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FICHAMENTO: “Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal” de Hannah Arendt I – A CASA DA JUSTIÇA Nesse capítulo, Hannah descreve a estrutura do local onde ocorreu o julgamento de Adolf Otto Eichmann, com formação de 3 juízes, o promotor com 4 advogados assistentes e o advogado de defesa. Faz-se uma introdução do caso, quando o primeiro-ministro Ben-Gurion de Israel mandou que raptassem Eichmann para que fosse julgado perante um tribunal de judeus e que a partir desse julgado, pudessem ser encontrados e julgados outros nazistas. II – O ACUSADO Trata basicamente da vida de Eichmann antes de entrar para a SS (Schutzstafeln – força militar que garantia a proteção dos líderes do Partido Nazista) e seus fracassos nas realizações de suas funções anteriores. III – UM PERITO NA QUESTÃO JUDAICA É narrada aqui a ascensão do acusado, que passou a trabalhar no departamento de questões judaicas da SS, combinando sua excelência em ser burocrata com o fato de haver se convertido ao sionismo. IV - A PRIMEIRA SOLUÇÃO: EXPULSÃO Eichmann não odiava os judeus e segundo Arendt, os judeus de família estavam entre as suas razões particulares. O que ele deixou de dizer ao juiz durante o interrogatório é que havia sido um jovem ambicioso que estava cansado de trabalhar como vendedor viajante antes de a Companhia de Óleo à Vácuo o dispensar. De uma vida rotineira e sem significado, ele entendia que ter entrado para SS podia ser um novo começa para construir uma carreira – para alguém já fracassado aos olhos de sua classe, família e seus próprios olhos também. Mas ele nunca tinha tempo e vontade de se informar adequadamente sobre o programa do Partido, nunca leu o livro “Minha luta”, de Hitler. Além de que ele nunca passou do posto de tenente coronel. A vida militar era uma mesmice e por isso ele decidiu sair do Serviço de Segurança do Reichsfuhrer para o do Reich. Mas ele teve que começar tudo de novo para subir de posto. Ele se frustrou porque não sabia o que o esperava. Uma das primeiras tarefas era fazer um museu sobre a maçonaria – porque era ligada às práticas do judaísmo, catolicismo e comunismo – e uma das práticas do nazismo era fundar museus celebrando seus inimigos, como museus anti-judaicos. Hannah Arendt diz que se deve a isso a preservação de muitos tesouros culturais do judaísmo europeu. Mas essa tarefa era tediosa e depois Eichmann foi transferido para trabalhar num departamento referente aos judeus. Lá o seu chefe pediu para ler “Der Judenstaat”, de Theodor Herzl e que parece que foi o primeiro livro sério que Eichmann leu e que o converteu ao sionismo. Depois leu História do Sionismo, de Josef Böhm. Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Daí em diante ele não pensava em nada mais do que uma “solução política” para conseguir uma base sólida para os judeus. Conquistou indicação oficial como espião oficial dos escritórios sionistas e foi para a Áustria. Ele se fascinava pelo sionismo, porque os judeus sionistas eram idealistas como ele próprio. Quando ele disse no interrogatório da polícia que teria mandado seu próprio pai para a morte se isso tivesse sido exigido, não queria apenas frisar até que ponto era um cumpridor de ordens, mas também o quão “idealista” ele sempre fora. Para ele, o “idealista” tinha sentimentos e emoções, mas não as deixava interferir em suas ações se entrassem em conflito com suas ideias. Ele fez acordo com sionistas, permitindo a partida legal deles (trens eram de fato protegidos pela polícia alemã) em troca de paz e tranquilidade nos campos de concentração (ou seja, sionistas que sacrificaram seus irmãos judeus em nome de sua “ideia”). Curioso que Hitler manteve Constituição de Weimar, mas os judeus não podiam ocupar cargos públicos nem aparecer na imprensa e todos que obtiveram cidadania após data de inicio da 1ª GM (1914) deveriam ser desnaturalizados e sujeitos à expulsão (o que veio acontecer mais para a frente, quando ninguém esperava). A tarefa de Eichmann em Viena em 1938 foi caracterizada como “emigração forçada” – isto é, expulsão – foi um período do qual ele se orgulhava, porque havia sido reconhecido e condecorado. Esse era seu primeiro trabalho importante em toda a sua carreira: em 8 meses, 45 mil judeus deixaram a Áustria, em 18 meses, 148 mil, 60% da população judaica. A ideia básica não foi dele, mas de Reinhardt Heydrich, que seria o verdadeiro engenheiro da Solução Final (1941). Depois da Áustria, Eichmann foi para Praga e de lá para Berlim, sempre na emigração forçada. Só que com a incorporação da Polônia, o Reich também havia adquirido cerca de 2 milhões de judeus a mais e a solução de emigração forçada não seria fácil. Era natural que a emigração, por melhor organizada que estivesse em linha de produção, se esgotasse por si mesma. Eichmann sabia que se os assuntos judaicos continuassem sendo uma questão de emigração, ele logo perderia seu emprego. Segundo Heydrich, por intermédio da comunidade judaica, extraíam dinheiro dos judeus ricos que queriam emigrar em troca de possibilitar que os judeus pobres partissem (se livrar da massa judaica). Foi criado um “fundo de emigração” a partir de uma linha de produção, com uma tal eficiência no serviço público, para facilitar que os judeus entrassem no começo dessa repartição e fosse de balcão em balcão passando pelo processo em que tiravam seu dinheiro e saíam com um passaporte onde se lia ‘você deve deixar o país dentro de 15 dias, senão irá para um campo de concentração’. Era uma máquina de perda de direitos. Havia acordo entre as autoridades nazistas e a Agência Judaica para a Palestina (Aliyah Beth) – única forma legal de um judeu levar consigo seu dinheiro que permitia que um emigrante para Palestina pudesse transferir em bens alemães e trocá-los por libras ao chegar. O resultado foi que na década de 1930, enquanto os EUA boicotavam a Alemanha, a Palestina vivia inundada de mercadorias made in Germany. Era interesse dos judeus abandonar o país, embora nem todos entendessem isso, e Eichmann se orgulhava em ajudar nesse processo, pois era aliado dos sionistas. “As pessoas tendem a esquecer disso agora”, disse ele em Jerusalém. Porque para os nazistas, os sionistas eram os judeus decentes, que também pensavam em termos nacionais. O advogado de Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Eichmann, no entanto, apostou mais na tese de que eram pequenos dentes na engrenagem e cumpriam ordens do Führer. “Minha única língua é o oficialês”, disse Eichmann no interrogatório. Ele demonstrou- se incapaz de pronunciar uma frase que não fosse um clichê. Os juízes tinham razão quando disseram ao acusado que tudo o que dissera era “conversa vazia”, só que eles pensavam que o vazio era fingido e que o acusado queria cobrir outros pensamentos. Mas isso não era só sobre a questão na qual estava envolvido, era também sobre sua vida na Argentina. E quanto mais se ouvia Eichmann, mais ficava óbvio que sua capacidade de falar estava relacionada com a sua capacidade de pensar, pensar do ponto de vista das outras pessoas. Segundo Hannah Arendt, o caso de Eichmann é diferente do criminoso comum, que só pode se proteger com eficácia da realidade do mundo não criminoso dentro dos estritos limites da sua gangue. Bastava Eichmannse lembrar do passado para se sentir seguro de não estar mentindo e não estar se enganando, porque ele e o mundo em que viveu marcharam em perfeita harmonia, assim como a sociedade alemã de 80 milhões de pessoas, com os mesmos autoenganos, mentiras e estupidez impregnadas na mentalidade de Eichmann. A disposição dele em admitir seus crimes devia-se, sobretudo, à aura de sistemática hipocrisia que constituía a atmosfera geral, que atingia a todos, no Terceiro Reich. Era muito difícil dar credibilidade ao depoimento do Eichmann, todo mundo percebeu que ele não era um monstro, mas estava difícil não desconfiar que fosse um palhaço. Mas, diante do sofrimento que ele e seus semelhantes causaram, suas piores palhaçadas mal foram notadas e quase nunca reveladas pela imprensa. Primeiro ele disse enfaticamente que a única coisa que aprendeu em sua vida foi jamais fazer um juramento (porque depois deveria pagar as consequências) e então, depois de informado que se quisesse testemunhar em sua própria defesa, deveria escolher fazê-lo com ou sem juramento e ele preferiu, sem mais delongas, testemunhar sob juramento. Ele se consolava com clichês. Conforme Arendt, a palavra “barbárie” é uma distorção da realidade, é como se os intelectuais judeus e não judeus tivessem fugido de um país que não era mais suficientemente “refinado” para eles. Em 1935, Hitler era conhecido na Alemanha como um grande estadista, devido ao enorme programa de rearmamento, o desemprego havia sido eliminado, a resistência inicial da classe trabalhadora fora quebrada e a hostilidade do regime ainda não se voltara inteiramente para perseguição aos judeus. É bem verdade que em 1933, um dos primeiros passos do governo nazista foi excluir judeus dos cargos públicos, não era permitido formarem-se, entrarem nas universidades. E as Leis de Nuremberg, de 1935, privavam os judeus de seus direitos políticos, mas não de seus direitos civis. Eles não eram mais cidadãos, mas continuavam membros do Estado Alemão e mesmo se emigrassem não ficariam sem nacionalidade. Era proibido sexo entre judeus e alemães, os casamentos mistos, nenhuma mulher alemã com menos de 45 anos poderia ser empregada em casa judaica. Isto é, judeus eram cidadãos de segunda classe. Porém tal situação ainda iria piorar conforme o regime se voltava cada vez mais para a perseguição dos judeus, em especial. V – SEGUNDA SOLUÇÃO: CONCENTRAÇÃO Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Nota Isso lembra o livro "Ele está de volta", de Timur Vermes. Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Levando em consideração que Eichmann foi parar em Berlim e que houve a ocupação da Polônia, os limites da política de emigração forçada foram colocados em xeque, por isso foi pensado que era preciso uma grande área da Polônia, onde iriam estabelecer um Estado judaico autônomo, na forma de protetorado. Essa poderia ser “a” solução da questão judaica – solo firme debaixo dos pés dos judeus. Portanto, como já era inviável expulsar uma grande quantidade de judeus, a solução encontrada foi a concentração de judeus em guetos. Os campos de concentração eram entendidos em termos de administração e os campos de extermínio, em termos de economia. Muitos judeus de outras partes da Europa foram deportados para esse(s) local (is) na Polônia. Mas não havia casas, não havia água, os poços estavam contaminados com cólera, disenteria e tifo. Ou seja, essa solução não funcionou. A segunda tentativa foi o projeto Madagascar: o envio de quatro milhões de judeus da Europa para Madagascar, ilha de cerca de 4 milhões de habitantes nativos. Eichmann ocupou boa parte do seu tempo elaborando um plano para isso acontecer, até a invasão da Rússia em 1941. Segundo Arendt, era um plano mirabolante, cuja finalidade sempre foi servir de capa sob a qual os preparativos para o extermínio físico de todos os judeus da Europa Ocidental seria levado a cabo (não houve necessidade de nenhuma capa para o extermínio dos judeus poloneses!). Quando o plano Madagascar foi declarado obsoleto, todos estavam preparados para o passo lógico seguinte: uma vez que não havia território para evacuação, a solução seria o extermínio. Era o fim da carreira de Eichmann, pois o que agora se iniciava seria transferido para outras unidades. Theresienstadt, na República Tcheca, era o único campo – destinado aos judeus de classe sociais mais altas – onde representantes da Cruz Vermelha Internacional eram admitidos, era a vitrine para o mundo. Eichmann ficou sabendo da Solução Final por Heydrich, que já vinha sabendo disso há tempos (pois era hierarquicamente superior). A partir de então ele não era mais portador de ordens, mas progrediu para o grau de portador de segredos. Havia uma regra de linguagem, não se falava em “extermínio”, mas em “evacuação”, em “solução final”. Quando um portador de segredos encontrava alguém do mundo exterior – como representantes da Cruz Vermelha em Theresienstadt – mentia sobre a existência de uma epidemia de tifo inexistente no campo de concentração de Bergen-Belsen, que eles iriam visitar. O efeito desse sistema de linguagem era impedir que os soldados equacionassem com o seu antigo e normal conhecimento do que era assassinato e mentira. Levando em consideração a sensibilidade de Eichmann para palavras-chave e frases de efeito, ele era um paciente ideal para esse tipo de regras. VI – A SOLUÇÃO FINAL: ASSASSINATO Eichmann viu o suficiente para estar informado de como funcionava a máquina de destruição: o fuzilamento e a execução por gás nos campos, câmaras ou caminhões, as complexas precauções que se tomavam no campo para enganar as vítimas até o final. Nos documentos de Nuremberg, não se encontrou nenhum caso de membro da SS que tenha sofrido pena de morte por se recusar a participar de uma execução. Era possível um pedido de transferência. Eichmann sabia disso, admitiu que poderia ter recuado sob um pretexto qualquer, como outros o fizeram. E Arendt se questiona: quanto tempo leva uma pessoa Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce mediana para superar sua repugnância inata pelo crime? Segundo ela, o caso de Eichmann fornecia uma resposta que não poderia ser mais clara e precisa. O primeiro carregamento realizado por Eichmann para a “evacuação”, ele enviou para Lodz e não para o Leste, para o extermínio. Isto é, ele desobedeceu a uma ordem. Porém, ele mesmo parecia ter esquecido e tratou do incidente como uma questão de escolha e não de desobediência. O advogado de defesa concluiu que Eichmann havia salvado os judeus sempre que podia. Porém o promotor entendeu que ele tinha era poderes de decidir se uma carga seria exterminada ou não. Para Arendt, nenhuma das três versões é verdade. Porque Eichmann havia tido dificuldades em Lodz, de forma que sua ordem significava destino finalMinsk ou Riga. Além de que esse foi o único caso em que ele tentou salvar judeus. Ele também tentou um acordo para enviar judeus para os campos destinados aos comunistas, então ele tinha consciência, pelo menos durante cerca de quatro semanas, quando esta passou a funcionar às avessas. A consciência de Eichmann se rebelou não com a ideia de assassinato, mas com a ideia de judeus alemães serem mortos. Ou seja, os judeus da Europa Oriental tudo bem. Havia aí uma distinção entre povos “primitivos” e povos “cultos”. Mas Eichmann estava sendo julgado porque era um destruidor de seres humanos ou de culturas? Arendt cita o filme Dr. Fantástico, que propõe uma explosão no mundo que causasse a destruição de todos os humanos, mas que os que tivessem Q.I. mais alto fossem protegidos. A situação era tão simples quanto desesperada: a esmagadora maioria do povo alemão acreditava em Hitler – mesmo depois do ataque à Rússia, da guerra dos fronts, de os EUA terem entrado em guerra, mesmo depois de Stalingrado, da derrota da Itália, dos desembarques na França. A minoria poderia se conhecer e confiar um no outro, mas não havia nenhum plano, nem intenção de revolta. Por exemplo, Carl Goerdeler era um dos conspiradores que jamais conseguiram chegar a um acordo sobre nada, ele defendia a instauração da monarquia constitucional; Wilhelm Leuschner, ex-líder sindical e socialista, dizia garantir apoio das massas; e Helmuth von Moltke estava mais preocupado com a reconciliação das duas igrejas cristãs ao lado de uma posição favorável ao federalismo. Além disso, Arendt frisa que Eichmann não participou do atentado à Hitler de 20 de julho de 1944 e considerava os soldados que participaram como traidores. Embora Arendt diga que se Eichmann tivesse conhecido os pontos de Goerdeler sobre a questão judaica, ele teria encontrado pontos em comum, pois este previa indenização aos judeus alemães por perdas e maus-tratos e uma solução permanente que seria a criação de um Estado independente num país colonial e nem todos os judeus seriam expulsos. Himmler era o membro da hierarquia nazista mais dotado para resolver problemas de consciência, ele quase nunca tentava se justificar em termos ideológicos e se o fazia, esquecia depressa. O que afetava a cabeça desses homens que tinham se transformado em assassinos era simplesmente a ideia de estar envolvidos em algo histórico, grandioso, único. Assim, ao invés de dizer “que coisas horríveis eu fiz com as pessoas”, poderiam dizer “que coisas horríveis eu tive de ver na execução dos meus deveres, como essa tarefa pesa sobre os meus ombros”. Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Mas a extermínio aos judeus não começou na solução final, obviamente. Em 1939, Hitler decretou a instituição de câmaras de gás destinadas às pessoas incuráveis (o que ele chamava de “morte misericordiosa”) na Alemanha. Mas a dificuldade em disfarçar as câmaras gerou protestos de todos os lados. A eliminação por gás no Leste começou praticamente no mesmo dia em que cessou na Alemanha. Perceba que assassinato era sinônimo de dar uma morte misericordiosa. Quando perguntaram para Eichmann acerca dessa ironia, ele não entendeu a pergunta, de tão forte que estava enraizado em sua mente que o pecado imperdoável não era matar pessoas, mas causar sofrimento desnecessário. Eichmann todo o tempo tentou manter o autocontrole, levando as pessoas a pensar que ele era impassível e indiferente. Mas não foi a acusação de ter matado milhares de pessoas que o deixou agitado, mas só a acusação (negada na corte) de uma testemunha que disse que ele havia espancado um menino judeu até a morte. Havia equipes para a eutanásia e especialistas em morte misericordiosa por todos os lados e a partir de 1942, em operações no Leste para ajudar os “feridos na neve e no gelo”. VII – CONFERENCIA DE WANNSEE, OU PÔNCIO PILATOS Segundo o relato de Eichmann, a elite do serviço público disputou e brigou entre si pela honra de assumir a liderança dessa questão sangrenta e naquele momento, ele teve uma espécie de sensação de Pôncio Pilatos, pois se sentiu livre de toda a culpa. Ele se transformou no perito em evacuação forçada, como já havia sido de emigração forçada. Os peritos legais elaboraram a legislação necessária para tornar apátridas as vítimas, o que era importante sob dois aspectos: tornava impossível para qualquer país inquirir sobre o destino deles, e permitia que o Estado em que residiam confiscasse sua propriedade. No começo, quando as pessoas podiam ter ainda alguma consciência, quase não ocorreram deserções entre a elite governante e os comandantes superiores da SS, essas defecções se fizeram notar só quando ficou evidente que a Alemanha ia perder a guerra. Essas perdas nunca foram sérias a ponto de desequilibrar a máquina; elas consistiam em atos individuais, não de misericórdia, mas de corrupção, inspirados não pela consciência, mas pelo desejo de guardar algum dinheiro ou alguns contatos para os dias sombrios que estavam por vir. Eichmann contou que o fator mais potente para acalmar a sua própria consciência foi o simples fato de não ver ninguém efetivamente contrário à Solução Final. Houve até a cooperação dos judeus ricos, com o estabelecimento de governos de fachada em territórios ocupados sempre acompanhado pela organização de um escritório judeu central. Os membros de governos de fachada eram escolhidos entre os partidos de oposição e os membros dos Conselhos Judeus eram líderes judeus regionalmente reconhecidos, a quem os nazistas davam enormes poderes. Para um judeu, o papel desempenhado pelos líderes judeus na destruição de seu próprio povo é o capítulo mais sombrio de toda uma história de sombras. Eles retinham o dinheiro dos deportados para abater as despesas de sua deportação e extermínio, ao controlar os apartamentos vazios, suprir as forças policiais para ajudar a prender os judeus e conduzi-los Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce aos trens, ao entregar os bens da comunidade judaica em ordem para os confiscos finais, distribuir os emblemas da Estrela Amarela, etc. De todo modo, os judeus não eram reconhecidos como beligerantes pelos nazistas, porque se o fossem teriam sobrevivido em campos de prisioneiros de guerra ou de internamento de civis. isso dificulta entender o genocídio como um mero crime de guerra. No julgamento, os promotores sempre perguntavam “Por que não se rebelou?” para as testemunhas da acusação. Arendt diz que a verdade é que o povo judeu não era um todo organizado, que não possuía território, governo, nem exercito em sua hora de maior precisão, nem um esconderijo de armas, nem uma juventude em treinamento militar. Existiam organizações comunitárias e recreativas judaicas, mas o fato é que quasetoda liderança judia cooperou com o nazismo. Eichmann no julgamento disse que ninguém foi até ele e o censurou, nem o postar Grüber. E todos que pediam uma exceção para o seu caso, conheciam a regra. O estabelecimento de Theresienstadt como gueto para categorias privilegiadas foi motivado pelo grande número dessas intervenções vindas de todos os lados (vale lembrar que isso foi no começo). O próprio Hitler conhecia 340 judeus de “primeira classe”, que ele fez assimilar ao status de alemães ou concedeu privilégios a meio-judeus (Heydrich e Göring, por exemplo, eram meio-judeus, mas isso era secreto). Não eram poucos, principalmente entre a elite intelectual, que ainda lamentaram publicamente o fato de a Alemanha ter despachado Einstein, sem perceber que era um crime muito maior matar o pequeno Hans Cohn na esquina, mesmo que não fosse nenhum gênio. VIII – DEVERES DE UM CIDADÃO RESPEITADOR DA LEI Eram muitas as oportunidades para Eichmann se sentir Pôncio Pilatos, era um cidadão respeitador das leis, cumpria os deveres e as ordens. Por isso ele acabou completamente confuso frisando alternativamente as virtudes e os vícios da obediência cega ou “cadavérica”, como ele mesmo a chamou. No interrogatório na polícia, ele havia dito com grande ênfase que havia vivido toda a sua vida de acordo com os princípios morais de Kant (definição do dever). Isso parecia incompreensível porque a filosofia moral de Kant está ligada à faculdade de juízo do homem. Mas Eichmann deu uma explicação quase completa do imperativo categórico: o princípio da minha vontade deve ser sempre tal que possa se transformar no princípio de leis gerais. E que a partir do momento em que fora encarregado de efetivar a Solução Final deixara de viver segundo os princípios kantianos, que sabia disso e se consolava com a ideia de que “não era mais senhor dos seus próprios atos”. Hans Frank reformulou essa categoria como o “imperativo categórico do Terceiro Reich”: “Aja de tal modo que o Führer, se souber de sua atitude, o aprove”. A última crise de consciência de Eichmann começou com suas missões na Hungria em 1944. Ele era capaz de mandar milhões de pessoas para a morte, mas não de falar sobre isso de maneira adequada se não lhe fornecessem a regra de linguagem condizente. Em Jerusalém, sem regra de linguagem, falou em “matar”, em “assassinato” e “crimes legalizados pelo Estado”. Quando as ordens de Himmler (seu superior direto) contrariaram ordens do Führer, ele ameaçou pedir novas ordens diretamente à Hitler. A posição de Eichmann demonstrava uma semelhança muito desagradável com a do soldado que agindo dentro de um quadro legal Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Nota Porque não é mesmo. Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce normal, se recusa a executar ordens que contrariam sua experiência de legalidade e que podem ser reconhecidas por ele como criminosas. Eichmann demonstrava sua ilimitada e imoderada administração por Hitler, um homem que tinha conseguido subir de cabo dos lanceiros a chanceler do Reich. Ele viu com violenta indignação como todos estavam muito razoavelmente se arranjando com documentos falsos antes da chegada dos russos ou dos estadunidenses. De fato, ele próprio começou a viajar com nome falso, mas então Hitler já estava morto, a “lei local” não existia mais e ele não estava mais preso a seu juramento (que ligava à Hitler e não à Alemanha). IX – DEPORTAÇÕES DO REICH – ALEMANHA, ÁUSTRIA E O PROTETORADO A posição de Eichmann era a de elo mais importante em toda a operação, porque sempre dependia dele e de seus homens a quantidade de judeus a transportar de uma determinada área, e era sempre por intermédio de seu departamento que se encaminhava uma carga a seu destino final, embora esse destino não fosse determinado por ele. Além disso, os nazistas logo perceberam que havia grandes diferenças entre os antissemitas de vários países. A variedade radical alemã só era inteiramente apreciada pelos povos do Leste (Ucrânia, Estônia, Lituânia, etc), que os alemães consideravam hordas bárbaras. E deficientes de hostilidades contra os judeus eram as nações escandinavas, que segundo os nazistas eram irmãos de sangue da Alemanha. Os regulamentos preparatórios para a Solução Final: (i) a introdução da faixa amarela, (ii) mudança da lei de nacionalidade, estabelecendo que um judeu não poderia ser considerado cidadão alemão se vivesse fora das fronteiras do Reich e por fim, (iii) decreto determinando que toda propriedade de judeus alemães que perdessem sua nacionalidade fosse confiscada pelo Reich. Não havia uma única organização ou instituição pública da Alemanha que não tenha sido envolvida em ações ou transações criminosas, nos anos de guerra. X – DEPORTAÇÕES NA EUROPA OCIDENTAL – FRANÇA, BÉLGICA, HOLANDA, DINAMARCA E ITÁLIA A Holanda foi o único país em toda a Europa em que os estudantes entraram em greve quando os professores judeus foram despedidos, e onde uma onda de greves explodiu como reação à primeira deportação de judeus para campos de concentração. A Finlândia, embora apoiasse o Eixo, foi o único país que os nazistas não chegaram sequer a abordar a questão judaica, talvez pelo apreço que Hitler tinha pelos finlandeses e não queria submetê-los a ameaças e chantagens humilhantes. Além disso, a história dos judeus dinamarqueses é sui generis e o comportamento do povo de lá e de seu governo foi único na Europa. Eles explicaram aos funcionários alemães que uma vez que os refugiados apátridas não eram mais cidadãos alemães, os nazistas não podiam mais requisitá-los sem o consentimento dinamarquês. Foi um dos poucos casos em que a falta de pátria acabou sendo um “privilégio”. Os trabalhadores das docas se recusaram a consertar navios alemães, entrando em greve em seguida. Não só os generais dinamarqueses recusaram-se a pôr as tropas à disposição do Reich, como também as unidades especiais da SS Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce alocadas na Dinamarca muitas vezes objetaram as medidas que os organismos centrais ordenavam que fossem tomadas. É o único caso que os nazistas encontraram resistência nativa declarada. A relação da Itália também não era tão próxima quanto parecia. Segundo Arendt, os nazistas sabiam que tinham mais em comum com a versão stalinista de comunismo do que com o fascismo italiano e Mussolini não tinha muita confiança na Alemanha, nem muita admiração por Hitler. Ele fazia as promessas ou os funcionários de alto escalão, e se os generais simplesmente deixavam de cumpri-las, Mussolini os desculpava com base em sua “formação intelectual diferente”. No Itália, dificilmente existia uma família judaica sem pelo menos um membro filiado ao Partido Fascista, e isso porque era uma época em que os cargos públicos só estavam abertos para seus membros. Havia judeus até entre os homens da SS, mas isso era confidencial, na Itália, era abertamente e até inocentemente. XIV – PROVAS E TESTEMUNHAS O testemunho de Eichmann à corte veio aser a prova mais importante do caso. O grosso das testemunhas veio do Leste Europeu (Polônia e Lituânia), onde a competência e autoridade de Eichmann eram quase nulas. Arendt cita um dos testemunhos, o de Zindel Grynszpan, que contou a história da expulsão dos judeus de nacionalidade polonesa e que residiam na Alemanha para a Polônia. Não levou mais de 10 minutos para ser contada e quando terminou – a destruição sem sentido, sem necessidade, de 27 anos em menos de 24 horas – era de se pensar que todo mundo devia ter o seu dia na corte. Outra testemunha disse que todos sabiam o que era feito, mas não faziam nada porque qualquer um que protestasse teria sido preso em 24 horas ou desaparecido. Segundo Arendt, faz parte do refinamento dos governos totalitários do século XX que eles não permitam que seus oponentes morram a morte grandiosa, dramática dos mártires. O Estado totalitário deixa seus oponentes desaparecerem em silencioso anonimato. Politicamente, a lição é que em condições de terror, a maioria das pessoas se conformará, mas algumas pessoas não, da mesma forma que a lição dos países aos quais a Solução Final foi proposta é que ela “poderia acontecer” na maioria dos lugares, mas não aconteceu em todos os lugares. XV – JULGAMENTO, APELAÇÃO E EXECUÇÃO O advogado de defesa frisou o fato de que o acusado havia sido raptado e levado à Israel em conflito com a lei internacional, permitindo à defesa questionar o direito da corte de processá-lo. Embora nem a acusação, nem os juízes tenham admitido que o rapto foi um “ato de Estado”, eles também não o negaram. Apesar das páginas e páginas de argumentos legais, baseados em tantos precedentes, acaba-se com a impressão de que o rapto estava entre os modos mais frequentes de prisão, e que foi o fato de Eichmann ser apátrida de fato e nada mais, que permitiu à corte de Jerusalém levá-lo a julgamento. E ele sabia, por sua carreira, que se podia fazer qualquer coisa que se quisesse com uma pessoa apátrida, afinal, os judeus tinham que perder sua nacionalidade antes de serem executados. Eichmann foi condenado em todas as quinze acusações, porque junto com outros Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce ele havia cometido crimes “contra o povo judeu”, com a intenção de destruir as pessoas, divididos em quatro acusações: 1. Provocar o assassinato de milhões de judeus. 2. Levar milhões de judeus a condições que poderiam levar à destruição física. 3. Causar sérios danos físicos e mentais a eles. 4. Determinar que fossem proibidos os nascimentos e interrompidas as gestações de mulheres judias em Theresienstadt. O absolveram das acusações referentes ao período anterior a 1942, porque ele não tinha intenção de destruir o povo judeu. Os itens 5 a 12 das acusações se tratavam de crimes contra a humanidade, um conceito estranho à lei israelense, porque incluía tanto o genocídio, se praticado contra povos não judeus, como todos os outros crimes cometidos fosse contra judeus ou não-judeus, contanto que não fossem cometidos com intenção de destruir um povo como um todo. O item 5 condensava os crimes do item 1 e 2, o item 6 o condenava por ele ter perseguido judeus por motivos raciais, religiosos e políticos, o item 7 tratava da pilhagem de propriedade dos judeus, o item 8 resumia todos os feitos novamente como “crimes de guerra” porque foram cometidos, em sua maioria, durante a guerra. Os itens 9 a 12 tratava de crimes contra não-judeus: o 9 pela expulsão de centenas de milhares de poloneses de suas casas, o item 10 pela expulsão dos eslovenos da Iugoslávia, o item 11 pela deportação de milhares de ciganos para Auschwitz (mas ficou consignado que ele não sabia que estava deportando para o extermínio, razão pela qual não foi caracterizado o termo “genocídio”). O item 12 tratava da deportação das 93 crianças de Lidice, aldeia tcheca cujos habitantes foram massacrados depois do assassinato de Heydrich (porém, ele foi absolvido do assassinato dessas crianças). Os últimos três itens o acusavam de ser membro de três das quatro organizações que o julgamento de Nuremberg havia classificado de “criminosas” – a SS, o SD (Serviço de Segurança) e a Polícia Secreta do Estado, ou Gestapo. Todos os crimes de 1 a 12 levavam à pena de morte. Eichmann insistiu que era culpado de “ajudar e instigar” a realização dos crimes de que era acusado, mas que ele próprio nunca havia cometido nenhum ato aberto. De fato, conforme o julgamento, um complexo crime como este, em que várias pessoas participaram, em vários níveis e em várias espécies de atividade – planejadores, organizadores, aqueles que executavam os atos – não havia muito propósito em se usar os conceitos normais de aconselhar e assistir a perpetração de um crime. Porque esses crimes foram cometidos em massa, não só em relação ao número de vítimas, mas no que diz respeito ao número dos que perpetraram o crime, e a medida na qual eles estavam próximos ou distantes das vítimas nada significava no que tangia à medida de suas responsabilidades. Conforme foi colocado, ao contrário, o grau de responsabilidade aumenta quanto mais longe nos colocamos do homem que maneja o instrumento fatal com suas próprias mãos. Conforme a defesa, Eichmann tinha realizado “atos de Estado” e que o que aconteceu com ele poderia acontecer no futuro com qualquer um, todo o mundo civilizado enfrenta esse Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce problema. Eichmann era então um bode expiatório. Além disso, nenhuma pena de morte poderia ser aplicada, porque ela havia sido abolida incondicionalmente na Alemanha. O presidente de Israel no época, Ben-Zvi, recebeu o pedido de clemencia de Eichmann, quatro páginas manuscritas, redigidas “segundo instruções de meu advogado”. Ele também recebeu centenas de cartas e telegramas do mundo todo pedindo clemencia: Conferência Central dos Rabinos Norte-Americanos, corpo representativo do judaísmo reformado naquele país; grupo de professores da Universidade Hebraica de Jerusalém, liderados por Martin Buber. Ben-Zvi rejeitou todos os pedidos de clemencia, dois dias depois de a Suprema Corte ter pronunciado seu julgamento, poucas horas depois, no mesmo dia, Eichmann foi enforcado, seu corpo foi cremado e as cinzas espalhadas no Mediterrâneo, fora das águas israelenses. Isto é, a execução ocorreu menos de duas horas depois e Eichmann ser informado que seu pedido de clemencia havia sido recusado. A rapidez para a execução da pena talvez seja explicada pelas tentativas da defesa: um pedido a uma corte da Alemanha Ocidental para forçar o governo a pedir a extradição do Eichmann e uma ameaça de invocar o Artigo 25 da Convenção para Proteção dos Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais. A sentença de morte foi expedida e não havia ninguém para contestá-la, mas as coisas ficaram diferentes quando se soube que os israelenses já a tinham executado. O argumento mais comumera que os atos de Eichmann desafiavam a possibilidade de punição humana, que não fazia sentido impor a sentença de morte para crimes dessa magnitude. Martin Buber chamou a execução de um “erro de proporções históricas”, porque podia servir para expiar a culpa sentida por tantos jovens na Alemanha. Arendt também enfatiza a grotesca tolice das ultimas palavras de Eichmann. Ele começou dizendo enfaticamente que era um Gottgläubiger, expressão utilizada pelos nazistas para dizer que ele não era cristão e não acreditava na vida depois da morte. E continuou: dentro de pouco tempo, senhores, iremos encontra-nos de novo. Esse é o destino de todos os homens. Viva a Alemanha, viva a Argentina, viva a Áustria. Não as esquecerei”. Diante da morte, ele encontrou um clichê utilizado na oratória fúnebre, esquecendo-se que era seu próprio funeral. Foi como se naqueles últimos minutos estivesse resumindo a lição que esse longo curso de maldade humano nos ensinou: da temível banalidade do mal, que desafia as palavras e o pensamento. EPÍLOGO Arendt frisa as inúmeras irregularidades e anormalidades do julgamento de Jerusalém. As objeções levantadas contra o julgamento de Eichmann eram de três tipos. (i) Objeções levantadas contra os julgamentos de Nuremberg, que se repetiam: Eichmann sendo julgado por uma lei retroativa e era trazido à corte dos vitoriosos. A resposta da corte foi simples: julgamentos de Nuremberg como precedente válido. Se um crime antes desconhecido (genocídio) aparece, a própria justiça exige julgamento segundo uma nova lei, no caso de Nuremberg, foi a Carta (Acordo de Londres de 1945); no caso de Israel, foi a Lei de 1950. O problema não residia na retroatividade da lei (se estavam legislando), o que era inevitável, mas sim na sua adequação, sua aplicação a crimes antes desconhecidos. A Carta Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce criava jurisprudência para três tipos de crimes: contra a paz, crimes de guerra e contra a humanidade. Só este último era novo e sem precedentes. A principal dificuldade de Nuremberg estava no fato indiscutível de que o argumento tu-quoque era aplicável: a Rússia, que nunca assinou a Convenção de Haia, era mais do que suspeita de maus tratos a prisioneiros, pior ainda o bombardeio de Hiroshima e Nagasaki, que constituíam claramente crimes de guerra no sentido da Convenção. A violação da Convenção de Haia pelos Aliados nunca foi discutida em termos legais porque os Tribunais Internacionais Militares eram internacionais apenas no nome, eram cortes dos vitoriosos. (ii) Objeções que se aplicavam à corte de Jerusalém, questionavam sua competência ou incapacidade de levar em conta o ato do rapto. A resposta foi a seguinte: uma vez que os judeus tinham território próprio, o Estado de Israel, eles evidentemente tinham tanto direito de julgar os crimes cometidos contra o seu povo quanto os poloneses tinham de julgar os crimes cometidos na Polônia. Todas as objeções eram legalistas ao extremo. A corte, para justificar a sua competência, não deveria ter precisado invocar o princípio da personalidade passiva – que as vítimas eram judeus e só Israel tinha direito de falar em seus nomes – nem o princípio da jurisdição internacional aplicando a Eichmann por ele ser hostis generis humani (regra aplicável em analogia a da pirataria). O princípio da jurisdição universal, dizia-se, era aplicável porque crimes contra a humanidade são semelhantes ao velho crime de pirataria e quem comete se torna, como o pirata na lei internacional, hostis humani generis. No entanto, se Isral o raptou apenas por isso e não por ser hostis judaeorum, seria difícil justificar a legalidade de sua prisão. A exceção do pirato ao princípio territorial não é feita porque ele seja inimigo de todos, podendo ser julgado por todos, mas porque seu crime é cometido em alto- mar (que é terra de ninguém). A analogia entre genocídio e pirataria não é nova (na própria Convenção sobre Genocídio, 1948, que rejeita a alegação de jurisdição universal e prove em seu lugar que pessoas acusadas de genocídio devem ser julgadas por tribunal competente nos Estados em cujo território o ato foi cometido ou por um tribunal penal internacional que tenha jurisdição). Ou seja, Israel deveria ter procurado instaurar um tribunal internacional ou reformular o princípio territorial de tal forma que se aplicasse a Israel. O que vamos fazer amanha se algum Estado africano resolver mandar seus agentes ao Mississippi para raptar um dos lideres do movimento segregacionista local? A justificativa era a falta de precedentes do crime e do surgimento do Estado judeu. (iii) Objeções à própria acusação, que afirmava que Eichmann cometeu crimes “contra o povo judeu”, em vez de dizer “contra a humanidade”, e, portanto, à lei sob a qual estava sendo julgado. Conclusão de que a única corte adequada para julgar esses crimes seria um tribunal internacional. A resposta foi a seguinte: foi a catástrofe dos judeus que levou os Aliados a conceberem a ideia de “crime contra a humanidade”, em Nuremberg só Julius Streicher foi condenado a morte pela acusação de crime contra a humanidade. A expulsão de cidadãos já é, por si, um crime contra a humanidade, se por “humanidade” se entende não mais que a política de boa vizinhança. A expulsão e o genocídio, embora sejam crimes internacionais, devem ser distinguidos: o primeiro é crime contra as nações irmãs, enquanto o último é um ataque à diversidade humano enquanto tal, isto é, uma característica do “status humano”, sem a qual a simples palavra “humanidade” perde o sentido. Na medida em que as vítimas eram judeus, era certo que uma corte judaica pudesse conduzir o julgamento; mas na Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce medida em que o crime era um crime contra a humanidade, era preciso um tribunal internacional para fazer justiça a ele. Assim como um assassino é processado porque violou a lei da comunidade, e não porque privou a família de seu marido/pai, assim também esses assassinatos modernos empregados pelo Estado devem ser processados porque violaram a ordem da humanidade e não porque mataram milhões de pessoas. Arendt fala sobre a emergência de um código penal internacional que se encarregue desses crimes, da ilusão de que o genocídio seja apenas um crime de assassinato. Parte do fracasso da corte de Jerusalém deve-se ao apego a utilizar os precedentes de Nurembergsempre que possível, basicamente não tomando as rédeas de três itens fundamentais: (i) Problema da predefinição da justiça na corte dos vitoriosos: a corte de Jerusalém, ao contrário de Nuremberg, não admitiu testemunhas de defesa, essa foi a falha mais séria nos procedimentos. (ii) Definição válida de crime contra a humanidade: as conclusões da corte de Jerusalém foram muito melhores do que as de Nuremberg nesse sentido, porque coloca que esses crimes não foram cometidos unicamente com o propósito de eliminar a oposição, mas para se livrar de populações nativas inteiras. A grande vantagem de um julgamento de um crime contra o povo judeu era fazer emergir a diferença entre crime de guerra (fuzilamento de guerrilheiros, assassinato de reféns) e atos desumanos (expulsão e aniquilamento para permitir colonização) e crimes contra a humanidade, cujo intento era sem precedente. Mas em nenhum momento o tribunal de Jerusalém chegou a mencionar a possibilidade de o extermínio de grupos étnicos inteiros ser mais do que um crime contra o povo judeu ou polonês ou cigano. (iii) Reconhecimento claro do novo tipo de criminoso que comete esse crime. O problema de Eichmann, nesse julgamento espetáculo, era que ele era exatamente como qualquer outro, era assustadoramente normal, do ponto de vista de nossas instituições e padrões morais de julgamento. E essa normalidade era muito mais apavorante do que todas as atrocidades juntas, esse era um tipo novo de criminoso, que comete seus crimes em circunstâncias que tornam praticamente impossível para ele saber ou sentir que está agindo de modo errado. Nesse sentido, potencialmente quase todos os alemães eram culpados. O que quer dizer que onde todos ou quase todos são culpados, ninguém é culpado. Isso nada tem a ver com a recém-nascida ideia de “culpa coletiva”, segundo a qual as pessoas são culpadas ou se sentem culpadas de coisas feitas em seu nome, mas não por elas. Não estão sendo discutidas responsabilidades pessoais, só num sentido metafórico alguém pode dizer que sente culpa por aquilo que não ele, mas seu pai ou seu povo fizeram. Culpa e inocência diante da lei são de natureza objetiva, e mesmo que 8 milhões de alemães tivessem feito o que Eichmann fez, isso não seria desculpa. Existe um abismo entre a realidade do que foi feito e a potencialidade do que os outros poderiam ter feito. Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce “Assim como você apoiou e executou uma política de não partilhar a Terra com o povo judeu e com o povo de diversas outras nações – como se você e seus superiores tivessem o direito de determinar quem devia e quem não devia habitar o mundo – consideramos que ninguém, nenhum membro da raça humana, haverá de querer partilhar a Terra com você. Esta é a única razão pela qual você deve morrer na forca.” PÓS ESCRITO Quando Arendt fala em banalidade do mal, fala num nível estritamente factual, apontando um fenômeno que colocado de frente no julgamento. Eichmann não era nenhum monstro ou vilão, a não ser por sua extraordinária aplicação em obter progressos pessoais, ele não tinha nenhuma motivação. Ele simplesmente nunca percebeu o que estava fazendo. Ele não era burro, foi pura irreflexão. Além disso, o conceito de genocídio utilizado na corte não foi inteiramente adequado, porque os massacres de povos inteiros não são sem precedentes. Eram a ordem do dia na Antiguidade, e os séculos de colonização e imperialismo fornecem muitos exemplos de tentativas desse tipo. A expressão “massacres administrativos” é a que parece melhor definir o fato. Vale lembrar que é bem sabido que Hitler começou seus assassinatos brindando aos “doentes incuráveis” uma “morte misericordiosa”. A essência dos governos totalitários e talvez a natureza da burocracia seja transformar homens em funcionários e meras engrenagens, desumanizando-os. Em relação aos conceitos de “ato de Estado” e “por ordens superiores”, Arendt diz que a teoria de ato de Estado tem por base o argumento de que um Estado soberano não pode julgar outro. Esse argumento já havia sido descartado em Nuremberg, porque se fosse aceito nem Hitler poderia ser acusado, então isso teria violado o mais elementar senso de justiça. Por trás do conceito de ato de Estado existe a teoria da razão de Estado, pela qual as ações do Estado não são sujeitas às mesmas regras que os atos dos cidadãos do país. A razão de Estado apela para a necessidade, e os crimes de Estado cometidos em seu nome são considerados medidas de emergência, concessões feitas a fim de preservar o poder e assim garantir a continuação da ordem legal como um todo. No entanto, em um Estado fundado em princípios criminosos, a situação se inverte, não é a existência do Estado que está em jogo. Qual seria a natureza da soberania de tal entidade? Segundo Arendt, é bastante concebível que certas responsabilidades políticas entre nações possam algum dia ser julgadas em uma corte internacional, o que é inconcebível é que tal corte venha a ser um tribunal criminal que declare a culpa ou a inocência de indivíduos. Portanto, a obra visava questionar até que ponto a corte de Jerusalém esteve à altura das exigências de justiça. Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce Leila Giovana Realce
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