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O BRASIL COLONIAL - VOL 1 _ _ _ . "Os desembargadores em Ponugal (1640-1820)". ln: Nuno G. Monreiro, Pedro Card1m & Mafalda Soares da Cunha (coords.). Optima Pars, Elites rbero- amerrcanas do Arlllgo Regime. Lisboa: Imprensa de Ciêm:ias Sociais/Universidade de Lisboa, 2005, p. 253-277. _ _ _ . "Os ministros do rei no poder local, ilhas e ultrJm,u (1772-1826)", Penélope, 27, 2002, p. 37-58. _ _ _ . "The Evidence of Pombalism: Reality or Pervasive Clichés?", e-Journul for Portuguese Hrstory, vol. 5, n" 2, inverno, 2007. _ _ _ . O Desemburgo do Paço (1750-1833). Lisboa: Universidade Autónoma de Lisboa, 1996. _ _ _ . "1 nspecteurs, inrendant!> et surintendanrs, structures administratives portu- gaises au XVIlle siede". ln: Les figures de f'udmm1str,1te11r, 16e-19e srecles. Paris: École des Hautes Étu<les en Sc1t'nces Sociaks, 1997, p. 133-150. O terremoto po/11,co (1755-175':J)-Memúrw e poder. Lisboa: Universidade Autónoma de Lisboa, 2007. XAVIER, Ángl·la Barreto. A invenção de Goa. Poder imperial e co1wersôes culturais nos séculos X VI e X V III. Lisboa: I nstituro de Ciências 501.1a1s, 2008. 166 CAPÍTULO 4 Os indígenas na fundação da colônia: uma abordagem crítica João P.icheco de O/iueira* Introdução metodológica Muitas vezes e até num passado recente as investigações sobre as relações entre os europeus e as populações autóctones na América portuguesa assumiram o aspecto de uma confrontação abstrata entre uma população primitiva e homogênea e colonizadores europeus do início do renasci- mento. Ou seja, entre pessoas portadoras de culturas localizadas em etapas muito distantes da história da humanidade. Um encontro portanto altamente improvável e ilógico, no qual o estudioso vem a adotar (sem disso ter qualquer consciência) uma perspectiva unilateral e etnocêntri- ca, como herdeiro (natural e feliz) de uma das partes. Está instaurado o cenário ideal para um exercício lúdico de produção de sentido, que se respalda no senso comum e nas suas reelaborações eruditas. É essa tomada de partido (implícita, não consciente) da narrativa que irá determinar as pergw1tas, os temas e problemas que passam a dirigir a •pn,1\-"ur dr 1\111ropnlugi,1 1111 ,\1ll,l'll N.icional. Universidade Federal <lo Rio Je Janeiro. 1: 1 L O BRASIL COLONIAL - VOL. 1 utilização das fontes e a leitura dos documentos da época. Transformado em mero exemplo da justaposição de duas humanidades antagônicas e distantes, o encontro passa a ter um caráter apenas episódico e paradoxal: busca-se a ineficiência das tecnologias e dos sistemas econômicos indígenas, a fragilidade de suas estruturas políticas e o aspecto bizarro de seus costumes. Tudo estimula a enfatizar o exotismo e a transitoriedade. Temas como a inadaptação dos nativos ao trabalho e a sua acelerada - e presumidamente inexorável -desaparição impõem-se como naturais, prescindindo de exame e explicitação, assim como o seu corolário mais direto: a necessidade de uma força de trabalho que viesse a substituir os indígenas. O encontro em si mesmo, descrito como algo acidental e fortuito, é visto quase com ironia e non sense dentro de uma narrativa mais abrangente, supostamente inexorável e de sentido unívoco, da expansão do mundo europeu. Tudo concorre para deixar claro a condição efêmera daquele encontro e a pequena importância dos indígenas na conformação do mun- do colonial que irá se instaurar no futuro território da nação brasileira. O artigo a seguir adota outros pressupostos e caminha na contracor- rente das leituras acima criticadas. Toma a noção do encontro colonial 1 como uma categoria analítica central para a produção de um conheci- mento crítico sobre o social. Para operar com esse instrumento concei- tuai há que partir de um quadro histórico preciso, no qual as formas e unidades societárias são engendradas por atores premidos por estruturas assimétricas de poder e por processos mais amplos, motivados todos por concepções (diferencialmente distribuídas) de uma dada época. É preciso que o investigador se esforce por reconstruir, como um concreto de pensamento, a densidade das relações sociais e compreender a sua -tessitura enquanto fato contemporâneo. Longe de ser o palco para um teatro do absurdo, o encontro colonial é o lócus onde se atualizam todas as práticas e representações, é ali que se instituem as relações sociais, produzindo simultaneamente o colonizador e o colonizado.1 O século XVI não deve ser pensado a partir das reelaborações do século XVII nem do papel hegemônico assumido pelas teorias r,1ciais e princípios evolucionistas hegemônicos 110 st·culo \ I X . A l11111cmpo1-;1- 1c11 OS INDIGENAS NA FUNDAÇÃO DA COLÔNIA: UMA ABORDAGEM CRITICA neidade das relações sociais pode ser resgatada através da recuperação analítica de quadros interativos concretos, atualizados por meio de situações sociais e históricas. 1 O analista nunca se deve limitar a descrever as situações exclusiva- mente a partir de um único prisma, mas sim procurar incorporar os interesses, as lógicas e os valores de atores sociais subalternos.4 À dife- rença de uma narrativa abstrata e analítica, remetendo a uma história interpretativa, o texto a seguir procura reapresentar os eventos de que participaram os indígenas, retirando as populações autóctones de um lugar secundário no que concerne à configuração do encontro colonial.5 Pelo menos no que concerne ao século X VI, o problema não é tanto a inexistência de informações, mas sim o modo superficial e quase anedó- tico com que foram tratadas as populações autóctones, atribuindo-lhes (naquela época) características que são de hoje ou incorporando estereó- tipos que não eram contemporâneos aos fatos descritos e que provêm de contextos históricos posteriores. Por fim, uma dimensão comparativa é fundamental para escapar à enorme força das versões europeizantes do fenômeno colonizatório e autorrepresenrações ocidentais da história.º A colonização portuguesa no Brasil não foi aqui abordada como resultante de um modelo a priori, mas como algo que se vai definindo progressivamente, a partir de opções contrastantes com espanhóis e franceses, que vão gerando doutrinas e práticas divergentes. Além de buscar uma compreensão específica do século XVI, a análise pode identificar certas formas e configurações sociais que irão ter efeitos organizativos em contextos posteriores, tema a que voltaremos ao final do texto. A ocupação pré-histórica do Brasil Embora haja um relativo consenso quanto à origem asiática das po- pulações encontradas pelos europeus na América no final do século X V, exi tcm difc: rcntcs teorias sobre a antiguidade dessa ocupação e lb'.I ,1 O BRASIL COLONIAL - VOL 1 as rotas percorridas. A hipótese mais amplamente aceita enfatiza a via terrestre. Em algumas fases no decurso da última glaciação, o mar chegaria a estar 100 metros abaixo de seu nível atual, propiciando o aparecimento de uma faixa de terra entre a Ásia e o extremo norte da América por onde teriam passado bandos de caçadores em busca de uma fauna pleistocênica,- rica fornecedora de carnes e peles. A expansão da presença humana no continente se daria no sentido norte-sul e deveria ser anterior ao fim da glaciação, ocorrido há 12 mil anos. Existem no entanto outras hipóteses sobre migrações marítimas, similares às ocor- ridas no povoamento do Japão e da Austr,ilia (respectivamente há cerca de 60 mil e 50 mil anos), que conduziriam diretamente à América do Sul através de alguns arquipélagos. Quanto à antiguidade da presença humana, enquanto na academia norte-americana predomina o registro dos 12 mil anos,X baseado nos estudos sobre o complexo arqueológico de Clóvis (Novo México/EUA), estudos realizados no sítio da PedraFurada (São Raimundo Nonato/Piauí) pela arqueóloga Niéde Guidon indicariam vestígios de ocupação humana há cerca de 60 mil anos.Y Se no passado todas essas hipóteses eram vistas como mutuamente excludentes, hoje há uma tendência a operar criticamente com elas, 10 considerando a existência de migrações secundárias, raciocmando com base em diferentes levas de povoadores 11 e recuando a datação da pre- sença humana, ao menos no Brasil, para antes dos 12 mil anos.12 Bandos de caçadores paleoíndios, na busca de ambientes úmidos e campos de caça da megafauna, se fixaram em cavernas da região de Lagoa Santa (Minas Gerais) já ao redor de 16 mil anos AP. Segundo Prous, a pre- sença humana, antes bastante rarefeita, em torno de 9 mil anos AP já sr distribuía com generalidade pelo território brasileiro. u A ocupação da faixa litorânea está atestada pelos achados de inúmeros sambaquis, sobretudo na região entre o Rio de Janeiro e o Rio Grande do Sul, alguns dt.· gran<les proporções, cuja datação remonta principalmente a entre 5 mil e 2 mil anos AP. 14 Aimln lwjt· tominua a st·r uma referência para os antropólogos .1 t'las-.ificação propw,t,1 por Juli.111 Stew,ml 110 fo 111oso J-li 111d/1u 1_1/.: o/So 11th llO 05 INDiGENAS NA FUNDAÇÃO DA COLÔNIA: UMA ABORDAGEM CRÍTICA American lndi,ms (5 volumes, editados entre 1946 e 1949).1' Baseado sobretudo na observação dos reflexos de diferenças ambientais nas estru- turas sociais, ele delineia quatro tipos. O primeiro é o das "terras altas" (Andes), onde floresceram sociedades centralizadas e extremamente complexas, com um sistema econômico diferenciado e abrangendo vastas extensões territoriais, possuindo instituições políticas especializadas, que permitiam estabelecer paralelos com Impérios da antiguidade (Egito, Pérsia, Roma) e com processos de formação de estruturas estatais em curso na Europa do período dos descobrimentos. Na classificação das terras baixas, no entanto, explicitava-se a postura teleológica do autor. Assim Steward falava de "cacicados", sociedades que se localizariam nas ilhas e no litoral do Caribe, atingindo também o extremo norte da costa do Pacífico; de culturas '\k floresta tropical", que se espalhavam pela região amazônica, ao longo de toda a cw,ta atlântica (até o Uruguai) e no litoral sul do Pacífico (do Peru ao Chile); e de tribos "marginais", que ocupari<un as savanas do Brasil Central, o Chaco, o cone sul do continente (Uruguai e Argentina) e algumas pequenas áreas dentro das florestas tropicais. Sem chegar a configurar processos de centralização característicos da formação de Estados, os cacicados possuíam uma razoável complexidade social, com uma certa diferenciação entre grupos constitutivos ("clas- ses"), com chefes locais e algumas formas de articubção (político-ritual) entre aldeias. As culturas d.1 floresta tropical praticavam uma agricultura de coivara e sabiam explorar os recursos aquáticos, possuíam aldeias e a sua organização soci 11 estava assentada no parentesco e no xamanismo (anotava-se, porém, a ausência de instituições propriamente políticas ou religiosas). As tribos marginais, por sua vez, possuíam a organização social mais simples, viveriam sobretudo da coleta e da caça e seriam compostas por pequenos bandos. Na escala demográfica, enquanto os cacicados podiam ter aldeias que excediam um ou poucos milhares de moradores, as unidades sociais mínimas das culturas de floresta tropical tinham algumos centenas de integrantes, enquanto as tribos marginais v1via111 t'lll h.rndos 1.0111 poucas dezenas de componentes. l ' /1 1 O BRASIL COLONIAL - VOL. 1 Três regimes de construção da colônia Este texto tem como intenção mais geral questionar uma visão homo- geneizadora e simplista das populações autóctones, enquadradas de forma genérica como primitivas, e não enquanto integrantes efetivas do encontro colonial. Iniciando-se com o uso de fontes arqueológicas e etnológicas, propõe de modo sistemático uma abordagem dos fenômenos históricos em situação, tendo portanto como matéria-prima homens, eventos e relações concretas e singulares. Em decorrência disso, se ofas- ta da busca de um fator determinante único, assim como de explicar o processo social como resultante exclusivo de ideologias jurídicas ou religiosas. Embora as fontes e as interpretações cotidianas frequente- mente estejam escritas do ponto de vista dos colonizadores, o enfoque situacional aqui adotado permite - ainda que sem pretender penetrar na perspectiva indígena, para a qual os <lados são extremamente lacu- nosos - recuperar as populações autóctones enquanto protagonistas da construção do Brasil. O lugar secundário e sobretudo negativo atribuído aos nativos pro- cede do evolucio111smo do século XIX e da releitura que autores enrai- zados nessa perspectiva fizeram de fontes da segunda metade do X VI. Não são encontrados de maneira alguma nos faros contemporâneos ao "achamento" do Brasil nem nas sete décadas que lhe sucederam, em que as relações estabelecidas com os indígenas foram essenciais para caracterizar os modelos de colonização adotados. Do ponto de vista aqui seguido, o século X VI não deve ser toma- do como uma unidade, mas sim como um período de experimentações e mudanças. A compreensão proposta está assentada em três contextos que precisam ser pensados em sua especificidade, como implicando configu- rações sociais distintas e logicamente separadas. Tais configurações, que chamo de situações históricas, constituem diferentes modelos de distri- buição de poder entre os atores copresentes, numa construção analítica formulada pelo investigador.iuº Como permitem ordenar, articular e dar sentido a um conjunto de estratégias e ideologia<; dos agc1m: histórirns 204 OS INDIGENAS NA FUNDAÇÃO DA COLÓNIA: UMA ABORDAGEM CRITICA concretos, operando corno modelos per formativos, preferi aqui falar de- las como regimes. A cada situação histórica, portanto, irá corresponder um regime específico que orienta ações, narrativas e conhecimentos no sentido <le uma modalidade de construção da colônia. w1 O mandato da Coroa portuguesa sobre o território abrangido pela Costa do Pau-Brasil decorria do Tratado de Tordesilhas, que não foi, porém, reconhecido pelos reis da França. Durante toda a primeira metade do século X VI essa foi uma região disputada por portugueses e franceses, sem que houvesse uma dara definição de domínio (embora a presença portuguesa fosse mais acentuada). Obter a simpatia e colaboração dos nativos foi a principal preocupação de ambos. A primeira situação histórica podemos chamar de regime das feito- rias, designando, assim, uma economia cuja produção é primordialmente o pau-brasil e está baseada no escambo. A atenção é centralizada no comércio, o território sendo objeto de disputas. A relação entre coloni- zadores e colonizados não é dualista, mas está hipartida e inclui de fato quatro elementos: os portugueses, seus inimigos franceses, os indígenas que se aliam aos portugueses e os indígenas que se aliam aos fornceses. O conflito entre os europeus se apropria <los e se sobrepõe aos conflitos entre os próprios tupis, oferecendo aos nativos um código que lhes é familiar e prenhe de significações. Se a escravização apresenta sentidos e funções diferentes para autóc- tones e alienígenas, em ambos os casos ela é apenas aplicada aos inimi- gos, resultando, no entanto, de espólios de guerra bastante distintos. É interessante notar que a implantação entre as populações autóctones de mecanismos para a compra e venda de cativos parece ter funcionado com mais facilidade entre os povos do sul (carijós e guaianases) do que com os tupiniquins e tupinambás, isso decorrendo de uma posturacultural diferente quanto ao prisioneiro e seu sacrifício. Enquanto os segundos destinavam os guerreiros inimigos capturados ao ritual antropofágico, os primeiros não possuíam tal costume. Umn figura essencial é a do intermediário, do lado português os "lan .ldos" (dq;n:dados, desertores e náufragos), do lado francês os tru- 205
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