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Santo Agostinho: O Estado Verdadeiramente Justo é o Estado Cristão - Luis Rodrigues

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SANTO AGOSTINHO: O ESTADO VERDADEIRAMENTE 
JUSTO É O ESTADO CRISTÃO 
 
Luis Rodrigues1 
A filosofia social e política de Santo Agostinho parte do princípio 
aristotélico, estóico e ciceroniano da sociabilidade natural do homem, à qual 
o dogma cristão da unidade da espécie humana confere o valor autêntico. 
Esta sociabilidade natural dá lugar à constituição da família, instituída por 
Deus no Paraíso Terreal antes do pecado, e conduz à cidade, caracterizada 
pela maior complexidade do seu fim, pois abarca uma multidão de seres 
racionais unidos pela comunidade dos objectos que amam. O mandato, dado 
por Deus ao primeiro casal, de crescer e multiplicar-se, é prova inequívoca da 
vocação original do homem para a vida social; e, como toda a sociedade, 
inclusive a de seres perfeitos, exige uma autoridade, conclui-se que são de 
carácter primário certas relações de subordinação, e que o pecado só podia 
significar, quer na família, quer, em seguida, na cidade, um agravamento das 
mesmas no sentido de converter em coactivo o poder, que sem o pecado 
seria livremente e espontaneamente acatado. 
A sociedade política, como tal, corresponde, pois, a uma inclinação 
natural do homem, seja ele santo ou perverso, e a sua função primordial 
consiste em assegurar a paz e realizar a justiça dentro dos limites da ordem 
natural. Neste aspecto, não nos parece que o pensamento de Santo 
Agostinho levante sérias dúvidas. Que a paz que a sociedade política 
assegura e a justiça que põe em prática sejam por si mesmas imperfeitas, 
não invalida esta fundamentação jusnaturalista. Trata-se de simples 
consequência de um facto mais geral, que, em maior ou menor medida, 
qualquer pensador cristão não deixa de afirmar: a insuficiência da natureza, 
abandonada às suas forças; a sua necessidade de perfeição pela 
sobrenatureza, para a qual está ordenada. O que acontece é que, em Santo 
Agostinho, esta insuficiência é sentida com maior angústia do que, por 
exemplo, em S. Tomás. 
Cidade de Deus e Cidade terrestre 
Historicamente, a sociedade política aparece inserida na luta 
irredutível que entre si sustentam a civitas Dei ou civitas coelestis, e a 
civitas terrena, também chamada civitas deaboli. Os dois sujeitos da 
história universal são sociedades em sentido místico: formam-nos, 
respectivamente, os anjos bons e os homens santos de todos os tempos, e 
os anjos maus e os homens perversos de todos os tempos - uns e outros 
seres racionais, unidos entre si por dois amores de sinal contrário: o amor-
próprio até ao desprezo de Deus (os segundos), e o amor de Deus até ao 
desprezo próprio (os primeiros). São sociedades supratemporais, visto que 
nasceram com a queda dos anjos rebeldes, e o seu antagonismo durará até 
ao dia do Juízo Final. Mas ambas as cidades têm, em qualquer momento, 
uma dimensão temporal e terrena, na medida em que dividem entre si o 
género humano. (... ) 
A cidade celeste, de que Deus é fundador e rei, está aqui em 
baixo em peregrinação entre os ímpios. Ela acha-se no exílio e como que 	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  
1 RODRIGUES, Luis. Santo Agostinho: o Estado verdadeiramente justo é o Estado 
cristão. Teorias e argumentos. Disponível em: <http://lrsr1.blogspot.com/2011/04/santo-
agostinho-o-estado.html> Acesso em 01/03/2012. 
prisioneira. É a família dos homens que vivem da fé, aguardando 
pacientemente a estabilidade da eterna morada e todos. Os bens eternos, 
pois ela já está munida da promessa de redenção. Ela usa, aqui em baixo, 
mas como estrangeira, os bens temporais, que a família dos homens que não 
vivem da fé usa na busca da paz terrena. Desse modo, as duas cidades, sem 
terem nem a mesma fé, nem a mesma esperança, nem o mesmo amor, usam 
igualmente os bens temporais, assim como sofrem também os males 
temporais. Isso é o mesmo que dizer que elas se acham enredadas e como 
que misturadas uma na outra no século, para só se diferenciarem no Juízo 
Final, onde cada uma alcançará o seu fim próprio. A sua própria natureza 
impede-as de poderem um dia conciliar-se. Mas necessariamente elas 
coexistem, coabitam enquanto dura aqui em baixo a peregrinação da cidade 
celeste. Necessariamente os cristãos fazem parte de uma e de outra. Eles 
são cidadãos da cidade terrestre. Obedecem às leis que asseguram a sua 
boa administração "em tudo o que é exigido pela substância da vida mortal". 
Suportam os ónus impostos em troca dos benefícios recebidos, que são 
essencialmente a concórdia, a ordem, a paz definida como "a tranquilidade 
da ordem". Têm até o dever, como cristãos, de ser melhores cidadãos que 
os outros, cidadãos inatacáveis. Mas isso (como frisará E. Gilson) não por 
devoção a uma pátria, mas a Deus. (... ) 
Grande é a tentação, fortalecida por certos textos da monumental 
obra, de crer que a Cidade celeste ou Cidade de Deus coincide com a Igreja 
e que a cidade terrestre coincide com o Estado, o Império, a respublica ou o 
regnum em sentido amplo, em suma, com a sociedade política. Ora, não é 
nada disso. A Igreja, ao menos como estrutura concreta, histórica, empírica, 
não é e não poderia ser a Cidade de Deus, pois abriga, ao mesmo tempo 
justos, eleitos, predestinados (que, aliás, aqui em baixo, não se sabe quem 
são), e homens que não serão salvos. Inversamente, as sociedades políticas 
concretas, "realizadas materialmente no tempo e no espaço", que abrigam, 
por força, futuros eleitos e, ao mesmo tempo, futuras almas danadas, não 
poderiam coincidir com essa entidade mística que é a Cidade terrestre. 
Depois do Juízo Final, que procederá à triagem definitiva, "o que se manterá 
frente a frente não será, é claro, de um lado a Igreja e, do outro, o Estado, 
mas a sociedade divina dos eleitos e a sociedade diabólica dos condenados; 
tomados na sua significação essencial, esses dois pares de termos são 
portanto inteiramente distintos". 
Voltamos a encontrar nele, na Cidade de Deus e em outras obras, o 
tema patrístico, de raiz estóica, do domínio do homem sobre o homem, 
estranho à natureza humana íntegra e pura de antes da Queda. Esse 
domínio não é mais do que o preço do pecado, e o orgulho que o 
acompanha, esse intolerável orgulho da alma que despreza a igualdade 
natural dos seres humanos, é apenas o sinal da corrupção devida ao 
pecado. 
Acrescenta Agostinho que, para além dos tempos, no Reino de Deus, 
todas as soberanias, todas as dominações humanas serão eliminadas, sendo 
Deus tudo em todos. Mas, enquanto isso, o escravo deve obedecer ao 
amo de boa vontade (e não por temor hipócrita), fazendo assim da sua 
servidão uma liberdade. Essa servidão está na ordem, é legítima, pois o 
pecado, que perturbou a ordem natural, devia ser castigado. Da mesma 
forma, o governo coercitivo, também ele preço do pecado, está na ordem, é 
legítimo, assim como é necessário; pode-se dizer que ele é natural em 
segundo grau, em relação à natureza corrompida e desviada do homem 
depois da Queda. Devem portanto os governados obediência ao poder, nos 
limites das suas finalidades específicas. Agostinho lembra com firmeza o Dai 
a César. Labora em grande erro o cristão que invoca a sua qualidade de 
cristão para se eximir do tributo, ou para não prestar às autoridades 
temporais as honras que lhes são devidas: todo o poder instituído neste 
mundo deve ser honrado, "mesmo pelos que são melhores do que ele". Ao 
proceder desse modo, o cristão obedece aliás menos aos homens do que a 
Deus, que assim o ordenou. 
No entanto, em sentido inverso (e sempre para obedecer às ordens de 
Deus que prevalecem sobre todas as outras), deve o cristão evitar estender a 
sua submissão a César "até o ponto de colocar a sua fé sob ojugo daqueles 
que estão revestidos dessas altas dignidades que os instalam acima das 
coisas deste mundo". 
A Deus o que é de Deus. 
Entre dois excessos em sentido contrário, preconiza Agostinho aquilo 
a que chama uma "justa moderação" (temperantia). Isto quer dizer que o mau 
príncipe, essa dádiva misteriosa de Deus, não pode reclamar obediência em 
tudo e para tudo. Agostinho volta aqui à "justa moderação" e assinala quão 
palpável é a sua permanência no espírito da grande palavra evangélica sobre 
César. Faz sobre ela o mais esplêndido dos comentários, a propósito dos 
soldados cristãos de Juliano, o Apóstata. Estes (diz ele) recusavam-se a 
incensar os ídolos, mas aceitavam marchar para o combate arriscando as 
suas vidas, porque no caso a causa do Cristo não se achava em jogo; esses 
cristãos modelares faziam distinção entre "o seu Senhor eterno e o seu 
senhor temporal, e no entanto, em face do Senhor eterno, obedeciam ao 
senhor temporal". O Senhor eterno entendia que o senhor temporal (César, a 
respublica, o regnum em sentido amplo, o Estado) por ele desejado, por ele 
instituído, natural em segundo grau, fosse lealmente servido em tudo o que 
se conformava aos limites que Deus lhe determinava, e que, sob esse 
aspecto, recebesse todo o necessário à sua existência (como o tributo). Mas 
se o mestre temporal comandava contra Deus, se as suas ordens exigiam 
coisas injustas e ímpias, contrárias não só à lei eterna mas também à lei 
natural, então o dever do cristão era recusar. Simples recusa, resistência 
passiva, e não revolta activa (não se tratava de sublevar-se e de empunhar 
a espada). Lembrem-se, diz Agostinho, dos mártires cristãos que preferiram 
tudo suportar a abjurar as suas crenças e morreram por elas com toda a 
devoção e serenidade: essa atitude cobriu de vergonha as leis que 
proscreviam a sua fé, levando à sua modificação. 
A César o que é de César 
 Nada mais, nada menos. Quanto a saber quem é César, 
constitucionalmente falando, imperador, rei, chefe de República, conselho 
aristocrático, assembleia democrática, isso é indiferente. "Na medida em 
que isso diz respeito a esta vida mortal que se escoa e termina em poucos 
dias, que importa sob que autoridade vive o homem criado para morrer, se 
aqueles que comandam não o compelem a actos injustos e ímpios", assim 
nos fala, de muito alto, Agostinho na Cidade de Deus. 
A cada poder o seu domínio, com total independência: ao Estado os 
interesses materiais, a vida exterior, as sanções físicas (a espada). À Igreja 
os interesses espirituais, a vida interior, as sanções puramente espirituais 
(todas sempre acompanhadas de caridade). A Igreja coloca-se, não obstante, 
num plano superior. A sua jurisdição estende-se ao universo em vez de 
limitar-se a um povo determinado. E, enquanto o Estado não é senão uma 
realidade inconstante e provisória, destinada a desaparecer quando vier o 
Reino de Deus, tem a Igreja a eternidade diante de si, na medida em que 
prefigura a Cidade celeste, sem confundir-se com ela. Na sua ordem, cada 
uma das duas sociedades (a sociedade religiosa e a sociedade política) é 
perfeita, e portanto autónoma e livre de qualquer ingerência. 
Contudo, a ordem da Igreja, que tende para a ordem absoluta da 
Cidade celeste, é uma ordem superior. Desejável e necessária é, por outro 
lado, a colaboração - estreita - entre essas duas sociedades que não 
poderíamos conceber confinadas cada qual ao seu domínio próprio, isolada 
da outra e ignorando-a. O interesse do Estado o exige, exige-o também o 
interesse da Igreja. 
O interesse do Estado. 
É a Igreja a grande mestra que ensina os deveres sociais e, ao mesmo 
tempo, os deveres individuais, pois os deveres sociais nascem igualmente 
dos preceitos divinos. Que aqueles que ousam dizer que o cristianismo é 
contrário à prosperidade dos Estados "nos dêem um exército composto de 
soldados tal como o exige a doutrina de Cristo (... ), governadores de 
província, reis, juízes, contribuintes e colectores de impostos segundo as 
prescrições da doutrina cristã!" 
O interesse da Igreja. 
Sendo natural professar o Estado publicamente a verdadeira fé, que 
ele procure desenvolver no mais alto grau o culto do verdadeiro Deus, e puna 
com religiosa severidade todos os actos que contrariem os mandamentos 
divinos! Surge, porém, aí o problema de recorrer ao braço secular contra a 
heresia, no caso o donatismo (do nome de Donato, cismático africano que se 
insurgiu contra o bispo de Cartago e foi condenado em 314 no Concílio de 
Arles). Agostinho começa por desaprovar as medidas violentas que o poder 
civil emprega para reconduzir à força os hereges à unidade cristã: é preciso, 
diz ele, lutar com a palavra, com o debate, vencer pela razão, mostrar a 
máxima paciência. No entanto (à medida que os donatistas se entregam a 
excessos de fanatismo), a paciência de Agostinho acaba por esgotar-se. Ele 
alia-se à coerção, "amenizada pela caridade", diante do que lhe parece a 
evidência dos factos. É inútil, explica ele, o herege invocar o livre arbítrio: 
"Por que não reclamais igualmente os direitos do vosso livre arbítrio 
em matéria de homicídios, impudicícias e outras espécies de crimes?" 
Lembra a parábola da grande ceia, em São Lucas [14, 15], onde o amo 
ordena ao seu servo que obrigue todos a entrar para que sua casa fique 
cheia. Porque é que a Igreja não forçaria os seus filhos perdidos a retomarem 
ao seu seio, já que eles próprios empregam a força para matar os outros? 
Que as leis imperiais venham, pois, em socorro da verdadeira fé, graças ao 
temor que inspiram. 
Pode-se porventura conceber um Estado verdadeiro, um Estado 
digno desse nome, sem justiça, sem verdadeira justiça? Mas o que é a 
verdadeira justiça senão a justiça cristã, de ordem sobrenatural? "A 
verdadeira justiça só existe nessa coisa pública criada e governada por Cristo 
(... ) nessa Cidade a cujo respeito diz a Sagrada Escritura: coisas gloriosas 
foram ditas sobre ti, Cidade de Deus." Eis, contudo, algo bem absoluto e 
categórico. Tanto mais que a afirmação visa directamente, por oposição, à 
coisa pública ou respublica que foi a Roma pagã da época de Cícero: 
Agostinho pretende mostrar que ela nunca foi uma verdadeira coisa pública, 
porque jamais houve nela verdadeira justiça. 
Daqui deduzem-se duas consequências importantes. 
a) A Igreja cristã tentará modelar a sociedade civil de acordo com os seus 
princípios celestiais de conduta: ela tem a missão de actuar como bússola da 
terra. A Igreja deve 
incutir no Estado os seus princípios eternos. 
b) A Igreja é assim a única sociedade verdadeiramente perfeita, sendo 
indubitavelmente superior ao Estado, porque se o Estado tem como dever 
orientar-se pelos princípios da Igreja, não pode estar acima dela nem ao 
mesmo nível. 
Estes pontos de vista fizeram com que Santo Agostinho fosse considerado o 
inspirador da exaltação medieval da Igreja perante o Estado.

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