSTANT, Benjamin. Da liberdade dos antigos comparada à dos modernos. Revista de 
Filosofia Política. Porto Alegre, n° 2, pp. 9-28, 1985. 
FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. São Paulo : Atlas, 1987. 
------. O Judiciário frente à divisão de poderes: um princípio em decadência? Revista USP, nº 
21, pp. 12-21, 1994. 
LAFER, Celso. A Reconstrução dos Direitos Humanos. São Paulo : Companhia das Letras, 
1988. 
LOCKE, John. Segundo tratado sobre o Governo. São Paulo : Abril Cultural, 1973.

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