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In: AMARAL JR., Alberto do; PERRONE-MOISÉS, Cláudia (orgs.). O Cinquentenário da Declaração Universal dos Direitos do Homem. São Paulo: EDUSP, 1999. ! APONTAMENTOS EM TORNO DA IDÉIA DE LIBERDADE EM HANNAH ARENDT Christina Miranda Ribas * Resta essa obstinação em não fugir do labirinto na busca desesperada de alguma porta quem sabe inexistente (...) e essa pequenina luz indecifrável a que os poetas às vezes tomam por esperança. (Vinicius de Moraes) ! I. A palavra liberdade é usada nos mais variados contextos, com incontáveis significações. Está em noticiários e muros, em sonhos e poemas; nas preocupações de liberais e conservadores, reformistas e revolucionários. Visionários, pessimistas, céticos... põem em dúvida, negam, vislumbram a liberdade. Em torno da liberdade travam-se intermináveis controvérsias , com um 1 significado emotivo que não pode ser relegado a um plano secundário. Para o senso comum, liberdade indica, freqüentemente, ausência de limites; nos meios de comunicação, é muitas vezes associada a uma vida de aventuras espetaculares, fantasias e perigos simbólicos, ou ao dolce far niente de lugares paradisíacos. No plano teórico, aparecem as dicotomias liberdade interior e exterior, liberdade antiga e moderna, liberdade formal e real, liberdade positiva e negativa, liberdade individual e liberdade política. ! No discurso jurídico, a liberdade é tema recorrente, se não aporético. Toda a construção teórica do estado liberal - pensado a partir de limitações ao poder do estado - teve como inspiração a idéia de direito como liberdade. Nessa tradição, essas limitações se devem ao fato do homem conservar, na sociedade civil, seus direitos naturais, que o estado deve garantir, sendo Doutora em Filosofia do Direito pela Universidade de São Paulo. Mestre em Direito Civil pela Universidade de * São Paulo. Professora de Filosofia do Direito na Universidade Estadual de Ponta Grossa, Paraná. “To raise the question, what is freedom? seems to be a hopeless enterprise.” ARENDT, Hannah. What is freedom? 1 In:------. Between Past and Future. New York : The Viking Press, 1968. Reprinted by Penguim Books, 1993. p. 143. ! 2!!! esta, aliás, sua finalidade essencial. Locke vai dizê-lo expressamente . Montesquieu vai construir 2 o sistema de divisão de poderes tendo como escopo sua inibição recíproca, vista como garantia da liberdade . Kant vai definir o direito - e a própria justiça - em função da liberdade. O tema da 3 liberdade vai aparecer cada vez mais relacionado ao tema, essencialmente moderno , dos direitos 4 do homem. ! II. Na Déclaration des droits d l’homme et du citoyén, é veementemente afirmada a idéia de que o homem é titular de direitos naturais, para cuja proteção constitui o estado civil. Lê-se, ali, que “os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos”, sendo o objetivo da associação política “a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem”, como a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão. A liberdade é definida como o direito de “poder fazer tudo o que não prejudique os outros”, tendencialmente ilimitado, não se podendo restringi-lo senão no tocante às “ações nocivas à sociedade”. É a síntese da modernidade, centrada no indivíduo, como momento anterior e condicionante da vida política e social . ! A liberdade é vista como não-impedimento, concebendo-se uma espécie de “área em que o homem pode agir sem sofrer a obstrução dos outros” . Afirma-se que há uma ampla esfera de 5 atuação que deve ser necessariamente reservada à escolha de cada um, na qual o poder político deve abster-se de intervir, possibilitando a plena expansão do homem, através do seu próprio O estado de natureza, em Locke, é um estado de perfeita liberdade e igualdade. Quando os homens deixam o 2 estado de natureza através de seu próprio consentimento, o fazem para evitar o estado de guerra, que é um estado de inimizade e destruição. Mas, ao formar a sociedade civil, os homens não renunciam a sua natural liberdade; pelo contrário. Unem-se para conservá-la, assim como a vida e os bens (“a propriedade”) afastando-se dos perigos e temores constantes do estado de natureza. Segundo tratado sobre o Governo. São Paulo : Abril Cultural, 1973. “Montesquieu, na verdade, via na divisão de poderes muito mais um preceito de arte política do que um princípio 3 jurídico. Ou seja: não se tratava de um princípio para a organização do sistema estatal e de distribuição de competências, mas sim meio para se evitar o despotismo real.” FERRAZ JR., Tércio Sampaio. O Judiciário frente à divisão de poderes: um princípio em decadência? Revista USP, São Paulo, nº 21, pp. 12-21, 1994. p. 14. Falar em direitos humanos no mundo antigo é um anacronismo. A liberdade não era pensada como um direito 4 subjetivo ou, pelo menos, não como um direito subjetivo no sentido que hoje é atribuído à expressão. O próprio conceito de direito subjetivo é resultado de uma lenta evolução, que passa pela atribuição a todos os homens da qualidade de sujeitos de direito - entendidos como livres e iguais - e que exigiu as noções de pessoa e livre-arbítrio, ambas amadurecidas na filosofia cristã. BERLIM, Isaiah. Quatro ensaios sobre a liberdade. Brasília : UnB, 1981. p.136.5 ! 3!!! engenho, no exercício de sua natural liberdade. É a liberdade “do” estado, que deixa tempo e condições para que cada um, a seu próprio modo, busque sua felicidade e construa seu caminho. Por isso o estado deve ser mínimo, não interferindo nas preferências pessoais de cada cidadão, deixando-lhe livre curso à iniciativa e aos empreendimentos, ao mesmo tempo que resguarda-lhe os direitos fundamentais. ! Significativo dessa posição é o célebre discurso de Benjamin Constant , no qual aparece 6 a distinção entre liberdade dos antigos e liberdade dos modernos, que se celebrizou. Ao contrário da liberdade dos modernos, pensada como esfera de não-interferência, a liberdade dos antigos - historicamente ligada à democracia grega - refere-se a “partilha do poder social entre todos os cidadãos de uma mesma pátria” . Seja porque a democracia direta não é mais possível , 7 8 seja porque a vida moderna oferece formas de felicidade que “variam ao infinito” , para 9 Constant “a liberdade individual é a verdadeira liberdade moderna”. Ele vê tal liberdade como a superior conquista dos modernos e afirma que “não se deve nunca pedir seu sacrifício para estabelecer a liberdade política” . Assim, diz Constant, “quanto mais o exercício de nossos 10 direitos políticos nos deixar tempo para nossos interesses privados, mais a liberdade nos será preciosa” . 11 ! No liberalismo clássico a liberdade como não-impedimento é a principal liberdade reivindicada. A liberdade positiva é importante para a garantia da liberdade negativa; nessa CONSTANT, Benjamin. Da liberdade dos antigos comparada à dos modernos. Revista de Filosofia Política, 6 Porto Alegre, n°2, pp. 9-28, 1985. Id. Ibid, p.15.7 “Perdido na multidão, o indivíduo quase nunca percebe a influência que exerce. Sua vontade não marca o 8 conjunto; nada prova, a seus olhos, a sua cooperação.” Id., ibid., loc. cit. “Que ela (a autoridade) se limite a ser justa; nós nos encarregaremos de ser felizes”. Id., ibid. p. 24. Bobbio afirma 9 que muito embora nos Bill of Rights americanos alguns direitos sejam protegidos porque permitem a busca da felicidade, com o estado liberal e de direito foi abandonada a idéia de que fosse tarefa do estado assegurar a felicidade, afirmando-se que “a verdadeira finalidade do Estado deve ser apenas dar aos súditos tanta liberdade que lhes permita buscar, cada um deles, a seu modo, a suaprópria felicidade”. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p 89 e 90. CONSTANT, Benjamin. Op. cit., pp. 21 e 19. 10 Id., ibid., p. 23.11 ! 4!!! medida, passa a ser um tema relevante para os liberais. Os direitos políticos somam-se aos direitos civis, sob a ótica da liberdade assim configurada. ! III. Hannah Arendt vai referir-se - para contrapor-se - à idéia de liberdade da política, que traduz a convicção de que quanto mais política, menos liberdade. Para Hannah Arendt a liberdade aparece, na experiência humana, justamente no campo da política e dos assuntos humanos. O âmbito da política é o espaço de aparição da liberdade, não se podendo conceber ação e política sem admitir a liberdade. Por isso, para ela, a idéia de liberdade da política é, em si, contraditória. Através dessa idéia o liberalismo, paradoxalmente, contribuiu para eliminar a liberdade do contexto político . 12 ! No instigante texto “What is freedom?” , que passaremos a examinar, Hannah Arendt 13 afirma que liberdade e política são coincidentes, buscando entender as razões pelas quais essa afirmativa soa tão estranha, tanto em termos da tradição filosófica como da experiência política presente. ! Ela começa apontando as perplexidades geradas pela transposição do problema da liberdade para o campo do pensamento ou da vontade, quando não é aí que a liberdade surge. Onde a liberdade não é um problema, mas um fato, é no âmbito da política. Para Hannah Arendt, na política está-se sempre às voltas com a questão da liberdade. Ela é o motivo pelo qual os homens convivem politicamente organizados. É a liberdade que confere significado a política. ! A razão de ser da política é a liberdade, e seu domínio de experiência é a ação. Esse o leitmotiv. Para entendê-lo, é preciso introduzir a distinção arendthiana entre as três atividades da vida ativa, ação, obra e trabalho . Na Antigüidade, o trabalho exercia-se na oikia ou casa, onde 14 “... liberalism (...) has done its share to banish the notion of liberty from the political realm.” ARENDT Hannah. 12 What is Freedom ? In: ------. Between Past and Future. p. 155. In: Between Past and Future. Cit. Que é liberdade? In: Entre o Passado e o Futuro. São Paulo : Perspectiva, 13 1992. A Condição Humana. Rio de Janeiro : Forense Universitária, 1987, passim. Utilizei-me também da leitura de 14 Tércio Sampaio Ferraz Jr. Introdução ao Estudo do Direito. São Paulo : Atlas, 1987. pp. 26 e seguintes. A tradução das atividades da vida ativa foi alterada. ! 5!!! se reconhecia o governo de um só; era o reino da necessidade, ligado as exigências da condição animal do homem: alimentar-se, repousar, procriar. Era, portanto, a esfera privada (de privus, estar privado de), na qual o homem, como animal laborans, buscava os meios necessários à sobrevivência. O trabalho tinha a ver com o processo ininterrupto de produção de bens de consumo, isto é, daqueles bens que eram integrados no corpo após a sua produção e que não tinham uma permanência no mundo, que pereciam. Na casa, o anseio de sobrevivência domina de tal forma que a vida é limitada a seu próprio processo biológico. O espaço privado não era o espaço da liberdade; todos aí, estavam sob a coação da necessidade. ! Os cidadãos tinham o privilégio de libertar-se dessa condição, exercendo na polis sua atividade. O governo de um só, típico da esfera privada, era incompatível com a esfera pública. Nela se reconhecia o governo de muitos. O cidadão era visto como um igual entre iguais e, na esfera pública, sua atividade era livre. Essa atividade era a ação, fugaz e fútil: um contínuo sem finalidade pré-concebida. O terreno da ação, o espaço do politikon zoon, era o espaço da dignificação do homem, do encontro de homens livres que se governavam. ! Entre a ação e o trabalho se achava a obra, dominada pela relação meio/fim, com um termo previsível: o produto ou bem de uso. O produto, ao contrário do resultado do trabalho, adquire permanência no mundo; o processo de fabricação, ao contrário da ação, não é irreversível: tudo o que é produzido por mãos humanas pode ser destruído por elas. O espaço da obra é o espaço do homo faber, que constrói um mundo que lhe é próprio. O fazer tem em si a nota da violência. ! A liberação das necessidades - que pressupunha domínio sobre outros homens - era fenômeno pré-político. O ser político, o viver numa polis, significava que tudo era decidido mediante a palavra e a persuasão, e não através da força ou da violência. Por isso a ação e o discurso são as atividades políticas por excelência e a vida política exclui tudo o que seja apenas necessário ou útil. ! O homem livre é o que está liberto da necessidade e, ao mesmo tempo, possui o seu lar, o seu lugar no mundo. Para ela, a consciência da liberdade aparece primariamente no ! 6!!! relacionamento do homem com outros homens. A liberdade é o estado do homem livre, que o capacita a mover-se, a afastar-se de casa, a sair pelo mundo e a se encontrar com outros homens em palavras e atos. Essa liberdade é o oposto da liberdade interior - sobre a qual o homem nada saberia se não tivesse experimentado a condição de ser livre como uma realidade humana tangível. Para Hannah Arendt, embora os antigos não tivessem um conceito teórico de liberdade que fosse adequado a grandiosidade de suas experiências e de suas instituições, a liberdade vivenciada na ação nunca mais foi articulada com a clareza da Antigüidade clássica . Embora 15 não tenha sido um tema filosófico - o modo de vida do filósofo era oposto ao biós politikós - a liberdade era a idéia central da política, tendo sido vivenciada na polis grega e na res publica romana. Quando essa experiência se perdeu, é que começaram a surgir tentativas de transpor a liberdade para outros domínios, ou seja, diz Hannah Arendt, a separação entre a liberdade e a política é fruto de uma tentativa consciente de chegar a uma formulação onde fosse possível ser escravo e ao mesmo tempo ser livre. ! A liberdade exige um espaço público comum, isto é, um mundo politicamente organizado onde o homem possa inserir-se em palavras e atos: um espaço para a liberdade aparecer. A finalidade da política é construir esse espaço de aparição da liberdade. A ação não é possível no isolamento. A liberdade como realidade concreta pressupõe a companhia de outros igualmente liberados das necessidades da vida. Por isso, nem toda a forma de convivência se caracteriza pela liberdade. Ser livre é agir entre iguais. Para Hannah Arendt, os homens não nascem iguais, mas se tornam iguais como membros de um grupo em virtude de uma decisão conjunta de garantirem-se reciprocamente direitos iguais. A igualdade não é um dado, mas um construído. A igualdade na esfera pública é uma igualdade de desiguais , uma enorme 16 equalização de diferenças produzida pela cidadania. Daí, como afirma Celso Lafer, “a indissolubilidade da relação entre o direito individual do cidadão de autodeterminar-se politicamente, em conjunto com seus concidadãos, através do exercício de seus direitos Tanto o latim como o grego, diz Hannah Arendt, possuíam dois verbos para o que chamamos agir. No grego, o 15 verbo árkhein exprime a liberdade vivenciada com espontaneidade; é o começar, o conduzir, o governar. Só com o outro é possível, contudo, levar a cabo (práttein) o que se começou. Também em latim o verbo agere vai expressar por alguma coisa em movimento. A liberdade é o legado da fundação, à qual é preciso dar continuidade permanente e sustentadora (gerere). “Nossa vida política baseia-se na suposição de que podemos produzir igualdade através da organização, porque 16 o homem pode agir sobre o mundo comum e mudá-lo e construi-locom seus iguais, e somente com os seus iguais”. As Origens do Totalitarismo. São Paulo : Companhia das Letras, 1989. p. 335. ! 7!!! políticos, e o direito da comunidade de autodeterminar-se, construindo convencionalmente a igualdade” . O espaço público é o palco onde a liberdade atua. Os homens são livres enquanto 17 agem, nem antes nem depois. Ser livre e agir são a mesma coisa. É só na ação que a liberdade aparece. ! Para Hannah Arendt nem o conceito de liberdade como fenômeno do pensamento nem a noção cristã do livre-arbítrio têm qualquer sentido na experiência política. Para ela, a liberdade relacionada à política não é um fenômeno da vontade, ou seja, não é livre-arbítrio, possibilidade de escolha inerente a liberdade de cada um, no sentido de decidir-se entre duas coisas dadas, mas é antes chamar a existência o que não existia. A ação livre não é dirigida nem pela vontade nem pelo intelecto, porque identificar uma meta e comandar a execução não são questões de liberdade mas de julgamento e de força ou fraqueza. Tanto que a idéia de livre-arbítrio era desconhecida na antigüidade clássica, onde a liberdade era um conceito político, e vai aparecer com os cristãos primitivos em termos de uma liberdade que não tinha relação com a política. Para Hannah Arendt, é curioso que a liberdade tenha se tornado um tema filosófico quando foi vivenciada como algo que ocorre no relacionamento entre mim e mim mesmo, não no inter-relacionamento humano. Os antigos não conheciam a vontade como uma faculdade distinta. Descobriram a vontade ao vivenciar sua impotência, não seu poder. A precariedade da vontade a torna ávida de poder; a vontade de poder se torna vontade de opressão, o que nos leva a equacionar poder com governo sobre outros homens. Dessa maneira, o ideal de liberdade torna-se soberania. Ora, isso é complicado - e ela exemplifica com Rousseau - porque a vontade, sozinha, não é uma faculdade política. Para ela, liberdade e soberania conservam tão pouca identidade que sequer podem existir simultaneamente; sua identificação talvez seja a conseqüência mais perniciosa da equação filosófica da liberdade com o livre-arbítrio. Isso porque não é o homem que habita o mundo, mas são os homens que o habitam. A pluralidade é condição para a ação e o discurso e, portanto, para a liberdade, tendo um duplo aspecto de igualdade e diferença. O homem vive como ser distinto e singular entre iguais e só aí ele é livre. Daí a dignidade da política e a idéia do espaço público 18 como espaço de aparição da liberdade. ! A Reconstrução dos Direitos Humanos. São Paulo : Companhia das Letras, 1988. p. 150.17 “A pluralidade humana é a paradoxal pluralidade de seres singulares”. A Condição Humana. p. 189.18 ! 8!!! Mas não apenas a tradição filosófica, que entendia a vida contemplativa como livre e superior, e a tradição cristã, que pregava a isenção da política, vão explicar a dificuldade de se entender liberdade e política como interdependentes. A experiência política presente, diz Hannah Arendt, nos faz duvidar não só da coincidência entre liberdade e política, mas de sua própria compatibilidade. Desde a era moderna a política é relacionada a garantia da segurança; a liberdade refere-se a atividades que ocorrem fora do âmbito político. Para Hannah Arendt, o liberalismo, ao relacionar a política à manutenção da vida, aos imperativos da sobrevivência, torna o governo protetor menos da liberdade que do processo vital, dos interesses da sociedade e dos indivíduos. O processo vital não se acha ligado à liberdade, mas a uma necessidade que lhe é própria. A velha distinção entre a esfera pública, relacionada às atividades pertinentes a um mundo comum, e a esfera privada, ligada às necessidades de manutenção da vida, hoje é difusa, diz Hannah Arendt, porque vemos “as comunidades políticas como uma família cujos negócios diários devem ser atendidos por uma administração doméstica nacional e gigantesca” . O 19 século XIX, que havia começado cheio de promessas, vê o cidadão transformar-se em burguês, que usa e julga todas as instituições públicas pela medida de seus interesses privados . 20 ! A política torna-se um meio de proteger a sociedade. A esfera do social é uma esfera híbrida, na qual as necessidades privadas ganham relevância pública, cuja ascendência, diz Hannah Arendt, eleva as atividades econômicas ao nível público; a administração doméstica e todas as questões antes pertinentes à esfera privada da família transformam-se em interesse coletivo; público e privado confundem-se no próprio processo da vida . 21 ! A ação cada vez mais perde sua especificidade e se torna fabricação; o fazer, por sua vez, vai se identificando ao trabalho; A economia extrapola os muros da casa e privatiza, no sentido antigo, as relações entre os homens, que passam a ser regidas, em todos os níveis, pela necessidade. A liberdade é apenas o limite que o governo não pode transpor sem ameaçar a vida e as necessidades vitais. Torna-se fenômeno marginal. A política, nesse sentido, deixa de ser a A Condição Humana. p. 37.19 Nesse sentido, para Hannah Arendt, “a filosofia política da burguesia era sempre totalitária; supunha sempre que 20 a política, a economia e a sociedade fossem uma coisa só, na qual as instituições políticas serviam apenas de fachada para os interesses privados”. As Origens do Totalitarismo. p. 386. A Condição Humana. pp. 42 e 43. 21 ! 9!!! esfera da ação, para se tornar a esfera do homo faber - na qual as relações entre os homens são sempre mediadas por produtos e denominadas pela relação meio/fim - ou a esfera do animal laborans. Não há aí espaço para o politikon zoon. Não há aí espaço para a liberdade. ! IV. Ao refletir sobre a sociedade de consumidores, Hannah Arendt afirma que é possível que ela venha a constituir-se na era mais estéril que a história já conheceu. As três atividades da vida ativa que ela distingue são reduzidas ao trabalho que, por sua vez, também corre o risco de extinção. Dominado pela necessidade, o homem, como animal laborans, exerce sua atividade de forma extremamente isolada; já não age, comporta-se, regido pelos imperativos da sobrevivência. Não se trata apenas do conformismo e das tendências niveladoras comuns a toda sociedade. A sociedade de consumidores “requer de seus membros um funcionamento puramente automático, como se a vida individual realmente houvesse sido afogada no processo vital da espécie, e a única decisão ativa exigida do indivíduo fosse deixar-se levar, por assim dizer, abandonar a sua individualidade, as dores e as penas do viver ainda sentidas individualmente, e aquiescer num tipo funcional de conduta entorpecida e tranqüilizante” . A satisfação das 22 necessidades da vida, pré-condição para a liberdade, acaba sendo elevada a único objetivo humano. Seu preenchimento não se dá em termos de uma liberação para alcançar-se a liberdade no mundo, mas de alimentar um imenso processo vital, devorador e sempre recorrente. ! Escapar desse processo talvez seja, hoje, o grande desafio. Significa lidar com os imperativos da sobrevivência de modo a conseguir essa liberação e, ao mesmo tempo, permitir a inserção dos homens num espaço público construído com base na igualdade, onde eles possam revelar-se, em suas identidades pessoais e singulares. Resta perguntar, nos marcos do pensamento de Hannah Arendt, se é possível enfrentar esse desafio nos dias de hoje, criando um espaço para a experiência da liberdade. A resposta parece, a princípio, negativa. Não o será, entretanto, se tivermos em conta que, para a autora, o que permanece nas épocas de petrificação e ruína é a faculdade da própria liberdade, enquanto capacidade de começar . Essaidéia de 23 liberdade como pura espontaneidade Hannah Arendt vai buscar em Agostinho: “initium ut esset ARENDT, Hannah. A Condição Humana. p. 335. 22 Entre o Passado e o Futuro. p. 217.23 ! 10!!! homo creatus est”, uma de suas citações preferidas. O homem foi criado para que houvesse um começo; a liberdade é um caráter da existência humana no mundo. Porque é um começo, o homem pode começar. Ser humano e ser livre são a única e a mesma coisa. Deus criou o homem para introduzir no mundo a faculdade de começar: a liberdade. Nesse sentido, o homem pode realizar milagres, entendidos como interrupções de uma série de acontecimentos, em algum processo automático em cujo contexto constituem o absolutamente inesperado. ! Dessa forma, embora tudo possa continuar igual, há sempre a possibilidade do agir conjunto na construção do novo. O dom da liberdade não some nunca. O homem pode sempre vir a quebrar a cadeia das infinitas improbabilidades. Por isso a reflexão de Hannah Arendt é dominada pela esperança, essa pequenina luz indecifrável que nos empurra na direção de uma nova manhã. BIBLIOGRAFIA ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Rio de Janeiro : Forense Universitária, 1987. ------. As Origens do Totalitarismo. São Paulo : Companhia das Letras, 1989. ------. Que é liberdade? In: ------. Entre o Passado e o Futuro. São Paulo : Perspectiva, 1992. ------. What is freedom? In: ------. Between Past and Future. New York : The Viking Press, 1968. Reprinted by Penguim Books, 1993. BERLIM, Isaiah. Quatro ensaios sobre a liberdade. Brasília : UnB, 1981. BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro : Campus, 1992. CONSTANT, Benjamin. Da liberdade dos antigos comparada à dos modernos. Revista de Filosofia Política. Porto Alegre, n° 2, pp. 9-28, 1985. FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. São Paulo : Atlas, 1987. ------. O Judiciário frente à divisão de poderes: um princípio em decadência? Revista USP, nº 21, pp. 12-21, 1994. LAFER, Celso. A Reconstrução dos Direitos Humanos. São Paulo : Companhia das Letras, 1988. LOCKE, John. Segundo tratado sobre o Governo. São Paulo : Abril Cultural, 1973.
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