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: A Mente Humana # 3, outubro de 2004 Epilepsia: uma janela para o cérebro. Alexandre Valotta da Silva, MD, PhD. Esper Abrão Cavalheiro, MD, PhD. Laboratório de Neurologia Experimental da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP- EPM). Resumo A epilepsia é uma doença comum do cérebro, afetando aproximadamente 1% da população mundial. Clinicamente, as epilepsias são caracterizadas por crises espontâneas e recorrentes, convulsivas ou não-convulsivas, que são causadas por descargas parciais ou generalizadas no cérebro. Os modelos animais para crises e epilepsias têm assumido um papel fundamental na compreensão das mudanças comportamentais e psicológicas associadas à epilepsia humana. Eles nos permitem determinar a natureza das lesões que poderiam contribuir para o desenvolvimento da epilepsia ; , observar e interceder no processo da doença subsequente a uma lesão antecipando crises expontâneas ; , e, também, estudar o cérebro cronicamente epilético em detalhes, utilizando técnicas fisiológicas, farmacológicas, moleculares e anatômicas. No presente artigo, nós revisamos resumidamente como a pesquisa da epilepsia contribuiu para novas descobertas do funcionamento do cérebro e vice-versa. : A Mente Humana # 3, outubro de 2004 Epilepsia: uma janela para o cérebro. “Mestre, eu te trouxe o meu filho, que está com um espírito que o impede de falar. Onde quer que o apanhe, joga-o no chão. Ele espuma pela boca, range os dentes e fica rígido...”. Todos sabemos o que está acontecendo com esse garoto. O que alguns talvez não saibam é que esse relato tem mais de dois mil anos (1). Naquela época, as idéias relacionadas às doenças geralmente vinculavam-se a fenômenos sobrenaturais, magia ou maldições. Hoje sabemos que aproximadamente 1% da população mundial (60 milhões de pessoas) é acometida por crises epilépticas recorrentes, resultantes de uma hiperatividade dos neurônios e circuitos cerebrais (2) (3) (4). A essa síndrome chamamos “epilepsia”, que na língua original significa “ser apanhado de surpresa”. As descrições mais remotas de epilepsia são atribuídas aos egípcios e sumérios, datando de aproximadamente 3.500 a.C. O principal documento que trata de neurologia no Egito Antigo, o Papiro de Smith, relata crises convulsivas nos trechos que descrevem indivíduos com ferimentos na cabeça, por volta de 1.700 a.C. Na Suméria (Mesopotâmia), nessa mesma época, vários textos em acadiano registram claramente o que hoje chamamos de crises epilépticas. Manuscritos mais recentes, como os textos bíblicos do primeiro século, também citam a ocorrência de manifestações muito semelhantes a crises convulsivas, geralmente associadas à possessão demoníaca. Por volta de 400 a.C., Hipócrates, o chamado “Pai da Medicina”, afirmou que a causa da epilepsia não estava em espíritos malignos, mas sim no cérebro, tentando desfazer mitos sobrenaturais. Os escritos da época foram os primeiros a atribuir causas físicas para as doenças neurológicas, identificando o cérebro como local-chave para o entendimento do comportamento humano. Desde então, esse novo olhar sobre o sistema nervoso tem impulsionado as pesquisas na área da neurologia. Médicos, anatomistas, escultores, pintores, filósofos, teólogos, físicos e uma infinidade de pesquisadores tem sido seduzidos pelo estudo da “sede da alma” (5). : A Mente Humana # 3, outubro de 2004 Conhecendo o cérebro quebrado Muito do que sabemos hoje sobre o funcionamento do sistema nervoso é fruto da observação de indivíduos acometidos por doenças neurológicas. Assim, inferimos que o cerebelo participa da coordenação dos movimentos voluntários ao observar que indivíduos com lesões cerebelares tornam-se incapazes de executar movimentos adequadamente. Nesse sentido, o estudo da epilepsia oferece uma oportunidade ímpar para aprofundar o conhecimento a respeito do cérebro humano. Bastaria dizer que a epilepsia é a doença neurológica mais comum, mas isso não é tudo. O termo “epilepsia” encerra uma grande variedade de manifestações clínicas, desde as chamadas auras psíquicas até as crises tônico- clônicas generalizadas, incluindo as epilepsias da infância, as epilepsias secundárias a outras doenças, as epilepsias de origem familiar e muitas outras (6) (7). Poderíamos dizer que os tipos de epilepsia são tão variados quanto as próprias funções cerebrais. Assim, o conhecimento da epilepsia se mistura ao conhecimento do próprio cérebro. Em pacientes com epilepsia, as causas das descargas epilépticas são muito variadas. Elas podem ocorrer em virtude de uma simples tendência a crises, determinada por fatores genéticos, ou em função de lesões bem definidas do sistema nervoso. Aproximadamente 70% dos pacientes com epilepsia controlam as crises usando os fármacos disponíveis. Mas uma porcentagem significativa (de 30% a 40%), em que predominam indivíduos com lesões focais, não consegue controlá-las com medicamentos. Nesses casos, o tratamento cirúrgico pode, após análise cuidadosa, ser uma alternativa eficaz. Atualmente, a avaliação desses pacientes inclui uma gama de exames bastante sofisticados como a ressonância magnética estrutural e funcional, a tomografia por emissão de pósitrons (Positron Emission Tomography - PET) e a tomografia por emissão de fóton único (Single Photon Emission Computed Tomography - SPECT). Esses exames nos permitem visualizar mudanças sutis na estrutura do tecido nervoso e no modo como as diferentes regiões cerebrais estão funcionando (2) (3) (4). Além dos estudos envolvendo pacientes com epilepsia, existe uma variedade de modelos em animais que têm contribuído sobremaneira para o conhecimento detalhado dos fenômenos envolvidos na origem e na manifestação das crises epilépticas. : A Mente Humana # 3, outubro de 2004 Crises provocadas As preparações experimentais mais antigas não reproduziam de forma fidedigna a fenomenologia encontrada em seres humanos. Naqueles modelos, as crises eram induzidas principalmente de forma aguda, não sendo observada a ocorrência de crises espontâneas tardiamente. Vale recordar que, por definição, a epilepsia é caracterizada por crises espontâneas e recorrentes. Assim, indivíduos que apresentam crises isoladas, principalmente se forem provocadas, não são considerados portadores de epilepsia. Entretanto, os modelos de crises induzidas foram e ainda são muito úteis, particularmente no estudo das respostas cerebrais a determinados tipos de estimulação. Um exemplo disso é o modelo clássico do “abrasamento amigdaliano” (8). Nesse modelo, são aplicados estímulos elétricos repetidos através de um eletrodo intracerebral implantado nos núcleos da amígdala (Figura 1), culminando com uma crise do tipo tônico-clônica generalizada. A estimulação repetida produz uma modificação progressiva dos circuitos neuronais - “abrasamento” - que pode ser interpretada como um fenômeno de neuroplasticidade. Muito do que sabemos hoje sobre plasticidade cerebral - a capacidade dos circuitos neuronais de se modificarem como resposta aos estímulos do meio - é fruto de estudos que utilizaram esse e outros modelos de indução de crises (9) (10). : A Mente Humana # 3, outubro de 2004 Crises espontâneas Nas últimas duas décadas, novos modelos foram desenvolvidos tendo como característica principal a ocorrência de crises espontâneas, geralmente subseqüentes a um insulto