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ATO DE SERVIÇO E SUAS CONOTAÇÕES ADMINISTRATIVA E PENAL MILITARES* Antônio Pereira Duarte Procurador de Justiça Militar da União/MG Antonio.duarte@mpm.gov.br “Cabe ao militar a responsabilidade integral pelas decisões que tomar, pelas ordens que emitir e pelos atos que praticar (Estatuto dos Militares do Brasil– art. 41)”. SUMÁRIO: I – Introdução; II – Conceito de Militar; III – Distinção entre o Ofício das Armas e outras Profissões; IV – Ato de Serviço – Conceituação e Natureza Jurídicas; V – Repercussão do Ato de Serviço na Seara Administrativa: a) Aspectos Gerais; b) Reflexos Negativos e c) Reflexos Positivos; VI – O Trato da Improbidade Administrativa Militar no Brasil. Lei nº 8.429/92. Apuração da Conduta Desviante do Militar; VII – Ato de Serviço e seus Reflexos no âmbito Penal: a) Aspectos Gerais; b) Crimes Propriamente Militares; c) Crimes Funcionais; d) Reconhecimento de Qualificadoras, Agravantes e Atenuantes; e – Excludentes de Crime e Exculpantes em razão do Ato de Serviço; f) Fixação da Competência da Justiça Militar; h – Crimes Dolosos Contra a Vida praticados por Militar contra Civil: Competência do Tribunal do Júri. Posição do STF pela Constitucionalidade da Lei 9.299/96. Conseqüências em relação ao crime praticado em decorrência de Ato de Serviço. Nova Orientação da Emenda Constitucional nº 45/2004; VIII - A independência das Instâncias Penal, Administrativa e Cível. Efeitos da Sentença Penal Absolutória no Cenário Administrativo-Militar. Resíduo Administrativo e Poder-Dever de Imposição da Pena Disciplinar; IX – Considerações Finais. * Texto de Palestra a ser proferida aos Oficiais Generais do Estado Maior da República de Angola, no dia 23 de julho de 2008. I - Introdução O exercício da atividade militar acarreta uma grande soma de conseqüências jurídicas quer no campo penal, quer no campo administrativo, seja ainda no contexto cível. É que tal profissão ostenta peculiaridades absolutamente inexistentes nos demais segmentos laborais, sendo forçoso reconhecer que o profissional das Armas merece mesmo um tratamento à parte. Isto justifica, por exemplo, que haja todo um arcabouço jurídico específico e diferenciado, contemplando os comezinhos aspectos que tangenciam o desempenho funcional castrense. Há um estatuto dos militares, assim como existe um regulamento disciplinar próprio, com regras que tratam desde os princípios nucleares da carreira militar até os efeitos jurídicos decorrentes da violação aos referidos regramentos. A simples condição de militar, por exemplo, já gera significativos reflexos, posto que, a teor dos dispositivos contemplados nos regulamentos disciplinares, o servidor especial da pátria na dicção do estatuto, há de ter comportamento irrepreensível tanto na vida civil quanto militar. Qualquer ato que pratique extramuros do quartel que venha a macular a ética ou o pundonor militares, certamente que ocasionará a imposição de sanções demarcadas nos diplomas retrocitados. Daí a razão de estar definido no Estatuto dos Militares brasileiros, como preceitos de ética militar, o proceder de maneira ilibada na vida pública e na particular, bem como o conduzir-se, mesmo fora do serviço ou quando já na inatividade, de modo que não sejam prejudicados os princípios da disciplina, do respeito e do decoro militar. Quando investido de uma missão ou encarregado de um determinado serviço, o militar passa, por assim dizer, consoante a natureza intrínseca do serviço a desenvolver, a incorporar o próprio espírito patriótico. Assim, ao ser convocado para o combate frente ao inimigo, estará efetivamente defendendo a soberania nacional. No cotidiano castrense, por sua vez, em tempo de paz executará inúmeras tarefas de inegável valor, que constituem a argamassa da organização e preparo das Forças Militarizadas, contribuindo, deste modo, para o fortalecimento da coesão que deve fecundar, permanentemente, nos seios militares. O amor à profissão das armas e a vontade inabalável de cumprir o dever militar traduzem valores indissociáveis ao cotidiano castrense, devendo permear todos atos de serviço. Tais atos de serviço ou em serviço produzem ou podem produzir efeitos jurídicos próprios, conforme a área para a qual o foco de incidência restou projetado. É neste particular campo de efeitos 2 jurígenos que versará a presente abordagem, cuja relevância tanto mais se amplia na medida em que se observa, no Brasil, um cenário de mudanças significativas no Direito Militar genericamente falando, sobretudo se a tão aspirada ampliação da competência da Justiça Militar alcançar a concretização no plano da Reforma do Judiciário em fase de conclusão. II - CONCEITO DE MILITAR O militar é um servidor público sui generis, regido por diploma estatutário específico. A definição constante da Lei 6.880/80 (Estatuto dos Militares do Brasil) parece ser mais adequada para enfeixar a natureza intrínseca da atividade castrense, definindo-se em seu art. 3º, verbis: “Os membros das Forças Armadas, em razão de sua destinação constitucional, formam uma categoria especial de servidores da Pátria e são denominados militares”. Tal conceito é inteiramente constitucional, sobretudo após o advento da Emenda Constitucional brasileira nº 18/98 – que define o regime constitucional dos militares, dispondo sobre tal categoria em seção apartada dos servidores públicos lato sensu. É bem verdade que muitos dos princípios aplicáveis ao servidor público genericamente falando são também extensivos aos servidores militares, mas as distinções, como se verá adiante, são bem visíveis, a começar pelo campo das vedações constitucionais e infraconstitucionais. Não por outra razão, estampa-se no estatuto dos militares, que os deveres militares emanam de um conjunto de vínculos racionais, bem como morais, que ligam o militar à Pátria e ao seu serviço, compreendendo essencialmente: a dedicação e a fidelidade à Pátria, cuja honra, integridade e instituições devem ser defendidas mesmo com o sacrifício da própria vida; o culto aos Símbolos Nacionais; a probidade e a lealdade em todas as circunstâncias; a disciplina e o respeito à hierarquia; o rigoroso cumprimento das obrigações e das ordens; e a obrigação de tratar o subordinado dignamente e com urbanidade. O Compromisso Militar, por sua vez, afirmará a aceitação consciente das obrigações e dos deveres militares e a firme disposição de seu fiel e bom cumprimento. O Código Penal Militar brasileiro define, igualmente, a pessoa considerada militar, nos termos seguintes: “É considerada militar, para efeito da aplicação deste Código, qualquer pessoa que, em tempo de paz ou de guerra, seja incorporada às forças armadas, para nelas servir em posto, graduação, ou sujeição à disciplina militar”. Não 3 obstante tal concepção restritivista, observamos que, nos arts. 11, 12 e 13, o legislador houve por bem considerar aplicáveis as regras do CPM ao militar estrangeiro em comissão ou estágio nas Forças Armadas; ao militar da reserva ou reformado, empregado na administração militar, equiparando-o, numa fictio iuris, ao militar em situação de atividade; por fim, o militar da reserva ou reformado conserva as responsabilidades e prerrogativas do posto ou graduação, para o efeito da aplicação da lei penal militar, quando figura como sujeito ativo ou passivo de crime militar. III - DISTINÇÃO ENTRE O OFÍCIO DAS ARMAS E OUTRAS PROFISSÕES Serviço militar, atividade militar, profissãodas armas, ofício castrense, seja qual for o adjetivo que se conecte ao substantivo representado pelo labor específico do integrante das Forças Armadas, em tempo de paz ou de guerra, o que interessa pressentir ou perscrutar é a absoluta diferenciação que paira em relação às demais atividades realizadas pelo homem, a justificar, por isso mesmo, o alentado e profuso campo normativo que regula a profissão militar. Não é difícil, ab origine, descortinar este vasto espectro que campeia no segmento castrense, com normas peculiares ao trato da matéria, que se permeia por princípios particulares e próprios da atividade, destacando-se a hierarquia, a disciplina, o pundonor militar, para citar apenas estes. Transluz do Código Funcional dos Militares brasileiros distinções visíveis entre esta categoria de servidores públicos e a dos servidores públicos civis, marcadamente no que se relaciona ao espírito de devotamento institucional1, mesmo porque a postura castrense não se compagina com certos direitos e garantias consagrados a outros servidores e positivadas no ordenamento jurídico nacional, como sejam a greve, a sindicalização e a filiação partidária. Não bastasse isso, toda sua vida deve ser regrada, inadmitindo-se que macule a farda por atos que sejam contrários aos valores castrenses, motivo pelo qual é imperativo que guarde conduta pública ou privada inteiramente ilibada. A carreira militar é por isso mesmo permanentemente desafiadora e reclama extremada vocação. 1 O Estatuto dos Militares classifica como manifestações essenciais do valor militar, dentre outros, os seguintes: o patriotismo, traduzido pela vontade inabalável de cumprir o dever militar e pelo solene juramento de fidelidade à Pátria até com o sacrifício da própria vida; a fé na missão elevada das Forças Armadas; o espírito de corpo, orgulho do militar pela organização onde serve e o amor incondicional à profissão das armas e o entusiasmo com que é exercida (art. 27 e incisos). 4 Disciplina é a rigorosa observância e o acatamento integral das leis, regulamentos, normas e disposições que fundamentam o organismo militar e coordenam seu funcionamento regular e harmônico, traduzindo-se pelo perfeito cumprimento do dever por parte de todos e de cada um dos componentes desse organismo. A disciplina e o respeito à hierarquia devem ser mantidos em todas as circunstâncias da vida entre militares da ativa, da reserva remunerada e reformados (art. 14, §§ 2ºe 3º - Estatuto dos Militares). A deontologia castrense, por assim dizer, estabelece parâmetros éticos irretorquíveis, cujo cumprimento há de ser completamente sereno, altivo e consciente. No art. 28 do Estatuto dos Militares vemos que o sentimento do dever, o pundonor militar e o decoro da classe impõem, a cada um dos integrantes das Forças Armadas, conduta moral e profissional irrepreensíveis, com a estrita observância dos preceitos de ética militar. Na clássica obra – A Luta pelo Direito, Rudolf Von Ihering, ressalta que nas fileiras militares o sentimento de honra atinge altíssimo grau de sensibilidade, asseverando que a defesa da honra é dever máximo de todos, dispondo que numa corporação, como a militar, na qual, pela sua natureza, a afirmação da coragem pessoal se destaca, não se poderá, de forma alguma, admitir a covardia de um de seus membros, sem se aviltar. Fazendo um paralelo entre o camponês, o comerciante e o militar, aduz que, aquilo que para o oficial é a honra, para o camponês é a propriedade e para o comerciante é o crédito. O extraordinário jurista, ao tecer suas considerações, ensejou, na verdade, demonstrar que cada profissão posta em relevo tem seu sentido de autopreservação moral, vale dizer, ao defender seu direito, estará defendendo princípios morais de sua vida, finalizando que, nas três classes sociais abordadas, manifesta-se a mais alta suscetibilidade quanto ao sentido de justiça, precisamente nas áreas que refletem as condições de existência de cada uma dessas classes, revelando que esse sentimento não é detectado, como qualquer outro fenômeno psíquico, apenas pelos traços pessoais de temperamento e de índole, mostrando-se, nele, também, um momento social, que é o sentimento da necessidade de um certo instituto jurídico para o modus vivendi de cada profissão (Editora RT, 2ª ed., 2001, p. 51). IV - ATO DE SERVIÇO - CONCEITUAÇÃO E NATUREZA JURÍDICA Na terminologia adotada pelo Estatuto dos Militares do Brasil– Lei 6.880/81, cargo militar é um conjunto de atribuições, deveres e responsabilidades cometidos a um militar em serviço ativo, sendo 5 certo que as obrigações inerentes ao cargo militar devem ser compatíveis com o correspondente grau hierárquico e definidas em legislação ou regulamentação específicas. A provisão dos cargos militares se efetiva com o atendimento dos pressupostos relativos ao grau hierárquico e respectiva qualificação profissional demandada para o desempenho do ofício militar. O cargo militar encontra-se especificado nos Quadros de Efetivo ou Tabelas de Lotação das Forças Armadas ou previsto, caracterizado ou definido em outras disposições legais. No entanto, o diploma orgânico dos militares ainda se preocupa em clarificar que as obrigações que, pela generalidade, peculiaridade, duração, vulto ou natureza, não são catalogadas com posições tituladas em “Quadro de Efetivo”, “Quadro de Organização”, “Tabela de Lotação” ou dispositivo legal, são cumpridas como encargo, incumbência, comissão, serviço ou atividade, militar ou de natureza militar, APLICANDO-SE, NO QUE COUBER, a encargo, incumbência, comissão, serviço ou atividade, militar ou de natureza militar, o disposto relativamente a cargo militar. A Medida Provisória nº 2.215-10, de 31 de agosto de 2001, que trata da reestruturação remuneratória dos militares das Forças Armadas brasileiras, em seu art. 28, estabelece modificações à Lei 6.880/80 (Estatuto dos Militares do Brasil), avultando-se, dentre tantas, a seguinte definição, verbis: “Art. 6º. São equivalentes as expressões ‘na ativa’, ‘da ativa’, ‘em serviço ativo’, ‘em serviço na ativa’, ‘em serviço’, ‘em atividade’ ou ‘em atividade militar’, conferidas aos militares no desempenho do cargo, comissão, encargo, incumbência ou missão, serviço ou atividade militar ou considerada de natureza militar nas organizações militares das Forças Armadas, bem como na Presidência da República, na Vice-Presidência da República, no Ministério da Defesa e nos demais órgãos quando previsto em lei, ou quando incorporados às Forças Armadas.” Constata-se, pois, que o ato de serviço vincula-se ao cumprimento de uma obrigação ou dever militar. Trata-se efetivamente, da materialização do compromisso militar assumido. Numa concepção intrínseca, representa o liame racional e ético que liga o militar à Pátria e ao seu serviço. Extrinsecamente, compreende o exercício da função imanente ao cargo militar. Sua natureza jurídica é, portanto, de conotação dual, vale dizer, significa de um lado, OBRIGAÇÃO e de outro DEVER. Obrigação como decorrência da FUNÇÃO MILITAR desempenhada enquanto investido do CARGO MILITAR. Dever como elo racional e ético que 6 vincula o militar à Pátria e ao serviço, envolvendo a sujeição da própria vida. Como consectário natural do descumprimento ou da violação das obrigações e dos deveres militares nasce a responsabilidade pessoal do infrator. A inobservância dos deveres especificados nas leis e regulamentos,ou a falta de exação no cumprimento dos mesmos, acarreta pa o militar a responsabilidade funcional, pecuniária, disciplinar ou penal, consoante a legislação específica. V - REPERCUSSÃO DO ATO DE SERVIÇO NA SEARA ADMINISTRATIVA a - Aspectos Gerais O ato de serviço origina vários efeitos jurígenos na esfera administrativa, muito com reflexos positivos outros negativos. Com efeito, investido do ofício castrense, o militar, seja de carreira, seja de quadros temporários e complementares, ao realizar os encargos ou missões que lhe são cometidos, tem seu desempenho ou sua conduta regidos por normas específicas e peculiares, atraindo, consoante o fato transcorrido, quer dizer, o fato adentrado no mundo jurídico, as diversas conseqüências. Por um lado, vislumbra-se que o ato em serviço tem natureza jurídica singular, posto que denota que o militar está atuando como tal, uti miles. Representa, no seu conduzir, a atividade castrense que assumiu como profissão. Deverá, por conseguinte, obrar com o zelo, a ética e o pundonor que dele se espera. De igual maneira, por ostentar condição peculiar no desempenho de seu mister, naturalmente que, enquanto investido do cargo e desempenhando a função militar imanente ao mesmo, tem a proteção de vários regramentos jurídicos. b – Reflexos Negativos Em relação às praças não estáveis é compreensível que, enquanto não logram alcançar a estabilidade, sejam submetidas às avaliações periódicas, visando descobrir sua vocação castrense, podendo, porventura não comprovadas as aptidões próprias para o mister militar, ensejar o licenciamento das fileiras militares antes de atingir o decênio legal que garantiria a estabilidade. 7 As praças já estabilizadas somente serão desligadas da atividade militar, perdendo suas graduações, após o regular Conselho de Disciplina ou em virtude de imposição de pena acessória pela Justiça Militar. Os Oficiais de Carreira gozam de vitaliciedade, razão por que somente perderam seus postos e patentes, nos termos da Constituição vigente, após o regular Conselho de Justificação ou Representação da PGJM, em que declarado indigno ou incompatível com o Oficialato. A apuração da responsabilidade funcional, pecuniária, disciplinar ou penal poderá concluir pela incompatibilidade do militar com o cargo ou pela incapacidade no exercício das funções militares a ele inerentes. O militar que, por sua atuação, se tornar incompatível com o cargo, ou demonstrar incapacidade no exercício de funções militares a ele inerentes, será afastado do cargo. Importa dizer, entrementes, que todos, inclusive os militares da reserva remunerada, são submetidos ao Regulamento Disciplinar pertinente, de modo que seu proceder infringente das regras disciplinares, enseja a aplicação de punições disciplinares. Nota-se, pois, no campo do Direito Administrativo Disciplinar Militar, o ato em serviço pode configurar ilícito disciplinar, merecendo a punição adequada, objetivando a manutenção dos pilares da hierarquia e disciplina – base que sustenta a coesão das Forças Militarizadas. Veja-se a conceituação e especificação contemplada no RDE – Decreto nº 4346, de 26 de agosto de 2002: Art. 14. Transgressão disciplinar é toda ação praticada pelo militar contrária aos preceitos estatuídos no ordenamento jurídico pátrio ofensiva à etica, aos deveres e às obrigações militares, mesmo na sua manifestação elementar e simples, ou, ainda, que afete a honra pessoal, o pundonor militar e o decoro da classe. No Regulamento Disciplinar da Marinha do Brasil (Decreto nº 88.545/83), entre múltiplas condutas consideradas transgressógenas, pinçamos duas que dão bem a medida da severidade com que o proceder do militar de serviço está submetido: 46. executar intencionalmente mal qualquer serviço ou exercício; 47. ser negligente no desempenho da incumbência ou serviço que lhe for confiado.2 Arrostando tantos riscos e submetendo-se a diplomas tão rígidos, não poderia o militar no cumprimento de seu mister, ser 2 Idênticas previsões vamos encontrar tanto nos Regulamentos Disciplinares das duas outras Forças Singulares e das Forças Auxiliares (Polícias Militares e Corpo de Bombeiros). 8 deserdado de alguma proteção jurídica ou tratamento condizente com seu diferenciado status. É bem verdade que nestes tempos de reformismo muitos dos direitos e garantias até então consagrados aos militares, estão sendo solapados, bastando lembrar, dentre tantos, a Licença Especial de seis meses após um decênio de labor e a promoção ficta quando da passagem para a reserva no posto imediato.3 Observamos, contudo, a preservação de alguns efeitos que decorrem especificamente do ato de serviço: ex factum oritur jus. Assim, destaca-se a promoção por bravura gerada por demonstração invulgar de coragem e espírito de determinação no exercício militar. É a que resulta de ato ou atos não comuns de coragem e audácia, que, ultrapassando os limites normais do cumprimento do dever, representem feitos indispensáveis ou úteis às operações militares, pelos resultados alcançados ou pelo exemplo positivo deles emanado. No mesmo diapasão, arvora-se a denominada promoção post mortem, constituindo-se naquela que visa a expressar o reconhecimento da Pátria ao oficial falecido no cumprimento do dever ou em conseqüência disto, ou a reconhecer o direito do oficial a quem cabia a promoção, não efetivada por motivo do óbito. Neste caso, o fato gerador da promoção é o falecimento do militar em ação de combate ou de manutenção da ordem pública, em razão de ferimento recebido em campanha ou na manutenção da ordem pública, ou por força de doença, moléstia ou enfermidade contraída em tais situações ou, ainda, em acidente de serviço. As recompensas são, igualmente, corolários dos atos de serviço, representando prêmios de honra ao mérito, condecorações, elogios e louvores. Da mesma forma, em ato de serviço, o militar poderá se acidentar, não podendo, por isso mesmo, ser relegado à própria sorte. Em razão disso, a sua capacidade laboral poderá ser comprometida ou completamente aniquilada, exsurgindo a aplicação de normas que garantirão a passagem do militar para a inatividade remunerada. Neste sentido, temos que o Decreto nº 57.272, de 16 de novembro de 1965, define e conceitua acidente em serviço, dando outras providências. É ler: Art. 1º - Considera-se acidente em serviço, para todos os efeitos previstos na legislação em vigor relativa às Forças Armadas, aquele que ocorra com militar da ativa, quando: a) no exercício dos deveres 3 Não se pode olvidar que o ofício castrense é muito distinto do serviço público em geral, prevendo sacrifícios pessoais e familiares absolutamente inexistente em outras atividades, o que justifica a inserção de vantagens e benefícios igualmente diferenciados. É a aplicação correta do primado da isonomia, já que os militares se desigualam dos demais servidores públicos. 9 previstos no Art. 25 do Decreto-Lei nº 9.698, de 2 de setembro de 1946 (Estatuto dos Militares); b) no exercício de suas atribuições funcionais, durante o expediente normal, ou, quando determinado por autoridade competente, em sua prorrogação ou antecipação; c) no cumprimento de ordens emanada de autoridade militar competente; d) no decurso de viagens em objeto de serviço, previstas em regulamentos ou autorizadas por autoridade militar competente; e) no decurso de viagens impostas por motivo de movimentação efetuadas no interesse do serviço ou a pedido; f) no deslocamento entrea sua residência e a organização em que serve ou o local de trabalho, ou naquele em que sua missão deva ter início ou prosseguimento, e vice-versa. (redação dada pelo Decreto nº 64.517 de 15-05-1969) § 1º Aplica-se o disposto neste artigo aos militares da Reserva, quando convocados para o serviço ativo; § 2º Não se aplica o disposto neste artigo quando o acidente for resultado de crime, transgressão disciplinar, imprudência ou desídia do militar acidentado ou de subordinado seu, com sua aquiescência. Os casos previstos neste parágrafo serão comprovados em Inquérito Policial- Militar, instaurado nos termos do Art. 9º do Decreto-lei nº 1.002, de 21 de outubro de 1969, ou, quando não for caso dele, em sindicância, para esse fim mandada instaurar, com observância das formalidades daquele. (redação dada pelo Decreto nº 90.900 de 15-05-1969); Art. 2º - Considera-se acidente em serviço para os fins previstos em lei, ainda quando não seja ele a causa única e exclusiva da morte ou da perda ou redução da capacidade do militar, desde que entre o acidente e a morte ou incapacidade haja relação de causa e efeito. O Estatuto dos Militares do Brasil, por sua vez, regula os casos de reforma em decorrência de acidente em serviço. VI – O TRATO DA IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA MILITAR NO BRASIL. LEI Nº 8.429/92. APURAÇÃO DA CONDUTA DESVIANTE DO MILITAR A probidade constitui dever militar demarcado no seu estatuto específico e preceito ético a ser rigorosamente observado, razão pela qual o sentimento de dever, o pundonor militar e o decoro da classe impõem, a cada um dos integrantes das Forças Armadas, conduta moral e profissional irrepreensíveis, devendo o militar exercer, com autoridade, eficiência e probidade, as funções que lhe couberem em decorrência do cargo, empregando todas as suas energias em proveito do serviço. 1 Com o advento da Lei nº 8.429/92 – Lei de Improbidade administrativa, definiu-se uma área de reflexos que gravita em torno da conduta do militar que venha a malferir princípios éticos e jurídicos, atingindo a supremacia do interesse público que condiciona toda a administração pública. Inegavelmente, o militar, como servidor público sui generis pode, no seu conduzir, agir em desconformidade com os parâmetros que governam a administração pública, incursionando por um dos tipos definidos na Lei de Improbidade Administrativa, arts. 9º, 10 e 11. Porventura a conduta descrita na lei se concretize, haverá de ser sancionado o proceder ímprobo, aplicando-se o predito códex, consoante o comando recortado no art. 12. O art. 14, § 3º demarca que, em se tratando de servidor militar, a apuração dos fatos será de acordo com os regulamentos disciplinares. Seja como for, não se analisará de forma profunda tal matéria, eis que já será objeto de explanação específica. Vale o registro de que o ato de serviço do militar que contraria os preceitos fixados em lei, malbaratando o primado da moralidade, pode configurar uma improbidade administrativa, assujeitando-se o infrator ao sancionamento específico. Aluda-se, neste passo, que se a conduta além de infringir o estatuto da improbidade administrativa, também lesar o patrimônio público, naturalmente que se amoldará a uma dos tipos penais insertos no Código Penal Castrense, dês é claro preencha os pressupostos contemplados no seu art. 9º, podendo, de qualquer modo, haver responsabilização tanto no plano penal, quanto administrativo. Certo é que não pode pairar dúvidas quanto à aplicabilidade do estatuto da improbidade aos servidores militares que atentarem contra a moralidade administrativa. De acordo com o artigo 14 da citada norma: “Qualquer pessoa poderá representar à autoridade administrativa competente para que seja instaurada investigação destinada a apurar a prática de ato de improbidade”. E, mais adiante, no seu § 3º, deixa enfático que: atendidos os requisitos da representação, a autoridade determinará a imediata apuração dos fatos que, em se tratando de servidores federais, será processada na forma prevista nos arts. 148 a 182 da Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990 e, em se tratando de servidor militar, de acordo com os respectivos regulamentos disciplinares”. (grifos pelo autor). De qualquer maneira, não se pode desprezar que, no seio militar, os atos de improbidade assumem contornos próprios, que podem, inclusive, conduzir à perda do posto e da patente, pela 1 declaração de indignidade ou incompatibilidade para com o oficialato, demandando processo próprio e especial, que pode decorrer de representação da Procuradoria-Geral de Justiça Militar endereçada ao Superior Tribunal Militar brasileiro, quando houver condenação superior a dois anos do oficial; ou de remessa do Conselho de Justificação, quando reconhecer que o militar não comprovou que permanece idôneo para prosseguir ostentando o posto e a respectiva patente militar. É imprescindível, portanto, que o referido diploma legal que se destina a sancionar a conduta de todos os agentes públicos – servidores ou não, que venham a praticar atos de improbidade administrativa, quando se tratar de agentes militares – servidores especiais da pátria, deve sempre se compatibilizar com as normas militares - não apenas as previstas nos Regulamentos Disciplinares, mas também no Código Penal Militar, nas leis atinentes ao Conselho de Justificação e ao Conselho de Disciplina, ao Estatuto dos Militares e outros diplomas congêneres. Tal preocupação, a despeito da independência das sanções penais, civis e administrativas, preconizada na norma inserta no art. 12 da Lei em comento, busca evitar qualquer injustiça por cúmulo de punições. É que o militar tem regime jurídico singular e as normas que governam sua conduta - inclusive os atos de serviço, integram um vasto e prolífero conjunto a que se pode denominar ordenamento jurídico militar, em cujo regaço além do direito militar positivado, encontram-se princípios específicos da caserna, que não podem ser desconsiderados na análise da conduta militar. VII - ATO DE SERVIÇO E SEUS REFLEXOS NO ÂMBITO PENAL a – Aspectos Gerais A simples condição de militar da ativa ou em atividade, como preferem alguns, enseja vários contornos jurídico-penais. Dentre estes, avulta-se o da prática das infrações próprias do integrante das Forças Armadas. É o caso do crime propriamente militar – comissível unicamente pelo militar e que permite quanto muito a mera participação, mas jamais a co-autoria.4 Não há como, por exemplo, um civil abandonar o posto, em concurso com o militar. Somente o militar pode deixar desautorizada e ilicitamente o serviço para o qual designado. 4 Sobre o assunto, veja-se o nosso artigo “A Questão da Co-autoria em crime militar próprio”, publicado na Revista de Estudos & Informações Justiça Militar do Estado de Minas Gerais, nº 10, Novembro de 2002, p. 31/32. 1 No tocante ao agente militar torna-se possível identificar no inciso II do art. 9º do Código Penal Militar do Brasil, os delitos que têm igual definição na Lei Penal Militar e na Lei Penal Comum, desde que atendido ao seguinte: o sujeito ativo estará em efetivo exercício da função ou cargo militar, no momento do crime, contra civil (alíneas c e d do mesmo artigo legal). Contudo e em que pese a ampla equivalência de expressões anotada no art. 28 da Medida Provisória nº 2.215/2001, impõe-se, pelo menos no campo penal, não confundir militar em serviço com militar em situaçãode atividade, na ativa ou no serviço ativo, como alerta Célio Lobão. Militar em serviço exerce função de seu cargo militar, incluindo-se formatura, manobra, exercício, comissão de natureza militar, ao passo que militar em situação da atividade é o militar incorporado às Forças Armadas ou às instituições militares estaduais, para nelas servir em posto, graduação, ou sujeição à disciplina militar. Nem sempre o militar da ativa estará desempenhando a função do cargo militar (exemplos: militar agregado por haver tomado posse em cargo ou função pública temporária ou o militar que abandona o posto)5. Militar em serviço é o que se encontra exercendo função do cargo militar, permanente ou temporário, decorrente de lei, decreto, regulamento, ato, portaria, instrução, ordem verbal ou escrita de autoridade militar competente. Pode ser função de natureza militar ou outro serviço executado pelo militar nesta qualidade. A ordem deve ter suporte legal, caso contrário não ocorre a condição de militar em serviço.6 O militar em serviço poderá ser sujeito passivo de crime militar cometido por civil, nas seguintes hipóteses: quando estiver em formatura, prontidão, vigilância, observação, exploração, exercício militar, acampamento, acantonamento ou manobras (art. 9º, III, c, do Código Penal Militar do Brasil); quando estiver no desempenho de função de natureza militar (art. 9º, III, d, do Código Penal Militar do Brasil) e quando em serviço de vigilância, garantia e preservação da ordem pública, administrativa ou judiciária (art. 9º, III, d, do Código Penal Militar do Brasil) b – Crimes Propriamente Militares 5 In Direito Penal Militar, Brasília Jurídica, 1999, p. 102/102 6 Op. Cit., p. 102. 1 O Código Penal Militar do Brasil contém inúmeras condutas típicas específicas da profissão militar, vale a observação de Célio Lobão, de que o crime propriamente militar (2ª parte do inciso I do art. 9º) tem somente o militar como sujeito ativo e essa condição integra o tipo, explícita ou implicitamente. São crimes propriamente militares contra o serviço militar: 1 – deserção (art. 187); 2 – deserção após ausência autorizada (art. 188); 3 – criar ou simular incapacidade (art. 188, IV); 4 – deserção imediata (art. 190); 5 – conserto para deserção (art. 191); 6 – deserção após evasão ou fuga (art. 192); 7 – omissão de oficial (art. 194). Por sua vez, constituem crimes propriamente militares contra o dever militar: 1 – abandono de posto (art. 195); 2 – descumprimento de missão (art. 196); 3 – retenção de documento (art. 197); 4 – ineficiência de força (art. 198); 5 – omissão de comandante para evitar danos (art. 199); 6 – omissão de comandante diante de sinistro (art. 200); 7 – omissão do comandante em face de sinistro (art. 201); 8 – embriaguez em serviço (art. 202); 9 – dormir em serviço (art. 203); 10 – comércio ilícito (art. 204). c – Crimes Funcionais A condição de militar pode ensejar a configuração de práticas ilícitas capituladas no estatuto repressivo militar consideradas como delitos funcionais. Assim, peculato, concussão, corrupção, dentre outros têm no atuar em razão da função um elemento integrante do próprio tipo penal inscrito no Código Penal Militar brasileiro. É o que descreve a alínea c do inciso II do art. 9º: “Consideram-se crimes militares, em tempo de paz os previstos neste Código, embora também o sejam com igual definição na lei penal comum, quando praticados por militar em serviço ou atuando em razão da função” (grifos pelo autor). d – Reconhecimento de Qualificadoras, Agravantes ou Atenuantes No bojo do diploma repressivo militar encontram-se, igualmente, situações que se integram ou se agregam ao tipo, qualificando-o ou agravando-o, conforme o caso. Nos crimes contra em que ocorre violação do dever militar, não poderá o agente invocar a coação irresistível salvo quando física ou material. Outrossim, nos crimes contra o dever militar, a alegação de desconhecimento ou erro de interpretação da lei, não aproveita ao agente. 1 Constitui circunstância que agrava a pena, quando não integrante ou qualificativa do crime, quando o agente comete o crime estando de serviço.7 A prática de violência contra superior (art. 157, do Código Penal Militar do Brasil) ocorrida em serviço qualifica o delito, aumentando a pena da sexta parte. Quando a ação é praticada em repulsa a agressão, a qualidade de oficial de dia, de serviço ou de quarto, ou de sentinela, vigia, ou plantão, deixa de ser elemento constitutivo do crime (art. 47, II do Código Penal Militar do Brasil). e – Excludentes de Crime e Exculpantes em razão do ato de serviço militar A Lei Penal Militar brasileira considera inexistir crime militar quando o agente pratica o fato em estrito cumprimento do dever legal. Portanto, quando no ato de serviço, por exemplo, de sentinela, o militar é compelido a atirar em estranhos que adentram o Quartel, vê-se nitidamente acobertado pela ventilada excludente de ilicitude. Quando, em cumprimento à ordem direta de superior, em matéria de serviços, termina por cometer um crime militar, não sendo a ordem manifestamente delituosa ou não havendo excesso nos atos ou na forma de execução, não será culpado o inferior. f - Fixação da Competência da Justiça Militar O art. 9º do Código Penal Militar do Brasil, como norma de extensão, complementar de vários tipos penais militares, adota em sua descrição, vários critérios que norteiam a classificação do crime como militar, dentre os quais, por evidente, identifica-se o critério ratione numeris, a significar que o militar que estiver em determinada atividade ou desempenho funcional poderá tanto ser sujeito ativo de um crime, quanto sujeito passivo. Melhor explicando: o militar estando de serviço poderá ser agente de um crime militar, conforme visto alhures, ou sujeito passivo. Tais fatores são significativos e determinantes da competência da Justiça Militar. Em decisão proferida nos autos de Habeas-Corpus nº 3.121/BA, o Superior Tribunal de Justiça do Brasil, em relatório da lavra do Ministro Vicente Cernicchiaro, assim se pronunciou: “entre o crime militar e o crime comum, forma-se relação de especialização. Só isso 7 Crimes como Violência contra militar de serviço (art. 158), Abandono de Posto (art. 195), Embriaguez em Serviço (art. 202) ou Dormir em Serviço (art. 203) já trazem tal circunstância – estar em serviço, como elementar do tipo. 1 justifica a pluralidade de definições legais e a existência da Justiça Militar. Em conseqüência, urge conferir atenção ao bem juridicamente tutelado. Se o militar, ao praticar a conduta, não se encontrava “em situação de atividade”, ou seja atuando na condição de militar e no exercício da função militar, configura-se crime comum, processado e julgado pela justiça comum.” (12-11-96). No mesmo diapasão, a Corte Suprema brasileira, também em autos de Habeas-Corpus nº 72022-6/PR, exarou o seguinte decisório: CRIME MILITAR – ENUMERAÇÃO – NATUREZA – Os crimes militares situam-se no campo da exceção. As normas em que previstos são exaustivas. Jungidos ao princípio constitucional da reserva legal – inciso XXXIX do artigo 5º da Carta de 1988 – hão de estar tipificados em dispositivo próprio, a merecer interpretação estrita. COMPETÊNCIA – HOMICÍDIO – AGENTE: MILITAR DA RESERVA - VÍTIMA: POLICIAL MILITAR EM SERVIÇO. Ainda que em serviço a vítima – policial militar, e não militar propriamente dito – a competência é da Justiça Comum. Interpretação sistemática e teleológicados preceitos constitucionais e legais regedores da espécie. À guisa de reflexão, colacionamos alguns arestos sobre a definição da competência do foro para o processamento e julgamento de militares de serviço. É ler: Habeas Corpus nº 75154-7/RJ, Relator Ministro Ilmar Galvão, DJ. 05.09-97 EMENTA: HABEAS CORPUS. PACIENTE ACUSADO DE DESACATO E DESOBEDIÊNCIA PRATICADOS CONTRA SOLDADO DO EXÉRCITO EM SERVIÇO EXTERNO DE POLICIAMENTO DE TRÂNSITO, NAS PROXIMIDADES DO PALÁCIO DUQUE DE CAXIAS, NO RIO DE JANEIRO. Atividade que não pode ser considerada função de natureza militar, para efeito de caracterização de crime militar, como previsto no art. 9º, III, d, do Código Penal Militar. Competência da Justiça Comum, para onde deverá ser encaminhado o processo criminal. Habeas corpus deferido. Observação: o STJ, em Aresto promanado da Terceira Seção, também por unanimidade de votos, seguiu a mesma linha esposada pelo STF: 1 Autos de Conflito de Competência nº 26106/RJ, Relator Ministro Felix Fischer, DJ. 14.08.00, assim se pronunciou: EMENTA: PROCESSUAL PENAL. PENAL. CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. DESACATO PRATICADO POR CIVIL CONTRA SOLDADO DO EXÉRCITO EM ATIVIDADE DE POLICIAMENTO EXTERNO DE TRÂNSITO. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA COMUM. Não sendo o desacato praticado contra soldado em exercício de função propriamente militar, não se trata de crime da competência da Justiça Militar. Conflito conhecido, declarando-se competente o Juízo suscitado. Nota: em sentido similar, colhe-se da decisão prolatada no Conflito de Competência 16228/RJ, Relator Ministro José Dantas, DJ 23.06.97, que não configura crime militar federal o desacato e resistência praticados por civil contra soldado do Exército em operação de policiamento civil, já que tal atividade não se caracteriza como militar, ainda que exercido pelo Exército em conjunta colaboração com a Polícia Civil, sendo competente para o feito o Juízo de Direito da Vara Criminal. Proc. 1997.01.048029-3/RJ (DJ 15/06/1998 VOL: 02698-07) EMENTA: DESACATO - SERVIÇO EXTERNO DE POLICIAMENTO - COMPETÊNCIA. Civil acusado de desacato a soldados do Exército em serviço externo de policiamento local de trânsito. Apelo colimando, preliminarmente, anulação do processo por incompetência da Justiça Militar Federal e, no mérito, pela reforma da sentença condenatória por atipicidade da conduta. Comprovado que os militares encontravam-se exercendo atividade de policiamento externo e de trânsito quando, ao admoestar civil em razão de estacionamento irregular do seu automóvel, foram desacatados. Atividades de policiamento externo de trânsito exercidas pelos militares do Exército não podem ser consideradas como função de natureza militar por não se ajustarem à destinação constitucional das Forças Armadas. Fato típico imputado não caracteriza crime da competência da Justiça Militar da União por não se amoldar às hipóteses previstas no artigo 9º do CPM. Precedentes do Excelso Pretório. 1 Acolhida a preliminar para, anulando-se o feito "ab initio", determinar a remessa dos autos à Justiça Comum do Estado do Rio de Janeiro. Decisão majoritária. MINISTRO RELATOR: CARLOS DE ALMEIDA BAPTISTA MINISTRO REVISOR: ALDO DA SILVA FAGUNDES Proc. 1995.01.006200-4/PR (DJ 18/04/1995 VOL: 00995-01) EMENTA: RECURSO CRIMINAL. DENUNCIA DE LESÃO CORPORAL E DESACATO PRATICADOS POR FUNCIONÁRIOS CIVIS DO MINISTÉRIO DO EXÉRCITO CONTRA OFICIAL. REJEITADA, NO PRIMEIRO GRAU, POR NÃO CONFIGURAR CRIME MILITAR. OCORRENCIA EM VIA PUBLICA, COM MILITAR EM SERVIÇO, MAS NÃO EM FUNÇÃO DE NATUREZA MILITAR 'STRICTO SENSU', NAS CONFORMIDADES DA EXEGESE DA SUPREMA CORTE SOBRE O ART. NONO, INCISO III, LETRA 'D', DO CPM. DECLINIO DE COMPETENCIA PARA A JUSTIÇA COMUM. IMPROVIDO O RECURSO DO MPM, MANTENDO-SE A DECISÃO DO JUIZO 'A QUO'. DECISÃO NA FORMA DO PARAGRAFO PRIMEIRO DO ART. 92 DO RI/STM. MINISTRO RELATOR: CARLOS EDUARDO CEZAR DE ANDRADE Proc. 1995.01.000179-2/SC (DJ 01/06/1995 VOL: 01495) EMENTA: INQUERITO. COMPETENCIA. POLICIAMENTO NAVAL. ATIVIDADE DE CUNHO ADMINISTRATIVO. INDICIADO CIVIL (PREFEITO MUNICIPAL). OFENDIDOS MILITARES. CONFIGURAÇÃO, EM TESE, DE DELITO COMUM.EMBORA DE NATUREZA FEDERAL. O POLICIAMENTO NAVAL EM REFERENCIA, EMBORA PRIVATIVO DO MINISTERIO DA MARINHA, QUALIFICA-SE COMO ATIVIDADE SECUNDARIA E DE CUNHO ADMINISTRATIVO, SENDO IMPOSSIVEL A CONFIGURAÇÃO DESSA ATIVIDADE COMO FUNÇÃO DE NATUREZA MILITAR, CONFORME A LEI PARA A CARACTERIZAÇÃO DE CRIME MILITAR EVENTUALMENTE PRATICADO POR CIVIL. TENDO EM VISTA QUE OS MILITARES OFENDIDOS NÃO EXERCIAM SERVIÇO DE NATUREZA MILITAR, E QUE EM RAZÃO DESSA CIRCUNSTANCIA A POSSIVEL OFENSA NÃO ATENTOU CONTRA AS INSTITUIÇÕES MILITARES, FORÇOSO RECONHECER QUE AS COGITADAS INFRAÇÕES DE DESACATO E DESOBEDIENCIA ENQUADRAM-SE COMO DELITOS COMUNS, O QUE AFASTA, NECESSARIAMENTE, A COMPETENCIA DA JUSTIÇA MILITAR. MINISTRO RELATOR: ANTONIO CARLOS DE NOGUEIRA 1 NOTA: (STM) - HC 32.775-4/PA (STF) - HC 68.928/PA - REL. MIN. NERI DA SILVEIRA (STF); RE 141021/SP - DJ 07.05.93 (STF) - HC 68.967-1/PR - DJ 16.04.93 (STF) – HC 69.649-0/DF - DJ 05.02.93 h – Crimes Dolosos Contra a Vida praticados por Militar contra Civil: Competência do Tribunal do Júri. Posição do STF pela Constitucionalidade da Lei 9.299/96. Conseqüências em relação ao crime praticado em decorrência de Ato de Serviço. Nova Orientação da Emenda Constitucional nº 45/2004 Com a posição consolidada pela Corte Suprema Nacional, encerra-se o debate em torno da questão da constitucionalidade ou não da Lei 9.299/96, que desloca para o Tribunal do Júri, a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida perpetrados por militar contra civil. Entendeu o Pretório Supremo que o diploma em foco, em sua definição, descaracteriza, ainda que implicitamente, tais delitos como militares. É o que se dessume dos decisórios promanados da excelsa Corte, ad litteram: Militar e Tribunal do Júri I - O Tribunal declarou a constitucionalidade do parágrafo único do art. 9º do Código Penal Militar, introduzido pela Lei 9.299/96 ["Os crimes de que trata este artigo (crimes militares), quando dolosos contra a vida e cometidos contra civil, serão da competência da Justiça Comum."]. Considerando que cabe à lei definir os crimes militares, o Tribunal entendeu que a Lei 9.299/96 implicitamente excluiu os crimes dolosos contra a vida praticados contra civil do rol dos crimes militares, compatibilizando-se com o art. 124 da CF ("À Justiça Militar compete processar e julgar os crimes militares definidos em lei."), sendo improcedente, ainda, a alegada ofensa ao art. 125, § 4º, da CF, que confere à Justiça Militar estadual a competência para julgar os policiais militares nos crimes militares definidos em lei( RECr 260.404-MG, rel. Min. Moreira Alves, 22.3.2001.(RE-260404); Militar e Tribunal do Júri – 2. Na hipótese de desclassificação do crime doloso praticado por militar contra civil, feita pelo próprio tribunal do júri, ao invés de o juiz- presidente proferir a sentença (CPP, art. 74, § 3º e art. 492, § 2º), deverá encaminhar os autos à Justiça Militar, que tem jurisdição para o julgamento do feito. Com esse entendimento, o Tribunal, por maioria, deu provimento a recurso ordinário em habeas corpus para reformar acórdão do STJ - que, em face da desclassificação do crime de homicídio doloso imputado a policial militar para lesões corporais seguidas de morte, feita pelo júri, entendera que a competência para 1 o julgamentoda ação deslocava-se para o juiz-presidente. O Tribunal entendeu que a Lei 9.299/96, mencionada no caso acima, restringiu- se aos crimes dolosos contra a vida praticados por militar contra civil, remanescendo os demais crimes sob a jurisdição militar, inclusive os decorrentes de desclassificação. Vencidos os Ministros Marco Aurélio e Carlos Velloso, que mantinham o acórdão recorrido por entenderem que a desclassificação pelo tribunal do júri constitui um verdadeiro julgamento - e não simples declinação de competência -, cuja unidade deve ser preservada, devendo o juiz-presidente proferir a sentença. RHC 80.718-RS, rel. Min. Ilmar Galvão, 22.3.2001.(RHC-80718) . Não era a solução ansiada pelos operadores do direito penal militar, posto que em sede de desempenho de serviço de natureza militar, como vigilância, sentinela ao quartel, não raras vezes, o militar estará deparando com situações que exigirão de sua parte, pronta intervenção para evitar, por exemplo, ingresso clandestino na Organização Militar, roubos aos quartéis por agentes civis. No cumprimento de seu dever, terá o militar, em tais momentos, que tomar atitudes como o disparo de seu fuzil contra tais invasores. Constituirá, então, em tese, crime doloso contra a vida, ainda que escudado por uma excludente de criminalidade, qual seja o estrito cumprimento do dever legal. Terá, no entanto, o militar que, em ato de serviço de índole militar, praticar o crime na defesa das Instituições Militares, que comprovar perante o Júri, ter agindo sob o pálio de tal excludente. A generalização constante do documento legal sob prisma termina por malferir, na essência, o critério material que concebe como crime militar todo aquele que, direta ou reflexamente, atinge as Instituições Militares. A Emenda Constitucional nº 45, que veio a lume em 2004, resolveu, parcialmente, a questão, ao fixar nova competência para a Justiça Militar dos Estados-membros, assentando que nos crimes dolosos contra a vida, quando se tratar de vítima civil, incumbiria ao Tribunal do Júri o processo e julgamento do feito. Veja-se o teor da nova redação ao art. 125 da Carta Constitucional brasileira em vigor, ad litteram: “§ 4º Compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os militares dos Estados, nos crimes militares definidos em lei e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, ressalvada a competência do júri quando a vítima for civil, cabendo ao tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças”. A mesma Emenda produziu a inclusão do parágrafo § 5º ao vergastado artigo constitucional, que passou a atribuir competência aos 2 juízes de direito do juízo militar para processar e julgar, singularmente, os crimes militares cometidos contra civis e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, cabendo ao Conselho de Justiça, sob a presidência de juiz de direito, processar e julgar os demais crimes militares. Com isso, ficou explicitado que os crimes dolosos contra a vida de civil, praticados por militares das Forças Armadas, continuam sob a competência da Justiça Militar da União, já que o art. 124 da Lei Fundamental brasileira ainda não restou alterado, de forma que persiste a competência da precitada Justiça especializada para todos os crimes militares definidos no Código Penal Militar do Brasil, incluindo-se os crimes dolosos contra a vida, seja de civil ou militar, desde que atendidas as premissas fixadas na norma de extensão do art. 9º do mencionado códex. É forçoso concluir, por conseguinte, que não foi recepcionada pela Emenda Constitucional 45/2004, a Lei 9.299/96, no que tange à Justiça Militar Federal do Brasil. VIII - A INDEPENDÊNCIA DAS INSTÂNCIAS PENAL, ADMINISTRATIVA E CÍVEL. EFEITOS DA SENTENÇA PENAL ABSOLUTÓRIA NO CENÁRIO ADMINISTRATIVO-MILITAR. RESÍDUO ADMINISTRATIVO E PODER-DEVER DE IMPOSIÇÃO DA PENA DISCIPLINAR Necessário a essa altura afirmar que o ato de serviço normal, regular e em conformidade com as normas e regulamentos, desvela o pleno acatamento do feixe de deveres e obrigações inerentes ao desempenho de todo e qualquer cargo militar. Entretanto, notório que a sua imperfeita ou antijurídica execução tem o condão de eivar a conduta do militar, inquinando-o de mera irregularidade, de infração administrativa-disciplianar, de ato de improbidade ou, no que é mais grave, de verdadeiro crime, donde resulta a natureza multiforme do ato de serviço, com suas polivalentes conotações. Vale aqui rememorar o que dispõe o art. 121 da Lei 8.112/90 (Lei que define o Regime Jurídico dos Servidores Públicos do Brasil), ad litteram: “O servidor responde civil, penal e administrativamente pelo exercício irregular de suas atribuições”. Cabível, pois, nesse particular aspecto, trazer o foco de José da Silva Loureiro Neto, para o qual “infere-se, pois, que atentam contra o ordenamento jurídico militar não só os delitos contemplados na legislação penal militar como também as transgressões militares 2 contidas nos Regulamentos Militares. Isso porque os militares estão sujeitos a indeterminado número de deveres que servirão de arcabouço à disciplina militar. E esses deveres têm origem na lei, nos regulamentos e nas ordens superiores de caráter geral. Assim como o delito pressupõe a violação de uma norma legal em virtude de sua gravidade, a infração disciplinar, menos grave, pressupõe a violação de um regulamento militar”.8 É preciso entender, em suas devidas proporções e inegáveis causas, que “o poder disciplinar tem finalidade ordinatória interna, só abrangendo as infrações administrativas com relação ao serviço, ao passo que a pena criminal tem função social, realizada através do Poder Judiciário e, portanto, visando as contravenções penais e os crimes.”9 Um mesmo fato, à toda evidência, pode configurar, simultaneamente, violação de dever funcional e infringência de regra penal, a atrair a atuação das diversas instâncias ou jurisdições próprias. O mesmo ato de serviço militar, por sua natureza intrínseca ou extrínseca, pode resultar, portanto, em tríplice responsabilização, dês é claro que ocorrida “uma situação fática que a lei tenha erigido como suporte de responsabilização”.10 Sobre o assunto, o vigente Regulamento Disciplinar do Exército do Brasil, explicita: “§ 2° As responsabilidades nas esferas cível, criminal e administrativa são independentes entre si e podem ser apuradas concomitantemente”. Idêntica regra, aliás, encontra-se delineada no Estatuto do Servidor Público Civil, art. 125, do seguinte teor: “As sanções civis, penais e administrativas poderão cumular-se, sendo independentes entre si”.11 8 In Direito Penal Militar, Atlas, SP, 1993, p. 25. 9 Op. Cit., p. 26. Transcrevendo lição de Hely Lopes Meirelles, o autor assinala que “a punição disciplinar e a criminal têm fundamentos diversos, e diversa é natureza das penas. A diferença não é de grau, é de substância. Dessa substancial diversidade resulta a possibilidade da aplicação conjunta das duas penalidades sem que ocorra bis in idem. Por outras palavras, a mesma infração pode dar ensejo à punição administrativa (disciplinar) e à punição penal (criminal), porque aquela é sempre um minus em relação a esta. Daí resulta que toda condenação criminal, por delito funcional, acarreta a punição disciplinar, mas nem toda falta administrativa exige sanção penal”. 10 Conforme concepção de José dos Santos CarvalhoFilho, depreendida de seu Manual de Direito Administrativo, 10ª ed., Lumen Juris, RJ, 2003, p. 580. 11 Em razão disso, o STF estratificou o entendimento de que a Administração pode aplicar ao servidor a pena de demissão em processo disciplinar, mesmo se ainda em curso a ação penal a que responde pelo mesmo fato (MS nº 21.708-DF, Pleno, Rel. p/ acórdão Min. Maurício Corrêa, julg. Em 9-11-2000). Op. Cit., p. 581. 2 Muito embora seja de meridiana clareza a independência das instâncias penal, cível e administrativa, forçoso reconhecer a preocupação do legislador em demarcar, em sede de transgressão disciplinar, sua incidência apartada do crime. Veja-se o que prevê o Regulamento Disciplinar do Exército brasileiro, em seu art. 14, § 1°: “Quando a conduta praticada estiver tipificada em lei como crime ou contravenção penal, não se caracterizará transgressão disciplinar; § 4° No concurso de crime e transgressão disciplinar, quando forem da mesma natureza, esta é absorvida por aquele e aplica-se somente a pena relativa ao crime”. Incide, na hipótese, o denominado princípio da consunção, pelo qual o crime absorverá a conduta disciplinar. Malgrado a adoção do precitado primado da absorção, não escapa à autoridade militar o poder-dever de, a posteriori, conforme seja o decisório penal, examinar eventual resíduo administrativo-disciplinar, nas estritas linhas definidas no atual Regulamento Disciplinar do Exército brasileiro, art. 14 § 5°, verbis: “Na hipótese do § 4°, a autoridade competente para aplicar a pena disciplinar deve aguardar o pronunciamento da Justiça, para posterior avaliação da questão no âmbito administrativo” e § 6° do mesmo artigo: “Quando, por ocasião do julgamento do crime, este for descaracterizado para transgressão ou a denúncia for rejeitada, a falta cometida deverá ser apreciada, para efeito de punição, pela autoridade a que estiver subordinado o faltoso”. Não remanesce dúvida, por outro lado, que a decisão prolatada no âmbito penal, a par das conseqüências imediatas que pode gerar para o servidor no concernente ao seu status libertatis, também oferece fértil terreno para estudo quanto à possibilidade de engendrar efeitos tanto no contexto cível quanto administrativo. É o que demarca o § 3° do art. 14 do Regulamento Disciplinar do Exército do Brasil: As responsabilidades cível e administrativa do militar serão afastadas no caso de absolvição criminal, com sentença transitada em julgado, que negue a existência do fato ou da sua autoria” Significa dizer que a condenação criminal do militar passada em julgado reflete noutros campos, tanto que poderá haver punição administrativa e cível por este mesmo fato. Exemplificando: o militar poderá ser compelido a ressarcir prejuízos causados por sua conduta e/ou ser excluído das fileiras militares – licenciamento a bem da disciplina. Se for Oficial e a pena for igual ou superior a dois anos, será alvo de Representação de Indignidade ou Incompatibilidade para com o Oficialato, de competência privativa do Procurador-Geral da Justiça Militar. Na acepção de José dos Santos Carvalho Filho, em se tratando de decisão penal condenatória por crime funcional, terá que haver sempre reflexo na 2 esfera da Administração. Se o juiz reconheceu que o servidor praticou crime e este é conexo à função pública, a Administração não tem outra alternativa senão a de considerar a conduta como ilícito também administrativo. Exemplo: se o servidor é condenado pelo crime de corrupção passiva (art. 317, CP), terá implicitamente praticado um ilícito administrativo. No caso da Lei nº 8.112/90, o servidor terá violado o art. 117, XII, que o proíbe de receber propina ou vantagens de qualquer espécie em razão de suas atribuições. A instância penal, então, obriga a instância administrativa.12 Em se tratando de decisão penal absolutória por insuficiência de provas quanto à autoria ou em virtude de ter sido insuficiente para a condenação, nenhuma influência terá no plano administrativo, se houver a constatação da denominada conduta ou falta residual.13 José dos Santos Carvalho Filho exemplifica: imagine-se que um servidor federal tenha sido absolvido da imputação, a ele atribuída, da prática do crime de peculato (art. 312, Código Penal), por insuficiência de provas quanto à sua participação no fato: nada impede, porém, que seja punido na esfera administrativa por ter procedido de forma desidiosa, ilícito administrativo previsto no art. 117, XV, da Lei nº 8.112/90, que constitui conduta residual independente do crime de peculato.14 Trazendo o tema para a ambiência castrense, suponhamos que determinado militar seja absolvido da prática do crime de embriaguez em serviço (art. 202 do Código Penal Militar do Brasil), por não ter sido provado pelo exame de dosimetria alcoolimétrica que estivesse efetivamente em estado de ebriez ou porque se negara a fazer tal exame, não sendo suficientes as provas testemunhais que demonstraram, por exemplo, que o acusado apresentava forte odor de bebida alcoólica, andar deambulante e fala confusa. Neste caso, pelo seu comportamento residual será punido disciplinarmente, consoante a Relação de Transgressões contidas no Regulamento Disciplinar do Exército do Brasil: 110.Comparecer a qualquer ato de serviço em estado visível de embriaguez ou nele se embriagar ou no Regulamento Disciplinar da Marinha, com seguinte teor: 35. apresentar-se em Organização Militar em estado de embriaguez ou embriagar-se e comportar-se de modo inconveniente ou incompatível com a disciplina militar em Organização Militar. IX – CONSIDERAÇÕES FINAIS 12 Op. Cit., p. 584 13 Súmula 18/STF: “pela falta residual, não compreendida na absolvição pelo juízo criminal, e admissível a punição administrativa do servidor público”. 14 Op. Cit., p. 585. 2 As anotações assinaladas no presente texto permitem, com abrangência, concluir pela confirmação da ampla variedade de efeitos jurígenos originados do ato de serviço. A constatação mais imediata do exame do ato de serviço, enquanto atrelado a uma atividade ínsita ao cargo militar, é que sua feição binômia – intrínseca e extrínseca, é indissociável do papel peculiar de tal categoria de servidores especiais da Pátria, na dicção do Estatuto dos Militares. Não sem razão, pois, o Papa João Paulo II, que, versando sobre as Forças Armadas, como instrumentos da Segurança e Liberdade dos Povos, afirma categoricamente: "O Serviço Militar aprimora e fortifica o caráter das pessoas, preparando-as para enfrentar com mais segurança e coragem as provas da vida. O Serviço Militar não é só uma profissão ou um dever. Deve ser também uma ordem interior da consciência, uma ordem do coração. As tradições militares ligaram, ao longo do século, o Serviço Militar ao amor à Pátria. Os que, por obrigação de servir à Pátria, se encontram no Exército, considerem-se integrantes da segurança e da liberdade dos povos. O Militar é um servidor da segurança e da liberdade dos povos, sempre animados pelo espírito da paz. Desejo que todos os exércitos possam, na paz, servir a seu povo e à sua Pátria." (Publicado no L´Observatore Romano Nr 23, de 09Jun91 e Nr 37, de 16Set95) A concepção de ato de serviço, pois, consagra os aspectos pragmáticos, éticos e racionais que condensam o agir castrense, parametrando-se o cumprimento dos deveres e obrigações por estrito sentimento de devoção e senso de responsabilidade. Neste sentido, o ato de serviço materializa o esforçoempregado para a consecução dos fins proclamados nas leis do país, muito em especial a Carta Maior. Por integrar Forças Armadas – da terra, do mar ou do ar -, o militar quando implementa ou concretiza o ato de serviço, simboliza a coesão essencial que as catalisa, semeando o exemplo aos demais pares, numa expressão de valores imprescindíveis ao contínuo esforço de preparo e organização em prol da defesa da Pátria. Natural, por conseguinte, que, exprimindo compromissos tão elevados, seja o ato de serviço irradiador dos mais diferentes efeitos no plano administrativo e penal. 2 No contexto puramente administrativo o ato de serviço produz efeitos negativos ou positivos, de acordo com sua forma de exteriorização. Destarte, um ato de serviço que contrarie o Regulamento Disciplinar desafia a aplicação de pena. Da mesma forma, o ato de serviço que, por sua natureza, se revela lesivo ao patrimônio público, poderá prefigurar uma improbidade administrativa. Também o ato de serviço envolve a deflagração de medidas gratas, como sejam as definidoras de promoções ou recompensas meritórias, cujo suporte fático reside exatamente naquele ato de serviço de invulgar relevância e extremado denodo com que se houve o militar premiado: promoção por bravura, extrato de elogios individuais, medalhas por desempenho singular etc. A esfera penal militar, muito mais severa, compreende aspectos que se direcionam ao pleno respeito aos comezinhos princípios que regem as Forças Militares, tendo por precípuo objeto de tutela penal as próprias Instituições Militares concebidas no plano objetivo e subjetivo. Assim, a definição de crime militar tem no critério material sua expressão mais científica, na medida em que toda conduta lesiva às Instituições Militares, de regra será considerada como delito militar. O ato de serviço acarreta, deste modo, no universo penal, uma considerável gama de conseqüências, a principiar pela própria configuração do crime como militar. Assim, estar de serviço militar, representa a realização de deveres e obrigações que não podem ser comprometidos. Quando praticada uma ação delituosa contra um militar de serviço – e aqui envolve vários atos de serviço, são atingidas as próprias Instituições Militares, razão por que o delito se especializa, caracterizando-se como militar. Sob o ângulo da subjetividade ativa, é de se inferir que o militar de serviço não pode dormir, nem se apresentar embriagado para o cumprimento de seu dever, nem se afastar do lugar do serviço para o qual designado antes de concluído o seu quarto de hora ou sem a devida autorização. Porventura descumpra tais procedimentos, incidirá na prática do delito do sono, da embriaguez em serviço ou no abandono de posto, só para mencionar alguns exemplos que, em função da afronta ao dever militar, terminam por corporificar condutas proibitivas. A conotação penal militar do ato de serviço, com toda certeza, demandaria formulações teóricas bem mais complexas e densas, porém o que mais chama a atenção é a relevância que o legislador primou por dar a este liame subjetivo que vincula o militar ao seu campo específico e peculiar de labor, ora buscando resguardá-lo, quando explicita sua particular condição de estar no desempenho da 2 função militar como objeto imediato da proteção penal castrense, ora elegendo esta mesma e expressiva condição como elementar de certos crimes militares. Numa seara ou noutra, não há negar, são nítidos e profundos os contornos que gravitam no exercício do ofício castrense, com imbricações que se fazem pressentir no segmento penal, cível e administrativo. Em razão disso, torna-se imperioso que o jurista tome conhecimento amplo do que se denomina arcabouço jurídico militar ou ordenamento jurídico militar, para dimensionar com precisão e razoabilidade, todos os efeitos que decorrem dos atos emergidos do contexto castrense. Definir a natureza do ato reclama, notavelmente, o conhecimento do sistema jurídico de onde emanou e, por conseguinte, a interpretação deve se realizada de forma abrangente, deduzindo-se de todo o particular conjunto de princípios e valores que orientam aquele sistema, as devidas e inevitáveis conseqüências produzidas. É fundamental, destarte, seja criado uma cultura de compreensão de todo o sistema jurídico militar, a fim de se dar o elastério devido aos institutos que gravitam no âmbito militar. Disso não se pode subtrair o exame do chamado ato de serviço. 2 I - Introdução II - CONCEITO DE MILITAR III - DISTINÇÃO ENTRE O OFÍCIO DAS ARMAS E OUTRAS PROFISSÕES b – Reflexos Negativos a – Aspectos Gerais O Código Penal Militar do Brasil contém inúmeras condutas típicas específicas da profissão militar, vale a observação de Célio Lobão, de que o crime propriamente militar (2ª parte do inciso I do art. 9º) tem somente o militar como sujeito ativo e essa condição integra o tipo, explícita ou implicitamente. c – Crimes Funcionais EMENTA: DESACATO - SERVIÇO EXTERNO DE POLICIAMENTO - COMPETÊNCIA. MINISTRO RELATOR: CARLOS DE ALMEIDA BAPTISTA MINISTRO REVISOR: ALDO DA SILVA FAGUNDES Proc. 1995.01.006200-4/PR (DJ 18/04/1995 VOL: 00995-01) EMENTA: RECURSO CRIMINAL. DENUNCIA DE LESÃO CORPORAL E DESACATO PRATICADOS POR FUNCIONÁRIOS CIVIS DO MINISTÉRIO DO EXÉRCITO CONTRA OFICIAL. REJEITADA, NO PRIMEIRO GRAU, POR NÃO CONFIGURAR CRIME MILITAR. OCORRENCIA EM VIA PUBLICA, COM MILITAR EM SERVIÇO, MAS NÃO EM FUNÇÃO DE NATUREZA MILITAR 'STRICTO SENSU', NAS CONFORMIDADES DA EXEGESE DA SUPREMA CORTE SOBRE O ART. NONO, INCISO III, LETRA 'D', DO CPM. DECLINIO DE COMPETENCIA PARA A JUSTIÇA COMUM. IMPROVIDO O RECURSO DO MPM, MANTENDO-SE A DECISÃO DO JUIZO 'A QUO'. DECISÃO NA FORMA DO PARAGRAFO PRIMEIRO DO ART. 92 DO RI/STM. MINISTRO RELATOR: CARLOS EDUARDO CEZAR DE ANDRADE EMENTA: INQUERITO. COMPETENCIA. POLICIAMENTO NAVAL. ATIVIDADE DE CUNHO ADMINISTRATIVO. INDICIADO CIVIL (PREFEITO MUNICIPAL). OFENDIDOS MILITARES. CONFIGURAÇÃO, EM TESE, DE DELITO COMUM.EMBORA DE NATUREZA FEDERAL. O POLICIAMENTO NAVAL EM REFERENCIA, EMBORA PRIVATIVO DO MINISTERIO DA MARINHA, QUALIFICA-SE COMO ATIVIDADE SECUNDARIA E DE CUNHO ADMINISTRATIVO, SENDO IMPOSSIVEL A CONFIGURAÇÃO DESSA ATIVIDADE COMO FUNÇÃO DE NATUREZA MILITAR, CONFORME A LEI PARA A CARACTERIZAÇÃO DE CRIME MILITAR EVENTUALMENTE PRATICADO POR CIVIL. TENDO EM VISTA QUE OS MILITARES OFENDIDOS NÃO EXERCIAM SERVIÇO DE NATUREZA MILITAR, E QUE EM RAZÃO DESSA CIRCUNSTANCIA A POSSIVEL OFENSA NÃO ATENTOU CONTRA AS INSTITUIÇÕES MILITARES, FORÇOSO RECONHECER QUE AS COGITADAS INFRAÇÕES DE DESACATO E DESOBEDIENCIA ENQUADRAM-SE COMO DELITOS COMUNS, O QUE AFASTA, NECESSARIAMENTE, A COMPETENCIA DA JUSTIÇA MILITAR. NOTA: (STM) - HC 32.775-4/PA (STF) - HC 68.928/PA - REL. MIN. NERI DA SILVEIRA (STF); RE 141021/SP - DJ 07.05.93 (STF) - HC 68.967-1/PR - DJ 16.04.93 (STF) – HC 69.649-0/DF - DJ 05.02.93 Muito embora seja de meridiana clareza a independência das instâncias penal, cível e administrativa, forçoso reconhecer a preocupação do legislador em demarcar, em sede de transgressão disciplinar, sua incidência apartada do crime. Veja-se o que prevê o Regulamento Disciplinar do Exército brasileiro, em seu art. 14, § 1°: “Quando a conduta praticada estiver tipificada em lei como crime ou contravenção penal, não se caracterizará transgressão disciplinar; § 4° No concurso de crime e transgressão disciplinar, quando forem da mesma natureza, esta é absorvida por aquele e aplica-se somente a pena relativa ao crime”. Incide, na hipótese, o denominado princípio da consunção, pelo qual o crime absorverá a conduta disciplinar. Malgrado a adoção do precitado primado da absorção, não escapa à autoridademilitar o poder-dever de, a posteriori, conforme seja o decisório penal, examinar eventual resíduo administrativo-disciplinar, nas estritas linhas definidas no atual Regulamento Disciplinar do Exército brasileiro, art. 14 § 5°, verbis: “Na hipótese do § 4°, a autoridade competente para aplicar a pena disciplinar deve aguardar o pronunciamento da Justiça, para posterior avaliação da questão no âmbito administrativo” e § 6° do mesmo artigo: “Quando, por ocasião do julgamento do crime, este for descaracterizado para transgressão ou a denúncia for rejeitada, a falta cometida deverá ser apreciada, para efeito de punição, pela autoridade a que estiver subordinado o faltoso”. IX – CONSIDERAÇÕES FINAIS
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