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A Mercantilização da Educação e a Extensão Universitária 
 
José Humberto de Góes Junior* 
 
 
Desde o final da década de 80 e início da década de 90 do século passado, 
estamos observando o processo acelerado de desmonte do ensino superior público. Sob o 
princípio da não ingerência do Estado, ou seja, da atuação restrita do Poder Público, através 
da não-intervenção na economia e da redução de gastos, que fundamentou a implantação do 
Neo-liberalismo nos países de 3° Mundo, justificaram-se os cortes de verbas e foram 
inviabilizados alguns serviços prestados, mormente pelas Universidades Públicas. 
 
No Brasil, várias foram as tentativas do governo em desobrigar o Estado da 
necessidade de desempenho de políticas para o ensino superior: a PEC 370; a Emenda 
Constitucional 14; o favorecimento à abertura de Cursos de Nível Superior sem qualquer 
fiscalização; redução do tempo dos cursos; o Provão; a avaliação institucional in loco; e, no 
final do governo FHC, as propostas de leis complementares que tentavam limitar o direito 
de greve do servidor público federal e possibilitar a contratação por tempo determinado, 
ampliando o alcance da lei 8.745/93 (das contratações de temporário e excepcional 
interesse público). 
 
À medida que cada uma dessas situações era configurada, estruturava-se o 
suporte para a privatização velada dos espaços, serviços universitários e, principalmente à 
propagação dos cursos e estabelecimentos de ensino particulares. 
 
Este caminho não foi obstaculoso embora tenha sofrido grande resistência. Pois, 
com uma propaganda massificante, grande parte dos integrantes da comunidade 
universitária se rendeu (por vezes, de modo inconsciente e em outras em franco 
compromisso com o individualismo neo-liberal, com as reformas do governo e a 
sedimentação da globalização econômica no País) à ideologia mercantilista de educação. 
 
Com o terreno semeado, começaram a surgir ações-estratégicas que mesmo não 
obtendo êxito, preparava espaço para uma nova ação, e esta agia para a composição de 
nova ótica de dever do Estado em relação às IFES. 
 
A partir da PEC 370, a autonomia universitária sofreu ameaças de 
desvirtuamento e passa a ser compreendida como necessidade, por parte dos 
Estabelecimentos de Ensino, de busca desenfreada de recursos para sua sobrevivência. 
 
Com efeito, surgiram inúmeras fundações nas Universidades com o fim 
precípuo de angariar fundos para a melhoria dos salários dos professores envolvidos, bem 
como de divulgá-los, pessoal e profissionalmente. 
 
Sendo assim, Pesquisa e Extensão, diretamente atingidas, passam a ter um 
processo seletivo cada vez mais rigoroso no sentido de favorecer diretamente certos tipos 
de Projetos. Sobretudo aqueles com grande possibilidade de arrecadação e acúmulo de 
fundos. Pois, tanto maior a possibilidade de geração financeira, maior o interesse dos 
departamentos e da administração universitárias. 
 
Em franco desenvolvimento, este processo de privatização, mascarado de 
“autonomização” do Ensino Superior Público, ganha fôlego com a Emenda Constitucional 
14. Pois, para cumprir uma exigência de redução das desigualdades sociais e do 
analfabetismo encaminhada pela ONU, UNICEF e Comitê das Nações Unidas contra Todas 
as Formas de Discriminação, Tortura e de Desigualdades Sociais, o governo brasileiro 
considerou que deveria concentrar seus gastos com o ensino fundamental, impor às IFES a 
redução de seus orçamentos e legalizar a premissa (ilegítima) de obrigatoriedade apenas 
deste tipo de ensino. 
 
A comunidade universitária, no entanto, desfechou os processos de greve com o 
intuito de impedir a redução de gastos com o ensino superior, para a melhoria dos salários 
dos professores e funcionários, impedir a aprovação da PEC e o agravamento das 
conseqüências interpretativas da Emenda Constitucional 14. 
 
Em seguida, foi criado o Provão para avaliar as instituições que possuíam 
deficiências na preparação profissional. 
 
A contrario sensu aqueles estabelecimentos em que se verificassem piores 
notas, teriam os cursos descredenciados, ao invés de um maior investimento para a 
contratação de professores, desenvolvimento de pesquisa e extensão. Contudo, esta 
tentativa de apresentar a prestação educativa pública como superada se frustrou ao se 
verificar que as instituições particulares estavam em patamar abaixo, embora as IFES 
estivessem com orçamentos menores. 
 
Desse modo, mais uma tentativa de promover o ensino superior privado deveria 
ser envidada. Foi então que o Governo Federal criou a avaliação institucional in loco. 
Agora, apenas com a visita e atribuição de notas aos serviços e projetos desenvolvidos 
pelas Universidades seria possível a manutenção do credenciamento dos cursos de nível 
superior. 
 
Duas conseqüências imediatas foram observadas a partir de então. Uma delas foi 
a mobilização dos seguimentos universitários comprometidos contra a transformação do 
espaço educativo em uma indústria capitalista, cujos ônus eram devolvidos aos estudantes, 
que, através do pagamento de seus encargos fiscais e sociais, já financiam a elaboração e o 
desenvolvimento de outras políticas públicas. Surgiam greves em todos os Estados 
Federados, denunciando o descaso com a educação e a redução do orçamento para o ensino 
superior. 
 
O Governo Federal, contudo, não mediu esforços para carcomer a luta de 
estudantes, professores e técnicos administrativos. Para evitar a manifestação da 
comunidade universitária, além de se institucionalizar a idéia do prejuízo das greves para o 
alunado (sobretudo, pelo atraso na formatura), o governo FHC tratou de propor no 
Congresso Nacional a aprovação de dois projetos de lei complementar, para votação em 
caráter de urgência. 
Um deles objetivava limitar o exercício do direito de greve dos servidores 
públicos e o outro, facilitar a contratação de pessoal para substituir os funcionários em 
protesto, com base no excepcional e temporário interesse público. 
 
Ficou clara a intenção governamental em utilizar os próprios segmentos 
universitários para, mesmo que tacitamente, desmantelar as manifestações políticas contra 
suas decisões e a própria universidade pública. Com isso foi possível compreender que pela 
divisão dos seguimentos a força estaria reduzida e, sem ela a Universidade não poderia 
lutar por si própria e por sua possibilidade de atendimento às gerações futuras. 
 
A outra implicação direta, produto mediato das crises de hegemonia da 
Universidade, gerada desde a primeira fase do capitalismo (séc. XVII ao XIX), foi a busca 
desarticulada e impensada, no século XX, do fomento à extensão universitária e à pesquisa. 
Pois, embora o governo e as próprias instituições soubessem que não havia (não há) 
disponibilização suficiente de recursos para o desenvolvimento dessas áreas, existia uma 
cobrança para o desempenho delas, independentemente de como se desse e de onde saíssem 
seus financiadores. Além da necessidade de maquiar a situação faticamente constatada, 
impedindo o descredenciamento de alguns dos cursos. 
 
Desse modo, grupos de pesquisa e extensão, sem qualquer fundamento teórico-
ideológico, foram incentivados e passaram a agir contra a Universidade. Principalmente 
porque não havia nenhum compromisso com a luta política por sua manutenção e pelo 
aumento dos recursos destinados a elas. Muitos deles, inclusive, buscaram financiamentos 
externos ou, mesmo, passaram a explorar no alunado as idéias de competição e de destaque. 
O que além de fortalecer a lógica capitalista do individualismo, também vem facilitando a 
obtenção de fundos através da organização de seminários e cursos complementares, a 
preços exorbitantes. 
 
O que parecia lento e dissimulado, hoje já é tão palpável e ao mesmo tempo tão 
imbricado que muitos departamentos, acostumados à nova ordemdas coisas, eximem-se de 
manifestar-se pela Universidade e de vincular-se financeiramente a ela, muitas vezes, 
alegram-se e se vangloriam de não precisarem da Universidade para subsistir. Outros, 
ainda, chegam a afirmar que estar aliado à Instituição é prejudicial, porque se sentem 
tolhidos em sua liberdade (conceito juridicamente destinado aos indivíduos e não à 
Administração Pública, que a exerce de maneira diferente, conforme o interesse público e 
os preceitos normativos existentes). 
 
Ao longo destes últimos 15 anos, as fundações que se utilizam do espaço físico, 
do corpo técnico e profissional, do nome e do alunado da Universidade, porém, sem lhe 
render nada financeira e político-ideologicamente, passaram a desempenhar pesquisas e um 
tipo de extensão de interesse de grandes indústrias, sem nenhum compromisso social. 
 
É o caso, por exemplo, das empresas juniors, dos escritórios modelos de 
advocacia, e de outros grupos que se restringem a desenvolver políticas clientelistas, 
paternalistas e de mera obtenção de fundos, através de atividades temporárias, na maioria 
das vezes, paliativas, ou mesmo, indevidas. 
 
A extensão universitária, entretanto, instituída com o propósito de humanizar a 
formação profissional e ampliar o raio de alcance da Universidade para comunidades 
excluídas da ação estatal, passa a integrar e fortalecer a lógica de mercado, individualista, 
de alguns profissionais que abandonam a luta coletiva pelas IFES, e passam a se preocupar 
exclusivamente consigo mesmo. 
 
Estes novos paradigmas extensionistas e de professor sem compromisso com a 
formação crítica e engajada dos profissionais, contraria as expectativas sociais quanto às 
instituições de ensino superior e aos profissionais que ela produz. Pois, com a atual crise 
financeira e o aumento da miséria e exclusão sociais, o mínimo que a sociedade espera é ter 
profissionais dispostos a desconstruir os modelos excludentes e a participar dos processos 
transformativos. 
 
Neste sentido, é exato Paulo Freire quando afirma: “Se a possibilidade de 
reflexão sobre si, sobre seu estar no mundo, não existe no ser, seu estar no mundo se reduz 
a um não poder transpor os limites que lhe são impostos pelo próprio mundo, do que resulta 
que este ser não é capaz de compromisso. É um ser imerso no mundo, no seu estar, 
adaptado a ele e sem ter dele consciência. Sua imersão na realidade, da qual não pode sair, 
nem “distanciar-se” para admirá-la e, assim, transformá-la, faz dele um ser “fora” do tempo 
ou “sob” o tempo ou ainda, num tempo que não é seu. O tempo para tal ser “seria” um 
perpétuo presente, um eterno hoje. A-histórico, um ser como este não pode comprometer-
se; em lugar de relacionar-se com o mundo, o ser imerso nele somente está em contato com 
ele. Seus contatos não chegam a transformar o mundo, pois deles não resultam produtos 
significativos, capazes de (inclusive, voltando-se sobre eles) marcá-los”.1
 
Desse modo, se a extensão universitária, aliada à pesquisa, é um valioso 
instrumento para despertar nos indivíduos a necessidade de envolvimento social, de 
participação e transformação, ao se tornar burocratizada e meramente produtivista, ela se 
perde e passa não só a legitimar, como a constituir-se parte do arcabouço que aliena o ser e 
mantém as estruturas de dominação e exclusão social. 
 
Assim é que devemos precisar qual o tipo de projetos que se anseia, o modo 
como devem se constituir sem destruir o caráter público, gratuito e de qualidade social da 
Universidade e como se pode impedir que estes modelos castradores do povo se 
sedimentem. 
 
Afinal, constituir (ou melhor, reconstituir) os modelos de extensão 
comprometidos com a ética da autonomização do ser, da compreensão do indivíduo como 
ser no mundo, ou seja, como agente transformador dos paradigmas excludentes, é uma 
tarefa difícil, ante a lógica às avessas criada pela ideologia neo-liberal. Entretanto, é um dos 
instrumentos mais eficientes de luta contra a mercantilização da Educação, porque provoca, 
através da geração do vínculo social, a destituição desses “novos” conceitos de extensão, 
higienizados, distantes da realidade vigente, e desperta nos alunos, professores e 
comunidade o senso crítico quanto ao processo capitalista avançado nas universidades e 
para a defesa da ampliação destes espaços gratuitos e de qualidade social. 
 
1 FREIRE, Paulo. Educação e Mudança. 21ª ed. Paz e Terra. Rio de Janeiro. 1997. ps. 16 e 17. 
 
 
___________________________ 
* Professor Substituto do Departamento de Direito da UFS; Advogado do SINASEFE; 
Advogado da CMP – Central de Movimentos Populares; Advogado do MOPS – 
Movimento Popular de Saúde; Advogado do GAPA/SE – Grupo de Apoio à Prevenção à 
Aids de Sergipe; Advogado do DCE/UFS – Diretório Central dos Estudantes; Conselheiro 
Nacional do MNMMR – Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua; Membro do 
Setor de Projetos do MST – Movimento dos Sem Terra e Membro-Fundador do SAJU/SE – 
Serviço de Auxilio Jurídico Universitário da Universidade Federal de Sergipe.

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