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Professora Doutora Luscelma O C Craice * *É verdade que os primeiros pensadores que se debruçaram sobre a definição do que hoje entendemos por cidadania buscaram inspiração em certas realidades do mundo greco-romano, que conheciam por intermédio dos clássicos transmitidos pela tradição manuscrita do ocidente: a ideia de democracia, de participação popular nos destinos da coletividade, de soberania do povo, de liberdade do indivíduo. * *Era idealizada e falsa. *A cidadania nos Estados-nacionais contemporâneos é um fenômeno único na História. *Não podemos falar de continuidade do mundo antigo, de repetição de uma experiência passada e nem mesmo de um desenvolvimento progressivo que unisse o mundo contemporâneo ao antigo. *São muito diferentes, com sociedades distintas, nas quais pertencimento, participação e direitos têm sentido diverso. * *1. Estados nacionais Os Estados nacionais surgiram no período conhecido como Baixa Idade Média, entre os séculos XI e XIV. *Um estado-nação é uma área geográfica que pode ser identificada como possuidora de uma política legítima que, pelos próprios meios, constitui um governo soberano. Enquanto um estado é uma entidade política e geopolítica, uma nação é uma unidade étnica e cultural. O termo "estado-nação" implica uma situação coincidente: estado/nação. *O Estado-nação afirma-se por meio de uma ideologia, uma estrutura jurídica, a capacidade de impor uma soberania, sobre um povo, num dado território com fronteiras, com uma moeda própria e forças armadas próprias também. * *Nação, do latim natio, de natus (nascido), é uma comunidade estável, historicamente constituída por vontade própria de um agregado de indivíduos, com base num território, numa língua, e com aspirações materiais e espirituais comuns. *É a reunião de pessoas, geralmente do mesmo grupo étnico, falando o mesmo idioma e tendo os mesmos costumes, formando assim, um povo, cujos elementos componentes trazem consigo as mesmas características étnicas e se mantêm unidos pelos hábitos, tradições, religião, língua e consciência nacional. * *Povo é, usualmente, concebido como um conjunto de indivíduos que, num dado momento histórico, constitui uma nação. Se, por vezes, esta coincide com a totalidade de um território a ela associada, como normalmente acontece, é também o conjunto dos cidadãos de um país, ou seja, as pessoas que, mesmo que constituindo-se de diferentes etnias, estão vinculadas a um determinado regime jurídico, a um Estado. *Na linguagem vulgar, a palavra "povo" pode referir- se à população de uma cidade ou região, a uma comunidade ou a uma família; também é utilizada para designar uma povoação, geralmente pequena. * *Se há contribuição cabível é, justamente, aproximar dois mundos diferentes, mantendo sempre a consciência dessa distinção, e evidenciar processos históricos que podem iluminar os limites e as possibilidades da ação humana no campo das relações entre indivíduos *O mundo greco-romano permite-nos isso, com a vantagem de descortinar um panorama histórico de longa duração, com amplo painel de sucessos e fracassos da ação humana sobre a sociedade. *Talvez nos auxilie a projetar um futuro desejável para a cidadania contemporânea e nos sirva de alerta para os possíveis percalços. * *O mundo greco-romano não se estruturava como os Estados- nacionais contemporâneos, mas de modo bem distinto, como cidades-estado. *Aqui, defrontamo-nos com o primeiro problema: é difícil oferecer uma definição cabal de cidade-estado como o é definir Estado-nacional. *As cidades-estado, que conhecemos pela tradição escrita, pela epigrafia (estudo ou ciência das inscrições) ou pelas fontes arqueológicas, eram muito diferentes entre si: nas dimensões territoriais, riquezas, em suas histórias particulares e nas diferentes soluções obtidas, ao longo dos séculos, para os conflitos de interesses entre seus componentes. Além disso, sob o termo cidade-estado abarcamos povos distintos, culturas diferentes, com seus próprios costumes, hábitos cotidianos, leis, instituições, ritmos históricos e estruturas sociais – gregos, romanos, etruscos, fenícios “itálicos”, celtas, berberes *A maioria das cidades-estado nunca ultrapassou a dimensão de pequena unidade territorial, abrigando não mais que cinco mil habitantes, quase todos envolvidos com o meio rural. *Outras, de porte médio, chegaram a congregar vinte mil pessoas. *Algumas poucas, portos comerciais ou centros de grandes impérios, atingiram a dimensão de verdadeiras metrópoles, com mais de cem mil habitantes – e, por vezes, como na Roma imperial, chegaram à escala de um milhão de pessoas. * *Dar conta de tantas histórias, tão diferenciadas, ao longo de quase dois milênios *Diversidade, fragmentação, modificações incessantes ao longo dos séculos: como definir uma cidade-estado? *Em busca de uma compreensão mais abrangente, qualquer definição tem de ser, pela força das circunstâncias, parcial e genérica, consciente das perdas que acarretam para o entendimento de cada caso particular. *É a opção que seguiremos ao longo desta reflexão * *A história das cidades-estado é, em primeiro lugar, geograficamente localizada e circunscrita. *Não é parte da história universal, como a entendemos hoje, mas de uma região específica do planeta: as margens do mar Mediterrâneo. *É preciso enfatizar esse ponto, pois temos a tendência desde os banco escolares, de pensar a História Antiga como parte essencial da história do mundo, como uma das etapas em direção ao presente. *Trata-se, contudo, de um efeito ilusionista produzido pela necessidade que a Europa sentiu, sobretudo a partir do século XIX, de definir o Ocidente em sua relação com o resto do mundo, traçando suas origens na tradição literária do mundo greco-romano e projetando-a, no presente, como berço da civilização humana. * *Entre os séculos IX a VII a.C. as costas do Mediterrâneo eram apenas o que poderíamos definir como área periférica, pouco desenvolvida, que sofria a influência dos grandes Impérios estabelecidos nos vales fluviais de sua porção oriental, o chamado Oriente Médio. *Esses séculos, afastados de nós por quase três milênios, são cruciais na história da região *É um período de grandes transformações econômicas e sociais, quase uma revolução. *Assim como os Estados-nacionais devem sua consolidação, senão sua formação, à industrialização, ao desenvolvimento do capitalismo e à expansão imperialista da Europa no século XIX, as cidades-estado também surgiram num quadro de grandes mudanças econômicas e sociais, ainda que sua novidade seja, hoje, difícil de perceber. *Os elementos fundamentais dessa revolução silenciosa podem ser traçados pelos vestígios arqueológicos e pelos documentos mais antigos da região, sobretudo os poemas homéricos. * * Homero teria nascido em Esmirna, atual Turquia, ou em alguma ilha do mar Egeu e vivido no século VIII a.C. Mas sua origem é tão controversa que oito cidades disputam a honra de terem sido a terra natal do poeta. * A data da existência de Homero foi controversa na antiguidade e não o é menos hoje. Heródoto disse que Homero viveu 400 anos antes de seu próprio tempo, o que o colocaria em torno de 850 a.C., mas outras fontes antigas deram datas muito mais próximas da suposta época da Guerra de Troia. A data da Guerra de Troia foi dada como 1194-1184 a.C. por Eratóstenes, que se esforçou para estabelecer uma cronologia científica dos eventos e esta data tem obtido apoio por causa de pesquisasarqueológicas mais recentes. * * Entre os séculos IX e VIII a.C. desenvolveu-se um intenso intercâmbio de pessoas, bens e ideias por todo o Mediterrâneo * Esse crescimento progressivo da integração entre costas do “mar interno” foi causado, sobretudo, pela necessidade dos impérios guerreiros do Oriente Médio de obter uma matéria- prima preciosa, o ferro. * O uso do ferro difundiu-se então pelo Mediterrâneo, assim como o de outras inovações técnicas de grande importância: a arquitetura em pedra, as construções monumentais, a escultura em três dimensões, o relevo, a pintura, a fabricação de artigos de bronze e, de modo geral, o uso de metais preciosos, assim como a escrita alfabética e do cavalo de guerra. *Não é fácil ter noção do que isso representou à época, uma verdadeira “revolução industrial” sem indústria. *O aumento populacional foi visível em todo o Mediterrâneo *Gregos e fenícios fundaram colônias por toda a parte – norte da África, sul da Espanha, Mar Negro e Itália – levando consigo uma forma de organização social peculiar: a cidade-estado. * *As cidades-estado surgiram, assim, num quadro de crescimento econômico e social *Difundiram-se pelo Mediterrâneo a partir de núcleos originais da Grécia continental, da àsia Menos (hoje Turquia) e da Fenícia (atual Líbano) *Pelos séculos seguintes, até bem adentrado o Império Romano, representaram um modelo vitorioso, em contínua expansão, de um modo de organização da coletividade humana, construído sob a égide da progressiva integração das costas do Mediterrâneo – e, depois, das terras centrais da Europa e do oriente Próximo – a um mesmo sistema econômico e de poder. * *Não se refere ao que hoje entendemos por “cidade” *Mas a um território agrícola composto por uma ou mais planícies de variada extensão, ocupado e explorado por populações essencialmente camponesas, que assim permaneceram mesmo nos períodos de mais intensa urbanização no mundo antigo *Um fator primordial foi o desenvolvimento da propriedade privada da terra *Em uma cidade-estado, cada família camponesa cultivava um ou mais lotes com contornos bem definidos, que eram sua propriedade individual, de onde obtinha seus meios de subsistência, sobretudo trigo, e alguns outros produtos característicos do mediterrâneo, como o vinho e o azeite. * *Eram formadas, quase sempre, pela multiplicação de pequenos lotes (alguns muito pequenos, entre dois e dez hectares; outros, os maiores, chegando a quinhentos hectares) *Um hectare (conhecido também como hectômetro/hectómetro quadrado [hm²]), representado pelo símbolo “ha”, é uma unidade de medida de área equivalente a 100 (cem) ares ou a 10.000 (dez mil) metros quadrados. *A apropriação da terra não era mediada, desta forma, nem por relações de linhagem – como nas famílias extensas das sociedades agrícolas de caráter tribal, praticantes de uma agricultura, o mais das vezes, itinerante, - nem pela presença de grandes organizações político-econômicas, como os palácios dos templos do Antigo Oriente Próximo, que organizavam o trabalho de grandes populações camponesas em terras coletivas. *A terra comunitária, onde existia, era uma reserva para loteamentos futuros, sempre apropriados individualmente. *De modo geral, podemos dizer que as cidades-estado formavam associações de proprietários privados de terra. *Só tinha acesso á terra, no entanto, quem fosse membro da comunidade. *As cidades-estado foram o resultado do fechamento, gradual e ao longo de vários séculos, de territórios agrícolas específicos, cujos habitantes se estruturaram, progressivamente, como comunidades, excluindo os estrangeiros e defendendo coletivamente suas planícies cultivadas de agressão externa. * *Não se negavam reciprocamente na cidade- estado antiga, mas se integravam numa relação dialética *O indivíduo, proprietário autônomo de seus meios de subsistência e de riqueza, só existia e era possível no quadro de uma comunidade concreta *que possuía, por assim dizer, de modo virtual o território agrícola *Propriedade individual da terra, fechamento do acesso ao território e ausência de um poder superior que regulasse as relações entre camponeses foram os fatores essenciais na história dessas comunidades camponesas. *Seus conflitos foram intensos e crescentes, não podiam ser resolvidos no âmbito das relações de linhagem, nem pelo recurso a uma autoridade superior a todos * *Por mecanismos públicos, abertos ao conjunto de proprietários *Aqui reside a origem mais remota da política, como instrumento de tomada de decisões coletivas e de resolução de conflitos *E do Estado, que não se distinguia da comunidade, mas era sua própria expressão. * *Espaço público e estado parecem se confundir nas origens das cidades-estado *Não é fácil defini-los cabalmente: variam de cidade para cidade e se alteram com o tempo, mas a tendência foi a expansão. *ca·bal - adjetivo de dois gêneros 1. A que não falta nada. 2. Que é ou está como deve ser. * *Foram um espaço de poder, de decisão coletiva, articulado em instâncias cujas origens se perdem em tempos remotos: conselhos de anciãos (como o Senado romano ou a gerousia espartana) ou simplesmente de “cidadãos” (como a boulé ateniense), assembleias com atribuições e amplitudes variadas, magistraturas e, posteriormente, tribunais. *Foi o espaço de uma lei comum, que obrigava a todos e que se impôs como norma escrita, fixa, publicizada e coletiva. * * Gerúsia (em grego antigo: γερουσία gerousia, "senado") era um conselho de anciãos da Grécia Antiga, em especial de Esparta. As gerúsias espartanas arcaica e clássica compreendiam 28 membros ou gerontes, com idade acima de 60 anos, originados de famílias que lideravam juntamente com os reis. A gerúsia dividia o poder como a mais alta corte e tinha poder de julgar os próprios reis. O prestígio de seus integrantes lhe conferia um grande poder não oficial. * Além de funcionarem como tribunais supremos, a gerúsia tinha funções administrativas: seus membros também preparavam as propostas a serem apresentadas à Assembleia. * Suas funções eram legislativas. Ela se encarregava de preparar os projetos que deviam ser submetidos à aprovação da Apela (assembleia popular). A Gerúsia tinha o controle da constituição de Esparta. Os reis que fossem acusados pelos éforos seriam julgados na Gerúsia. * Na colônia espartana de Taras e Cirene havia três éforos, cada um ligado a uma tribo dória, o que sugere que esta ocupação já era antiga, no entanto, não sendo mencionada no texto espartadno do século 7 conhecido como a Constituição de Esparta. * *O termo, tal como é usado pelos arqueólogos, geógrafos e historiadores ocidentais, refere-se à região que engloba a Anatólia (a porção asiática da Turquia moderna), o Levante (Síria, Líbano, Jordânia, Chipre, Israel e territórios palestinos), Mesopotâmia (Iraque) e, ocasionalmente, Transcaucásia (Geórgia, Armênia e Azerbaijão). *Nos contextos políticos e jornalísticos modernos, esta região é normalmente considerada como compreendida no Oriente Médio, enquanto que os termos Oriente Próximo ou Sudoeste Asiático são preferíveis nos contextos arqueológicos, geográficos e históricos. * *Mas o espaço público abrangia igualmente áreas que hoje não definiríamos como “políticas” em sentido estrito: o culto comum a divindades que eram próprias de cada cidade-estado; as festividades coletivas, seguindo calendários que também eram exclusivos; matrimônios geralmente endogâmico (dentrodo mesmo grupo social ou familiar); direito de comerciar bens imóveis e móveis etc. *Por fim, e de forma bem acentuada, um exército comum que garantia a defesa do território, encarnando as esperanças de sobrevivência e de expansão de cada cidade-estado, num mundo competitivo, fragmentado e guerreiro. • Exogâmico: união com alguém fora do grupo, raça ou classe social diferente. • Poliandria - casamento de uma mulher com mais de um homem. • Poliginia - casamento de um homem com mais de uma mulher. * *Tendia a materializar-se em um núcleo urbano que congregava o que era comum por excelência: os templos; a praça do mercado, que fazia as vezes de lugar da assembleia comunitária; o porto, por meio do qual a comunidade controlava os contatos com o exterior, obtendo os recursos materiais que não produzia; as oficinas de artesãos; as lojas do pequeno comércio; uma acrópole, muitas vezes amuralhada, que funcionava como núcleo de defesa e como símbolo da comunidade territorial. * *Eram também comunidades imaginárias que se construíram e inventaram ao longo do tempo. *Ao contrário do que pregava a historiografia tradicional, não eram primevas, originais ou naturais, nem tampouco o resultado da divisão e subdivisão progressiva de um grupo de famílias. *Sua identidade comunitária foi construída ao longo do tempo, a partir de populações muitas vezes díspares, sem unidade étnica ou racial. *Foi criada e recriada, reforçada e mantida por mecanismos que produziram o cidadão ao mesmo tempo em que faziam nascer cultos comuns, moeda cívica, língua, leis, costumes coletivos – modos de a comunidade fechar-se sobre si mesma e definir seu território. * *Eric Hobsbawm mostra no livro "Nações e Nacionalismos desde 1780" que o nacionalismo vem antes de nação. Ou seja, é a ideologia que constitui o todo identitário que se chama "nação". E que nação é uma palavra que nada expressa por si só, dependendo, portanto, dos adjetivos que lhe são dados. *Benedict Anderson no livro "Comunidades imaginadas" mostra como estas nações (que não existem materialmente, por isto "imaginadas") são dependentes de criação teórica, através da educação, dos jornais, livros, literatura e etc. * *Habermas tem uma produção imensa neste tema, estudando o impacto do nazismo (condicionantes históricos) sobre a ideia de nação alemã. Mas no texto "Realizações e limites do estado nacional Europeu" fala de "solidariedade legalmente mediada" para mostrar como os discursos políticos construíram as ligações entre os cidadãos. E se alguns discursos "constroem", outros destroem. Assim, qualquer nacionalismo é sempre um jogo de exclusão, para dizer quem está dentro (e tem direitos) e quem está fora e não os tem. * Jürgen Habermas é conhecido por suas teorias sobre a razão comunicativa e a esfera pública sendo considerado como um dos mais importantes intelectuais contemporâneos. Sua preocupação com as questões políticas aparecem desde a sua tese de doutorado quando realizou uma pesquisa empírica sobre a participação estudantil na política alemã, intitulada “Estudante e Política” (Student und Politik). * *Paul Ricoeur em "A memória, a história e o esquecimento" trabalha para demonstrar como a história vira "memória" (com valor político de ser "lembrado") e como o "esquecimento" também é um ato político. Ou seja, é a partir da escolha consciente que os homens definem o que é para ser lembrado (no sentido institucional) e transformado em "memória" e o que deve ser "esquecido". E fazem isto para consolidar poder a ser usado políticamente. * *Pertencer à comunidade da cidade-estado não era de pouca monta, mas um privilégio guardado com zelo, cuidadosamente vigiado por meio de registros escritos e conferido com rigor. *Como já ressaltava o filósofo grego Aristóteles, fora da cidade-estado não havia indivíduos plenos e livres, com direitos e garantias sobre sua pessoa e seus bens. Pertencer à comunidade era participar de todo um ciclo próprio de vida cotidiana, com seus ritos, costumes, regras, festividades, crenças e relações pessoais. * *Os estrangeiros domiciliados, embora integrados à vida econômica e à teia das relações sociais não faziam parte da população cidadã. *Outro exemplo eram os grupos submetidos em bloco ao domínio e controle da comunidade cidadã, mormente após uma conquista militar como os hilotas e periecos de Esparta – situação que se repetia em muitas colônias fundadas pelos gregos, nas quais o trabalho fundamental das terras agrícolas era realizado por comunidades subalternas *Ao contrário dos estrangeiros domiciliados, que se acomodavam com sua situação, essas comunidades foram fonte permanente de conflitos coma cidade-estado dominadora, quase sempre em busca da idependência coletiva e às vezes de integração. * *Encontravam-se sob o poder de seus donos e eram regidos por regras privadas, sem controle cívico, acesso à esfera pública ou quaisquer direitos. *Nas cidades mais ricas chegavam a compor um contingente expressivo da população – um terço ou até mais. *Ocupavam todo tipo de ofício, agrícolas e artesanais, e monopolizavam os serviços domésticos. *Submetidos a um poder sem limites, sem lei, ao arbítrio de seus senhores, foram por boa parte da história do mundo antigo, fonte de conflitos intensos – desde lutas domésticas contra seus senhores até grandes sublevações, como a famosa revolta de Espártaco, na Itália romana. Esses conflitos, no entanto, jamais objetivaram sua integração à comunidade cidadã nem tampouco a abolição da escravatura, mas a liberdade individual dos revoltosos. * *Conviveram ao longo de suas histórias com inimigos internos por vezes formidáveis *O processo inclusivo de constituição das comunidades cidadãs forjou-se simultaneamente a um brutal processo de exclusão interna que se tornou cada vez mais agudo, na medida em que algumas dessas cidades cresceram em poder e complexidade social * *Não se resumia às frequentes guerras externas, ou às lutas com a população dominada e não integrada *Isso porque a própria comunidade cidadã não era, e nunca foi, igualitária ou harmônica *O sentimento e a prática da unidade não impediram que as próprias comunidades fossem crivadas por disputas internas, por suas próprias regras de exclusão e inclusão no espaço público que as definia. * *Primeiramente ao gênero: embora a posição das mulheres variasse em cada cidade, em cada âmbito cultural, é fato que elas permaneceram à margem da vida pública, sem direito à participação política, restringidas em seus direitos individuais, tuteladas e dominadas por homens que consideravam o lar, o espaço doméstico, como único apropriado ao gênero feminino. *Um segundo elemento de conflito diz respeito à distinção entre jovens e velhos. *Cidades-estado eram comunidades fundadas e legitimadas no passado comum, na tradição, no respeito aos antepassados. *De modo geral, observa-se um forte domínio dos mais velhos sobre os mais jovens, mesmo que estes últimos fossem os responsáveis, em última instância, pelo esforço militar que garantia a independência, ou a expansão, de suas comunidades. *O terceiro e mais fundamental elemento de conflito tem suas origens na propriedade privada da terra, principal meio de produção, e nas relações de trabalho no interior da comunidade. *Desde que temos registros, escritos ou arqueológicos, as cidades- estado aparecem marcadas por profundas clivagens sociais: grandes, médios e pequenos proprietários, estes últimos, muitas vezes, no limiar da subsistência; camponeses sem terra,que alugavam sua força de trabalho para um grande senhor; e os não camponeses, como artesãos e comerciantes, que habitavam o núcleo urbano e cuja posição, no seio da comunidade, foi sempre ambígua. * li·mi·ar – sm - (latim liminaris, -e, relativo à soleira da porta, inicial) 1. Soleira de porta (ex.: foi recebida no limiar do mosteiro). 2. Momento inicial (ex.: o limiar do século XXI). = COMEÇO, INÍCIO. 3. Passagem para o interior de algo. = ENTRADA. 4. Ponto que constitui um limite, geralmente inicial (ex.: limiar da loucura; limiar da pobreza). * Sinônimo Geral: LIMINAR * *Dois eram os focos principais desses conflitos: a participação nas decisões que envolviam o destino da comunidade, algo que poderíamos definir como participação política. E a distribuição ou redistribuição nos recursos comunitários, tanto os materiais – terra, alimentos, rendas – quanto os simbólicos, como a honra e a dignidade. *Os membros desse grupo eram os “melhores” dentre os cidadãos, pelo valor individual no combate, pelo brilho de suas posses, pela rede de alianças familiares que estabeleciam entre si e com aristocratas de outras cidades. * *Os eventos históricos concretos foram variados, com ritmos diferentes, mas seu resultado foi claro: a quebra do exclusivismo aristocrático e a abertura do espaço político que consolidou a existência das cidades como comunidades coesas. *Os efeitos fundamentais desse processo foram a garantia da liberdade individual dos membros da comunidade; a publicação de leis escritas; a abertura do espaço público para camadas mais amplas da população, com a estruturação da comunidade como organismo político; e, por fim, a reorganização do exército citadino. * *Devemos ter em mente uma diferença radical entre os antigos e nós: tanto nas oligarquias como nas democracias, a participação política era direta, exercida por um corpo de cidadãos ativos, que podia ser mais ou menos amplo, mas que representava a si mesmo, por meio de voto individual de seus membros. *Nunca se desenvolveu a noção de representação, nem de partidos políticos doutrinários, nem uma clara divisão de poderes constitucionais ou qualquer noção abstrata de soberania: esta podia residir na assembleia, ou num conselho mais restrito, ou mesmo na lei em geral, dependendo das circunstâncias específicas e do jogo de interesses e forças em conflito. * *A abertura do espaço público, como espaço de conflitos, tornou clara a oposição entre ricos e pobres *O desenvolvimento das trocas comerciais pelo Mediterrâneo e a crescente importância dos escravos não fizeram senão aumentar cada vez mais as desigualdades no interior das cidades-estado. *A participação no poder não bastava para fazer frente às demandas dos mais pobres a suas comunidades. *As cidades maiores, mais poderosas, conseguiram amenizar seus conflitos internos expandindo-se sobre outras cidades e distribuindo, entre outros cidadãos, as presas de guerra, os atributos e as terras obtidas. *Nas cidades menores, os séculos seguintes foram marcados por aguda crise interna e externa. Premidas ou apoiadas pelas cidades dominantes (Esparta, Atenas, o Império persa, Macedônia, Roma), as cidades-estado conheceram profundas divisões internas no seio de suas comunidades, geradas pela crescente clivagem entre ricos e pobres. * *Cristalizadas nas palavras de ordem de redistribuição de terras e de perdão das dívidas dos pequenos camponeses *Crise de tal monta que, em certos momentos, levaram à ruptura do pacto comunitário e à divisão da comunidade cidadã em duas cidades, contrapostas entre si e em guerra permanente. *Traições, exílios forçados ou voluntários, assassinatos maciços de adversários, convocação de apoio externo por uma das facções passaram a ser a tônica da vida dessas comunidades. *A essa ruptura do pacto comunitário correspondia, por outro lado, uma crescente fraqueza das cidades- estado para enfrentar seus inimigos externos *Fragmentadas, fechadas pelo caráter exclusivista de sua cidadania, as cidades-estado não conseguiram fundir-se em comunidades mais amplas *As milícias cidadãs tornaram-se pequenas e fracas diante de um mundo em permanente integração *A partir do século IV a.C., observa-se uma crescente importância dos mercenários nas atividades guerreiras, oriundos das camadas mais pobres e excluídas das cidades-estado e disponíveis para quem lhes pagasse melhor. * *A formação de grandes impérios pode ser vista, desse modo, como consequência da fragilidade e da instabilidade das cidades-estado como forma de organização social. * *É interessante notar que o império que, por fim, unificaria todas as cidades-estado e toda a bacia do Mediterrâneo fosse oriundo de uma cidade-estado cuja cidadania era mais aberta do que a regra geral: Roma, que conseguiu unificar a Itália sob sua égide, formando a maior aliança de cidades-estado que o mundo antigo conheceu. * * Impôs o governo dos mais ricos às cidades submetidas ou “aliadas”. Com a expansão e o crescente afluxo de riquezas, as tensões no interior da comunidade romana intensificaram-se. *Um dos pontos centrais do conflito girou em torno da distribuição das terras conquistadas na Itália. As riquezas trazidas com a expansão não beneficiaram por igual os cidadãos de Roma. *A partir dos fins do século II a.C., o exército romano tornou-se uma força mercenária... *Outro elemento foi a Guerra dos Sócios, revolta movida pelas cidades-estado da Itália que culminou, em 89 a.C., na concessão da cidadania romana a todos os cidadãos das cidades da Itália, sem que perdessem, por outro lado, a cidadania de suas comunidades de origem: a cidadania deixou de representar a comunidade dos habitantes de um território circunscrito, para englobar os senhores de um império, habitassem em Roma ou não. *A presença dos escravos era cada vez mais maciça e perigosa. *As estruturas da antiga cidade-estado de Roma, com suas velhas instituições (magistraturas, assembleias, Senado) e seu caráter oligárquico não conseguiram mais dar conta do jogo de pressões e de interesses conflitantes de um espaço tão vasto. *Daí as sangrentas guerras civis que agitaram a Itália e o Mediterrâneo até a constituição do Principado, nas décadas finais do século I a.C., coma vitória final do general Augusto sobre seus adversários. * *A história da cidadania antiga só pode ser compreendida como um longo processo histórico, cujo desenlace é o Império Romano. *De pertencimento a uma pequena comunidade agrícola, a cidadania tornou-se, com o correr dos tempos, fonte de reivindicações e de conflitos, na medida em que diferentes concepções do que fossem as obrigações e os direitos dos cidadãos no seio da comunidade se entrechocavam. *Participação no poder, igualdade jurídica, mas também igualdade econômica foram os termos em que se puseram, repetidamente, esses conflitos, até que um poder superior se estabeleceu sobre o conjunto das cidades-estado e suprimiu da cidadania comunitária, progressivamente, sua capacidade de ser fonte potencial de reivindicações. *O fim da cidade-estado antiga, por sua incorporação num império monárquico de grande extensão territorial, deu novo sentido a esses conflitos que não mais se expressavam pelas linhas de clivagem que uniam e separavam os antigos cidadãos da cidades-estado da Antiguidade. * *Retomaram, a seu modo, a noção de cidadania, foi um outro contexto, buscando inspiração não na cidadania estendida e amorfa do Império Romano, mas naquela, potencilamente participativa,das pequenas cidades-estado que um dia repartiram entre si os territórios das planícies do mediterrâneo. * *Cidadania implica sentimento comunitário *Processos de inclusão de uma população *Um conjunto de direitos civis, políticos e econômicos *E significa também, inevitavelmente, a inclusão do outro * *Como quer que esta se organize *E esse pertencimento, que é fonte de obrigações, permite-lhe também reivindicar direitos, buscar alterar as relações do interior da comunidade, tentar redefinir seus princípios, sua identidade simbólica, redistribuir bens comunitários. * *Se pudéssemos defini-la, residiria precisamente nesse caráter público, impessoal, nesse meio neutro no qual se confrontam, nos limites de uma comunidade, situações sociais, aspirações, desejos e interesses conflitantes. *Há, certamente, na história, comunidades sem cidadania, mas só há cidadania efetiva no seio de uma comunidade concreta, que pode ser definida de diferentes maneiras, mas que é sempre um espaço privilegiado para a ação coletiva e para a construção de projetos para o futuro.
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