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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA DEPARTAMENTO DE CIENCIAS HUMANAS E FILOSOFIA LEONARDO AUGUSTO NASCIMENTO DOS SANTOS O CONCEITO DE IDENTIDADE NARRATIVA EM PAUL RICOEUR Feira de Santana 2017 ÇLKBCVKBJCV2 LEONARDO AUGUSTO NASCIMENTO DOS SANTOS O CONCEITO DE IDENTIDADE NARRATIVA EM PAUL RICOEUR Monografia apresentada ao Curso de Especialização em Filosofia do Departamento de Ciências Humanas e Filosofia da Universidade Estadual de Feira de Santana, como requisito parcial para obtenção do grau de Especialista em Filosofia. Orientação: Prof. Dr. Laurenio Leite Sombra Feira de Santana 2017 ÇLKBCVKBJCV3 LEONARDO AUGUSTO NASCIMENTO DOS SANTOS O CONCEITO DE IDENTIDADE NARRATIVA EM PAUL RICOEUR Monografia apresentada como requisito parcial para obtenção de grau de Especialista em Filosofia, Departamento de Ciências Humanas e Filosofia da Universidade Estadual de Feira de Santana, Aprovada em: ____ de _________de 2017. BANCA EXAMINADORA Laurenio Leite Sombra (Orientador) Doutorado em Filosofia – Universidade Federal da Bahia Universidade Estadual de Feira de Santana Caroline Vasconcelos Ribeiro___________________________________________________ Doutorado em Filosofia - Universidade Estadual de Campinas Universidade Estadual de Feira de Santana Clovis Frederico Ramaiana Moraes Oliveira Doutorado em História - Universidade de Brasília Universidade do Estado da Bahia ÇLKBCVKBJCV4 Para Del, Pela medi(t)ação privilegiada... ÇLKBCVKBJCV5 . AGRADECIMENTOS Se a construção de uma monografia como esta é um processo muitas vezes solitário, a caminhada até chegar neste ponto definitivamente não o é. Por isto nada mais justo que registrar alguns agradecimentos àqueles (as) que de alguma forma contribuíram durante este caminhar: Aos Colegas da turma da especialização em Filosofia da UEFS, pela honra da partilha destes momentos tão prazerosos, algumas vezes sofridos, mas fundamentais no processo de construção de conhecimento e amadurecimento, pessoal e profissional; Aos ―Crocodilliu‘s‖ Tamires, Junne e Simone, por fazer desta experiência algo mais leve com as brincadeiras sem fim; Ao Amigo Ocimar, pelas caronas Hermenêuticas...; À Aletuza, a ―culpada‖ pela instigação ao filosofar... Aos amigos Flávia, Zé e Hudson, pelo meu Rückführung à UEFS via IEPS; Ao Laurenio, pela ―paciência do conceito‖, orientação, amizade, bom humor, puxões de orelha, preocupações para que este escrito tivesse o mínimo de coesão (também conhecido como o ―lego laureniano‖), liberdade na execução de pensar\fazer a monografia, exemplo ético de profissionalismo acadêmico..... Aos Professores Caroline Vasconcelos e Clóvis Ramaiana, por aceitarem o convite para participar da banca de defesa, e pelas observações inestimáveis; E, the Last, but definitely not Least, à Del, a quem dedico este estudo, por fazer deste mísero personagem um algo inteligível nessa caótica intriga que é a nossa existência... ÇLKBCVKBJCV6 ―Somente a arte da narração nos poderia reconciliar, mesmo que nunca definitivamente, com as feridas e as aporias de nossa temporalidade, marca inequívoca de nossa finitude e de nossa morte e, simultaneamente, de nossa incapacidade em dar de nós mesmos outras imagens e outros conceitos que as formas efêmeras da história.‖ Jeanne Marie Gagnebin ÇLKBCVKBJCV7 RESUMO SANTOS, Leonardo Augusto Nascimento Dos. O Conceito De Identidade Narrativa Em Paul Ricoeur.2017.62f. Monografia - Departamento de Ciências Humanas e Filosofia da Universidade Estadual de Feira de Santana, Feira de Santana, 2017. O presente estudo investiga a formulação do conceito de Identidade Narrativa dentro da obra filosófica de Paul Ricoeur. Argumenta-se que tal empresa é resultante de profunda reflexão que perpassa o trabalho de Ricoeur a partir de uma crítica ao cogito, mediada com a temporalidade como estrutura constitutiva da existência humana. Esse processo de quebra ao solipsismo cartesiano, dialogada com os signos da cultura, é compreendido aqui como uma hermenêutica do si. Para tal intento, exporemos inicialmente a apreciação que Ricoeur faz do cogito, demonstrando que sua crítica se afasta desta, mas não se equipara ao anticogito nietzschiano, buscando um caminho de mediação entre ambos. Apresentamos também os estudos feitos por Ricoeur acerca da temática da identidade pessoal, especialmente o diálogo crítico com Derek Parfit. Em seguida, examinamos a análise que o filósofo francês apresenta em discussão sobre a temporalidade, cuja argumentação começa com o tempo psíquico subjetivo em Agostinho, mas que só se diz a partir da narratividade. Passamos então a esmiuçar o conceito de identidade narrativa, enaltecendo suas dialéticas constitutivas, com destaque para a mesmidade e a ipseidade, a concordância x discordância subjacente ao conceito de intriga tomado de Aristóteles, além dos signos exemplificadores tanto da mesmidade, o caráter, quanto da ipseidade, a promessa, como formas de problematizar a permanência no tempo. Mostramos como os conceitos de intriga e personagem estão articulados na teoria narrativa de Ricoeur, e como este se vale da estrutura gradativa do tempo fenomenológico de Heidegger para organizar sua temporalidade narrativa. Apresentamos uma discussão ético-política sobre as posições do Si Narrado e Si Narrador, ambas derivadas da questão ―quem?‖ que atravessa toda a discussão da Identidade Narrativa. Nas considerações finais, é feito um epítome geral do texto, onde apresentamos possibilidades futuras de desdobramento deste estudo. Palavras – Chave: Paul Ricoeur, Identidade Narrativa, Temporalidade. ÇLKBCVKBJCV8 ABSTRACT SANTOS, Leonardo Augusto Nascimento Dos. The Concept of Paul Ricoeur’s Narrative Identity. 2017.62f. Monografia - Departamento de Ciências Humanas e Filosofia da Universidade Estadual de Feira de Santana, Feira de Santana, 2017. This study investigates the formulation of the concept of Narrative Identity in Paul Ricoeur‘s philosophy. It‘s argued that his efforts follow from a deep reflection that pass throughout his work, moving towards a critic to the cogito, mediated by the temporality as a constitutive structure of human experience. This rupture process of Cartesian solipsism, in dialogue with culture signs, is here comprehended as hermeneutics of self. In that purpose, we initially show Ricoeur‘s account of the cogito, considering that his critic is far from it, although it doesn‘t match to anticogito by Nietzsche and it looks for a mediation between them. We present also Ricouer‘s works on personal identity, specially the critic dialogue with Derek Parfit. Then, we are concerned with the analysisthat the French philosopher do about temporality, which begins in Augustine‘s subjective time, but it‘s only expressed in terms of narrativity. So we try to lay out the features of the concept of narrative identity, conveying its constituting dialectics, mainly sameness and self-sameness, discordant concordance taken from the Aristotle‘s concept of emplotment, such as the exemplifier sign of the sameness – the character – as well as the exemplifier sign of the self-sameness – the promise – both ways of question the permanence in time. We explain how the concepts of emplotment and character are articulated in Ricoeur‘s narrative theory, and how he applies Heidegger‘s fenomenological time structure in order to organize his own narrative temporality. We bring to light an ethical and political discussion about the modes Narrated Self and Narrator Self, both derived from the question ―who?‖, that goes throughout the discussion about Narrative Identity. In the final section, a brief of the text is presented, in a way to indicate future possibilities of development of this study. Keywords: Paul Ricoeur. Narrative Identity. Temporality. ÇLKBCVKBJCV9 LISTA DE FIGURAS Figura 1 Ipseidade x Narrativa: O Si Narrador e o Si Narrado.................................. 55 ÇLKBCVKBJCV10 SUMÁRIO INTRODUÇÃO 11 1 COGITO, IDENTIDADE PESSOAL, TEMPORALIDADE: O PERCURSO EPISTEMOLÓGICO DA IDENTIDADE NARRATIVA ..... 14 1.1 Entre o Cogito (Ferido) e o Anticogito (Partido): Por uma Hermenêutica do Si 14 1.2 A Questão da Identidade Pessoal......................................................................... 19 1.3 Temporalidade: Contar e Dizer o Tempo............................................................. 23 2 A IDENTIDADE NARRATIVA: ENTRE A MESMIDADE E A IPSEIDADE....................................................................................................... 26 2.1 A Identidade Narrativa: Enunciando o Conceito................................................ 26 2.2 Mesmidade........................................................................................................... .. 28 2.3 Ipseidade............................................................................................................... .................................................................... 30 2.4 A Dialética Mesmidade x Ipseidade..................................................................... 31 2.5 Caráter.................................................................................................................. 33 2.6 Promessa............................................................................................................... 35 2.7 O Caráter e a Promessa: Exemplos Contemporâneos de uma Hermenêutica do Si.......................................................................................................................... ... 37 3 A IDENTIDADE NARRATIVA: INTRIGA E PERSONAGEM................................................................................................. .................. 40 3.1 Intriga................................................................................................................... ........... 40 3.2 Personagem.......................................................................................................... 48 3.3 A Identidade Narrativa e a questão ―Quem?‖: Entre o ―Si Narrado‖ e o ―Si Narrador‖.............................................................................................................. 52 CONSIDERAÇÕES (IN)TEMPORAIS......................................................... 56 REFERÊNCIAS ................................................................................................ 60 11 INTRODUÇÃO Paul Ricoeur é, sem dúvida alguma, um dos mais proeminentes pensadores da filosofia contemporânea. Prova cabal disto se traduz nos inúmeros trabalhos acadêmicos (livros, artigos, teses, dissertações) dedicados ao estudo de sua obra. Mas será que, em meio ao pensamento de tão profícuo filósofo, conhecido por seu conhecimento enciclopédico, erudição contumaz e debate profundo com uma mixórdia incontável de pensadores das mais diversas áreas do conhecimento, é possível identificar alguma problemática comum que possua maior destaque? Podemos afirmar, indubitavelmente, que a questão da constituição subjetiva do homem é o cerne fulcral da Hermenêutica de Ricoeur 1 , desde o início de sua empreitada filosófica, no início dos anos Cinquenta, até a obra O Si mesmo como um outro, publicada em 1990. César (2002, p.55) nos ajuda a elucidar tal questão. A autora diz: ―a hermenêutica de Ricoeur é uma hermenêutica do símbolo, do texto e da ação... uma ontologia que decifra o sentido do homem e do ser, pelo exame da linguagem de duplo sentido‖. Em primeiro lugar, o que nos chama a atenção é a ideia de Hermenêutica. Ricoeur seria então, um exegeta dos textos e das ciências, tal qual os baluartes da tradição, como, por exemplo, Schleiermacher e Dilthey? Se, de algum modo, Ricoeur não se furta a dialogar com tais autores, por outro lado não se resume a eles, buscando caminho e temáticas próprias. Para o filósofo francês, ―toda a hermenêutica é assim, explícita ou implicitamente, compreensão de si mesmo através do desvio da compreensão do outro‖ (RICOEUR, 1965, p.18). Com esta sentença, clarifica-se a empreitada ricoeuriana: uma antropologia filosófica constituída hermeneuticamente, cujo mote principal é o entendimento do homem pelo desvio necessário do outro, erigido pelos três pilares enumerados anteriormente por César: o símbolo, o texto e a ação humanas. Tal preocupação já se fazia presente nos primeiros trabalhos de Ricoeur, nos anos cinquenta do século passado, compreendidos como uma filosofia da vontade, já presente em 1 Como bem atestam Desroches (2002b) e Meireles (2016). Desroches (2002b, p.40), inclusive, chega a indagar: ―Talvez seja aqui, aliás, por essa descentração crítica e esta reconquista hermenêutica do sujeito (grifo do autor) que se teça o fio vermelho de toda a hermenêutica de Ricoeur?‖. 12 sua obra O voluntário e o involuntário. “Já nessa obra inicial, portanto, alguns temas- chave da reflexão de Ricoeur eram postos: a não-soberania do sujeito consciente e sua relação simbólica e cultural com esse outro que lhe escapa‖ (GAGNEBIN, 1997a, p.262). Nos anos sessenta, Ricoeur estabelece importante debate da filosofia com as ciências humanas, especialmente com o estruturalismo e a psicanálise, nas obras O Conflito das interpretações e Da Interpretação: Ensaio sobre Freud. Nelas, percebe a importância do papel da linguagem na constituição e compreensão subjetiva. Soma-se a isso sua influencia da fenomenologia de Husserl e Heidegger. Influência, contudo, que não se resumiria a uma submissão epistemológica. Pelo contrário, o que Ricoeur (1965, p.5) irá propor é justamente ―o enxerto do problema hermenêutico no método fenomenológico‖, onde o segundo seria renovado, ajustado pelo primeiro. Nos anos setenta, Ricoeur aprofunda seus estudos sobre a inovação semântica, por entender a linguagem como instrumento privilegiado de apreensão humana. Desta fase destacam-se as obras A Metáfora Viva e Tempo e Narrativa. Esta última, um compêndio dividido em três tomos que somam mais de mil páginas, que só seria publicado nos anos oitenta. Nesta última, ―Ricoeur analisa em particular as relações de semelhança e de diferença que existem entre os modelos narrativos subjacentes à história (como disciplinado passado) e à literatura (como invenção de outros mundos)‖ (GAGNEBIN, 2015, p.14). Essa análise é empreendida pela constatação de que a temporalidade, enquanto característica fundamental da existência humana, só pode ser dita de modo indireto, no desenrolar da narração. Ao final da obra, Ricoeur se depara com as aporias da temporalidade, questões que ensejariam em estudos futuros maior dedicação. É neste cenário que o filósofo enuncia a Identidade Narrativa, nosso problema de investigação. Assim, constitui-se como intento primordial deste estudo analisar, esmiuçar e compreender de que forma se constituiu o conceito de Identidade Narrativa na obra de Paul Ricoeur. Para realizar tal tarefa, estruturamos esta monografia da seguinte forma: No capítulo um, apresentamos a visão de Ricoeur sobre a querela do cogito cartesiano, questão fundadora da problemática do sujeito na modernidade; seu extremo oposto, caracterizado na figura do anticogito nietzschiano, e a posição mediadora entre ambas as propostas por Ricoeur, a Hermenêutica do Si. Como resultado desta questão, mostramos os estudos ricoeurianos acerca da temática da identidade pessoal presentes na obra O Si mesmo como um outro, 13 especialmente seu debate com Derek Parfit. Expomos ainda como a temática do sujeito se articula com a temporalidade, especialmente a partir da análise executada por Ricoeur acerca do estudo de Agostinho de Hipona (Santo Agostinho) sobre o tempo, empreendido no Livro XI das Confissões. No capítulo dois, adentramos a temática da identidade narrativa de fato. Apresentamos e discutimos sua enunciação, a partir dos conceitos que lhe constituem, a mesmidade e a ipseidade. Investigamos a dialética entre esses dois conceitos, bem como os dois signos aos quais Ricoeur recorre para consubstanciar sua análise: o caráter e a promessa. Ao fim do capítulo, apresentamos alguns exemplos contemporâneos que reforçam a importância da questão. No capítulo três, trazemos à baila o painel fundamental da identidade narrativa, definido nos conceitos de intriga e personagem. Esmiuçamos a intriga como o conceito fundamental da teoria narrativa de Ricoeur, e demonstramos como ele se vale da estrutura temporal concebida por Heidegger em sua obra Ser e tempo para organizar a temporalidade ante a narrativa. Introduzimos o personagem como categoria fundamental da narratividade ricoeuriana e sua relação com a intriga. Por fim, apresentamos uma leitura da pergunta ―quem?‖ que perpassa toda a teoria da identidade narrativa, a partir da relação entre o Si que narra (o ―Si narrador‖), e o Si de quem se narra (o ―Si narrado‖), demonstrando assim todo o aspecto ético e político da empresa ricoeuriana. Derradeiramente, têm-se as considerações finais, onde ensejamos um breviário de toda a pesquisa e apontamos as possibilidades de pesquisas futuras. 14 CAPÍTULO 1 COGITO, IDENTIDADE PESSOAL, TEMPORALIDADE: O PERCURSO EPISTEMOLÓGICO DA IDENTIDADE NARRATIVA. Neste primeiro capítulo, apresentaremos o percurso de pensamento construído por Ricoeur que veio a resultar na concepção da Identidade narrativa. Assim, fazemos uma explanação da discussão proposta pelo filósofo francês sobre as ditas filosofias do sujeito, cuja problemática do Cogito é seu signo maior. Mostramos como esta se atrela à discussão da identidade pessoal. Em seguida, expomos a discussão acerca da temporalidade, que Ricoeur executa a partir da leitura de Agostinho, e de como o filósofo francês percebe que só venceria as dificuldades apresentadas por esta temática pela via indireta da narratividade. 1.1 ENTRE O COGITO (FERIDO) E O ANTICOGITO (PARTIDO): POR UMA HERMENEUTICA DO SI Se há um elemento que atravessa diferentes etapas da carreira filosófica de Ricoeur é justamente sua preocupação em pensar a questão do Cogito. Tal questão surge na Filosofia a partir da obra de René Descartes (1596-1650), que nas Meditações Metafísicas lança mão do cogito como certeza ante a todas as dúvidas que o cercam, as dúvidas dos sentidos, da natureza, da existência. Mas ai reside o argumento cartesiano: a certeza da dúvida é a garantia, a comprovação da existência do eu, do cogito, que, portanto, se resume e se encerra em si mesmo como verdade primeira e única. Conforme afirma Ricoeur (1991, p.19), ―o ‗eu existo pensando‘ é uma primeira verdade, isto é, uma verdade que não é precedida por nada‖. Dessa concepção cartesiana apreende-se uma exaltação do eu, composto por uma subjetividade que Ricoeur vai denominar de desancorada. Por que desancorada? Porque não há responsabilidade, não há responsividade que não seja consigo mesmo, com o seu próprio eu; este ‗eu‘ não se vincula a nada, não se atrela a nada, enquanto verdade primeira. 15 Descartes é assim considerado o ―fundador‖ da filosofia reflexiva, cuja tradição é seguida por Kant, Fichte e o ―primeiro‖ Husserl. Todavia, Ricoeur (1977, p.46) contesta essa reflexividade que nada reflete, afogada que está em seu próprio solipsismo. Uma filosofia reflexiva é o contrário de uma filosofia do imediato. A primeira verdade — existo, penso — permanece tão abstrata e vazia quanto insuperável. Precisa ser ―mediatizada‖ pelas representações, pelas ações, pelas obras, pelas instituições e pelos monumentos que a objetivam. É nesses objetos, no sentido mais amplo do termo, que o Ego deve perder-se e reencontrar-se. Podemos dizer, num sentido um tanto paradoxal, que uma filosofia da reflexão não é uma filosofia da consciência se, por consciência, entendemos a consciência imediata de si mesmo. A consciência, como diremos posteriormente, é uma tarefa. Mas ela é uma tarefa porque não é um dado. Dessa fala de Ricoeur desdobram-se três importantes aspectos que precisam ser mencionados: o primeiro é a sua crítica ao cogito cartesiano onde demonstra toda a sua discordância deste a partir de um entendimento de reflexão 2 que se distingue da tradição. O segundo aspecto é um desdobramento do primeiro: a discordância da filosofia dita reflexiva de Descartes faz com que Ricoeur busque uma saída para o externo, para o outro, para a cultura, como modo de compreensão do ser, uma postura ‗mediatizada‘, como ele mesmo diz, uma Hermenêutica do Si (grifo nosso), da qual explanaremos adiante. Por fim, o terceiro aspecto diz respeito ao fato de que a filosofia reflexiva cartesiana não é, sob hipótese alguma, uma filosofia da consciência. Ricoeur apura tal ideia a partir do que ele denomina ―filosofia da suspeita‖, que se refere ao trabalho executado por Freud, Marx e Nietzsche3. É a partir da empreitada operada por estes três pensadores que Ricoeur apreende o cogito como uma ‗consciência falsa‘4. É justamente a partir da crítica de Freud e Nietzsche que Ricoeur cunhará duas adjetivações ao Cogito que nos interessam para fins de análise: o Cogito Ferido e o Cogito Partido. 2 Ricoeur (1965, p.18) entende a reflexão como ―o vínculo entre a compreensão dos signos e a compreensão de si‖. 3 E de que maneira cada um dos pensadores elabora sua ―filosofia da suspeita‖? Segundo Ricoeur (1977, p.38), ―Freud ingressou no problema da consciência falsa pela dupla entrada do sonho e do sintoma neurótico. Sua hipótese de trabalho comporta os mesmos limites que seu angulo de ataque: será, como diremos longamente mais adiante, uma econômica das pulsões. Marx ataca o problema das ideologias nos limites da alienação econômica, no sentido, dessa vez, da economia politica. Nietzsche, centrado no problema do ―valor‖ — da avaliação e da transavaliação —, busca do lado da ―força‖e da ―fraqueza" da Vontade de Poder, a chave das mentiras e das máscaras.‖ 4 ―É preciso, portanto, daqui em diante, juntar uma crítica da consciência falsa a toda a redescoberta do sujeito do Cogito nos documentos da sua vida; uma filosofia da reflexão deve ser completamente o contrário de uma filosofia da consciência‖ (RICOEUR ,1965, p.19). 16 A noção de Cogito Ferido é na verdade a retomada de Ricoeur de uma antiga expressão de Freud que remete às três feridas narcísicas sofridas pelo ser humano a partir das descobertas da ciência moderna 5 . Para Ricoeur (1965, p.172), a partir da leitura de Freud, o que se tem é uma reflexão que implica ―um Cogito que se põe mas não se possui, um Cogito que apenas compreende a sua verdade originária em e pela confissão da inadequação, da ilusão, da mentira da consciência atual‖ (grifos do autor). Essa ferida é uma abertura para o processo de (re)tomada da consciência subjetiva, posto que esta tarefa é processual, nunca finalizada; o saber da consciência não é inato, mas justamente a sua busca, o que implica, dentre outros aspectos, a aceitação da limitação e finitude do ser. Ainda sobre o Cogito ferido, é interessante a perspectiva trazida por Gagnebin (1997a, p.262). Fazendo um trocadilho na língua francesa entre as expressões „brisé‟ (quebrado) e blessé‟ (partido), a autora afirma que à ‘exaltação do Cogito‘ se opõe um Cogito ‘quebrado‘ (brisé) ou ‘ferido‘ (blessé) como o escreve Ricoeur no prefácio a Si mesmo como um outro. Mas essa quebra é, simultaneamente, a apreensão de uma unidade muito maior, mesmo que nunca totalizável pelo sujeito: a unidade que se estabelece, em cada ação, em cada obra, entre o sujeito e o mundo. Ou seja, a compreensão do Cogito ‗Ferido‘, embora inacabada porque sempre contínua e nunca encerrada em um ‗eu‘ solipsista, é mais rica do que a aparente e estável dedução do ‗eu penso enquanto existo‘ cartesiana. Já Nietzsche está atrelado ao Cogito ‗Partido‘ a partir da seguinte asserção de Ricoeur (1991 p. 22): ―O Cogito partido: tal poderia ser o título emblemático de uma tradição provavelmente menos contínua que a do Cogito, mas cuja virulência culmina com Nietzsche, fazendo deste o confronto privilegiado de Descartes‖. Para Ricoeur, a crítica de Nietzsche ao Cogito cartesiano se dá a partir da questão da linguagem 6 . Utilizando-se de recursos tropológicos, como metáfora, sinédoque e metonímia, Nietzsche constrói uma retórica discursiva que objetiva dissolver os paradigmas da verdade e da mentira. Ele ajusta o intelecto como uma construção da linguagem que, operando de forma figurativa, não pode se constituir como uma verdade sólida. Dessa forma, questiona o uso do 5 Conforme Meireles (2016, p. 36): ―Cumpre informar que esta expressão retoma a célebre constatação de Sigmund Freud (1856-1939) acerca dos três grandes golpes que a pesquisa científica teria desferido no narcisismo humano: o primeiro teria sido de Nicolau Copérnico (1473-1543), contra a visão geocêntrica; o segundo de Charles Darwin (1809-1882), situando a origem do homem na escala evolutiva animal; e o terceiro do próprio Freud, chamando a atenção para a não transparência do eu a si mesmo‖. 6 ―A filosofia da subjetividade fez inteira abstração da mediação da linguagem que veicula sua argumentação sobre o ‗eu sou‘ e o ‗eu penso‘‖. (RICOEUR, 1991, p.23) 17 conhecimento, como modo de acesso à verdade, e aqui se inicia a argumentação que vai sustentar, ainda que indiretamente, uma crítica ao Cogito Cartesiano: para Nietzsche, o problema da verdade seria um problema inócuo, vão, à medida que o intelecto só funciona através da Verstellung, ou seja, da dissimulação, que seria mais um recurso de sobrevivência para e na coletividade ante as próprias intempéries da vida, do que um modo de acesso à verdade. Assim, através de uma ‗redução tropológica‘, Nietzsche coloca, ainda que de forma indireta, o cogito cartesiano como mera ilusão, que não é causa, tampouco origem, somente um efeito, o ―efeito de seu próprio efeito‖ (RICOEUR, ibid, p.27), pois este não poderia ser exceção à dúvida generalizada. Afirmando que a consciência é uma fenomenalidade interior, que por sua vez está equiparada ao mundo exterior, Nietzsche coloca o ‗eu‘ (ego) do ego cogito como ―uma interpretação (...), um hábito gramatical‖ (RICOEUR, idem). Desta forma, Nietzsche fulmina o problema de Descartes. Como assevera Ricoeur (ibid., p.26), ―meu propósito é mostrar no anticogito de Nietzsche não o inverso do cogito cartesiano, mas a destruição da própria questão à qual se considera que o cogito traga uma resposta absoluta‖.7 Em suma, se o cogito em Descartes sustenta que se possa duvidar de tudo, menos do fato de que se possa duvidar, o anticogito de Nietzsche advoga que até a dúvida é duvidosa, até o cogito é questionável, sendo somente mais uma interpretação entre tantas possíveis. É nesse sentido que Ricoeur (ibid., p.27) atesta: ―Nietzsche não diz, pelo menos nesse fragmentos, senão isso: eu duvido melhor que Descartes (grifo do autor)‖. Explanadas as concepções de cogito em Descartes e do anticogito em Nietzsche, qual a postura que Ricoeur adota ante essas concepções de sujeito? O filósofo francês também adotava uma postura de crítica ao pensamento cartesiano. Tal crítica perpassa diversas obras de Ricoeur. Por exemplo: Sem duvida, tenho uma percepção de mim mesmo e de meus atos, e esta percepção é uma espécie de evidência. Descartes não pode ser desalojado dessa proposição incontestável: não posso duvidar de mim mesmo sem perceber que duvido. Mas o que significa essa percepção? Certamente, uma certeza, mas uma certeza privada de verdade (RICOEUR, 1977, p.46). Assim, o Cogito é uma verdade, porém uma verdade vazia, vã, encerrada em seu próprio eu, que transmite a ideia de se constituir em sensação muito mais que instrução, 7 ―Vemos que, se a filosofia de Nietzsche constitui um anticogito, não é porque ela simplesmente oferece uma resposta diametralmente oposta à de Descartes. O artifício (e o gênio) de Nietzsche consiste em destruir a questão que para Descartes pareceu ser a questão mais fundamental de todas: a de como era possível conhecer a verdade. Assim, Nietzsche refuta Descartes não por negar sua resposta, mas por torna-la insignificante‖ (MEIRELES, 2016, p.27) 18 justamente pela completa ausência de depuração frente ao seu entorno cultural, as obras e ações humanas. Por outro lado, se não é o cogito exaltado de Descartes que encanta Ricoeur, também não é o anti-cogito humilhado em Nietzsche. Embora respeite a postura do filósofo alemão, Ricoeur não coaduna com o radicalismo nietzschiano. Sua proposta, de fato, será a assunção de uma Hermenêutica do Si. Nessa proposta, o ‗eu‘ é relegado em detrimento do ‗quem‘. Esse ‗quem‘, per si¸ já desloca a perspectiva do sujeito de uma posição afirmativa para uma postura interrogativa. É ao pronome que aponta o sujeito enquanto questão, enquanto pergunta: ‗quem?‘, enquanto processo, tarefa inconclusa, e não produção acabada. Como diz Ricoeur (1991, p. 30), ―dizer si não é dizer eu (grifos do autor). O eu se depõe ou é deposto. O si está implicado a título reflexivo nas operações cuja análise precede a volta para ele próprio‖. Há outros aspectos abarcados na questão da Hermenêutica do Si. Uma delas remonta às duas adjetivações do cogito apresentadas anteriormente, ferido e partido. Ambas denotam aspectos importantes da análise ricoeuriana: O cogito ferido remeteria à problemática epistemológica da possibilidade do conhecimento sobre simesmo, ao passo que o cogito partido remeteria à problemática ontológica e existencial da própria natureza cindida do sujeito. A filosofia de Ricoeur nos brinda com duas teses instigantes, uma para cada problemática (...): no plano epistemológico, a objetividade do conhecimento de si só poderá ser concebida por meio da atestação, um modo de conhecimento que requer que o sujeito seja considerado na dimensão mais alargada do agir; no plano ontológico, a apreensão de si deverá ser concebida como uma instância de reapropriação, um modo mediado e indireto de autocompreensão que requererá uma ampliação rumo às expressões simbólicas, culturais e linguísticas. (grifos da autora) (MEIRELES, 2016, p. 37) A partir da citação supra, desdobramos alguns aspectos fulcrais à Hermenêutica do Si: o cogito ferido se revela no Si reflexivo que emerge das diversas e possíveis respostas à indagação ―quem?‖; ou seja, temos uma necessária designação de responsabilidade resultante do processo do conhecimento de Si, exemplificada na ideia de atestação 8 . Já o cogito partido em plano ontológico é o ser-lançado a partir da mediação de si com o sistema cultural que o circunda, aprimorando sua própria compreensão no confronto e espelhamento com essa cultura; por isso a ideia de reapropriação, o sujeito retoma a consciência de sai em etapa adiante ao que já possuiu. 8 Essa discussão é articulada com o conceito de Ipseidade como dimensão da Identidade Narrativa, sendo assim retomada no capítulo 2 quando da apresentação do referido conceito. 19 Ao fim e ao cabo, o que subjaz às duas adjetivações, haja vista que, embora diferentes, estão amalgamadas em distensão, é a precariedade desse cogito que se constitui em si revela- se tão fragmentado quanto a hermenêutica que o analisa. Essa asserção é fundamental para desenvolvermos esta monografia, pois a compreensão de Ricoeur é a lida com essa precariedade na constituição de seu Si Hermenêutico-reflexivo. 1.2 A QUESTÃO DA IDENTIDADE PESSOAL Como uma ressonância paralela à problemática do cogito, Ricoeur desenvolve um profícuo debate com os filósofos de língua inglesa acerca da questão da identidade pessoal. Assim, apresentamos aqui alguns aspectos das leituras que Ricoeur faz de Locke, Hume e Parfit. Todavia, antes de realizarmos tal intento, faz-se necessário uma concisa introdução em dois conceitos fundamentais na teoria ricoeuriana da identidade narrativa: a mesmidade e a ipseidade. Adotamos tal procedimento pois, embora tais conceitos sejam devidamente examinados no capítulo 2, a compreensão do debate de Ricoeur com os filósofos ingleses seria prejudicada, para não dizer impossível, sem a mínima apresentação de tais conceituações. A ideia de mesmidade faz referência a uma tradição que começa na concepção de substância como categoria fundamental da problemática da constituição da essência das coisas. Ricoeur (1999, p. 218) faz referencia à categoria de substância em Kant, que esquematiza ―a permanência do real no tempo (...) definida como a representação como um substrato de determinação empírica do tempo em geral; substrato que, consequentemente, permanece enquanto tudo o mais se altera‖. É justamente essa concepção kantiana que se atrela, na problemática da identidade pessoal, à questão da mesmidade. Isso ocorre porque a mesmidade, enquanto permanência no tempo, se define enquanto representação do que é fixo, imutável e duradouro, mesmo que tudo o mais ao seu redor se altere. Os exemplos com itens da natureza são providenciais em nos auxiliar: uma árvore, sendo derrubada, retirada de seu habitat natural e processada industrialmente, se transforma em um bem de consumo, um móvel residencial qualquer. O próprio uso da palavra ―transforma‖ já denota uma mudança. Todavia, o elemento básico 20 madeira, um dos componentes principais da árvore, continua lá; mesmo que a árvore não seja mais árvore, a madeira continua sendo madeira. No tocante à ipseidade, podemos dizer que esta é a dimensão da identidade com a qual Ricoeur transcende as limitações impostas pela mesmidade. Ela é devedora direta do aspecto fragmentário e precário do cogito, justamente por se edificar sob o prisma da temporalidade, o que lhe confere uma feição caótica de sempre estar se refazendo-desfazendo, em uma constante inconstância, além de se mover eticamente em direção à alteridade, a perspectiva do outro, pelo aspecto signatário da promessa. Apresentadas tais categorias, exporemos agora a analítica ricoeuriana acerca dos filósofos de língua inglesa. Começando por Locke, Ricoeur (1991, p.151) vai nos afirmar que, nele, a identidade é uma comparação consigo mesma, ―é, com efeito, comparando uma coisa consigo mesmo em tempos diferentes (grifo nosso) que formamos as ideias de identidade e diversidade‖. O termo grifado acima nos fornece a deixa para examinar a questão em Locke; a dificuldade em lidar com a noção de permanência no tempo na constituição identitária, o que denota a necessidade de dialogar com a temporalidade, caminho que ele não adota. Assim, o autor atribui a dimensão da ipseidade à mesmidade 9 , o que mostra clara falta de recursos para empreender tal investigação. A dificuldade então é atribuir à mesmidade o que é inerente à ipseidade, que é a sua capacidade de aglutinar instantaneidades. Em Hume, também a identidade se resume à mesmidade. Todavia, conforme sustenta Ricoeur (ibid., p.153), ―diferentemente de Locke, Hume não confunde seus critérios de destinação da identidade, quando ele passa das coisas e dos seres animados ao si‖. Há uma associação entre o aspecto e sua projeção, sua idealização, mas estas, embora imutáveis, recaem na ilusão. É a ilusão de identidade como o intangível que a compõem. Nesse sentido, Hume se aproxima bastante de Nietzsche 10 , ao ponto de Ricoeur afirmar que a empreitada humeriana será concluída pelo filósofo alemão 11 . 9 Ainda que tais dimensões interseccionem em um continuum temporal, conforme veremos na discussão do capítulo 2 10 Como atesta Botton (2014, p.26), em termos de problemática subjetiva, estão do mesmo lado Hume, Nietzsche e Parfit. ―Embora a partir de pressupostos diferentes, ambos argumentam ser a unidade da subjetividade uma ideia ilusória (...) uma posição atrelada ao ceticismo e niilismo da cultura contemporânea, cuja consequência mais evidente é a instrumentalização da razão‖. 11 ―Dizer que a crença gera ficções é anunciar um tempo em que a crença tornar-se-à incrível. Hume não supera ainda esse passo (...) Caberá a Nietzsche concluir o passo da suspeita‖ (1991, p. 154). 21 De modo diferente, o problema da concepção de identidade tanto em Locke quanto em Hume é o mesmo: a dificuldade em constituir tal conceito sem lidar com a questão da ipseidade. Mas é em Derek Parfit que Ricoeur trava seu diálogo mais profícuo, reconhecendo-o como um adversário de fôlego considerável. Parfit apresenta uma postura mais radical do que a de seus predecessores; para o filósofo britânico, ―a identidade pessoal não é o que importa‖.12 O radicalismo de sua tese, que Parfit chama reducionista, se sustenta em três pilares: 1º: A identidade através do tempo restabelece-se sem vestígios pelo fato de certo encadeamento entre acontecimentos, quer sejam esses de natureza física ou psíquica; 2º A identidade é sempre determinável, portanto, em que todos os casos de indeterminabilidade podem ser respondidos por sim ou por não. 3º: ―a identidade pessoal não é o que importa‖ atesta que o que importa é a definição moral do sujeito.Com relação à primeira tese, denota-se certa impessoalidade na descrição da condição de existência manifesta no binômio corpo-mente, especialmente a partir da adoção da ideia de acontecimento, como um conjunto aleatório de causalidades e fatos. Ricoeur (2000, p.6-7) não contesta a ideia per si, mas sim o fato de que ―a única alternativa contrária seria um puro ego cartesiano ou uma pura substância espiritual‖. Para o filósofo francês: O que contesto essencialmente é que uma hermenêutica da ipseidade se possa reduzir à posição de um ego cartesiano, identificado ele mesmo a um «facto suplementar» distinto dos estados mentais e dos factos corporais. É porque os estados mentais e os factos corporais foram previamente reduzidos a acontecimentos impessoais que o si-próprio toma a aparência de um facto suplementar. O si-próprio, direi, não pertence simplesmente à categoria de acontecimentos e de factos. O problema é equiparar nossas experiências, sejam mentais ou físicas, a acontecimentos como meras causalidades corriqueiras. É retroceder à problemática do Cogito. Fica latente que, mesmo com mais recursos do que Locke e Hume, Parfit esbarra na mesma dificuldade destes, que é não lidar com a dimensão Ipse da identidade pessoal 13 . 12 (PARFIT, Derek. Reasons and Persons. Part three: Personal Identity. Oxford: Clarendon Press, 1984. p. 217) 13 ―É porque Parfit ignora essa possível dicotomia que ele não tem outro recurso senão conservar como supérfluo, no sentido preciso do termo, o fenômeno de minha totalidade com relação à factualidade do acontecimento‖ (RICOEUR, 1991, p. 159). 22 A segunda tese deixa transparecer uma tentativa de esvaziamento da própria questão de identidade, à medida que Parfit recorre a diversos casos de ficção científica que dentro da realidade contemporânea parecem irrealizáveis. Há uma multiplicação desses ―puzzling cases‖, recurso que também fora usado por Locke. Ricoeur (1991, p.161) os entende como uma estratégia singular, ―dando a entender que a questão da identidade constitui um lugar privilegiado de aporias. Talvez seja necessário concluir não que a questão seja vazia mas que ela pode permanecer como uma questão sem resposta‖. A este recurso, o Filósofo francês se opõe, por considerar que ele esvazia justamente a vida cotidiana de uma pessoa, justamente o que pode constituí-la em sua identidade. É nesse sentido que ele pensa, ao revés, na narratividade como elemento essencial dessa constituição. ―Que a narratividade oferece aqui uma solução alternativa, isso já está pressentido, ou se se quiser pré-compreendido na maneira como falamos na vida quotidiana da história de uma vida. Igualamos a vida à história ou às histórias que contamos a seu propósito‖ (RICOEUR, 2000, p. 8). A terceira tese funciona como o corolário de toda a argumentação de Parfit. E mais uma vez serve como exemplo de como a ipseidade (ou a sua ausência) também é o ―calcanhar de Aquiles‖ do filósofo inglês. Se é esse si-próprio definido na ipseidade que assume a possibilidade de ser responsabilizado, imputado por seus atos e escolhas, não há como a identidade ser desimportante, haja vista que ―é todo o peso das questões éticas que recai sobre a questão da identidade‖ (RICOEUR, 1991, p. 164). Dessa forma, percebemos a vinculação da problemática da identidade pessoal com a problemática do cogito: mesmo em situações extremas, como a que Parfit nos submete, ao assumir a proposição de que ―a identidade não importa‖, Ricoeur contrapõe: ―Mas, perguntarei, a quem (grifo do autor) a identidade deixa de importar? Quem é intimidado a despojar-se da asserção de si próprio, senão o si-próprio que foi colocado entre parênteses em nome da metodologia impessoal?‖ (RICOEUR, 2000, p.7). O que se depreende tanto da crítica ao cogito quanto do debate com os filósofos ingleses acerca da noção de identidade pessoal é que os pensadores com os quais Ricoeur dialoga têm imensa dificuldade de lidar com o aspecto temporal da constituição humana. Mas como Ricoeur lida com essa questão? No tópico seguinte explanaremos acerca desta problemática, especialmente realçando a análise que ele faz dos estudos de Agostinho sobre a temporalidade. 23 1.3 TEMPORALIDADE: CONTAR E DIZER O TEMPO As dificuldades enfrentadas pelos filósofos ingleses na analítica do sujeito com a perspectiva temporal da existência nos levam a inquirir: de que modo se relacionam o sujeito e o tempo na composição da vida humana? É justamente a partir de tal pergunta que advém o conceito que abordamos neste tópico, o da temporalidade. Mas o que vem a ser temporalidade? Temporalidade é a experiência temporal humana; é essa nossa sensação de passagem, de transcurso, de devir. Por isso que formular uma pergunta sobre a temporalidade é formular uma indagação sobre o próprio sujeito. Seria o mesmo que perguntar em que medida compreender essa vivência de passagem, essa sensação de transcorrer pode contribuir para compreendermos melhor a natureza de nossa subjetividade. Dito de outro modo, trata-se de perguntar em que medida o tempo nos constitui. Com essa simples pergunta, (...) pensa-se o tempo como constituinte do sujeito, e não como uma realidade exterior ao sujeito. Não é que o sujeito passa pelo tempo; antes, nós somos tempo; não é o tempo que passa, somos nós que nos constituímos temporalmente (MEIRELES, 2012, p.3). Assim, pensar e lidar com o modo como o homem (se) pensa, se enxerga e se constitui ante ao tempo e a partir dele, considerando sine qua non a inserção deste na composição humana, é a única alternativa possível para Ricoeur superar as dificuldades encontradas por seus debatedores. E ele não se furta de fazê-lo. Mas de que forma ele executa tal intento? Primeiramente, ele recorre aos estudos de Agostinho, especificamente o Livro XI das Confissões, onde o pensador medievo medita sobre a relação entre o homem e o tempo. Agostinho de Hipona (354 – 430), também conhecido como Santo Agostinho, é reconhecidamente o primeiro pensador da tradição filosófica a romper com a perspectiva de se pensar e conceber o tempo a partir da natureza, com ênfase no movimento dos astros, como faziam, por exemplo, Platão e Aristóteles. Uma concepção por assim dizer, cosmológica do tempo e externa ao homem (GAGNEBIN, 1997b, p.70). Ante essa concepção cosmológica do tempo, a postura de Agostinho é a de uma visão psicológica. Ricoeur inicia sua análise levantando a questão central da problemática agostiniana. Transcrevemo-la ipsis litteris: O que é afinal o tempo? Quem o explicaria fácil e brevemente? Quem o captaria, ao menos apenas no pensamento, para proferir uma palavra sobre ele? Mas, ao falar, o que mencionamos que seja mais familiar e conhecido do que o tempo? E de algum modo entendemos quando falamos do tempo, e também entendemos quando ouvimos outra pessoa falar dele. O que é, portanto o tempo? Se ninguém me pergunta, sei; se quiser explicar a quem pergunta, não sei (AGOSTINHO DE HIPONA, 2009, p.38). 24 Observa-se que a questão primeira é: ―o que é, afinal, o tempo?‖. Com esta pergunta, Agostinho estabelece uma ontologia 14 do tempo, conforme Ricoeur (1994, p.21). Colocar o tempo como uma questão quiditativa, ou seja, quase uma ―subjetivação‖ do tempo, não é, de forma alguma, uma incoerência. O tempo é, pela sua temporalidade, a via principal de manifestação da ação humana. Nessa ontologia, Ricoeur aponta a aporia do ser e não-ser do tempo. Tal querela está ligada a certa corrente cética que afirma que o tempo não existe. Agostinho não coaduna de tal hipótese; para ele, o uso de expressões linguísticasque permitem medir o tempo denota a sua existência, pois só pode ser medido o que, de algum modo, é. Para superar a contenda, Agostinho então sugere que o presente é dilatado, alargado, de modo a abarcar tanto o passado como o futuro. Isso decorre da ideia que tanto o passado, através da memória, como o futuro, via expectativa, só se dizem no presente. Dai advém a ideia de um tríplice presente, apresentada da seguinte forma: O tempo não tem ser porque o futuro não é ainda, o passado não é mais e o presente desaparece. E apesar disso, dizemos alguma coisa de positivo sobre o tempo porque dizemos que o futuro será, o passado tem sido e o presente está sendo. Conhecemos a solução desse paradoxo: o passado está em um sentido presente na alma, graças às imagens de eventos passados que nós chamamos de lembranças; o futuro está igualmente presente na alma, graças a outras imagens, as da antecipação ou da expectativa; memória e expectativa se reúnem no presente, entendido como atenção ou expectação. Mas a solução do paradoxo é ela mesma um paradoxo já que se faz necessário falar de três tipos de presentes: um presente de coisas passadas, um presente de coisas presentes e um presente de coisas futuras. (Agostinho Apud RICOEUR, 2012, p.301). Contudo, a solução de uma aporia cria outra. Como pode se conceber o alargamento do presente, se o presente não tem extensão? 15 Para responder a esta aporia, Agostinho de Hipona (2009, p.49) apresenta a ideia de distentio animi, a distensão da alma. ―o tempo não é senão uma distensão, mas não sei de que coisa, e me admiraria se não fosse do próprio espírito‖. Essa distensão funciona como um estiramento, um dilaceramento da alma, em fluxo ativo entre espera, memória e atenção. ―Justamente por jamais coincidirem as três dimensões 14 Sobre isso, Gagnebin (1997b, p. 75) destaca: ―Há no texto agostiniano um deslocamento progressivo de uma reflexão — aporética — sobre o tempo como um certo tipo, misterioso e inapreensível, de substância, para uma autorreflexão sobre as várias atividades humanas. Esse deslocamento é assinalado pela passagem dos substantivos neutros singulares Praeteritum, Praesens, Futurum, para a forma plural adjetiva—Praeterita, Praesentes, Futura, acontecimentos passados, presentes, futuros.‖ Arriscamos a partir de tal comentário a dizer que é quase um deslocamento de uma ―mesmidade temporal‖ para uma ―ipseidade temporal‖. 15 Conforme Agostinho de Hipona (2009, p. 44): ―Mas de que modo medimos o tempo presente, já que ele não tem espaço? Medimos, portanto, quando passa, mas não medimos quando tiver passado, pois o que tiver sido medido não existirá.‖ 25 da ação e que a alma é distendida, internamente discordante, sem uma unidade‖ (MEIRELES, 2012, p. 8). Se retomarmos à questão central da problemática agostiniana, veremos que nela já estava contido outro aspecto fulcral que servirá de base a Ricoeur: o imbricamento entre tempo e linguagem: Nesse momento crucial do Livro XI, no qual se alcança, a duras penas, uma definição, a questão da linguagem — esse estranho ser que só remete às coisas porque presentifica sua ausência — e a questão do tempo — esse outro estranho ser que não se deixa agarrar em seu incessante escapulir — ambas questões se unem. Com efeito, a relação entre tempo e linguagem não é, como parecia à primeira vista, uma mera relação de continente e de conteúdo, mas, criticadas essas categorias espaciais que nos confundem em vez de nos esclarecer, muito mais profundamente, uma relação transcendental mútua: o tempo se dá, de maneira privilegiada, à minha experiência em atividades de linguagem — no canto, na recitação, na escrita, na fala —, e só consigo falar, escrever, cantar e contar porque posso lembrar, exercer minha atenção e prever.(grifos da autora) (GAGNEBIN, 1997b, p.76) A importância dessa questão far-se-á à medida que se evidencia que o tempo, além de medido, também precisa ser dito. As inúmeras expressões temporais da linguagem comprovam tal concepção. Não por acaso, a definição de temporalidade de Ricoeur (1999, p.183) também entrelaça tempo e linguagem: ―a temporalidade é uma estrutura da existência – uma forma de vida – que acessa a linguagem mediante a narratividade, sendo que esta é a estrutura linguística – o jogo de linguagem – que tem como ultimo referencial a temporalidade ―. Mas percebe-se que em Agostinho a temporalidade permanece difusa e discordante, e que Ricoeur intui a necessidade de uso da via narrativa 16 . Sua definição de temporalidade apresentada acima evidencia isso. Destarte, é através da identidade narrativa e do aprofundamento da dimensão da ipseidade que Ricoeur pretende lidar com as dificuldades da identidade pessoal dos filósofos e com o aspecto discordante da temporalidade agostiniana, conforme veremos nos próximos capítulos. 16 ―A especulação sobre o tempo é uma ruminação inconclusiva, à qual só replica a atividade narrativa‖ (RICOEUR, 1994, p.21) 26 CAPÍTULO 2 A IDENTIDADE NARRATIVA: ENTRE A MESMIDADE E A IPSEIDADE Neste capitulo, iniciaremos a abordagem sobre o conceito de identidade narrativa propriamente dito. Destrincharemos neste e no capítulo seguinte os conceitos secundários que lhe dão substrato. Perpassaremos sua enunciação inicial, feita no Tomo III da obra ―Tempo e Narrativa‖, bem como a série de estudos que Ricoeur desenvolve posteriormente para aprimorar o cabedal epistêmico que embasa o conceito. 2.1 A IDENTIDADE NARRATIVA: ENUNCIANDO O CONCEITO Ao final do terceiro tomo de Tempo e Narrativa, no trecho conclusivo do livro, Ricoeur expõe o que considera os limites de sua obra, onde argumenta que a temporalidade ―só se diz no discurso indireto da narração‖ (1997, p.417). Assim, um desdobramento que Ricoeur classifica como negativo dessa forma de compreensão do tempo vivido é justamente a multiplicação das aporias da temporalidade. É justamente a primeira dessas aporias nosso foco de investigação, a identidade narrativa. Dessa forma, ele enuncia, indagando: ―Até que ponto o entrecruzamento das intenções ontológicas respectivas da história e da ficção constitui uma réplica apropriada à ocultação recíproca das duas perspectivas, fenomenológica e cosmológica, sobre o tempo?‖ (RICOEUR, 1997, p.423). E continua: Da fecundação desse entrecruzamento emerge um frágil rebento oriundo da história e da ficção, que é a atribuição a um indivíduo ou a uma comunidade de uma identidade específica que podemos chamar de identidade narrativa. O termo ―identidade‖ é aqui tomado no sentido de uma categoria da prática. Dizer a identidade de um indivíduo ou uma comunidade é responder a questão: quem fez tal ação? quem é o seu agente, o seu autor? (...) A resposta a essas indagações só pode ser narrativa. (RICOEUR,1997, p.424) Pensemos, em primeiro lugar, na expressão ―frágil rebento‖ que Ricoeur utiliza ao enunciar a identidade narrativa. A caracterização posterior da identidade narrativa como um processo inacabado e fluido, trespassado por intercorrências de sua própria formulação, 27 denota a ideia de fragilidade ali presente, evidenciando que o próprio Ricoeur, propondo a identidade narrativa, a concebia levando em consideração suas limitações e precariedades. A seguir, Ricoeur cita pela primeira vez as duas dimensões fundamentais que compõem a identidade narrativa: a identidade do mesmo, o idem, recebe o nome Mesmidade e a identidade do si mesmo, o ipse, recebe a alcunha Ipseidade. Para Ricoeur (1997, p.425), ―a diferença entre o idem e o ipse, nãoé senão a diferença entre uma identidade substancial ou formal e a identidade narrativa‖. Então inicialmente Ricoeur é categórico em equiparar a Mesmidade com a Identidade substancial ou formal e a Ipseidade com a Identidade Narrativa. Por que ele adota tal postura? Como o próprio Ricoeur aponta, o conceito de Identidade narrativa decorre de uma aporia, aparecendo ao final de uma extensa obra como Tempo e Narrativa, então não há um desenvolvimento maior dessa diferenciação. Ele destaca a Ipseidade, e compreende que esta é uma fuga ao dilema da mesmidade como permanência no tempo (embora não faça ainda uso deste termo), um ―si instruído pelas obras da cultura que ele aplicou a si mesmo‖ (RICOEUR, 1997, p.428). Neste momento, percebemos uma clara primazia conferida por Ricoeur à ipseidade, em detrimento da ideia de Mesmidade. Todavia, essa postura passará por algumas reflexões e ajustes por parte do filósofo em seus trabalhos posteriores. Outras questões emergem da conceituação da identidade narrativa. Ao atribuí-la como uma categoria da prática, Ricoeur (ibid., p.426) se preocupa em exemplifica-la, assemelhando-a ao trabalho da clínica psicanalítica (identidade individual), ou ao trabalho do historiador (identidade coletiva, de comunidade), em busca de narrativas. Desta forma, desdobra-se outra implicação da identidade narrativa, que é a resposta à questão ―quem?‖. Tal resposta perpassa inquestionavelmente por estabelecer também quem é o narrador: o analista, o paciente, o historiador, o entrevistado, o ouvinte. Isso faz com que a identidade narrativa seja, em seu cerne, um problema ético-político 17 . É somente através da Identidade narrativa, identificada com o Ipse, com o Si Mesmo, que o problema da identidade pessoal, vista como substância algo fixo e estável, supera suas limitações, especialmente no que tange aos trabalhos da vertente inglesa da filosofia, como Hume, Locke e Parfit. Essas limitações se atêm, a priori, à dimensão da Mesmidade. Vejamos como ela se define e como Ricoeur a problematiza em seus trabalhos. 17 Voltaremos a essa temática mais adiante. 28 2.2. MESMIDADE A mesmidade advém da longeva tradição filosófica que, de alguma forma, se inicia em Aristóteles e remete à ideia de substância. A assertiva não é nova: uma mesa, mesmo riscada e pintada, continua sendo uma mesa, haja vista que um risco ou uma pintura são acontecimentos, intempéries, que não alteram o(s) atributo(s) fundamentais que fazem da mesa, mesa. A própria origem etimológica da palavra ―identidade‖ nos serve para discutir a questão: ‖identidade‖, excluído o prefixo Id, tem na ideia de entidade a origem no Latim Entitas, que significa essência. Assim, a própria formação da palavra funciona como um signo para a ideia de identidade; o prefixo nos remete à identificação, que por sua vez é constitutivamente relacional: não existe ―eu‖ sem ―outro‖. Por sua vez, o ―entitas‖, a essência, nos remete ao que temos de único. Então, a identidade seria justamente o que temos de singular, que se estabelece mediado e reconhecido pelo outro. 18 Ocorre que, na tradição filosófica, a dimensão do ―entitas‖ é compreendida como o ―mesmo‖, aquilo que permanece, que se restringe à substância. O que Ricoeur busca, rompendo com a tradição, é uma concepção que associa o Id mediado, relacional, com o ―entitas‖, a essência, um ―si‖ com o ―outro‖. Ricoeur (1991, 2000) vai enumerar quatro características que compõem a mesmidade: A identidade como unicidade; a identidade como semelhança extrema; a identidade como continuidade ininterrupta, e a identidade como permanência no tempo. Enquanto unicidade, a mesmidade possui atributo quantitativo, pois ―duas ocorrências de uma coisa designada por um nome invariável não constituem duas coisas diferentes mas uma só e mesma coisa‖(RICOEUR, 1991, p.140). O segundo aspecto da identidade como mesmidade é a semelhança extrema, um atributo que se define como qualitativo: ―se X e Y fazem uso da mesma roupa, ou seja, roupas 18 Estou aqui em um exercício de reflexão tentando compreender as inquietações de Ricoeur. Porém é fato que há uma série de desdobramentos a partir dessa assertiva. Alguns deles, como o uso da narrativa para mediar e estabelecer estas posições subjetivas propostas pelo autor e a resposta à questão ―quem?‖, estarão presentes nesta monografia. Outros, como a questão do reconhecimento (a qual Ricoeur dedica sua obra, Percurso do Reconhecimento), bem como a questão da ordem entre a essência e seu entorno ficam fora de nosso escopo. Ao fim e ao cabo, nos valemos da citação de Guimaraes Rosa lembrada por Viveiros de Castro (2015, p.50), onde a questão é saber ―o quem das coisas‖, pois ―os sujeitos, tanto quanto os objetos, são concebidos como resultantes de processos de objetivação: o sujeito se constitui ou se reconhece a si mesmo nos objetos que produz, e se conhece objetivamente quando consegue se ver ―de fora‖, como um ―isso‖. 29 idênticas, ao ponto de serem trocadas uma pela outra" (RICOEUR, 2000, p.3). Uma observação interessante a respeito da semelhança extrema é pontuado por Correia (2000, p.14): Quando não somos capazes de discernir a diferença entre dois objectos numericamente diferentes dizemos que ele são idênticos por semelhança. Mas o facto de não sermos capazes de discernir a diferença, não significa que ela não exista. Segundo o «princípio de identidade dos indiscerníveis», formulado, por Leibniz, a consideração de duas entidades como indiscerníveis implica posicionar o mesmo ente duas vezes. O que, no limite, significa que a identidade por semelhança nunca pode ferir a identidade específica subjacente à identidade numérica. É necessário observar que a unicidade e a semelhança extrema não contemplam a dimensão temporal, no que diz respeito a intervalos de tempo entre uma situação e outra, no que tange ao reconhecimento de uma pessoa em situações diferentes, por exemplo. Como afirma Ricoeur (1991, p.141), ―é precisamente porque o tempo está implicado na sucessão das ocorrências da mesma coisa que a reidentificação do mesmo pode suscitar a hesitação, a dúvida, a contestação‖. Para dar conta deste problema, surge o terceiro aspecto da identidade mesmidade, que é a noção de continuidade ininterrupta. Tal aspecto englobaria os estágios de desenvolvimento de um ser ou de um ente ao longo de sua existência. Sobre a continuidade ininterrupta, Correia (2000, p.14) sentencia: A identidade como continuidade introduz o factor tempo como princípio intrínseco de identidade, mas ainda não é critério suficiente na consideração da identidade pessoal. Posso afirmar, por exemplo, que o planeta Terra tem certo número de anos de existência, mas seria absurdo considerar que esta continuidade no tempo lhe garantiria o estatuto de pessoa‖. A continuidade ininterrupta traz à tona a problemática do critério de mudança no tempo, o que abre espaço para a quarta e última dimensão da mesmidade, justamente a permanência no tempo. Ricoeur (1991, p.142) a entende como ―uma estrutura invariável de um instrumento do qual teremos progressivamente mudado todas as peças‖. Já Correia (2000, p.14) afirma que a permanência no tempo deve ser compreendida como permanência apesar do tempo, pois ―não se trata do reconhecimento de um ser ao longo do tempo, mas antes da sua projecção numa existência substancial que se esquiva e subtrai ao tempo‖. É justamente nesta última, a permanência do tempo, que, como diz o próprio Ricoeur (2000, p.4), ―começam os verdadeiros embaraços‖. Visto que não conseguiriaresolver a querela da mesmidade e sua condição de estrutura invariante, Ricoeur desenvolve o conceito de ipseidade, a qual podemos conceber como uma permanência que, por assim dizer, não permanece. 30 2.3 IPSEIDADE Destarte, a permanência no tempo é o ponto interseccional de confluência e divergência entre mesmidade e ipseidade, onde ―o si-próprio encontra-se em intersecção com o mesmo num ponto preciso, precisamente a permanência no tempo‖ (RICOEUR, 2000, p. 5- 6). Esse si-próprio reflexivo, a ipseidade, é a forma encontrada para superar as limitações do modelo de identidade pessoal calcado na mesmidade analisada anteriormente. Nas palavras do filósofo, ―a Ipseidade do si implica uma forma de permanência no tempo que não seja redutível à determinação de um substrato‖ (RICOEUR, 1991, p.143). Sobre a questão da permanência nessa relação com Ipseidade, Botton (2014, p.27) afirma: O grande lance da obra de Ricoeur é propor um modo de permanência que não se restrinja à permanência de uma substância ou estrutura invariante. Uma permanência capaz de corresponder de modo melhor ao estatuto ontológico desse ente particular, que não se relaciona com o tempo exclusivamente, por assim dizer, de modo ―extrínseco‖, simplesmente como fator de corrupção, mas tem na temporalidade um elemento constitutivo de si mesmo, à diferença dos outros entes. Todavia, se por um lado a ipseidade transcende a mesmidade no sentido de superar sua limitação substancial, incorporando, de certa forma, a temporalidade à ideia de identidade, por outro lado, ela implica uma série de questões que se desdobram de seu estatuto ontológico. Nesse sentido, Sombra (2015) argumenta acerca da dificuldade de Ricoeur em definir Ipseidade. Mas tal dificuldade não é autoral, e sim conceitual, decorrente da diferença ontológica, no mesmo sentido em que Heidegger não consegue enunciar e nomear o ser 19 . 19 Vale ressaltar que, de alguma forma, o conceito de Ipseidade é tomado de Heidegger por Ricoeur. O próprio Ricoeur (1997, p.425) faz menção á isso quando apresenta o conceito de identidade narrativa em Tempo e Narrativa III: ―a identidade narrativa, constitutiva da ipseidade, pode incluir a mudança, a mutabilidade, na coesão de uma vida‖. Estes três últimos conceitos estão no parágrafo 72 de Ser e Tempo. Ademais, como diz o próprio Ricoeur (2000, p.5), ―Antes de assinalar a região em que a questão do si-próprio recobre a do mesmo, insistamos no corte não apenas gramatical, ou até mesmo epistemológico e lógico, mas francamente ontológico que separa idem e ipse. Estou aqui de acordo com Heidegger para dizer que a questão da Selbstheit [ipseidade] pertence à esfera de problemas que derivam da espécie de entidade que ele chama Dasein e que ele caracteriza pela capacidade de se interrogar sobre o seu próprio modo de ser e assim de se relacionar ao ser enquanto ser. À mesma esfera de problemas pertencem as noções tais como ser no mundo, cuidado, ser-com, etc‖ 31 Tal dificuldade é conceitual porque a ipseidade se constitui onde a estabilidade e a certeza não se fazem presentes. Enquanto si mesmo, a ipseidade é precária, fraturada, e, pensada na perspectiva da temporalidade, seu constitutivo fundamental, se afasta da identidade idem, mantida no tempo, porém sem nunca se livrar dela por completo. Nas palavras de Andrade (2014, p.66): Podemos pensar a mediação constitutiva da ipseidade não como uma totalidade portentosa, mas como um processo em andamento e, por isso mesmo, passível de ser, a qualquer hora, fraturado (grifo do autor). A identidade narrativa não cessa de se fazer e desfazer, e é por isso que nela tudo se passa menos como constatação de uma unidade alcançada que como provocação para uma eventual sutura, já que o ―objetivo‖ e o ―subjetivo‖ em jogo é o próprio tempo, cuja natureza rebelde à especulação Ricoeur nunca cansou de enfatizar. A Ipseidade se torna assim um conceito paradoxal, pois como toda definição se faz a partir do estabelecimento de aspectos comuns ao que se define, e como a ipseidade parece ser mais uma singularidade do que ter totalmente aspectos comuns, esta se constitui a dificuldade de defini-la. Apesar de toda a dificuldade conceitual apresentada, a ipseidade apresenta um papel fundamental na constituição da Identidade Narrativa: vai ser a dimensão Ipse, do Si próprio, a responsável por articular o personagem ao entorno que o circunda, através da teoria da ação. Podemos dizer que nela se constitui a dimensão ético-política da identidade narrativa: retomando a questão ―quem?‖ temos a atribuição de responsabilidade, a imputação de quem responde, ou como diz Ricoeur (2006, p.113), a adscrição, ―a atribuição a uma pessoa (...). A adscrição da ação a um agente faz parte do sentido da ação enquanto fazer ocorrer.‖20 A formação da ipseidade, ato ontológico ao mesmo título que político, implica a inserção da pessoa no mundo social e histórico, seu envolvimento com práticas que, enquanto dão espessura ao tempo vivido, liberam, pelo exercício da memória, seu passado individual e coletivo (ANDRADE, 2014, p.68). 2.4. A DIALÉTICA MESMIDADE X IPSEIDADE Dartigues (1998, p.13) argumenta que a relação entre mesmidade e ipseidade é dialética. A mesmidade representa um polo de estabilidade e constância; a ipseidade, um polo 20 ―O termo "adscrição" salienta o caráter específico da atribuição quando esta diz respeito ao vínculo entre a ação e o agente, do qual se diz também que ele a possuí, que ela é "sua", que ele se "apropria dela". A adscrição visa, no vocabulário que ainda é o ela pragmática do discurso, à capacidade de o próprio agente designar a si mesmo como aquele que faz ou que fez. Ela faz a ligação do quê e do como ao quem.‖ (RICOEUR, 2006, p.113) 32 de inovação e de imprevisibilidade. A relação entre tais polos se constitui através da narratividade dos acontecimentos, nos quais os personagens agem. Antes de enveredarmos sobre o papel da narrativa na dialética do idem e do ipse, procuremos entender de que forma se constitui essa dialética. De fato, o que se sobressai nessa recursividade entre a mesmidade e a ipseidade é a implicação ética que se desdobra entre ambas. Somente com um mínimo de permanência no tempo, ou seja, com o mínimo de mesmidade, é que pode haver o desdobramento necessário para a consecução da ipseidade. A mesmidade, simbolizada na ideia do caráter, concepção que discutiremos mais adiante, é, o instante em cujo aspecto o sujeito se torna reconhecível. É a partir desse instante em que a ipseidade ainda afetada pela mesmidade se desdobra para outro ponto deste continuum, que Ricoeur (1991, p. 195) exemplifica na ―noção essencialmente ética da manutenção de si que ele nos pareceu representado. A manutenção de si é para a pessoa a maneira de se comportar tal que o outro possa contar (grifo do autor) com ela‖. Ou nas palavras de Dartigues (1998, p,16), ―uma dialética é possível, entre a identidade narrativa e a identidade ética, porque esta dá à primeira um ponto de referência, ou um ponto fixo que permite ao sujeito, na sua errância sem fim em busca de si, dizer: ‗Aqui permaneço!‘‖ Em suma: a mesmidade garante um mínimo de inteligibilidade à ipseidade; por sua vez, a ipseidade se expande em relação à mesmidade. Porém, como nunca se desvencilha desta, confere à mesma instabilidade e inconsistência. Essa é a dialética entre mesmidade e ipseidade. É justamente a teoria narrativa que vai concatenar ambas as dimensões idem e ipse: a ideia de identidade narrativa dá acesso a umanova abordagem do conceito de ipseidade, que, sem a referência à identidade narrativa, é incapaz de desenvolver sua dialética específica, a da relação entre duas espécies de identidade, a identidade imutável do idem, Pelo mesmo, e a identidade móvel do ipse, pelo si, considerada em sua condição histórica. É no quadro da teoria narrativa que a dialética concreta da mesmidade e da ipseidade atinge um primeiro desenvolvimento, esperando por sua culminação com a teoria da promessa (RICOEUR, 2006, p.116). A narrativa, ao exercer a função de conectar os dois polos, molda a identidade narrativa. Ela preenche aquilo que Ricoeur denomina ―intervalo de sentido‖ que se abre entre 33 a mesmidade e a ipseidade. Afirmando que as duas dimensões da identidade narrativa são formas diferenciais de permanência no tempo, Ricoeur (1991, p.150) diz: Não ficaremos surpresos em ver a identidade narrativa oscilar entre dois limites, um limite inferior, em que a permanência no tempo exprime a confusão do idem e do ipse, e um limite superior, em que o ipse coloca a questão de sua identidade sem a ajuda nem o apoio do idem. A confusão permite uma série de questionamentos. Por exemplo, podemos afirmar que a ipseidade também seria um conjunto de mesmidades? Afinal, ao narrarmos nossa história, ou a de outro, sempre trespassada por tantas histórias de tantos outros, caracteres vão se erigindo, tomando forma, gerando sentido e constituindo inteligibilidade à realidade. De alguma forma, essas mesmidades estão inscritas na ipseidade, especialmente quando se faz este resgate temporal via narrativas. Podemos pensar que as mesmidades são como fotografias que registram certos momentos de nossa vida. São cristalizações, registros de um momento. E todos esses registros e cristalizações são atinentes à Ipseidade, justamente por esta relação de inscrição. Assim, a ipseidade seria definida pela sua impossibilidade de definição, e os ganchos possíveis de serem definidos seriam a(s) mesmidade(s). Para consolidar a discussão acerca da mesmidade e da ipseidade, e como tais concepções se relacionam na Identidade Narrativa, Ricoeur faz uso de dois conceitos: o caráter e a promessa. Vejamos como tal discussão se constitui. 2.5. CARÁTER Conforme dito anteriormente, uma das questões essenciais que se desdobram na discussão da identidade narrativa é a questão ―quem?‖. Ricoeur (2000, p.4) entende que ―o ponto de partida do desenvolvimento da noção de ipseidade deve-se procurar na natureza da questão à qual o si-próprio constitui uma resposta, ou um leque de respostas. Esta questão é a questão quem, distinta da questão o quê”. Talvez não haja resposta para a questão ―quem?‖, mas o que interessa é o que ela implica. Conectando-a como uma forma de permanência no tempo, ela será o elo condutor que desdobrará dois conceitos fundamentais para a compreensão dessa dialética que subjaz à identidade narrativa e à dialética da mesmidade e da Ipseidade: são os conceitos de caráter e promessa. 34 No que tange ao caráter, o que se depreende em Ricoeur é que essa ideia é uma tentativa de inscrever na pessoa uma mesmidade. Há, portanto, uma inscrição do caráter na Mesmidade. Mas Ricoeur coloca nuances nessa imutabilidade, pois está inscrita numa existencialidade, numa abertura. As limitações da imutabilidade do caráter refletem que o mesmo também possui certa ambiguidade em sua constituição Conforme afirma Botton (2009, p.3), ―a ideia de caráter, determinante da identidade-mesmidade, não se reduz completamente a ela, pois os traços que constituem um caráter são adquiridos no tempo. Eles escondem um ipse latente correspondente ao momento temporal de seu surgimento‖. Ricoeur informa que lida com tal conceito desde sua obra O Voluntário e o Involuntário, de 1950. Em O Si-Mesmo como um Outro, Ricoeur chega a enunciar o caráter em diversas oportunidades. Citando uma delas: ―Entendo aqui por caráter o conjunto das marcas distintivas que permitem reidentificar um individuo humano como o mesmo. Pelos traços descritivos que iremos arrolar, ele acumula a identidade numérica e qualitativa, a continuidade ininterrupta e a permanência no tempo. É por esse meio que ele designa de modo emblemático a mesmidade da pessoa.‖ (1991, p.144) Pensemos o seguinte: as limitações da imutabilidade do caráter apontadas por Ricoeur e reforçadas por Botton, somadas aqui à necessidade de Ricoeur conceituar o caráter tantas vezes, evidenciam que há uma dificuldade conceitual, assim como a dificuldade conceitual da ipseidade relatada anteriormente. De fato, não se trata de coincidência, pois, conforme afirmamos anteriormente, na apresentação da mesmidade e da ipseidade há um ponto em que Idem e Ipse se entrecruzam. É na permanência no tempo. Quando Ricoeur (1991, p.146) afirma que ―o caráter é, verdadeiramente, o ‗que‘ do ‗quem‘, ele está inserindo a concepção tradicional de substância em um emaranhado constituído por histórias, fatos, registros imagéticos, tudo isso enredado nas formas em que são contadas através da narrativa (―o que‖). Ele pretende, de alguma forma, resguardar o mínimo de coerência e inteligibilidade, em um mosaico complexo e indefinido sempre ressignificado através da linguagem, onde se conta com a definição, ainda que temporária e precária, do agente do ato (―o quem‖). Já ao afirmar que ―o caráter , dizíamos, é o si sob a aparência da mesmidade‖ (idem, p.155), ele está reforçando a alcunha anterior, pois a utilização do ―si‖ é um dos termos pelo qual faz menção à Ipseidade. Então, o caráter, como signo da Mesmidade, é uma forma do Si, da Ipseidade, mas que se atém, se desvela, se manifesta, sob o campo da Mesmidade. 35 Dito de outra forma: a Ipseidade contém a Mesmidade. Por isso, não é possível a primeira sem a segunda. Ricoeur (1991, p.140) afirma categoricamente ―A Ipseidade não é a Mesmidade‖. Melhor seria afirmar que a ipseidade não se resume à mesmidade. Não é concebível pensarmos em uma sem a outra. Conforme vimos na relação dialética entre mesmidade e ipseidade, há uma relação de recursividade entre elas 21. ―O Caráter, eu diria hoje, designa o conjunto das disposições duráveis com que reconhecemos uma pessoa‖ (ibid., p.146). Para uma pessoa que mantém um caráter, não há nenhuma garantia ―substancial‖ de que ela seja a mesma. Mas há uma expectativa de que ela mantenha certas posturas, de que, na prática, seja a mesma. E ela será cobrada por isso, não importa a ―substância‖ que a mantenha. 2.6. PROMESSA Voltemos à questão ―quem?‖, pois é a partir dela que Ricoeur vai abordar a Ipseidade através da noção de promessa. É nesta que o Ipse se manifesta como pura manutenção de Si. Ricoeur (1991, p.148) apresenta o conceito de promessa, da seguinte forma: Existe, com efeito, um modelo de permanência no tempo diferente daquele do caráter. É o da palavra mantida na fidelidade à palavra dada (promessa),( termo e grifo nosso). A palavra mantida afirma uma manutenção de si (grifo do autor) que não se deixa inscrever, como o caráter na dimensão de alguma coisa em geral, mas unicamente naquela do quem (grifo do autor)‖. Há um deslocamento do caráter, que mesmo se reconhecendo também no/pelo outro, através de recursos extralinguísticos (imagens das mais diversas formas), preexiste antes desse reconhecimento, para a noção eminentemente linguístico-discursiva da promessa, cuja forma de reconhecimento se institui exclusivamente no outro, pois somente para o outro a promessa constitui sentido (obviamente, não há impossibilidade de se fazermos auto promessas) 22 . 21 Ou dito
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