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• •. ". V· I\ -. av I a~a . ~ ~O INTRA-URBANO NO BRA~ll © 200 I FlávioVillaça Direitos desta edição reservados à Nobel Franquias S.A. (Studio Nobel é um selo editorial da Nobel Franquias S.A.) Publicado em 200 I Reimpresso em 2007 Reimpresso em 2009 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, Sp,Brasil) Villaça, Flávio, 1929 Espaço intra-urbano no Brasil! Flávio Villaça. - São Paulo: Studio Nobel: FAPESP: Lincoln Institute, 200 I. Bibliografia. ISBN 978-85-85445-75-1 I. Geografia urbana 2. Planejamento urbano - Brasil 3. Política urbana - Brasil I.Título 00-3633 ! CDD- 71 1.40981 índices para catálogo sistemático: I. Brasil: Espaço intra-urbano 711.40981 2. Brasil: Planejamento urbano 71 1.40981 umário Capítulo 1 Introdução 11 Capítulo 2 Espaço íntra-urbano: esse desconhecido 17 A questão semântica 18 Espaços regional e intra-urbano 20 Especificidades do espaço intra-urbano 22 Abordagens dos espaços intra-urbano e regional 26 Espaço e sociedade 45 Capítulo 3 Os processos espaciais de conurbação 49 Capítulo 4 Direções de expansão urbana 69 Introdução 69 Os setores viários 70 Localização, valor e preço da terra urbana 70 Vias regionais e urbanização 80 O período pré-ferroviário 86 Setores oceânicos 107 Capítulo 5 A estrutura urbana básica 113 Ametrópole interior 114 São Paulo 116 Belo Horizonte ll8 Ametrópole litorânea 130 Capítulo 6 Os setores industriais. A articulação espacial entre metrópole e região 135 Capítulo 7 A segregação urbana 141 O conceito de segregação 142 Os setores 153 Referências bibliográficas 363 Capítulo 8 Os bairros residenciais das camadas de alta renda 157 O Rio de Janeiro 157 O século XIX 159 O século :xx 177 Deslocamentos, incorporação imobiliária, forma urbana e estilos de vida 180 São Paulo 192 Belo Horizonte 199 Porto Alegre 203 Salvador 207 Recife 211 Capítulo 9 Os bairros residenciais das camadas populares 225 Capítulo 10 Os centros principais 237 A natureza do centro principal 237 O valor simbólico do centro 247 O surgimento dos centros principais 252 Rio de Janeiro 255 São Paulo 261 Porto Alegre 266 Belo Horizonte 267 Os centros principais e as camadas de alta renda 270 O centro principal e a nova mobilidade territorial 277 O centro principal e as camadas populares 283 O centro do Recife 284 Capítulo 11 Os subcentros 293 A evolução dos subcentros 294 Rio de Janeiro 294 São Paulo 297 Porto Alegre e Belo Horizonte 300 O shopping center 302 Capítulo 12 Segregação e estruturação do espaço intra-urbano 311 Capítulo 13 Reflexões finais 327 O consumo e a estruturação do espaço intra-urbano 328 A segregação e o controle do espaço intra-urbano 334 Segregação, controle do Estado e ideologia 343 O controle do espaço intra-urbano e o controle do tempo 352 b •• Capítulo 6 Os setores industriais. A articulação espacial entre metrópole e região Este capítulo se detém sobre a localização industrial na metrópole brasileira. A simples observação indica que as grandes zonas industriais se desenvolveram ao longo das grandes vias regionais, inicialmente ao longo das ferrovias, depois tam- bém ao longo de rodovias. Isso pode ser observado em São Paulo, no Rio de Janeiro, em Salvador, em Porto Alegre e Belo Horizonte. Em várias dessas cidades as principais ferrovias e rodovias são muito próxi- mas umas das outras, e não é possível saber se houve, por parte das indústrias, op- ção por uma ou por outra. Em quase todos os casos, entretanto, as principais zonas industriais se desenvolveram junto às vias regionais mais movimentadas, ou seja, aquelas que estabeleciam as ligações regionais mais importantes. São Paulo é a metrópole brasileira mais interessante para estudar a localiza- ção industrial. Em primeiro lugar porque - ao contrário do Rio, Salvador ou Porto Alegre - apresenta rodovias e ferrovias separadas umas das outras e orientadas para diferentes direções, o que permite correlacionar melhor a localização industrial com o sistema viário regional e com vias específicas. Em segundo lugar, pela óbvia razão de ser a metrópole brasileira mais desenvolvida industrialmente. Em se tratando de estudo da indústria, é bom reiterar que nosso objeto de estudo é sempre a organização espacial intra-urbana e, para tanto, são irrelevantes as razões ou origens do desenvolvimento industrial da cidade estudada. Para a aná- lise do espaço intra-urbano é irrelevante saber se a industrialização de São Paulo originou-se do capital mercantil, da agricultura cafeeira, ou de qualquer outra ra- zão. Dado que a metrópole se industrializou, pergunta-se: por que as indústrias se ocalizaram da maneira como se localizaram, e não de outra maneira qualquer? Quais implicações disso para o espaço íntra-urbano? 135 Na análise das direções de crescimento urbano já foi abordada a articulação entre as espacializações da região e da estrutura intra-urbana. Mostrou-se que as direções preferenciais de crescimento são determinadas pela inserção regional da metrópole, ocorrendo nas direções nas quais são mais intensos os fluxos de trans- porte regional, o que se dá, via de regra, na direção da grande metrópole ou região mais próxima (desde que não excessivamente longe) da cidade ou metrópole con- siderada. Acidentes do sítio natural podem dificultar ou condicionar essa expan- são - como a de São Paulo na direção de Campinas, ou de Belo Horizonte para o sudeste. A Figura 28 mostra a distribuição das indústrias na Região Metropolitana de São Paulo em 1957, segundo levantamento de SAGMACS,Economia e Humanismo, por ocasião da chamada Pesquisa Lebret, conforme elaborações desenvolvidas por esse autor dois anos depois. Essa figura permite tecer as seguintes considerações sobre a metrópole paulistana: até a década de 1950 as indústrias, claramente, não se localizavam uniformemente ao longo das várias ferrovias. Houve um desenvolvi- mento industrial diminuto tanto ao longo da ferrovia na direção do interior (Campi- nas, interior do Estado, sul de Mato Grosso, etc. ) como junto às ferrovias (linha tronco e ramal) em direção ao Rio de Janeiro. A ferrovia para o Rio desenvolveu, como vi- mos, aquele que sempre foi o mais populoso setor urbano da metrópole. No entan- to, a zona Leste, do Brás a Mogi das Cruzes, atraiu pouquíssimas indústrias. A ferro- via para Campinas, por razões de topografia, atraiu pouca população e pouca indústria. Em contraposição, foi grande a concentração industrial na ferrovia em direção de Santos. Por quê? Com o advento das modernas rodovias, isso não mais ocorre. Prossegue, é verdade, o desenvolvimento industrial e demo gráfico junto à rodovia em direção a Santos, mas desenvolve-se também, e com grande velocidade, um enorme setor in- dustrial e demo gráfico ao longo da direção do Rio (via Dutra), formando aquilo que pode ser chamado de o primeiro setor complexo da megametrópole, pois parte de Guarulhos já atinge São José dos Campos e mesmo Taubaté. Pergunta-se: por que a ferrovia para o Rio não atraiu indústrias e a rodovia o fez? A resposta está exatamente na inserção regional-nacional, na verdade - da metrópole e nas transformações ocorridas no sistema nacional de transportes. Os transportes sempre foram, em qualquer modo de produção, os maiores modeladores do espaço, tanto intra-urbano como regional. Até a década de 1950, o porto de Santos desempenhava um papel de excep- cional importância no intercâmbio entre a indústria paulistana e o restante do país e mesmo com o mundo. Até essa década, assemelhava-se o Brasil a um arquipélago, tamanha a autonomia que tinham suas diferentes regiões, que, na verdade, eram "cercadas de água por todos os lados", pois quase todo o transporte que se fazia entre elas era pelo mar. AÁrea Metropolitana de São Paulo comerciava com o Brasil através de Santos, tanto naimportação de matérias-primas como na exportação de produtos industrializados. Os fluxos de transporte entre Santos e a metrópole eram excepcionalmente intensos. Junto às vias que atendiam a esses fluxos, as indústrias procuravam acesso ao país todo. Entretanto, a partir de 1950, uma rede de rodovias 136 ..... W-...l \ (, <: " IS, '< ~.!.~~:i~~~:~~ •• _ ••••• ;:'~~-:; •••• ..:.:.: • ,: •• : •• .Ô - 1.001$ lU" THAIJÂl.Hf) J)~ Pof'lVUCAÓ -'-, /, ', •••• , /II>__ I __ •• •••• , ••'" ••·_(ull"~ "~ C-3 ;;;:;;;;;;;-::.:;:::" . ,_t ...I'._....•,~.( 7i- :":':":S.::::;::'~:":rr •• -LJ ~!~: ~" ••••• ,•• ~•••- ~---",.". ~-3"<~~? ~;.",- Fonte: SAGMACS e Villaça 1960 Figura 28 - Área Metropolitana de São Paulo: localização de indústrias e locais de trabalho da população em 1957 .r pavimentadas começou a integrar o território nacional, e a via Dutra passou a ligar mais do que São Paulo ao Rio, o que já era suficientemente importante, mas também São Paulo ao Nordeste e a uma parte de Minas. A indústria, que antes privilegiava a direção de Santos, começou então a localizar-se também ao longo da via Dutra, a nova localização "próxima ao Brasil".Ao longo dessa rodovia e já agora extrapolando a área metropolitana oficial, instalou-se não só a indústria automobilística -:- a General Motors e aVolkswagen -, mas a nova indústria de ponta - a de guerra, a espacial, a eletrônica e a aeronáutica. As indústrias voltadas para a exportação, isto é, para o mercado extra-urbano, têm sua localização ditada por fatores também extra-urbanos. Isso vale não só para São Paulo, mas também para Belo Horizonte e Porto Alegre. Aproveitaremos a Figura 28 para aprofundar o estudo das relações entre as áreas industriais e o restante da estrutura metropolitana. Além das indústrias, a Fi- gura 28 mostra os locais de trabalho da população, em 1957, da seguinte maneira: • Bairros onde a maior parte da população trabalhava no centro principal; • Bairros onde a maior parte da população trabalhava no próprio bairro ou nos bairros próximos. Os primeiros acham -se assim agrupados: a maioria se concentra no quadrante sudoeste, que era - e ainda é, como veremos - a região de maior concentração dos bairros residenciais das camadas de mais alta renda (veja a Figura 29). Havia uma grande coincidência entre a área desses bairros e a área onde a maior parte da po- pulação trabalhava no centro. Em segundo lugar, há um pequeno agrupamento da- queles bairros na zona Norte. Essa zona, já em 1957, era a segunda maior concentra- ção de bairros de mais alta renda, embora muito menor e com muito menos ricos que o quadrante sudoeste. Finalmente, há alguns bairros onde a maioria da popula- ção trabalhava no centro - porém longe dele -, espalhados na zona Leste, que é a região de mais baixa renda da metrópole. Os bairros cuja população trabalhava em sua maioria no próprio bairro ou nos bairros vizinhos acham-se agrupados em áreas que coincidem quase exatamente com as zonas industriais: Ipiranga, ABC,Moóca, Belém, Tatuapé, Osasco, Jurubatuba (distrito industrial em Santo Amaro). É possível fazer então a seguinte análise: na época desta pesquisa, o centro era das camadas de mais alta renda. Nele se concentravam não só os empregos des- sas camadas, mas também seus profissionais liberais, seus lugares de diversão - cinemas, teatros, boates, restaurantes e lojas. A população de mais alta renda con- centrou-se no quadrante sudoeste, a partir do centro e junto a ele. Ao se afastar do centro - sempre no quadrante sudoeste -, manteve o acesso a ele por meio do melhor sistema de vias radiais da cidade - as avenidas Angélica, Consolação, Rebouças, Nove de Julho/Santo Amaro e Brigadeiro Luiz Antônio. Produziu desse modo, para si, a acessibilidade à sua principal concentração de empregos, de locais de compras e de serviços, além do local onde se instalaram os aparelhos do Estado e da Igreja. Assim se produziu a melhor localização possível para as burguesias mora- rem. Junto às indústrias, localizou-se a classe operária média baixa. Tal camada con- 138 - Fi1EI CLASSE K.tJ.A DA 1oIIDA, O ClASSE t.iÚl!A mrm ClASSE I.IrDIA EWXA E3 CLASSE BAIXA Fonte: SAGMACS e Villaça 1960 Figura 29 - Área metropolitana de São Paulo: distribuição das classes sociais em 1957 segue localizar-se junto ao local de emprego, mas tem de ficar longe do centro prin- cipal da cidade. Sem acesso - inclusive social e econômico - ao centro principal, essa classe desenvolve então subcentros de comércio e serviços para seu uso pró- prio. O subcentro é uma área pequena, com alta concentração diversificada e equi- librada de comércio e serviços. Todos os grandes subcentros - o de Pinheiros, de Santana, da Lapa, da Penha, de Santo Amaro, etc. - são populares. Eles não pos- suem a riqueza do centro principal nem a presença dos aparelhos do Estado. Essa localização ocupada pelas classes média e média baixa é a segunda melhor localiza- ção da cidade, pois fica longe do centro principal e perto do emprego. Finalmente, há aqueles que estão longe de tudo. Localizam-se em bairros afastados na zona Les- te, uma região com poucas indústrias; estão, portanto, longe do centro principal e longe do emprego industrial. Note-se que há, na zona Leste, vários bairros onde a maioria da população trabalha no centro, apesar de estar longe dele. É a região dos "derrotados" nessa competição espacial. Esse processo deu-se lentamente na pri- meirametade do século XX,período em que havia muita classe média na zona Leste (no Alto da Moóca, noTatuapé). Essa classe, porém, foi diminuindo, em termos rela- tivos, pois os bairros citados se mantêm até hoje como os únicos de classe média e média alta da zona Leste. O processo de "decadência" dessa zona prosseguiu e até intensificou-se depois da década de 1950. A zona Leste desenvolveu o maior subcentro da metrópole - o Brás "decaiu" com o empobrecimento da zona de que faz parte (veja capítulo 8, seção "São Paulo"). Ela também desenvolveu seus 139 subcentros de comércio e serviços, mas em menor número, se comparados, por exemplo, com os da região do ABC. A zona Leste tomou-se a grande região de con- centração das camadas de baixa renda da cidade, e a razão é a que se mencionou aqui. Ao longo das décadas, enquanto o ABC crescia como região operária de classe média, a zona Leste empobrecia e o Brás "decaía" como subcentro, ou seja, empo- brecia também e perdia suas grandes lojas e serviços. A partir da década de 1970, a quantidade de pobres começou a crescer na zona Sul de São Paulo - inclusive com o aparecimento dos miseráveis. Ocupando - "invadindo" - terras para morar, essas camadas miseráveis não mais têm que pagar pelo lugar de sua casa. Azona Sul tem sido a preferida para essas ocupações, e as favelas têm crescido bastante ali. Segundo Taschner (1996, 105) "o fenômeno da favela em São Paulo só vai se desenvolver em larga escala nos anos 70". Não foram obtidos dados sobre a distribuição espacial das favelas na Área Metropolitana de São Paulo. Entretanto, apenas os dados do município são suficientemente sugesti- vos e mostram o crescimento ocorrido na zona Sul. Segundo Taschner (idem, idib.) e Taschner eVeras (1990, 55, citando SEHAB), a participação da zona Sul no total de domicílios em favelas do município de São Paulo evoluiu da seguinte maneira: 28,86% em 1973; 48,37% em 1987 e 42,51% em 1993. Note-se que a queda de 1987 para 1993 não representa necessariamente declínio da zona Sul, pois em termos de área me- tropolitana essa queda pode representar crescimento fora dela - no ABC por exem- plo. De qualquer forma, o aumento de 28,86% em 1973 para algo em tomo de mais de 40% em 1993 é enorme. Isso vem ocorrendo em virtude de essa região estar mais próxima dos bairros das classes média e alta (na zona Sudoeste), onde estão os subempregos dos miseráveis - não só dos chefes de família, mas também dasmães, dos jovens e das crianças. Está mais próxima dos locais de subemprego de emprega- da doméstica, de lavador de automóvel, de ambulante, de flanelinha, de vendedor de rua, de mendigo, de assaltante, etc. O preço do terreno e da casa não pesa mais na escolha da localização como pesava antes; por isso, esses miseráveis preferem ocu- par terras na zona Sul, próximo ao quadrante sudoeste, do que na cada vez mais longínqua zona Leste. Temos então - e isto vale para as demais metrópoles - dois elementos da estrutura urbana, que são os mais poderosos na estruturação do espaço metropoli- tano no Brasil: as zonas industriais e a região de concentração dos bairros das cama- das de mais alta renda. Os demais elementos da estrutura interagem com eles evi- dentemente, pois tudo interage com tudo numa estrutura, mas são mais influenciados por esses dois elementos do que vice-versa. A fonte de seu poder está no grau de independência que desfrutam na escolha/produção de suas localiza- ções. A do primeiro elemento é determinada por forças externas à cidade; a do se- gundo elemento, pelos interesses de consumo das burguesias que, comandando o setor imobiliário urbano, decidem a escolha/produção de suas localizações residen- ciais. É a força intra-urbana que mais poderosamente influencia a estruturação do espaço metropolitano. Vamos nos dedicar agora a essa estruturação. Como sempre, nosso guia será a história. 140 - Capítulo 7 A segregação urbana As análises feitas até aqui já começaram a revelar a segregação como um processo fundamental para a compreensão da estrutura espacial intra-urbana. Como a segregação adquirirá cada vez maior importância no decorrer desta obra, convém desde já considerá-Ia com um pouco mais de atenção. Milton Santos (1993,96) define o conceito de sítio social observando que a "especulação imobiliária deriva, em última análise, da conjugação de dois movi- mentos convergentes: a superposição de um sítio social [grifo no original] ao sítio natural e a disputa entre atividades e pessoas por dada localização. (...) Criam-se sítios sociais, uma vez que o funcionamento da sociedade urbana transforma sele- tivamente os lugares, afeiçoando-os às sua exigências funcionais. É assim que cer- tos pontos se tornam mais acessíveis, certas artérias mais atrativas e, também, uns e outros, mais valorizados. Por isso são atividades mais dinâmicas que se instalam nessas áreas privilegiadas; quanto aos lugares de residência, a lógica é a mesma, com as pessoas de maiores recursos buscando alojar-se onde lhes pareça mais con- veniente, segundo os cânones de cada época, o que também inclui a moda. É des- se modo que as diversas parcelas da cidade ganham ou perdem valor ao longo do tempo". O conceito é útil tanto para a análise dos bairros residenciais produzidos pelas e para as burguesias, como também das áreas comerciais que elas igualmen- te produzem, também para si. Uma das características mais marcantes da metrópole brasileira é a segre- gação espacial dos bairros residenciais das distintas classes sociais, criando-se sí- tios sociais muito particulares. Nas páginas precedentes fizemos referências a esse aspecto. Nos próximos capítulos vamos aprofundar a questão, analisando inicial- mente a segregação dos bairros residenciais das camadas de mais alta renda. 141 Observando os mapas da distribuição territorial de classes sociais em nossas metrópoles (figuras 30 a 35), nota-se que a segregação das camadas de mais alta renda pode ser identificada em todas elas. Em todas as metrópoles aqui estudadas, vem-se desenvolvendo nos últimos cem anos mais ou menos (mais no caso do Rio, menos no caso do Recife) uma região geral na qual tendem a se concentrar crescen- tes parcelas de tais camadas. Em todas as metrópoles, exceto em Recife, essa ten- dênciajá produziu um setor da metrópole onde se concentra a maioria dos mem- bros dessas camadas. Embora a mesma tendência exista em Recife - como veremos adiante -, ela sofreu recentemente uma reviravolta, de maneira que Recife ainda exibe, hoje, dois setores com grande concentração de camadas de alta renda, sem que nenhum deles, isoladamente, detenha a maior parte dessas camadas. Entretan- to, a tendência de prevalecer apenas um setor é inequívoca, como veremos no capí- tulo 8, seção "Recife". Partindo dessas constatações, consideramos importante responder às se- guintes indagações: por que a forma de setores e não outra forma qualquer, inclu- sive a forma de bairros segregados, porém espalhados por diferentes locais do es- paço urbano? Por que a segregação se dá em determinados locais e não em outros quaisquer? As causas das localizações escolhidas pelas burguesias são específicas de cada cidade ou há causas gerais, comuns? Quais seriam elas? E, por fim, as per- guntas mais importantes: qual a razão da segregação? Seria a conveniência de mo- rar perto dos "iguais"? Seria a busca de prestígio e do status social? Seria a preserva- ção dos valores imobiliários? Com vistas a responder a essas perguntas - e outras que surgirão no decorrer da investigação -, serão analisados inicialmente o con- ceito de segregação e depois os processos concretos de constituição da segregação nas nossas metrópoles. o conceito de segregação Há segregações das mais variadas naturezas na metrópole brasileira, prin- cipalmente de classes e de etnias ou nacionalidades. Vamos abordar a segregação das classes sociais, que é aquela que domina a estruturação das nossas metrópoles. Tal como aqui entendida, a segregação é um processo segundo o qual diferentes classes ou camadas sociais tendem a se concentrar cada vez mais em diferentes re- giões gerais ou conjuntos de bairros da metrópole. Referindo-se à concentração de uma classe no espaço urbano, a segregação não impede a presença nem o crescimento de outras classes no mesmo espaço. Não existe presença exclusiva das camadas de mais alta renda em nenhuma região geral de nenhuma metrópole brasileira (embora haja presença exclusiva de cama- das de baixa renda em grandes regiões urbanas). Na melhor das hipóteses, pode haver tal exclusividade em bairros. É claro que há favelas na zona Sul do Rio e que o setor Sudoeste de São Paulo, onde se concentram as camadas de mais alta renda dessa metrópole, é pontilhado de bairros populares, os quais podem até conter a maioria da população em um setor de alta renda. Mais que isso: outras classes po- 142 - ••__ UJ,IITE DE WUN!CfPIO NORTE - C€NlRO ~ MfA EOIFlCADAEM 1987 EJJ C/oJJ.NJASDE AlTA RENDA EM 1991 - METR6-0D 87 FONTE: !.ImO 00 -87 IBCE. 1991 """"""""",,----IObl Figura 30 - Áreas metropolitanas de São Paulo. Áreas de grande concentração de camadas de alta renda dem estar presentes numa mesma região geral onde se concentram as camadas de alta renda e até crescer com velocidade maior que a velocidade de crescimento des- sas camadas. Se isso ocorrer, a participação dessas classes na região de concentra- ção da classe alta aumentará. Não importa. Nada disso altera a tendência à concen- tração das camadas de mais alta renda naquelas regiões. O importante é que o setor segregado detenha uma grande parte - talvez a maior - de uma dada classe, no caso a média e alta burguesias. O que determina, em uma região, a segregação de uma classe é a concentração significativa dessa classe mais do que em qualquer outra região geral da metrópole. ARocinha não é a região geral de maior concentra- ção de população de baixa renda do Rio, mas a zona Sul, apesar de todas as suas favelas, é a região geral de maior concentração das camadas de mais alta renda do Rio de Janeiro. O mais conhecido padrão de segregação da metrópole brasileira é o do cen- tro x periferia. O primeiro, dotado da maioria dos serviços urbanos, públicos e pri- vados, é ocupado pelas classes de mais alta renda. A segunda, subequipada e lon- gínqua, é ocupada predominantemente pelos excluídos. O espaçoatua como um mecanismo de exclusão. Para Lojkine (1981, 166), a segregação é uma manifestação da renda fundiária urbana, um fenômeno "produzido pelos mecanismos de formação dos preços do solo, estes por sua vez, determinados (...) pela nova divisão social e espacial do 143 D • ••~ AREA EDIflCAOA 01 1995 lIOIf!'[ CZJ CAJ.I..lOAS DE N..TAR[HIlA Elo! 1991 rOM'B: Jw.GD.I INPE. 1995 IPlA"iRIO,lSI!12...... """"" Figura 31 - Área Metropolitana do Rio de Janeiro. Áreas de grande concentração das camadas de alta renda ••13 AAUI [DIf1C.Io,[l,,\ 0.1 lilU ~ E:2] CNl.ADAS DE A1.TA RDf:)A, &I 1\1111 _ A'ttNOA DO cONlauro ___ WrTE DE NUHJCIFIO fONlE: eec DCJUQI~ Figura 32 - Área Metropolitana de Belo Horizonte. Áreas de grande concentração das camadas de alta renda 144 •••••~ ÁREA EDlACADA E~ HIQl NORI"[ EIIT.J ~ DE .lLT" RENOA EM 1991 - Ut.lllE DE t.fJNlclf'IO fONTB; t.lETROPlAN, 1981 !.lT-CEIPOT ESe.ll.AOIIAnc.I.:~.- •• Figura 33 - Área Metropolitana de Porto Alegre. Área de grande concentração das camadas de alta renda, 1986 o ~~ •§ ?RfA E01ACAD.\ E\I 1989IIJJ CAW.DAS DE ALTA RENDA DoI 1991 reNTE: COHOER 111811, IBCE ~~ Figura 34 - Área Metropolitana de Salvador. Área de grande concentração das camadas de alta renda, 1991 145 ••N"''''' ~ MEA EDIRCADA E" 1987 [;J CAh.lADASDE AL;A RENDA EM 1991 - U~JT'E DE MUNICIPIO FONTE: 18GE gSCAlA GRÂflCA: Figura 35 - Área Metropolitana do Recife. Áreas de grande concentração das camadas de alta renda trabalho". Essa idéia refere-se a um conceito e a uma manifestação muito amplos de segregação: aquela que divide a metrópole em centro e periferia. Numa visão mais detalhada, ela não resiste a um teste empírico. Lojk.ine não esclarece como a segregação é produzida, mas presume-se que, no final, as classes de mais alta ren- da fiquem com a terra mais cara e as de mais baixa renda, com a mais barata. Essa tese já foi derrubada com vários casos empíricos, desde o chamado "paradoxo de Alonso" (Alonso, W, 1965) referente às cidades americanas. Entre nós, nem sem- pre as camadas de alta renda moram em terra cara (no que diz respeito ao preço unitário do metro quadrado), mas em geral é isso que ocorre - de frente para o mar em Boa Viagem ou no Leblon; Higienópolis, em São Paulo; Campo Grande, em Salvador, Piedade, em Recife; Moinhos de Vento, em Porto Alegre; Lourdes, em Belo Horizonte por exemplo. Entretanto, a alta renda também ocupa terra barata na periferia, na Granja Viana ou Alphaville, em São Paulo, ou no Recreio dos Ban- deirantes, no Rio. Nesse sentido, portanto, não é rigorosamente verdadeiro que o preço da terra determina a distribuição espacial das classes sociais. Ficaríamos 146 • um pouco mais próximos (mas ainda não totalmente) da verdade se afirmásse- mos que os terrenos mais caros são ocupados pelas camadas de alta renda, pois na periferia de metro quadrado barato a alta renda ocupa terrenos grandes ou, em se tratando de condomínios verticais, grandes quotas ideais de terreno. Finalmente, deve-se considerar que a classe média também ocupa terra cara no que se refere ao preço do metro quadrado de terreno, consumindo pouca terra per capita ou por família, como em Copacabana, no Itaim ou Moema, ambos em São Paulo. Ainda segundo Lojkine (op. cit. 167), um submercado específico, constituído pelos imóveis de escritórios, poderia, através do jogo dos preços do solo, "adquirir rapidamente um papel motor, determinante, na formação dos preços imobiliários para o conjunto do centro das grandes metrópoles e garantiria assim uma segre- gação econômica e social quase automática das funções e das classes sociais que conseguem residir no centro". Lojkine distingue três tipos de segregação urbana: 1) uma oposição entre o centro, onde o preço do solo é mais alto, e a periferia; 2) uma separação crescente entre as zonas e moradias reservadas às camadas sociais mais privilegiadas e as zonas de moradia popular; 3) um esfacelamento generali- zado das funções urbanas disseminadas em zonas geograficamente distintas e cada vez mais especializadas: zonas de escritórios, zona industrial, zona de moradia, etc. Esses três tipos de segregação não são excludentes. Neste trabalho, vamos pri- vilegiar o segundo tipo porque, como esperamos mostrar, ele e a formação das zonas industriais são as principais forças atuantes sobre a estruturação do espaço metropolitano no Brasil. A sociologia americana derivada da Escola de Chicago e aquela que Castells (1978, 204) chama de "tradição de sociologia empírica" norte-americana afirmam que a "segregação ecológica" procede do fato de os habitantes da cidade serem dife- rentes entre si e interdependentes (Gist e Fava, 1968, 159). Ainda segundo esses au- tores (idem, ibid), "na luta pela posição social e por uma conveniente implantação espacial dentro da cidade, tais diferenças e interdependências contribuem para determinar que espaço as pessoas consideram desejável e até que ponto lhes é possível obtê-Io. O resultado é a segregação ecológica, ou seja, a concentração, dentro de uma mesma área residencial, de pessoas que reúnem características se- melhantes entre si". É curioso que, embora se trate nitidamente de um processo de classe, esses autores insistem em falar de "pessoas" ou indivíduos. Prosseguem eles (idem, 160), distinguindo a "segregação voluntária" da "involuntária". A pri- meira "se produz, quando o indivíduo, por sua própria iniciativa, busca viver com outras pessoas de sua classe". A segregação involuntária ocorreria quando o "indi- víduo ou uma família" se vêem obrigados, pelas mais variadas forças, a morar num setor, ou deixar de morar num setor ou bairro da cidade. Nesse sentido, a segrega- ção dos excluídos na periferia das metrópoles brasileiras seria uma segregação involuntária. O que cabe registrar nessas considerações é o caráter de luta da se- gregação. Trata-se, entretanto, de uma luta de classes. Se há luta, há, evidente- mente, vitoriosos e derrotados. Os primeiros desenvolvem a segregação voluntá- ria e os segundos, a involuntária. Na verdade, não há dois tipos de segregação, mas 147 um só. A segregação é um processo dialético, em que a segregação de uns provoca, ao mesmo tempo e pelo mesmo processo, a segregação de outros. Segue a mesma dialética do escravo e do senhor. A Ecologia Fatorial dos anos 60 realizou inúmeros estudos sobre segregação. Todos, entretanto, preocupados em medi-Ia, e não em explicá-Ia.' Dessas considerações vamos reter duas questões: primeiramente a segrega- ção deriva de uma luta ou disputa por localizações; esta se dá, no entanto, entre grupos sociais ou entre classes. No primeiro caso refere-se, por exemplo, à segrega- ção étnica ou por nacionalidades, como a dos orientais na Liberdade, ou a dos ju- deus em Higienópolis, em São Paulo. A dimensão de luta aparece quando se intro- duz a segregação por classe. Neste segundo caso, por exemplo, é irrelevante a etnia dos que ocupam a área central de São Paulo e passa a ser relevante a segregação por classe. Os que ocupam a área central estão, por exemplo, impedindo que ela seja ocupada pelos mais pobres, que estão na periferia ou nas favelas afastadas. A segre- gação entre centro e periferia pode ser considerada uma segregação por classes. Claro que há muita periferia no centro evice-versa (Milton Santos, 1979,59), mas de maneira geral essa dicotomia corresponde à verdade. Vamos nos preocupar com a segregação por classes, uma vez que é a que tem as implicações mais profundas sobre a estrutura urbana, como veremos. A segunda questão para reflexão refere-se ao porquê da luta. Para a ecologia humana, a luta seria pela "posição social e por uma conveniente implantação espa- cial dentro da cidade". Grande parte deste livro tem o objetivo de esclarecer esses motivos. O primeiro motivo não nos parece nem muito complexo, nem muito im- portante. Quanto ao segundo,o que se procura ao lutar por uma "conveniente im- plantação espacial dentro da cidade"? Nesse sentido, Castells avança um pouco. Para Castells (1978, 203 e 204), a distribuição das residências no espaço pro- duz sua diferenciação social e há uma estratificação urbana correspondente a um sistema de estratificação social e, no caso em que a distância social tem uma forte expressão espacial, ocorre a segregação urbana. Segundo ele, "em um primeiro sentido se entenderá por segregação urbana a tendência à organização do espaço em zonas de forte homogeneidade social interna e de forte disparidade social en- tre elas, entendendo-se essa disparidade não só em termos de diferença como tam- bém de hierarquia". Se combinarmos esse pensamento com outro do mesmo au- tor, teremos a chave para a compreensão do papel da segregação. Diz ele ainda (idem, 141) que "toda a problemática social tem sua origem entre esses dois ter- mos (natureza e cultura) através do processo dialético mediante o qual uma espé- cie biológica particular (particular, posto que está dividida em classes), o 'homem', se transforma e transforma seu meio ambiente em sua luta pela vida e pela apro- priação diferenciada do produto de seu trabalho". Em grande parte, este livro pre- tende investigar como se dá a apropriação diferenciada do espaço urbano enquanto produto do trabalho humano. Destaque-se a menção de Castells à tendência. Ela decorre do fato de, segun- do esse autor, toda cidade ser um entrelaçamento histórico de várias estruturas so- 148 ciais e de toda sociedade ser contraditória, ou seja, fruto da ação de várias forças atuando em diferentes direções. Castells fala em "áreas de grande homogeneidade interna". Copacabana tem homogeneidade interna? Essa é uma forma incorreta de expor a questão. Ela não se refere a uma tendência. Copacabana tende a ter homogeneidade interna? Diante da primeira pergunta - a forma errônea -, pode-se até ficar em dúvida, mas diante da segunda é mais fácil responder afirmativamente. O processo socioespacial por que passou Copacabana por volta da década de 1940 destruiu a homogeneidadee im- plantou outro processo tendendo a uma nova homogeneização. No atual estágio deste processo, acreditamos ser válido dizer que, embora Copacabana esteja hoje mais heterogênea do que em 1930, ela está tendendo a uma nova homogeneização. A consciência de que a segregação é processo, é tendência, é pois fundamental. Quando Castells, discorrendo sobre a organização do espaço, fala em "homogeneidade interna", está se referindo obviamente a uma área, a uma unidade espacial no interior da qual ocorre a homogeneidade. Que área é essa, como identificá-Ia ou escolhê-Ia? É útil nesse momento o conceito de bairro, que existe ainda em grande quantidade nas metrópoles brasileiras. Nossos bairros tendem a uma homogeneidade social muito grande. Entretanto, a partir da década de 1970, com a proliferação das favelas em áreas ocupadas, a "homogeneidade interna" de muitos bairros de nossas metrópoles ficou comprometida. O que se pretende explo- rar com essa questão é o tamanho da" área homogênea" ou a forma de seu traçado. Se uma favela invade o interior de um bairro tendente à classe média ou média alta, duas situações são possíveis, ambas ligadas à questão da delimitação da área segregada, ou melhor, à área tendente à segregação. Na primeira situação, traçar-se- ia um perímetro que englobasse ambas as áreas, delimitando-se assim uma única área, a qual evidentemente não tenderia à homogeneidade interna. Dir-se-á que a área traçada não tende à segregação, mas sim à heterogeneidade. Na segunda situa- ção, traçar-se-iam duas áreas, uma dentro da outra. Neste caso, haveria duas áreas, ambas tendentes à segregação. Queremos evitar questões desse tipo, através da idéia de tendência e da de região geral da cidade. Em primeiro lugar, vamos esclarecer porque a idéia de se- gregação pode estar eventualmente comprometida com a idéia de homogeneidade total e também com a idéia de "estado", ou seja, uma idéia estática, e não de pro- cesso. É enquanto estado que, acreditariam alguns, ela não existiria em muitas metrópoles do Brasil. Já ouvimos dizer, por exemplo: "Esse negócio de segregação é coisa de São Paulo. No Rio ou Salvador, o que há é mistura". Essa comparação é radical e incorreta, pois pressupõe um limite rígido, arbitrário e falso, que divide o estado de segregação do estado de não-segregação. Há, portanto, dois reparos - no mínimo - a serem feitos nessa colocação. Seria necessário fixar (congelar) o tempo e depois relativizar (mais que, menos que) a colocação. "Hoje, no Rio ou em Salvador há mais mistura do que em São Paulo." Não se trataria de indagar se em São Paulo há ou não segregação, mas saber se ela é maior ou menor que no Rio ou em Salvador. De qualquer maneira, independentemente disso, como veremos, não 149 há diferença significativa de segregação entre Rio, São Paulo e Salvador. Em se- gundo lugar, vamos destacar - e explicar o porquê - a segregação por região ge- ralou conjunto de bairros da metrópole, em oposição à segregação por bairro. O importante é entender por que os bairros das camadas de mais alta renda tendem a se segregar (os próprios bairros) numa mesma região geral da cidade, e não a se espalhar aleatoriamente por toda a cidade. Essa questão é fundamental e nela está a chave para a compreensão do processo de segregação. Se o principal móvel da segregação fosse a busca de posição social, do status, da proteção dos valores imo- biliários, ou proximidade a "iguais", bastaria haver a segregação por bairro (área de forte homogeneidade interna, passível de um sentido de hierarquia); uns ao norte, outros a oeste, outros a leste e outros ainda ao sul da metrópole. Isso não ocorre, porém. A tendência é de os próprios bairros se segregarem numa mesma região geral da metrópole. Por quê? Merecem registro as pesquisas de Pinçon-Charlot et alli (1986) sobre segrega- ção na região parisiense. Suas investigações, entretanto, não têm por objetivo mer- gulhar na compreensão das forças sociais que levam à segregação, nem seu papel, mas sim constatar uma correlação entre a segregação e a ação do Estado na produ- ção de equipamentos coletivos." A tônica dos estudos sobre segregação incidem ou no mecanismo de defesa - caso das segregações étnicas, por exemplo -, ou na busca de prestígio e de status. Incluem-se aí as chamadas "social áreas", analisadas pela ecologia americana das décadas de 1950 e 1960. As causas profundas da segregação por classes, porém, são surpreendentemente pouco estudadas. Menos estudada ainda é a explicação da- quilo a que chamaremos de macrossegregação, ou seja, a segregação por regiões da cidade e não por bairros. O exemplo clássico da macrossegregação analisado pela quase-totalidade dos estudos é a organização espacial segundo centro e periferia, cuja explicação e conteúdo de classe parecem tão óbvios que não estimulam muito a busca de explicações. Essa organização, note-se, se dá de acordo com círculos con- cêntricos. A análise da estrutura espacial intra-urbana segundo setores de círculo, que serão aqui enfatizados, faz aparecer um aspecto até agora negligenciado pelos estudiosos. Esse padrão de segregação aparece com enorme importância e poten- cial explicativo e revela a natureza profunda da segregação. A segregação é um pro- cesso necessário à dominação social, econômica e política por meio do espaço. Essa é uma das mais importantes conclusões desta obra. Resumindo: a maioria das análises sobre segregação parte de um espaço urbano dado, que é melhor, seja qual for o motivo, e por isso atrai os mais ricos, os que possuem mais prestígio, poder e status. Nos casos em que não há atributo natural especial, não cogitam como esse espaço melhor foi produzido - transfor- mado em melhor. No caso em que mostram essa produção - como o de Pinçon- Charlot -, limitam-se a constatar uma correlaçãoentre a classe social que ocupa determinada região e os equipamentos públicos de que ela é dotada. As posições que afirmam ser a segregação um produto "do mecanismo de formação de preços do solo" (Lojkine, supra) estão na incômoda posição de ter de demostrar essa tese, 150 _ASM já que é mais provável que a verdade esteja no lado oposto: os preços do solo é que são fruto da segregação. Harvey, sem fazer análise específica da segregação, mas fazendo uma aguda investigação sobre o significado e o papel do espaço urbano, apresenta uma contri- buição fundamental para seu estudo ao relacionar as localizações intra-urbanas com os rendimentos ("income") das pessoas. Harvey dá a essa expressão um conceito muito amplo, concebendo renda como o "comando sobre os recursos sociais escas- sos" (1973,53). O autor afirma que "changes in the spatial form ofthe city and changes in the social process operating within the city bring about changes in an individual's income" (idem, 54). Propõe-se então a estudar como isso ocorre. Argumenta que "o processo social de determinação do salário é parcialmente modificado por mudan- ças na localização das oportunidades de emprego (por categorias) comparadas com mudanças em oportunidades residenciais (por tipo)" (idem ibid.). * Harvey aponta a segregação como um mecanismo de extorsão e deixa implícita a dominação. Campanário (1981, XV) conclui que "the process of exploitation oflabor force involves not only the extraction of surplus value, but also a series of extortions outside the working place. Underlying these extortions is the process of social segregation of the population in space via the land market mechanism". A conclusão é similar à de Harvey. Vetter e Massena (1981), tal como Pinçon-Charlot, correlacionam a segrega- ção com o poder político e econômico e o papel desses poderes na pressão sobre o Estado, de modo a promover uma distribuição desigual dos investimentos em infra- estrutura. Desenvolvem, então, uma "teoria de um processo de causação circular" um tanto mecanicista. Esse processo - e não a luta de classes em torno dos benefí- cios do espaço produzido - determinaria a estrutura interna das cidades. A relação entre a segregação e a possibilidade de apropriação de vantagens econômicas está indicada. A questão do domínio dos tempos de deslocamento - para nós, vital - aparece em Harvey apenas quando ele correlaciona os salários com a localização "de oportunidades de emprego". Essa argumentação - o desta- que à localização de oportunidades de emprego - deixa claro que, ao falar em lo- calização, Harvey o faz em relação ao tempo de deslocamento e não à disponibili- dade de infra-estrutura. Não tem sentido falar em localização de oportunidades de empregos, entendendo localização como se fosse caracterizada pela disponibi- lidade de infra-estrutura; a não ser a de transporte, que está ligada ao tempo de deslocamento. Vamos explorar as pistas dadas pelos três últimos autores - Harvey especialmente - e analisar como ocorre a dominação por meio do espaço e o papel do controle ou domínio dos tempos de deslocamento nessa dominação. Por outro lado, toda extorsão tem um fim último de bem-estar ou de natureza econô- mica. Entretanto, ela não prescinde de expedientes de natureza política e ideoló- gica. Então, faz-se necessário investigar os aspectos ideológicos, econômicos e *"... the social process ofwage determination is partly modified by changes in the location of employment opportunities (by categories) compared with changes in residential opportunities (by type)." 151 políticos da dominação e da extorsão através da produção da estruturação espaci- al intra-urbana. A visão de segregação mais próxima da que aqui adotamos - inclusive rela- cionando-a com a compreensão da estruturação urbana - é dada por Short (1976, 78), quando procura encarar os padrões espaciais como produto da estrutura so- cial, ou seja, "to define what is meant by social structure and to develop concepts appropriate to deal with urban structures and segregation patterns. We can now attempt to view these as the result of a specific conjuncture of economic, political and ideological systems articulated in a social formation". Caldeira (1992) atualiza e especifica o conceito de segregação numa ótica antropológica (diferente, portanto, da nossa) para São Paulo na década de 1980. Numa rica análise dos condomínios fechados, propõe-se a "demonstrar a necessi- dade de refazer o mapa cognitivo da segregação social na cidade, atualizando as referências nos termos pelos quais são entendidas sua vida cotidiana e relações sociais. Argumentarei que a extensão das mudanças é tal que, a não ser que modifi- quemos a maneira pela qual concebemos a encarnação da discriminação social na forma urbana, não poderemos compreender os atuais predicados da cidade. Em segundo lugar, desejo sublinhar as mudanças e seus instrumentos a fim de argu- mentar que eles constituem, na esfera do ambiente construído, a mesma constru- ção de estereótipos e classificações simplistas constituídas nas narrativas do cri- me; estratégias de segregação, de reordenação e de reconfiguração do que seria a norma. As narrativas de crimes revelam a mesma obsessão em erguer barreiras sociais manifestada pelos residentes na construção de muros e cercas para enclausurar suas casas e vizinhanças. É enquanto corporificação de novas estra- tégias de segregação, forjadas no contexto de maior proximidade de diferentes gru- pos sociais, crise econômica, incertezas e medo do crime, que devemos ler a nova cidade de muralhas". * É interessante destacar uma dimensão espacial importante da visão de Caldei- ra: a maior proximidade entre diferentes grupos sociais. Aobsessão de construir mu- ros e cercas fechando os bairros dos mais ricos ocorre não só num momento de incer- teza econômica e de medo da criminalidade, mas também quando os mais ricos começam a ficar mais próximos dos pobres e miseráveis excluídos, ou seja, quando os ricos começam a ir para a periferia. Note-se, contudo, que essa maior proximidade dos ricos aos pobres excluídos não nega a existência de segregação . • "...to demonstrate the need to remake the cognitive map of social segregation in the city, updating the references in terms of which its everyday life and social relationships are understood. I shall argue that the extent of change is such that unless we modify the way in which we conceive of the embodiment of social discrimination in urban form, we cannot understand the city's present predicament. Second, I want to stress the changes and their instruments in order to argue that they constitute at the levei of the constructed environment the same construction of stereotypes and simplistic classification constituted in the narratives of crime: strategies af segregatian, of re-ordination and of re-figuration of the proper. Narratives of crime reveal the same obsession with building social barriers as the residents display in the construction ofwalls and fences to enclose their houses and neighborhoods. It is as the embodiment of new strategies of segregation, forged in a context of greater proximity of different social groups, econornic crisis, uncertainty and fear of crime, that we should read the new city of walis." 152 •.. Os setores A constatação de que a estruturação espacial básica da metrópole brasileira tende a se realizar segundo setores de círculo, mais do que segundo círculos con- cêntricos, facilmente nos traz à mente um processo espacial urbano bastante co- nhecido mesmo pelos leigos: o de que os bairros residenciais de alta renda "andam" ou "deslocam-se" sempre na mesma direção. Dessa maneira formam, evidentemen- te, um setor, e não uma coroa de círculo. No Rio, por exemplo, esses bairros começa- ram (mas não se limitaram a esse setor) na Glória e no Russel, depois foram para o Flamengo-Catete, para Botafogo, Copacabana, Leblon,Ipanema, São Conrado, Bar- ra, etc. Não se deve pretender ver precisão matemática nessa seqüência. Em São Paulo, partiram de Campos Elíseos, foram para Higienópolis eVila Buarque, depois para a avenida Paulista, Jardim América eAlto de Pinheiros, Morumbi, Jardim Leonor, Jardim Guedala, Granja Viana, Alphaville, etc. - também aqui a seqüência pode não ser precisa; nem por isso deixa de ser verdadeira. Também as indústrias tendem a se desenvolver num sentido radial. Em São Paulo - a melhor metrópole para exemplificar esse caso -, as indústrias começaram no Brás e na Moóca, depois, em direção a Santos, foram para aVila Prudente e Ipiranga, São Caetano, Santo André e Mauá. O mesmo ocorre ao longo da Dutra. No caso das indústrias, esse caminha- mento ainda é compreensível, pois elas seguiam a ferrovia e hoje seguem rodovi- as. E no caso das residências? A essência do sentido radial- e portanto dos setores - é a necessidade de manter o acesso ao centro da cidade. Há outros fatores, porém. O "peso espacial" da atividade - moradia, comércio ou indústria - também conta na otimização do acesso ao centro. Quanto mais restrita espacialmente a atividade, maior sua ten- dência de se concentrar num setor. A residência de alta renda, as grandes indústrias e o comércio médio e grande são atividades espacialmente minoritárias em face das áreas residenciais de classe média e abaixo da média e das enormes "poeiras" de pequenas indústrias, oficinas e pequeno comércio. O deslocamento das nossas burguesias segundo setores e não círculos con- cêntricos decorre também de suas diminutas dimensões e do enorme desequilíbrio entre as classes sociais existente no Brasil. Nos países do Primeiro Mundo, as classes médias são enormes, constituem a maioria da população e não só formam círculos concêntricos, como se deslocam- mais ou menos igualmente, mantendo, assim, o padrão de círculos concêntricos. Vimos no capítulo 2, seção "Abordagens do espaço intra-urbano e regional" como Schteigart e Torres descrevem a posição das classes médias argentinas em torno do centro de Buenos Aires, uma metrópole que tem urna estratificação social mais próxima das do Primeiro Mundo do que as nossas. Citam o grande desenvolvimento da classe média argentina a partir da Primeira Guerra Mundial e relatam que ela ocupa um amplo leque em torno do centro (Buenos Aires tem apenas 180 graus de área de expansão, daí o "leque", e não o círculo). Nes- sas situações, desenvolve-se uma forte simbiose entre essas classes e o centro, am- os se reforçando mutuamente e mantendo suas localizações. Essa simbiose man- 153 tém a vitalidade do centro - que, afinal, depende da freguesia representada pelas classes média e acima da média - e essa vitalidade mantém a permanência dessas classes próximas ao centro. Vamos aproveitar esta oportunidade para adiantar algumas considerações sobre a relação entre a estratificação social, o desenvolvimento de setores de círculo x círculos concêntricos, a chamada "decadência do centro" e o afastamento dele, por parte das classes média e média alta. Toda grande metrópole tem uma parte do seu centro ocupada por classe média alta e pela alta: Quinta Avenida e a ParkAvenue, em Nova Iorque; Ile de Saint-Louis, em Paris, etc. Entre nós, as dimensões dessas classes são tão pequenas que elas não conseguiram formar uma coroa, nem mesmo um leque, em torno do centro. Mantiveram com ele tão-somente um pequeno pon- to de contato. Em São Paulo, esse ponto foi representado pelas rua São Luiz, pelos fundos da escola Caetano de Campos e as ruas Martins Fontes eVieira de Carvalho. No Rio, por Santa Teresa. Em virtude de sua complexidade como metrópole, São Paulo é a que melhor se presta a esse tipo de análise. Apartir de um ponto de conta- to com o centro, essas classes se expandiram num setor de círculo por bairros próxi- mos ao centro - mas não encostados ou dentro dele -, como Higienópolis e Pacaembu. Também a classe média ocupou áreas centrais e contíguas ao centro: Campos Elíseos (rua Barão de Limeira), Vila Buarque e Santa Cecília. Aqui nova- mente suas diminutas dimensões impediram o desenvolvimento de fortes relações mútuas com o centro. Essas classes não geraram uma simbiose com o centro com- parável àquela que existiu e se mantém em Buenos Aires, por exemplo, ou nas cida- des do Primeiro Mundo. Elas romperam com o centro. Esse rompimento, embora sem dúvida existisse, não era tão sério até por volta da década de 1970. A partir de então, outro fator especificamente brasileiro colaborou inegavelmente para agravar essa ruptura e aniquilar a frágil simbiose centro-classes média e média alta centrais: a tomada do centro pela violência, mais do que sua tomada pelos miseráveis. Essa foi a gota d'água que fez com que as classes média e média alta abandonassem defi- nitivamente o centro, abrindo suas portas para a entrada dos miseráveis e dos am- bulantes. A tomada do centro é mais efeito do que causa do abandono do centro por parte das classes média alta e alta. Assim, regiões como as das ruas São Luiz e Martins Fontes e a dos fundos da escola Caetano de Campos, citadas acima, foram abando- nadas por essas classes nos anos 70, principalmente por causa da violência urbana que em nossas metrópoles atingiu níveis muito mais graves do que os de Buenos Aires ou das metrópoles primeiro-mundistas. Voltaremos a falar do centro num ca- pítulo específico. Voltemos à formação dos setores de círculo. Além das áreas industriais, as grandes áreas comerciais se desenvolvem segundo longas radiais (o eixo Copacababa- Leblon ou as longas vias comerciais, por exemplo). Essas formações lineares, aliás, mostram de maneira eloqüente o papel decisivo que a acessibilidade ao centro e o transporte do ser humano desempenham na estruturação intra-urbana. É essa linearidade - associada aos sistemas viários fortemente radiais que predominam em nossas metrópoles - e ainda o desnível social entre classes e a 154 enorme dimensão das camadas populares e miseráveis que levam nossas metrópo- les a apresentar destacado padrão espacial segundo setores de círculo. Quanto me- nos acentuada a estratificação social de uma metrópole, maior a tendência à sua organização segundo círculos concêntricos. Se nossa sociedade apresentasse uma estratificação social mais uniforme, mais semelhante a muitas metrópoles do Pri- meiro Mundo, nossas metrópoles apresentariam um espaço também mais homo- gêneo e mais próximo a círculos concêntricos. *Mesmo a participação da classe mé- dia em nossa estrutura social é muito pequena. Assim sendo, a organização espacial das classes segundo setores de círculo permite, como veremos no último capítulo, maior controle do espaço, através do controle do mercado imobiliário (deslocando o centro principal, por exemplo), do Estado e da Ideologia - maior do que seria numa eventual segregação segundo círculos concêntricos. Aproximamo-nos então, em primeiro lugar, do padrão de segregação segundo uma única região geral da metrópole e, em segundo lugar, da segregação segundo setores de círculo. Desen- volveremos mais essas idéias no final desta obra. / J ~ Notas 1. Para um exemplo brasileiro da Ecologia Fatorial, ver: MORRlS, Fred B. ''Ageografia social no Rio de Janeiro: 1960". ln: Revista Brasileira de Geografia,Rio de Janeiro, ano 35, n.1,jan.lmar. 1973.3-69. 2. A equipe constituída por Monique Pinçon-Charlot, Edmond Preteceille e Paul Rendu tem aparentemente uma preocupação política em suas investigações, e não geográfica ou sociológica. A ênfase de suas pesquisas não está na compreensão da segregação; está em mostrar a existência de uma correlação entre classes sociais, segregação e equipamentos coletivos. Visam mostrar que a ação do Estado na produção de equipamentos coletivos privilegia as áreas de mais alta renda, como mostra o próprio título de sua obra aqui citada: Ségrégation urbaine: classes sociales et équipements collectifsen Région Parisienne. Essa correlação certamente existe no Brasil. Nesta obra procuramos desvendar por que a segregação facilita - na verdade possibilita - a ação do Estado em favor das camadas de mais alta renda. Veja a bibliografia . • As porcentagens do total de chefes de domicílio ganhando mais que vinte salários-mínimos - e que corresponde grosseiramente, porém de maneira totalmente adequada aos fins deste trabalho, ao que estamos chamando de burguesias ou camadas de alta renda - sobre o total de domicílios era a seguinte em 1991: 5,47% na Área Metropolitana de São Paulo; 3,82% na de Belo Horizonte; 3,66% na do Rio; e 3,29% na de Salvador. Fonte: IBGE, Censo de 1991. 155
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