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A Metodologia Qualitativa em Saúde: 1. Introdução Dilemas e Desafios Everardo Duarte Nunes Sociólogo, Professor Titular do Departamento de Medicina Preventiva e Social , FCM/UNICAMP Muitas são as formas de se analisar a questão da pesquisa e das metodologias qualitativas voltadas para o campo da saúde. Mas, antes de enunciar a forma que adotarei nesta exposião, lembro que a primeira surpresa que se apresenta aos estudiosos desse tema é o fato de que o conhecimento médico e, por extensão, o do campo da saúde, embora trabalhando com a qualidade, sempre tiveram como meta a quantificação. A quantificação torna-se um elemento crucial, não que não seja importante para a pesquisa e para a prática médica, mas a forma como se introduz no corpo do conhecimento é como se fosse a única e verdadeira abordagem; reduzindo a saúde a expressões numéricas de índices, coeficientes e padrões. Esquece-se a polissemia que a palavra saúde carrega e o fato de que ela aborda eventos e problemas incomensuráveis que não se submetem a uma leitura exclusivamente quantitativa. Certamente, esta herança, como analisam diversos estudiosos, deve-se ao fato de pesquisadores das ciências exatas levantarem dúvidas sobre a validade e confiabilidade das pesquisas qualitativas quando comparadas com metodologias utilizadas pela pesquisa quantitativa; além do que, geralmente, as metodologias qualitativas são vistas como críticas e portadoras de ideologias progressistas. De um modo geral, sempre que se inicia a discussão sobre as metodologias qualitativas, essa questão vem à tona - avaliá-las em relação às quantitativas. Como será visto a seguir, há um problema teórico que envolve essa questão, marcada pelo fato apontado por Minayo (1992) de que essas metodologias introduzem aquilo que se refere ao "significado e intencionalidade como inerentes aos atos, às relações, e às estruturas sociais", que por sua vez remetem ao campo teórico da abordagem do social. Mais do que começar a expor um confronto, a idéia desta apresentação, embora tangencie esse aspecto, é sinalizar como na atualidade, ao ocorrer um recrudescimento da pesquisa qualitativa, não se está pensando exclusivamente nos métodos (alguns irão denominar de técnicas), mas também na complexa relação que se estabelece quando objeto, objetivos e formulações metodológicas são estruturados no processo criativo de pesquisar. ~ i-; ( r: •· ~· f• I' P438 FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA CENTRAL DA UNICAMP Pesquisa qualitativa em saúde : múltiplos olhares / orga- nizadores: Nelson Filice de Barros, José Guilherme Cecatti, Egberto Ribeiro Turato. - Campinas, SP : UNICAMP/FCM, 2005. 271p. ISBN 85-7582-2128 Trabalhos apresentados no 1 Seminário Interno de Pesquisa Qualitativa em Saúde da FCM/UNICAMP. 1. Saúde - Pesquisa. !.Barros, Nelson Filice de. li. Cecatti, José Guilherme. Ili. Turato, Egberto Ribeiro. Ili. Tftulo. coo - 613. 7072 lndice para Catálogo Sistemático 613.7072 '- ~ ·• é - M -. = · 2. As metodologias qualitativas como campo Assim, as metodologias qualitativas passam a constituir um campo para o qual convergem estudos filosóficos, epistemológicos, sociológicos , antropológicos e psicológicos, construído a partir de categorias analíticas que permitem uma leitura teórica, iluminada por elementos filosóficos trazidos pelas tradições de como pensar a metodologia, num processo que institui relações entre pesquisadores que passam a constituir um movimento centrado na produção e difusão dessas metodologias. Quando se fala em campo, a melhor construção sobre essa teoria é a que foi legada por Pierre Bourdieu (1983:89, 122). Não sendo este momento o mais oportuno para se desenvolver esta idéia em toda a sua extensão, limito-me a apresentar o conceito dado pelo autor. Para Bourdieu, campo é "o "locus" onde se trava uma luta concorrencial entre os agentes em torno de interesses específicos que caracterizam a área em questão". Nesse espaço manifestam- se as relações do poder que visa, por meio da concorrência, a obtenção de um capital simbólico. O campo estrutura-se a partir da distribuição desigual de um "quantum" social (capital social) , que determina a posição que um agente específico ocupa no seu interior. Ponto a ser ressaltado é o que se refere à idéia de que os diferentes campos sociais organizam-se em torno de objetivos e práticas específicas, e apresentam uma lógica de fundamento próprio, que estrutura as relações entre os agentes em seu interior. Como cada campo possui uma forma dominante de capital (por ex.: na arte, a harmonia, a estética), que se constitui através de conceitos que adquirem status de valores, que orientam inclusive o pertencimento a esse campo, é interessante tomá-lo como referência para a nossa análise. ,, A proposta deste texto é estender às metodologias qualitativas essa noção que Bourdieu (1983:122) desenvolveu, primeiramente, em relação ao campo científico. Torna-se essencial retomar a definição oferecida pelo autor ao anotar: "Campo científico é um sistema de relações objetivas entre posições adquiridas que, conquistadas pelos agentes em lutas anteriores, concorrem pelo monopólio de uma espécie particular de capital: a legitimidade ou autoridade científica ... "ou seja: Concorrem pelo poder de impor os critérios que definem o que é e o que não é científico". Um campo, portanto, é uma esfera da vida social (ou científica) que foi se automatizando progressivamente através da história em torno de um certo tipo de relações sociais, de interesses e de recursos próprios, diferentes de outros campos. Dessa forma, o grau de autonomia de um campo científico torna-se básico e pode ser medido das seguintes formas: 1. no poder de que dispõe esse campo para definir as normas de sua produção; 2.nos critérios de avaliação de seus .produtos; 3. na legitimidade para reinterpretar as determinações externas a partir de seus próprios princípios de funcionamento. Em realidade, a constituição das pesquisas qualitativas como um campo teórico passa, primeiramente, pela acirrada discussão entre essas pesquisas e as quantitativas. Foi sobre este solo de disputas que se formularam, nos anos 90, os debates das pesquisas em saúde, como lembram Deslandes e Assis (2002: 195). r i 17 3. Para uma leitura teórica das metodologias qualitativas De um modo geral, como expressam Denzin e Lincoln (apud Deslandes e Assis, 2002:199), não havendo padronização entre as diversas formas de pesquisa qualitativa, elas são definidas como "conjunto de práticas interpretativasn. Nesse sentido, as concepções teóricas que subsidiaram as formulações qualitativas constituem um terreno importante para se entender a pesquisa qualitativa como campo. Assim, esta leitura teórica sobre o campo das qualitativas, embora limitada à extensão desta apresentação, tem como objetivo, neste momento, esquematizar as correntes sociológicas que lhe dão fundamentos. Quando se analisam as origens da investigação qualitativa na sociologia, alguns nomes e trabalhos feitos há mais de cem anos devem necessariamente ser lembrados. Dentre eles, Henry Mayhew (1812-1887) que descreveu as condições de vida dos trabalhadores e desempregados em Londres (London labour and the London poor- 1851-1862); Frédéric Le Play (1806-1882) que também estudou as famílias da classe trabalhadora, no caso, na França, quando conviveu com elas e participou em diversos aspectos de suas vidas, relatando isso em seu livro Les ouvriers europeens (1855), e Jacob Riis (1848- 1914 ), que em seu trabalho How the other half tives : Studies among lhe tenements of New York (1890) descreveu as condições de vida dos pobres urbanos nos Estados Unidos. Em relação aos estudos antropológicos, destaca-se a obra de Bronislaw Malinowski(1884-1942) em seus estudos entre os Trobriandeses e entre os nativos da Nova Guiné nas primeiras décadas do século XX e suas inovações no trabalho de campo quando utilizou a observação participante. A Introdução dos Argonautas do Pacífico Ocidental (Malinowski, 1978:17-34) tornou-se leitura obrigatória dos estudos etnográficos. Estes primeiros estudos são etnográficos, utilizaram-se de entrevistas e observações e os estudos sobre os trabalhadores (Mayhew e Ri is) fizeram uso de forma pioneira da fotografia, sendo que Mayhew as transformou em gravuras em suas publicações. Estas origens serão marcantes na trajetória da pesquisa qualitativa em sociologia e serão importantes na definição de um tipo de pesquisa - a etnográfica. Neste caso, para estudos descritivos, a pesquisa empírica, coleta de dados e documentos toma-se como ponto de partida que o grupo sob investigação tem alguma coisa em comum, que pode ser: ocupar o mesmo espaço geográfico ou compartilhar experiências. Tendo sido originariamente desenvolvida para o estudo de sociedades de pequena escala, teve a sua abordagem ampliada para o estudo de sociedades complexas) (Dalmolin, Lopes e Vasconcellos, 2002:23). As autoras revisam algumas contribuições importantes, como as trazidas por Magnani (2002) e Shalins (1997), Adorno e Castro (1994) e Brandão (1995) e a relevância da etnografia para os estudos antropológicos, tanto nas pesquisas dos centros urbanos, como no dimensionamento da cultura, como "a organização da experiência e da ação humana por meios simbólicos", de um certo "exercício de uma sensibilidade"na apreensão da "experiência de mundos opostos" e de "não congelarmos a vida interpessoal na estrutura social"(Dalmolin, Lopes e Vasconcellos, 2002:22-24). Na análise dos dados, a perspectiva etnográfica adota uma abordagem êmica- o investigador tem que tentar interpretar os dados a partir da perspectiva do grupo que está sendo estudado. Diferente desta abordagem é a fenomenológica - procura descrever alguma coisa que existe como parte do mundo em que vivemos e constituem fenômenos; estes podem ser eventos, situações, experiências e conceitos que não compreendemos completamente. Precisa-se ir além das manifestações imediatas, desvelando o sentido oculto dessas impressões. Por exemplo, sabemos que muitas pessoas são cuidadoras, mas qual é o significado real de cuidar e o que é ser cuidador? Em algum lugar eu li que a fenomenologia começa com o silêncio e procura realçar os aspectos subjetivos do comportamento. De forma muito simples, este é um bom começo para se entender esta corrente filosófica que teve importante repercussão na sociologia. Uma terceira forma de abordagem é a "grounded theory". Criada por Glaser e Strauss (1967) quando estudaram a interação entre os profissionais de saúde e pacientes terminais, vai além da fenomenologia; as explicações emergem da coleta de dados, como é caso de estudar e construir uma teoria do luto, por exemplo. A base teórica da "grounded theory" é o interacionismo simbólico, que enfatiza a interação no comportamento humano, num contínuo processo de negociação e renegociação (Morse e Fiel d, 1995:27). Outra perspectiva importante para as metodologias qualitativas procede do campo da etnometodologia. Para Silva (1998), "O corpus da pesquisa etnometodológica é o conjunto dos etnométodos, isto é, os métodos de que todo indivíduo, erudito ou não, se utiliza para interpretar e pôr em ação na rotina de suas atividades práticas quotidianas a fim de reconhecer seu mundo, tomando-o familiar ao mesmo tempo que o vai construindo". Prossegue, dizendo que "A palavra etnometodo- logia significa o estudo dos etnométodos, e não uma metodologia específica da etnologia. Na verdade, a etnometodologia é o estudo dos métodos de que todo individuo se utiliza para descrever, interpretar e construir o mundd social. A etnometodologia se propõe a privilegiar as abordagens microssociais dos fenômenos, dando maior importância à compreensão do que à explicação". O Esquema abaixo mostra os principais filósofos e sociólogos que fundamentaram o interacionismo e a etnometodologia, possibilitando que outros pesquisadores avançassem as questões metodológicas inerentes a essas escolas de pensamento. AS FONTES DO INTERACIONISMO E DA ETNOMETODOLOGIA 1 M. Web« 1 (1864-1920) 1(~8s~-=!1 lJ L_ compreensiva A Sdlutz T. Parsons (189!>-1959) (1902-1979) . Me<lea...Ponly 1 ~ (1908-1961) ~-Soci-oiogi-a Eb\ometodologla lenomenológica H Garlinkel P.L Berver A Cicouref L Luckmann 1a. Escola de Chlcag W. Thomas (186~19«) R. Pe"' 1864-HM-4 2a. Escola de Chlc..go E. Hughes (1897-1983) H. Blume... L Wamer lnt..-.clonlsmo E.Goft'man {1922-1982) H. Bac:ker A Strauss E. Lemert H. Cooley 1 J. Oewey 1 (186~1939) : (185~1952! : G. H. Mead _J (1863-1931) 18 .. Certamente, a opção por uma ou outra teoria relaciona-se não somente ao tema investigado, mas ao tipo de orientação que o pesquisador quer imprimir na pesquisa à coleta e à análise dos dados. Considerando-se que qualquer investigação parte de informações, constrói dados (indicadores, tipologias, tipos ideais) e elabora fatos, a tarefa de seleção de um referencial teórico é fundamental. Cita-se, ainda, como forma de abordagem, o estudo de caso, quando se pretende uma análise aprofundada ! de uma única unidade ou de um pequeno número de unidades. li 4. As metodologias qualitativas como uma forma de pensamento Voltando à questão de que a pesquisa qualitativa constitui uma forma de 1 pensar a investigação, a construção do seu capital simbólico, para usar expressão de Bourdieu , está relacionada ao significado atribuído às palavras 1 qualidade/qualitativo. Etimologicamente, qualidade origina-se do latim - qualitate, com o significado de "Propriedade, atributo ou condição das coisas ou 1 das pessoas capaz de distingui-las das outras ou lhes determinar a natureza". , Em filosofia, constitui uma das características fundamentais do pensamento: 1 maneira de ser que se afirma ou se nega de uma coisa (Ferreira ,1986:1424). li Embora estas noções sobre qualidade sejam claras, sempre se enfrenta a dificuldade inicial nas metodologias qualitativas de uma definição suficientemente abrangente. Isto porque esta noção envolve aspectos objetivos e subjetivos, tanto assim que, como ensinam Morse e Field (1995:16) "As questões qualitativas têm características particulares", e, usualmente assentam- i se sobre a experiência vivenciada - como grupos de pessoas vivem ou como enfrentam o cotidiano. Acrescente-se que o qualitativo é holístico e 1 primariamente indutivo, e toma como referenciais o entendimento, a compreensão, a construção de sentido e a intencionalidade. Intrínsecas às ciências humanas, as dimensões qualitativas tornam-se imprescindíveis para que se tenha do homem a compreensão de que ele "não é esse vivo que tem uma forma bem particular (uma fisiologia bastante especial e uma autonomia quase única); ele é esse vivo que, no interior da vida a que pertence inteiramente e pela qual é atravessado em todo o seu ser, constitui representações graças às quais vive e a partir das quais possui essa estranha capacidade de poder ter da vida uma representação justa" (Foucault, s/d:457). 5. As metodologias qualitativas na América Latina Frente a essas análises, sente-se que as metodologias qualitativas já estão dadas e, em realidade, isso ocorre, tanto assim que constitui um movimento que encontra formas elaboradas de difusão: livros, artigos, revistas especializadas, congressos e simpósios. Mas, vistas regionalmente como estratégias de pesquisa na América Latina, o seu percurso foi marcado por desafios que os pesquisadores da saúde enfrentaram a partir dos anos 80. Se a disputa epistemológica entrea pesquisa quantitativa e qualitativa colocava-se (e ainda se coloca) como uma questão a ser resolvida, na América Latina os estudos sobre saúde, que haviam fixado dois pólos teóricos opostos no campo das ciências sociais - o positivismo e o marxismo - encontraram-se em sua recusa de aceitar as metodologias qualitativas na pesquisa. Estas idéias são trazidas para o debate em detalhado estudo de Mercado-Martinez (2002). Este autor revisa as posiç ões assumidas pelos autores, apontando um fato que foi assinalado por Garcia (1983), ao afirmar que as orientações interpretativas (fenomenologia, interacionismo simbólico, etnometodologia) deveriam ser afastadas por serem praticas reacionárias. Revendo o movimento que, a partir de 80, se forma na América Latina, Mercado-Martínez (2002) identifica três correntes, que lhe deram sustentação: a medicina social, os movimentos populares de base e os estudos sócio-culturais. A importância desta abordagem está no fato de que essas correntes ao redefinirem as suas abordagens do social em saúde apresentam as possibilidades de uso das metodologias qualitativas, "embora com posturas, ênfases e matizes diferentes" e "Nenhuma delas conta hoje com uma proposta teórica ou um modelo empírico de trabalho; sem dúvida, cada uma estabeleceu certo tipo de colaboração de forma muito pontual e em seus próprios marcos de trabalho " (Mercado-Martínez, 2002). Tomando-se os estudos sócio-culturais, que, como movimento, estão profundamente engajados no mundo acadêmico, verifica-se que estiveram relacionados ao crescente desenvolvimento dos cursos de pós- graduação. Em pesquisa que realizei sobre os conteúdos da pós-graduação em Saúde Coletiva no Brasil, cerca de 50 dos conteúdos de ensino estão voltados para as ciências sociais (Nunes, 1996). Ao recuperar as correntes teóricas que influenciaram esses estudos na América Latina, Mercado-Martínez (2002) aponta Foucault, Derrida, Wygotsky, Banktin, Habermas, Merleau-Ponti, Bourdieu. Acrescento que, no Brasil, mais recentemente, há estudos que fazem reflexões sobre a saúde-doença iluminadas pelas abordagens filosóficas de Nietzsche, Espinosa e Gadamer. O , trabalho acima referido cita, ainda, as principais correntes teóricas que vêm orientando os estudos: pos-modernismo e pos-estruturalismo, o feminismo, os estudos culturais, o modelo social cognitivo, a abordagem hermenênutica, o crítico interpretativo, o construcionismo social e o hermenêutico-dialético. Este último, tendo como principal representante Maria Cecília de Souza Minayo (1992, 2002), que, em dois trabalhos expõe esta formulação para a pesquisa qualitativa: O Desafio do Conhecimento e Caminhos do Pensamento. Outra questão apontada para o conjunto da América Latina e que de forma reiterada vem sendo referida por estudiosos brasileiros (Nunes, 1999; Canesqui 1998) é a diversidade temática dos estudos e a busca de uma relação teórico-empírica . Assim, ao lado do que aponta Mercado-Martínez (2002) em relação à temática relativa ao gênero, masculinidade, violência, AIDS, saúde reprodutiva, saúde dos adolescentes, verifica-se o intenso interesse pelo tema da violência, práticas alternativas e complementares, avaliação de serviços, construção social da doença, estudos sobre profissionais de saúde e educação em ciências da saúde. Na análise de Mercado-Martínez (2002), o movimento denominado medicina social, que se estendeu pela América Latina e trouxe "contribuições importantes para a investigação, ensino e prática médica durante várias décadas" num espaço de construção crítica da saúde, especialmente influenciado pelo marxismo e posteriormente neo-marxistas, incorpora as ciências sociais, mas questiona as correntes interpretativas e fenomenológicas. Assim, afasta as possibilidades de aplicação das metodologias qualitativas. Somente a partir dos anos 80 é que se começa a "revisar a pertinência de incorporar outras estratégias de trabalho, como a etnografia, os estudos de caso e a teoria fundamentada". Destaque-se, por .. 1 1 l ' 21. exemplo, que no estudo das relações saúde-trabalho, a proposta de Laurell (1984) inclui a observação participante no chamado Modelo Operário Italiano e Breilh (2003), mais recentemente, defende a idéia de que é possível e necessário "incorporar, dialeticamente, técnicas capazes de estudar dados qualitativos e outras capazes de manejar dados quantitativos». Em relação aos ·movimentos de base (Teologia da Libertação, alfabetização pelo método Paulo Freire e outros) "Não existe uma postura explícita neste movimento sobre a investigação qualitativa" (Mercado-Martínez, 2002). Frente à proposta de 1 aproximação com a comunidade e de grupos desfavorecidos, a investigação qualitativa coloca-se como estratégia, mas com pouca preocupação teórica . 1 6. Alguns dilemas e muitos desafios O percurso pouco linear desta apresentação faz com que se volte ao princípio não para resolver o impasse - as diferenças entre as metodologias quantitativas e qualitativas, mas apontar, como já escreveu Becker (1996), que "as similaridades entre esses métodos são no mínimo tanto, e provavelmente mais, importantes e relevantes dos que as diferenças. De fato, penso que os mesmos argumentos epistemológicos fundamentam e fornecem aval para ambos". Entre nós, Deslandes e Assis (2002: 196) apresentam uma proposta de "discutir a interação entre o quantitativo e o qualitativo no campo da pesquisa em saúde, suas bases conceituais, seus princípios de científicidade e suas múltiplas modalidades de integração" (grifo do autor do texto). Na impossibilidade de tratar o tema na complexidade abordada pelas autoras, 1 sintetizo algumas das idéias expostas. Lembram nesse texto, que pode se dar o caso de um dos dois métodos ser visto como etapa preliminar ou suplementar à outra, e, quando cabe ao pólo qualitativo definir primeiro a abordagem, esta tem utilizado com freqüência entrevistas, grupos focais, etnografia como suporte para etapa posterior de caráter quantitativo (por ex.: a elaboração de questionários), ou ainda quantificar dados específicos da pesquisa qualitativa. Pode ocorrer, também, uma justaposição das abordagens, ou ainda o que se denomina "modelo dialógico", que "implica a integrcfção das duas abordagens, buscando-se identificar as competências específicas e os campos comuns, seja considerada desde a etapa do desenho da investigação e construção do objeto", quer seja pela interdisciplinaridade, triangulação e processualmente (Deslandes e Assis, 2002: 213, 214). Desta forma, uma das questões apontadas por Becker (1996) sobre como alguém poderia combinar as "duas modalidades" vem sendo objeto de preocupação de nossos pesquisadores em estudos que tratam de diversos temas, como a pesquisa em psicoterapia (Gomes et ai, 1993); sobre relação dos jovens e a violência (Minayo et ai. 1999) e diversos outros estudos. Os desafios à pesquisa qualitativa são muitos. Caminham da abordagem teórica a ser adotada frente ao próprio objeto, à relação, sempre tensa, entre sujeito e objeto, à seleção das técnicas de trabalho de campo, à proposta de análise. Mas, como foi visto nesta exposição, há não somente um caminho aberto, mas uma crescente produção científica que envolve uma complexa operação de conhecimento e treinamento. Como ensina um· dos principais representantes dessa corrente o sociólogo Howard Becker (1996), a lição de Thomas Khun, quando diz que "os cientistas aprendem o seu ofício não seguindo receitas de procedimentos abstratos, mas, em lugar disso, examinado 1 l i • exemplares de trabalhos em seu campo, comumente considerados como bem feitos" (Becker, 1996) continua válida. Para o autor, Black Metropolis, de Horace Clayton e St. Clair Drake, de 1945; Boys in White, de sua autoria com uma equipe de pesquisadores,de 1961 e Labelling the Mentally Retarded, de Jane Mercer, de 1973 são estudos paradigmáticos em sua combinação de métodos e técnicas quantitativas, qualitativas e documentais. Muitos outros trabalhos que se tomaram clássicos da sociologia, como os de Goffman (1987, 1988), poderão fazer parte desta galeria, assim como muitas pesquisas realizadas por cientistas sociais brasileiros ou por eles orientadas. Recentemente, Bosi e Mercado (2004) organizaram uma coletânea de textos sobre a pesquisa qualitativa de serviços de saúde, com produção atual latino-americana, apresentando reflexões teóricas e relato de experiências empíricas. Estes relatos buscam entender, como no caso do estudo da ocorrência da gravidez não planejada entre mulheres informadas sobre a utilização de meios anti-concepcionais, numa abordagem fenomenológico-hermenáutica; a perspectiva dos profissionais em um serviço de assistência pré-natal e a transmissão vertical do HIV; insatisfação de usuários em relação aos serviços; atenção às enfermidades crônicas; cidadania e direitos humanos; violência intra-familiar. Sem a pretensão de revisão das pesquisas realizadas e que se estendem pelas mais diversas temáticas lembraria aquelas que se voltam para o estudo das representações, com particular referência as realizadas na França (Herzlich, 1970) e no Brasil (Gomes e Mendonça, 2002; Minayo, 1992). Os limites deste trabalho não permitem que se elabore uma revisão do grande desenvolvimento alcançado pelas metodologias qualitativas, mas o que se pode dizer e em parte procurou-se mostrar é que ela se tomou peça obrigatória das pesquisas em saúde. Certamente, os dilemas que se colocam não são de se perguntar (o significado de dilema é "premissa dupla") da confiabilidade, validade e interpretação das pesquisas qualitativas versus quantitativas, mas trabalhar com a "idéia de que a compreensão mútua das diferenças teórico-conceituais e das bases de científicidade de cada abordagem é uma necessidade intrínseca às propostas de integração" (Deslandes e Assis, 2002:219). Ambas abordagens fixam seus critérios de científicidade e podem ser úteis separadamente e conjuntamente. Trata-se de um processo aberto e flexível e implica a compreensão mediante a experiência e a interpretação como método. Para encerrar, as recomendaçães de Lambert e McKevitt (2002) a fim de que sejam afastados da pesquisa qualitativa os perigos de reduzi-la a um conjunto de métodos que exigem pouca atenção teórica, disciplina e treinamento. Para os autores "deve-se resistir ao foco exclusivo sobre o método", assim como não confundir pesquisa qualitativa e multidisciplinaridade. De outro lado, propõem a necessidade de métodos de pesquisa que sejam menos genéricos, menos ateóricos, e menos estreitamente focalizados, junto com uma aplicação mais ampla de conceitos e conhecimentos originários das disciplinas que o fundamentam . __ _22 r 1 i . Conceitos de Pesquisa Qualitativa em Saúde Mental Egberto Ribeiro Turato Coordenador do Laboratório de Pesquisa Clínico-Qualitativa da Faculdade de Ciências Médicas FCM da Universidade Estadual de Campinas UNICAMP Contextualização aos pontos essenciais dos métodos qualitativos Antes de abarcar as concepções do que são investigações qualitativas aplicadas à área na qual ocorre o processo saúde-doença mental, convido os li participantes do 1 Seminário Interno de Pesquisa Qualitativa da Faculdade de Ciências Médica da UNICAMP a refletir sobre questões que permeiam toda a / realização acadêmica. Observamos, há mais de duas décadas, que o universo 1 das ciências da saúde vem contando com uma volumosa produção e propagação de trabalhos científicos que, por sua vez, exigiria um condizente debate 1 epistemológico deste preparo de conhecimentos. Ocupar-se de epistemologia é 1 , não aceitar os resultados dos empreendimentos investigativos como se fossem livres de influências internas e externas da comunidade acadêmica . 1 Infelizmente, constatamos que a proliferação das publicações em 1 periódicos científicos e das promoções de eventos acadêmicos, também em l saúde mental, não se fez acompanhar do necessário debate das fundamentações filosóficas de seus métodos de investigação. Considerações 1 dos vieses "externos", tais como sociológicos, psicológicos, histórico-culturais e 1 político-econômicos influentes nas conclusões dos empreendimentos de 1 pesquisa não têm merecido o destaque que devíamos esperar (Turato, 2003). ! Mais especificamente, muita confusão ainda se faz na abordagem teórica e no 1 uso prático, em empreendimentos de investigação científica nas universidades, quando estão em jogo, por exemplo, as complementaridades e as diferenças 1 entre os chamados métodos quantitativos e qualitativos de pesquisa (Turato, 2004; Botega & Turato, 2005). • Em reuniões acadêmicas com professores nas faculdades, nos artigos publicados em revistas especializadas, nas apresentações em congressos, nas dissertações e teses apresentadas aos programas de pós-graduação, nas argüições e suas respostas em defesas de mestrados e doutorados, as buscas rigorosas sobre o entender dos pontos em comum e as dessemelhanças entre ambas as metodologias ainda têm longo caminho a ser percorrido (Turato, 2003b). A realidade é que se sabe menos do que se imagina sobre o assunto. Freqüentemente, estas indagações vêm seguidas de respostas superficiais e óbvias, ou, ainda, estereotipadas, girando sobre chavões, sem que se recorra à história da ciência e aos debates epistemológicos, sejam nos campos 1 psicossociais ou biomédicos. Vamos ao perfil de cada tipo de pesquisa aplicável na saúde mental. 1 Metodologicamente, se alguém quiser explicar cientificamente os fenômenos, por exemplo, relacionados à drogadição, esta é uma clara matéria para , investigadores em psiquiatria, em epidemiologia ou em farmacologia clínica. Mas 1 1 se alguém quiser compreender o que a dependência química significa para a vida da pessoa acometida ou para seus familiares , este é um recorte do objeto para 1 investigadores qualitativos, que podem ser psicólogos, psicanalistas, sociólogos, ,., . 27 _ _ _ ------·-· __ ,,,,_._ ..... - -·· ""'".*'ªª"'*''"fziHif rJ • f 1 .1 u ~ antropólogos ou educadores. Entretanto, seria muito interessante se os próprios clínicos da saúde mental, que freqüentemente trabalham com referenciais biomédicos, pudessem, eles mesmos, empregar métodos· qualitativos, com a vantagem de que já carregam - devido a sua experiência em assistência aos indivíduos e à comunidade as inerentes atitudes clínica e existencial, que permitem executar levantamentos ricos em dados e fazer interpretações de resultados com grande autoridade acadêmica (Turato, 2005). Vemos que na última década, os métodos qualitativos tornaram-se cada vez mais aceitos nos jornais científica da saúde. Em umas épocas remotas, no entanto, os investigadores qualitativos freqüentemente tinham seus manuscritos rejeitados sob alegação de que seus trabalhos eram não-científicos ou "anedóticos", isto é, tratar-se-iam apenas de breves e curiosas histórias da vida de pessoas (Britten, 1995). Felizmente, agora até mesmo diversos jornais biomédicos publicam regularmente pesquisas qualitativas, contando com roteiros de avaliação específicos desenvolvidos para seus pareceristas opinarem. É o caso da Revista de Saúde Pública , renomado periódico brasileiro catalogado no lndex Medicus, da qual este autor tem a grata oportunidade de ser editor associado ad hoc para acompanhar propostas de artigos qualitativos. Atualmente, é difícil encontrarmos particularmente um público da saúde mental que não tenha uma noção da contribuição dos métodos qualitativos para o conhecimento da saúde em geral. Os próprios profissionais clínicos têmse habilitado, cada vez mais, para eles próprios empregarem estes métodos. Entretanto, uma aceitação maior não quer dizer necessariamente que os métodos qualitativos estejam bem entendidos. Há clínicos que podem considerá-los como matérias do senso comum, ou pesquisa de muito fácil execução, sobretudo para aqueles costumam despender muito tempo em conversa com seus pacientes, ou, ainda, métodos de uso não tão prático quanto realizar uma enquete com questionários padronizados (Tu rato, 2005). Erros iniciam-se pela atividade impensada de pesquisa Ponderemos questões práticas vivenciadas por pesquisadores em saúde mental, sobretudo aqueles iniciantes, muitos dos quais alunos de mestrado e doutorado. Tendo já apresentado à sua instituição de pesquisa uma proposta de projeto científico, seja com recursos da metodologia qualitativa, seja da quantitativa, não é raro quererem cruzar, ingenuamente e sem fundamentações filosóficas e metodológicas, a um certo momento de seu empreendimento, para outro campo metodológico. Alegando necessitar de uma pretensa complementação de resultados e conclusões, vemos alunos desenvolvendo projetos quantitativos - assim tido, construído, avaliado e aprovado por seu orientador de tese e pelas lideranças do curso de pós-graduação -, que ao tomarem contato com a metodologia qualitativa, vêem-se fascinados por ela e pensam em incorporá-la a seu empreendimento, então a meio do caminho. Vários destes colegas, por serem da área da saúde, foram introduzidos normalmente no universo cientifico através do aprendizado com os métodos quantitativos . Sentem-se, posteriormente, seduzidos ao tomarem conhecimento das propostas e características dos métodos qualitativos. Provavelmente por apreciarem o sabor de uma atividade clínico-assistencial - e vendo a possibilidade de realizarem uma pesquisa que normalmente permite penetrar na riqueza e na compreensão da individualidade - dispõem-se então a fazer, ineptamente, uma empreitada "mista", na mesma proposta de trabalho (Botega, Turato, 2005). Chamam-na de pesquisa quantitativo-qualitativa . 28 29. Esta decisão é temerária e, grande parte das vezes, inviável. A intenção pode ser ingênua, pois, desde seus primórdios, cada uma destas metodologias vem apresentando tal complexidade de: formulação de problemas, recorte de objeto, aplicação de métodos/técnicas/procedimentos, tratamento de dados, quadro de referenciais teóricos para interpretações de resultados; que se toma impraticável conduzir uma tarefa desta amplitude por um pesquisador sozinho e no mesmo projeto. Há também de se considerar fortes aspectos ideológicos (ou seja, subjacentes, invisíveis), pois a opção por uma linha de trabalho metodológico está abrigada sob um paradigma que lhe é próprio - distinta epistemologicamente -, e que costuma estar associada a certa cosmovisão preferida do pesquisador. Quando afirmamos que são metodologias complementares ou, melhor, os resultados e as conclusões se complementam, para mais amplamente cumprir com a finalidade de apreendermos o objeto, precisamos entender que devam ser mais bem aplicadas por equipes compostas por especialistas em uma e em outra estratégia. Se forem utilizadas pelo mesmo pesquisador (onipotente?), aconselho que melhor então seria usá-las em momentos subseqüentes. Diversos autores classificam como muito difícil a condução simultânea de um correto estudo quantitativo e de um bom desenho qualitativo. Infelizmente, até mesmo nomes de projeção no meio universitário insistem que o ideal, numa mesma pesquisa, é utilizar um modelo "combinado" qualitativo-quantitativo, ocorrendo atitude de indiferença à real não-harmonia dos paradigmas que os sustentam. Fica, desta forma, sob suspeição o rigor metodológico dos trabalhos cujos autores afirmam que se tratam de pesquisas "quanti-qualr, expressão apenas de efeito de marketing acadêmico. Chega a ser um logro, à medida que, numa apreciação a olhos críticos, estes trabalhos são, na verdade, estruturalmente quantitativos e apresentados inveridicamente como "também qualitativos". São situações em que todo o domínio intelectual dos autores recai sobre a metodologia quantitativa e que toda a necessária abrangência da estratégia metodológica qualitativa se mostra equivocada, ou até mesmo inexistente, de fato, naquele projeto. Na dúvida, peguem as teses que repousam nas prateleiras universitárias ou levantem os artigos que moram nos periódicos científicos e enxerguem com olhos argutos. Veremos trabalhos quanti com pinceladas quali, muito distantes do uso apurado dos métodos qualitativos como apresentados até nos corriqueiros manuais sobre metodologia. Por outro lado, ouvimos relatos científicos de muitos pesquisadores que trazem à tona, de modo inadequado, o falso debate entre as vantagens e desvantagens na escolha dos métodos quantitativos e qualitativos. A rigor, não podemos dizer que ocorra uma escolha metodológica por si mesma, já que a opção real advém de um plano que passa por um objetivo de pesquisa . Este, por sua vez, deve ter brotado de uma hipótese de trabalho, que então tomou a mente do pesquisador. Dependendo da pergunta nascida em sua cabeça, o investigador unicamente poderá lançar mão de um ou de outro método. Sucede que a metodologia qualitativa não se ocupa de discutir respostas às indagações de mensuração dos fenômenos humanos, nem a metodologia qualitativa se propõe a construir meios de responder à pergunta sobre a dinâmica das significações reais destes fenômenos para os sujeitos. A busca da verdade científica para determinada pergunta já implica numa op,ção metodológica embutida . Quem determinou seus objetivos de pesquisa e os tem bem claros à mente, por conseqüência, já tem diante de si o método com que deverá trabalhar. Vejam que não cabe um "mix" entr~ métodos quantitativos e • Ó 5=.S l!li!Ô ± +•~• qualitativos, quando detemos uma pergunta que seja inequívoca . Embora digamos que a quantidade e a qualidade sejam inseparáveis e interdependentes, devemos afirmar que existe uma distinção epistemológica entre o quanti e o quali, porque ambos se põem a resolver perguntas diferentes, ainda que levantadas sobre o mesmo objeto. Trabalhar qualitativamente implica, por definição, em interpretar as significações que as pessoas atribuem aos fenômenos em foco, através de técnicas de observação acurada e entrevistas em profundidade (instrumentos necessários e suficientes), em que são valorizados o contato interpessoal e os elementos do setting natural do sujeito. Colher dados em campo é como pescar peixes no lago, rio ou mar: há redes de diversos tipos (os instrumentos de pesquisa) para peixes de diferentes tamanhos e de diferentes habitats. Há jeitos distintos para ser pegar "animais quantitativos" e "animais qualitativos". Só um simplório caçaria baleias com anzol ou pescaria lambaris com arpão. As condutas usuais dos pesquisadores qualitativos em saúde mental Naqueles projetos de pesquisa ou teses em que são usados métodos quantitativos, os apresentadores partem, via de regra, diretamente para a citação dos recursos metodológicos utilizados (técnicas empregadas). Não se ocupam em justificar sua utilização de um ponto de vista conceituai interno ao método ou, menos ainda, de questionar suas origens histórico-filosóficas: os paradigmas. A falta de apresentação dos paradigmas das pesquisas quantitativas, em seus respectivos anteprojetos e até nos relatórios finais, tem mostrado que tanto os autores quanto os consumidores destas pesquisas estariam negligenciado esta reflexão, com conseqüências problemáticas para a busca rigorosa de um conhecimento criticamente construído. Sobre os trabalhos qualitativos, não podemos dizer que os recursos metodológicos não venham com discussão de embasamento, nos quais observamos até exaustivasdefinições respaldadas em autores da literatura da respectiva metodologia e com as contextualizações histórico-filosóficas. Por outro lado, é possível que pesquisadores qualitativistas estejam se sentindo na defensiva quando conversam com seus colegas · acostumados ao modo quantitativo. Entendo, porém, que também por sua presença minoritária entre os pesquisadores da área da saúde, os autores qualitativos cuidam, assim, de apresentar as credenciais de científicidade, bem como conquistar respeito pessoal e espaço de ação na academia . · · Além do mais, o relevante é que os próprios pesquisadores qualitativos sigam as tradições de elaboração desta pesquisa. Como bem o fazem muitos antropólogos e psicanalistas, apresentamos como obtivemos os dados na vivência do trabalho de campo. Sociologicamente falando, frente à grande comunidade, quem deve se explicar são os membros dos grupos minoritários. Os participantes natos nos grupos dominantes não precisam se explicar, pois todos os seus pares sabem de sua identidade e como funcionam, do ponto de vista social e cultural. Outra hipótese para se entender o fenômeno da falta de uma ampla reação da comunidade acadêmica frente a furos na metodologia quantitativa se daria pela confiança exagerada que todos nós, cientistas ou não cientistas, costumamos emprestar aos números. A área da saúde tem sido dominada por métodos quantitativos. E se algo pode ser medido ou contado, ganha uma credibilidade científica freqüentemente não proporcionada àquilo que não seja mensurável ou contável. 30 ~ .. • 1 1 31 1 o início histórico dos métodos qualitativos nas ciências do homem e da saúde A fala sobre as Ciências Naturais mescla-se com a fala ;:;obre métodos quantitativos, assim como a discussão sobre as Ciências do Homem mistura-se com a discussão sobre métodos qualitativos ou compreensivo-interpretativos (Turato, 2003c). O termo quantidade remete-nos à idéia geral da possibilidade da medida, isto é, da relação entre uma e outra grandeza, enquanto qualidade fala-nos da determinação qualquer de um objeto. A palavra qualidade advém do latim qualitate, de qualis, que quer dizer "qual", indicando-nos a questão qual tipo, enquanto o termo quantidade, vindo também do latim, de quantitate, que vem de quantus, isto é, quanto. Podemos dizer que o início da história dos métodos quantitativos, embora sem que, por bom tempo, se empregasse essa expressão, dá-se com o próprio surgimento da ciência moderna, que então passa a configurar as ciências naturais como até hoje assim as classificamos. A Galileu devemos o legado de ter conferido autonomia à ciência, delimitando qual seu objeto, objetivo e método, distinguindo-a da filosofia e da religião. A ciência ficava a partir de então com o objeto específico das coisas da natureza, ou seja, estudar as leis que ligariam os fenômenos entre si, enquanto a filosofia deveria ocupar-se das questões ontológicas e a religião manteria como seu objeto as ditas verdades religiosas. Para as determinações científicas, em conseqüência, não se poderia mais se ater ao discurso da filosofia (aristotélica era então a predominante) e nem às fontes bíblicas. Não porque a filosofia e a religião contradissessem teorias científicas ou não lhe trouxessem contributos, mas porque a fala da ciência vem oficialmente a visar outra coisa, tem outra perspectiva para o objeto em estudo e trabalha em outro campo. Com o método, a ciência adquire sua autonomia. Com Galileu, a instrumentação científica passa a contar com os seguintes importantes princípios: a observação, a experimentação e a indução. Nascia assim a ciência moderna, tal como a entendemos na descendência que temos da cultura européia, entendida de modo difundido nas sociedades hegemônicas no Ocidente, e seqüencialmente em todo o mundo por onde domina a cultura ocidentalizada. Nasciam assim, em particular, o que depois vieram a ser chamadas de Ciências da Natureza, quando o processo científico deixava um tipo de observação que, na avaliação da comunidade científica do novo paradigma, era considerada ingênua. Daquele momento em diante, implicava- se em apreender dados para descobrir suas relações invisíveis (matemáticas) e assim formular leis. Nesta visão, a ciência era contida em limites precisos, já que se servia da experiência, ou seja, limitava-se a captar as características pertencentes às coisas estudadas, supostamente mais estáveis, não se ocupando da subjetividade do pesquisador, então mais mutável. Por outro lado, a história dos métodos qualitativos ou compreensivo- interpretativos é mais recente: pouco mais de um século, misturando-se com o início da idéia de se criar as Ciências do Homem, que surgem em contraponto às então já estruturadas Ciências da Natureza. Contudo, o Homem ocupou-se, na realidade, desde muito remotamente em compreender o próprio Homem, tendo- º como objeto de investigação, sendo que já por muitos séculos esta abordagem circunscrevia-se ao campo da Filosofia. Recordemos que os estudos dos fatos humanos surgiram num período em que prevalecia uma forte concepção empirista e determinista da ciência, o que levou os cientistas a buscarem leis causais necessárias e universais também para os fenômenos humanos, consistindo assim num trabalho por analogia, porém com resultados muito contestáveis e pouco científicos (Chauí, 2003). Assim ocorreu com a chamada sociologia positivista, de inspiração comtista, que recebeu contraposição com a posteriormente emergida sociologia denominada compreensiva ou interpretativa, cujas posições polarizadas ainda hoje mantêm relações de tensão acadêmica. De modo semelhante, ocorreu com a dita psicologia comportamental (das mensurações), que se confronta com a psicologia considerada compreensiva ou profunda, isto é, das ações do inconsciente em sua concepção freudiana. As disciplinas paradigmáticas dos métodos qualitativos Há certo consenso na literatura em dizer que os métodos qualitativos adquiriram status científico com os trabalhos dos antropólogos, vindo depois a se desenvolver entre os sociólogos e educadores . Mas outra vertente importante a contribuir com a concepção e a prática do estudo do Homem e, nesta perspectiva, com os métodos qualitativos, foi a psicanálise. Aparecem depois as participações dos demais profissionais, como os psicólogos e, mais recentemente, dentre aqueles das áreas institucionais da saúde, os enfermeiros e os médicos. Foi a disciplina de antropologia que desenvolveu a chamada etnografia (Malinowski, 1984), cuja revolução se deu com as publicações pioneiras na metodologia científica qualitativa, no sentido de que procurou descrever como haviam obtido os seus dados e como era a experiência de campo, insistindo que a teoria da cultura tinha de ser fundamentada em experiências humanas particulares, baseadas na observação e procuradas indutivamente. ,,, As definições de métodos qualitativos na literatura das ciências humanas e da saúde Dentro do contexto das Ciências do Homem, comecemos por reproduzir um pequeno trecho que traz uma definição genérica de métodos qualitativos, a qual tem sido oferecida na literatura especializada e que podemos considerar bastante satisfatória : Pesquisa qualitativa é multimetodológica quanto ao foco, envolvendo uma abordagem interpretativa e naturalística para seu assunto. Isto significa que os pesquisadores qualítativistas estudam as coisas em seu setting natural, tentando dar sentido ou interpretar fenômenos em termos das significações que as pessoas trazem para eles (Denzin & Lincoln, 2005). A mera leitura desta definição pode ser insuficiente para uma compreensão precisa ao leitor desacostumado com a prática de pesquisas qualitativas. Este pode manter-se com a concepção hegemônica das ciências naturais, as quais não têm porescopo estudar as significações que as coisas têm para nós (sujeitos na sua individualidade ou grupos humanos), mas, sim, estudar propriamente "as coisas" (os fenômenos da natureza). O investigador qualitativo, quando vai a campo estudar "as coisas", não é a elas em si que ele vai se ater. Em se tratando de pesquisa qualitativa, as "coisas" são as pessoas ou as comunidades em sua fala e em seu comportamento. E mais: é sempre no setting natural que ocorre o estudo, e nunca em um ambiente reprodutor de situações, como laboratórios, gabinetes, etc. Mas, se não é a coisa que lhe interessa, o alvo do interesse do estudioso é, por outro lado, o significado que essas coisas ganham, ou melhor, as significações que um indivíduo em particular ou um grupo determinado atribuem aos fenômenos que lhes dizem - 32 • respeito ou vivenciam. Prosseguindo, em palavras semelhantes. Mas, afinal, porque estudar os significados? Que tanta importância eles têm para serem alvo relevante de investigações acadêmicas? Ora, as ligações j psicológicas e socioculturais profundas com o fenômeno posto, assim como as 1 vivências e fantasias que as pessoas acometidas por problemas de saúde têm 1 . são vitais para conhecermos essas pessoas mais a fundo. É indispensável para o profissional de saúde saber o que as coisas significam para nossos pacientes, 1 porque o significado tem uma função estruturante crucial para os indivíduos e 1 para a vida dos grupos: em torno do que as coisas significam para nós, nós 1 organizamos nossas vidas, inclusive os nossos próprios cuidados com a saúde. 1 Por sua vez, Bogdan e Biklen entendem a pesquisa qualitativa como aquela em que os pesquisadores têm como alvo o seguinte: ! Melhor compreender o comportamento e a experiência humanos. ' Eles procuram entender o processo pelo qual as pessoas constroem significados e descrevem o que são aqueles significados. Usam observação empírica porque é com os eventos concretos do comportamento humano que os investigadores podem pensar mais clara e profundamente sobre a condição humana (Bogdan & Biklen, 1998). Aí também os educadores norte-americanos tomam significado como uma j palavra-chave. Novamente depreendemos que o pesquisador qualitativista não I quer apenas entender/interpretar as pessoas em si mesmas (medindo seus 1 comportamentos ou correlacionando quantitativamente eventos de suas vidas), 1 explicando o que, a seu ver, acontece com elas. Por outro lado, organizando uma j definição detalhada de métodos qualitativos, apresentada por Morse e Field, i assim as autoras os caracterizam: 1 Métodos de pesquisa indutivos, holísticos, êmicos, subjetivos e 1 voltados para o processo; usados para compreender, interpretar, 1 descrever e desenvolver teorias relativas a fenômenos ou a settings 1 (Morse & Field, 1995). 1 Embora as autoras procurassem ser abrangentes em sua definição de 1 método qualitativo, carregando-o de adjetivos, infelizmente deixaram de fora os termos significado/significação. No seu alvo amplo, no entanto, ganha força a palavra "teoria", a qual , na ênfase de Morse e Field, deve ser compreendida (tendo já sido postas por outros, antes da pesquisa) ou desenvolvida (o pesquisador propõe a sua) sobre o objeto de estudo. Por fim, apresentarmos a 1 definição da metodologia clínico-qualitativa, enquanto particularização e refinamento da metodologia qualitativa genérica, como a temos concebido: É o estudo e a construção dos limites epistemológicos de certo método qualitativo particularizado em settings da Saúde, bem como abarca a discussão sobre um conjunto de técnicas e procedimentos adequados para descrever e compreender as relações de sentidos e significados dos fenômenos humanos referidos neste campo 1 (Turato, 2000). 1 Esta concepção metodológica foi inicialmente apresentada à comunidade científica em publicação na Revista Portuguesa de Psicossomática. Temos, especificamente, que o método clínico-qualitativo é concebido como um meio li científico de conhecer e interpretar as significações de naturezas psicológicas e ::nl psicossociais - que os indivíduos (~ac~entes. ou quaisquer outras p~~s:~ ....... s;#i·- i# r ------ 6 p ! preocupadas ou que se ocupam com problemas da saúde, tais como a equipe de profissionais, os familiares e pessoas da comunidade), dão aos fenômenos do campo da saúde-doença. Ocorre sob o paradigma fenomenológico , dentro da área das Ciências do Homem, com valorização das angústias e ansiedades existenciais das pessoas envolvidas no estudo e pautando-se num quadro interdisciplinar de referenciais teóricos, com destaque às concepções psicanalíticas básicas . Ela mostra-se particularmente útil nos casos em que tais fenômenos tenham estruturação complexa, por serem de foro pessoal (íntimo) e/ou de verbalização emocionalmente difícil. Estes se tornam objetos de estudo cientificamente importantes, à medida que assim são confirmados por uma observação crítica {de natureza empírica e/ou clínica, no convívio social e na atividade profissional/assistencial) já que freqüentemente são geradoras e/ou exacerbadoras de tantas angústias pessoais. Nesta abordagem metodológica, o pesquisador deve procurar criar um enquadramento da relação face a face , valorizando as trocas afetivas mobilizadas e escutando a fala do sujeito (com foco sobre tópicos ligados à saúde-doença, aos processos terapêuticos, aos serviços de saúde e/ou, principalmente, sobre como lidam com suas vidas) e, ainda, observando o global de sua linguagem corporal/comportamental durante a entrevista . Esta estratégia metodológica tem se mostrado eficiente em trabalhos investigativos de campo desenvolvidos entre nós (Stuchi & Turato, 1993; Figueiredo & Turato, 1995; Brito e Silva et ai., 1999; Figueiredo & Turato, 2001 ; Fontanella & Tu rato, 2002; Campos & Turato, 2003). Por fim, outro filão importante de que lembramos para os estudos qualitativos são os significados psicológicos associados ao processo de formação do profissional de saúde mental nas dimensões do ensino e da atividade clínico-assistencial; as simbolizações das propostas para a humanização durante a formação e o aperfeiçoamento dos profissionais de saúde; as representações psicológicas das vivências dos pacientes em relação a suas queixas e manejas da doença e do tratamento e assim por diante (Turato, 2005). Referências 1. Botega NJ, Turato ER. Pesquisa no hospital geral: primeiros passos. ln: Botega NJ (org .). Prática psiquiátrica no hospital geral : interconsulta e emergência. 2ª. ed., Porto Alegre (RS):Artes Médicas, 2005, Capítulo 35 (no prelo). 2. Bogdan RC, Biklen SK. Qualitative research for education: an introduction fortheory and methods. 3"' ed . Boston (MA): Allyn and Bacon, 1998. 3. Brito e Silva ET; Santos MA, Turato ER O profissional de homeopatia: um estudo qualitativo de aspectos da vida pessoal. Rev Ass Bras Med Psicossomática 1999; 3(3):59-65. 4. Britten N. Qualitative interviews in medical research . BMJ 1995; 311 (6999):251-3. 5. Campos CJG, Turato ER. [The health professionals' team, the patient with renal disease in hemodialysis, and interpersonal relations]. Rev Sras Enferm 2003; 56: 508-12. 6. Chauí MS. Convite à filosofia . 13ª. ed. São Paulo (SP): Atica; 2003. 7. Denzin NK & Lincoln YS . The Sage Handbook of Qualitative Research . 3"'