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NEUROSE OBSESSIVA - REVISTA APPOA-revista17

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NEUROSE OBSESSIVA
ISSN 1516-9162
REVISTA DA ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE
N° 17 - Novembro - 1999
Desing Gráfico: Cristiane Löff
 R454
REVISTA DA ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE / Associação
 Psicanalítica de Porto Alegre. - n° 17,1999. - Porto Alegre: APPOA, 1995, ----.
Absorveu: Boletim da Associação Psicanalítica de Porto Alegre.
Semestral
ISSN 1516-9162
1. Psicanálise - Periódicos. | Associação Psicanalítica de Porto Alegre
CDU: 159.964.2(05)
 616.89.072.87(05)
CDU: 616.891.7
Bibliotecária Responsável: Ivone Terezinha Eugênio
 CRB 10/1108
NEUROSE OBSESSIVA
REVISTA DA ASSOCIAÇÃO
PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE
EXPEDIENTE
Publicação Interna
Ano IX - Número 17 - novembro de 1999
Comissão Editorial deste número:
Analice Palombini, Conceição de Fáti-
ma Beltrão, Edson Luiz André de Sou-
sa, Henriete Karam, Mario Fleig, Valé-
ria Machado Rilho
Colaboradores: Francisco Settineri, Ligia
Gomes Víctora, Maria Lúcia Müller Stein
e Marta Pedó
Título deste número:
NEUROSE OBSESSIVA
ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA
DE PORTO ALEGRE
Rua Faria Santos, 258 Bairro Petrópolis
90670-150 - Porto Alegre / RS
Fone: (51) 333.2140 - Fax: (51) 333.7922
E-mail: appoa@appoa.com.br
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(GESTÃO 1999/2000)
Presidência: Alfredo Néstor Jerusalinsky
1a Vice-Presidência: Lucia Serrano Pereira
2a Vice-Presidência: Maria Ângela C. Brasil
Secretaria: Jaime Alberto Betts
 Marta Pedó
Tesouraria: Carlos Henrique Kessler
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COMISSÕES
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Medeiros da Costa, Lucia Serrano Perei-
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Medeiros da Costa
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nho, Henriete Karam, Liz Nunes Ramos,
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Comissão da Revista
Coordenação: Valéria Machado Rilho
Analice Palombini, Conceição, Edson Luiz
André de Sousa, Gladys Wechsler Carnos,
Henriete Karam, Mario Fleig
ISSN 1516-9162
SUMÁRIO
EDITORIAL............................07
TEXTOS
A obsessão e a clínica contemporâ-
nea.....................................................09
Ana Maria Medeiros da Costa
A neurose obsessiva feminina hoje
........................................................16
Roland Chemama
Camille Claudel: uma neurose obses-
siva feminina....................................26
Alfredo Jerusalinsky
A neurose obsessiva......................37
Lúcia Alves Mees
A oralidade da neurose obsessiva
........................................................42
Christiane Lacôte
A racionalidade como sintoma........52
Charles Melman
 ENTREVISTA
A forclusão do pai na neurose ob-
sessiva..........................................63
Alfredo Jerusalinsky
RECORDAR, REPETIR,
ELABORAR
A neurose obsessiva ou o melhor
dos mundos...................................71
Mario Fleig e Conceição Beltrão
 VARIAÇÕES
Blefe!.............................................79
Maria Rita Kehl
Da verdade do sintoma à verdade do
sujeito: uma leitura sobre a dieta do
TOC................................................83
Henrique Figueiredo Carneiro
O destino: a voz Outra da incerteza
.......................................................88
Edson Luiz André de Sousa
Suspense.......................................94
Ricardo Goldenberg
7
EDITORIAL
Abordar o tema da neurose obsessiva coloca-nos frente a um desafio: como con-templar o singular através do universal sem que se apague o primeiro? Este é o
problema com o qual se defrontam os psicanalistas: como garantir, teoricamente, uma
prática clínica? Pois, o real da clínica, como sabemos, nunca é inteiramente simbolizável.
E o perigo de todas as nossas elaborações teóricas seria o de nos fazer esquecer isso.
Tal qual o obsessivo, que reconhece que o sintoma, aliás como a própria palavra, pode
ser entendido sempre de modo polissêmico e que assim o faz, sobretudo para tornar
toda idéia semelhante a uma outra, para manter-se bastante cético em relação a tudo o
que poderia ser dito, supondo provar que estas não valem nada.
Como teorizar sobre a neurose obsessiva, sem ser obsessivo? Este é um primei-
ro ponto que surge a título de preâmbulo.
A segunda questão é por que a preocupação em atualizar a neurose obsessiva?
Muitas são as vozes que testemunham, na clínica cotidiana, uma maior inci-
dência de mulheres obsessivas, à diferença de outrora. É claro que nem os mais
desavisados seriam tão ingênuos a ponto de esperarem encontrar, atualmente, histéri-
cas tais quais as descritas tão magistralmente por Freud, a não ser em forma de carica-
tura, nos hospitais psiquiátricos, nas unidades intensivas.
Mas o que uma estrutura clínica teria de atual?
A psicanálise aponta que o papel desempenhado, no discurso social, pelo
significante fálico tem sofrido modificações ao longo da história da humanidade. Isto
tem conseqüências diferentes para os sujeitos em jogo, homens ou mulheres, possibi-
litando, além disso, leituras do sintoma social, bem como dos efeitos deste na clínica
das neuroses.
8
Porém a polissemia da palavra atualizar permite ainda uma segunda acepção
além da usual, a saber, pôr em ação, pôr em ato o que, por sua vez, diz respeito ao
singular de um sujeito, ao um. Atualizar o pai a cada instante e em cada ato, através da
renovação da demanda de reconhecimento, de um traço filiatório: este é o empenho do
obsessivo.
Afinal, nunca é demais relembrar que é com o “Homem dos ratos”, de 1909,
caso clínico paradigmático para o estudo da neurose obsessiva, que Freud desloca a
clínica psicanalítica da cena do trauma de um romance vivido pela histérica para a
ficção das origens, no obsessivo. Tem início aqui a escuta do infantil do sujeito, passa-
do sempre atualizado na relação com o Outro.
Para concluir, observamos o quanto nosso preâmbulo se insurge,agora, recla-
mando-nos outra posição: como atualizar a neurose obsessiva, sem pô-la em ato?
EDITORIAL
9
TEXTOSTEXTOS
A OBSESSÃO E A CLÍNICA
CONTEMPORÂNEA*
Ana Maria Medeiros da Costa* *
RESUMO
O texto aborda o “bilingüismo” das mulheres, que passam muitas vezes da
histeria à obsessão, em função de modificações no apelo fálico. Refere como
Freud trata desde cedo deste assunto em sua obra e indaga as razões do
crescimento da expressão da obsessão em mulheres hoje.
PALAVRAS-CHAVE: neurose obsessiva e as mulheres; mulheres e o apelo
fálico
ABSTRACT
The text approaches the “biliguism” in women, that often pass from hysteria to
obsession, due to changes in the phallic request. Refers as Freud deals early
with this subject in his work and questions the reasons for the increase in the
obsession expression in women today.
KEYWORDS: obsessional neurosis and women; women and the phallic request
* Trabalho apresentado em Barcelona, na reunião da Convergência Lacaniana para uma Psica-
nálise Freudiana, em novembro de 1998. O texto sofreu algumas modificações para esta publi-
cação, mas conserva as idéias do original.
** Psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, Doutora em Ciências pela
PUC/SP e autora do livroA ficção do si mesmo: interpretação e ato em psicanálise, ed. Compa-
nhia de Freud, 1998.
10
TEXTOS
A clínica das neuroses – nossa próxima familiar – é pródiga em fazer-nos indaga-ções. Essa prodigalidade leva-nos, paradoxalmente, ao seu empobrecimento. Ou
seja, quanto mais certezas, interpretações e conclusões construímos, tanto mais nos
afastamos de seu entendimento. Nenhum psicanalista estaria disposto a confessar sua
ignorância em relação à neurose, na medida em que é nela que parece situar-se o bê-a-
bá da psicanálise.
Seguindo um modelo bem freudiano, desenvolverei mais livremente algumas
hipóteses, na tentativa de forçar o estabelecido e também de testar o fundamento de
algumas idéias. Tomarei um exemplo clínico, apresentado por Freud, como paradigma
de minha indagação. As questões que me interessam não são totalmente convergentes
com a análise freudiana. No entanto, Freud promove a abertura de um caminho que
seria interessante retomar e desenvolver.
O artigo do qual partirei denomina-se “A disposição à neurose obsessiva” e
data de 1913. Como se sabe, Freud determinava a escolha da neurose por uma condi-
ção de fixação da libido. Na verdade, é a neurose obsessiva que o leva a desenvolver
mais longamente esta referência, mesmo em outros artigos, pela peculiaridade e
abrangência que toma o seu caráter anal. No texto que ora nos ocupa, ele manifesta
uma certa surpresa por encontrar algo que denominou bilingüismo, caracterizando a
passagem de uma expressão histérica para uma obsessiva em uma paciente. O que
surpreende Freud é encontrar uma modificação de neurose fundamentada num caráter
acidental e não a partir de sua definição de escolha de neurose. Se posterior a Lacan a
expressão fixação da libido perde vigência, a idéia de estrutura mantém uma certa
condição de fixação das formas de expressão da neurose. Assim, diria que a indagação
de Freud permanece atual.
Interessou-me trazer o exemplo que o autor utiliza para colocar essa questão,
porque ele me parece paradigmático. Evidencia, de uma maneira muito precisa, as
razões do trânsito das mulheres, na clínica contemporânea, da histeria à obsessão.
Diria que casos de obsessão em mulheres já não são raros nem isolados. Isso é tanto de
minha experiência, como de outros colegas com quem tenho dialogado. Este trabalho
tem a intenção de tão somente abrir o debate, anunciando algumas questões na verten-
te de uma escuta clínica. Ou seja, tomarei os textos mais como recortes clínicos do que
como textos teóricos.
No artigo citado acima, Freud escreve sobre uma paciente que o procura por
uma histeria de angústia, que se precipitou depois da constatação de que seu marido
era estéril. Ela tratava de não culpabilizar o marido por sua doença. A seguir, transcre-
vemos um trecho do desenvolvimento do caso:
“(...)o marido compreendeu, sem necessidade de confissão nem explicação, o
que significava a angústia de sua mulher(...) e reagiu, por sua vez, em forma neurótica,
falhando-lhe, pela primeira vez no seu casamento, a potência genital ao tentar o coito.
11
A OBSESSÃO E A CLÍNICA CONTEMPORÂNEA
Imediatamente, empreendeu uma viagem. A mulher acreditou que o marido havia
contraído uma impotência duradoura e, à véspera de seu retorno, produziu os primei-
ros sintomas obsessivos”. (Freud, 1913, p.1740)
Assim, o autor situa dois fracassos, na vida de sua paciente, como propulsores
das duas línguas da neurose:
- a impossibilidade de ter um filho com o marido, que dispararia a histeria de
 angústia;
- a impotência do marido, que dispararia os atos obsessivos.
Sem entrar no mérito da interpretação do caso, importa destacar essas duas
posições, na medida em que indicam caminhos distintos em relação à identificação.
Na primeira posição, vamos encontrar a clássica mulher freudiana, resolvendo os des-
tinos da significação pelo dom do filho. Esta forma, que Freud propõe como uma
resolução da feminilidade, pressupõe que o destino da mulher na neurose seria a histe-
ria, na medida em que a significação dependeria de um dom, de que algo teria que lhe
ser dado. A clássica reivindicação histérica situa bem essa questão. Também por essa
razão, parece-nos que Freud situa a passividade como posição primária dentro da his-
teria: a passividade diz respeito justamente a esta reivindicação de receber algo.
Já o resultante da obsessão, Freud o coloca numa posição de atividade. Esta
ligação diz respeito a elementos sádico-anais. A tematização da troca de orifícios
pulsionais, na representação, interessa-nos como expressão de uma reversão na de-
manda do Outro, conforme propõe Lacan no “Seminário XI”. Se seguirmos por esta
via, a analidade indica a necessidade de produzir algo, de dar algo ao Outro. O curioso
é que Freud situa a fixação da libido, para a histeria, na fase fálica, o que, dentro de sua
lógica, indicaria uma posição mais regressiva na obsessão.
Percorrer caminhos exclusivamente freudianos leva-nos rapidamente a impasses,
na medida em que, a partir de Lacan, já se avançou em direções nem sempre conver-
gentes com a proposta freudiana. Mas tomarei tanto o termo fixação, quanto a referên-
cia corporal, para enunciar o que segue: na fixidez discursiva que se apresenta na
neurose obsessiva, parece retornar algo de natureza traumática. Qualquer ranhura mí-
nima na imagem corporal traz efeitos de terra arrasada. Esta espécie de falência com-
pleta que produz a não confirmação da perfeição do corpo-imagem, tem incidências
específicas no caso dessa neurose em mulheres, como veremos mais adiante.
Desenvolverei o caso citado por Freud em seu artigo como um exercício de
ficção que me permitirá ir ao encontro da clínica atual. Muito bem, por que a impotên-
cia do marido dispararia atos obsessivos? Sabe-se que a impotência masculina
retroalimenta a reivindicação histérica. É talvez por esse elemento que Freud se vê na
necessidade de interpretar a fixação anal como estrutural. Mas há um comentário late-
ral de Freud que acho interessante: ele diz que a impotência momentânea do marido
foi decorrente de uma captação inconsciente da frustração da demanda da mulher. Ou
12
TEXTOS
seja, alguma coisa se modifica no laço do casal, de tal forma que as posições de dar e
receber se deslocam. No entanto, sabe-se que esse deslocamento não é tão lábil, que
não é suficiente uma frustração para que o sujeito mude de sintoma. Ao contrário, ele
vai suficientemente longe no fracasso do sintoma. Poderíamos pensar, aqui, numa
certa irreversibilidade, numa certa função de trauma que se produz no laço sintomáti-
co. Talvez o filho como dom tenha encontrado, para esse casal, o lugar da impossibi-
lidade e,a partir daí, o fracasso não pode mais ser representado como impotência. É
assim que a impotência do marido não vem mais como repetição e impõe uma espécie
de nova ordem.
Talvez isso que Freud enunciou apareça como um certo prenúncio de algo que
hoje passa a se tornar corriqueiro. A mulher, na escolha da neurose obsessiva, talvez
tematize um segundo tempo de fracasso: o fracasso que se centra no ato sexual como
condição da significação sexuada. Por que isso seria um segundo tempo? Vamos ten-
tar desenvolver um pouco mais.
A modificação do apelo fálico, no nosso contexto, de alguma maneira parece
forçar as mulheres a transitarem, em diferentes graus, pela obsessão. Como se produ-
zem as condições desse trânsito? Retomaremos os argumentos freudianos a respeito
do édipo e tentaremos situar-nos a partir deles. Freud propõe dois caminhos que o
édipo demarcaria: a identificação e a escolha do objeto sexual. Para Freud, esses dois
elementos se dão em campos distintos, o do masculino e do feminino. O modelo
interpretativo edípico parte de um certo suposto: uma distância, uma separação, entre
identificação e escolha de objeto. Ou seja, a identificação se dá num campo, a escolha
de objeto no outro. Se há identificação com o pai, por exemplo, o menino vai escolher
o objeto do lado das mulheres; se com a mãe, a escolha se dará no lado oposto. É certo
que Freud, quando trabalha sobre o narcisismo, mistura um pouco as coisas; elas não
se dão tão harmoniosamente. No entanto, a saída do édipo – o que implica uma certa
resolução interpretativa – pressupõe que esteja estabelecida esta distância entre identi-
ficação e escolha de objeto, como dois campos distintos.
As condições de representação dependem do contexto que, enquanto laço
discursivo, determina lugares. Depois de Freud, muito se tem falado a respeito do
enigma da feminilidade e transposto, quase ipsis litteris, para a posição da mulher no
fantasma masculino, ou bem para a proposta de sexuação, apresentadas por Lacan. Por
vezes, desconsidera-se que a formulação freudiana não indica uma posição natural de
identidade aos sexos e que os giros discursivos afetam as identidades. Pela condição
de fundação da psicanálise, talvez a mulher histérica tenha permanecido como objeto
do desejo dos psicanalistas. Mas a mulher obsessiva nos indica que não há natureza
feminina.
Talvez se faça importante esclarecer por que estou me detendo nessa separação
mencionada antes. Como se sabe, a forma como a demanda contextualiza, na clínica,
13
essas questões não as diferencia de qualquer laço amoroso. Neste, qualquer escolha de
objeto é também uma escolha identificatória. Ou seja, o que se ama no outro é sempre
um traço que representa o eu. Assim, qualquer pergunta sobre o que é ser homem, o
que é ser mulher, incluída num laço amoroso, produz um certo acoplamento de regis-
tros, em que a identificação não se diferencia do objeto da escolha sexual. Diríamos
que ser e ter, nesse sentido, tornam-se equivalentes.
Aqui retomo a questão do duplo fracasso que situei no caso mencionado. Des-
de que, na cultura, os destinos da significação feminina não se decidem mais exclusi-
vamente pelo dom do filho, abre-se uma dupla vertente que muitas vezes opera de
forma dissociada. Aproveitando uma expressão de Pommier (1992), dissociam-se (no
sentido freudiano de clivagem) o pai do sexo e o pai do nome. Na posição reivindicatória
histérica, a espera de receber algo do parceiro conjugava um horizonte de idealidade
na espera do filho. Com o filho esperava-se resolver a conjugação entre sexo e nome
(ter um sexo e ter um nome – ser e ter). Com o fracasso cultural na definição da mulher
como mãe, ou seja, de situar a natureza feminina como mãe, as mulheres precisaram
incumbir-se de produzir tanto o sexo quanto o nome, do lado da atividade antes reser-
vada aos homens. É ali que se situa o segundo tempo do fracasso, disparador da obses-
são: o fracasso na representação da potência de satisfação, reduzindo a atividade sexu-
al a elementos ritualísticos. Hoje, talvez o templo obsessivo tenha encontrado seu lu-
gar originário: o quarto do casal.
Uma jovem mulher me procura com uma queixa, que se tornou totalmente
corriqueira, de se encontrar inibida no início de sua vida profissional. Digamos que o
sinal dos tempos (dificuldades do mercado em acolher um ideal profissional, pela falta
de oportunidades) fortalece o sacrifício obsessivo. Mas o que mais me chamou a aten-
ção nessa jovem foi a expressão que ela usou ao se referir à sua vida sexual com o
marido: “agora a gente trepa bem”. O que é mais curioso é que a palavra trepar me
chocou. Fiquei indagando-me sobre o que me teria chocado numa palavra que passou
a ser tão lugar comum, tanto no consultório quanto socialmente. Talvez pela primeira
vez eu tenha percebido como essa palavra se tornou higiênica, dessexualizada, tendo
sido exatamente isso que me chocou. Essa jovem me pareceu uma típica representante
de uma geração para a qual o ato sexual tornou-se parente próximo de vestir o unifor-
me para ir ao colégio: tudo depende da pulcritude, inclusive a transgressão.
Se a histeria resulta de um fracasso na conjugação dos registros paternos (Pai
do sexo – Pai do nome), a obsessão resulta de um fracasso na separação desses mes-
mos registros. É como dizer que, se para a histeria, o problema provém da união; para
a obsessão, o problema provém da separação. Nesse sentido, tanto a inibição quanto a
compulsão ritual e o acting out passam a prevalecer como resultantes da posição in-
consciente e não mais a mímesis, como no caso da histeria. O acento no ato provoca
expressões extremadas: ou bem a inibição, ou bem a compulsão.
A OBSESSÃO E A CLÍNICA CONTEMPORÂNEA
14
TEXTOS
Aparentemente as mulheres, da mesma maneira que seus parceiros homens,
saem-se muito bem na produção do nome, que é sua condição de produção de um mito
de origem. O que chama atenção na clínica da obsessão é a extrema defasagem entre o
sucesso e a miséria corporal. O oferecimento de tantos sucessos ao analista por vezes
fazesquecer uma certa posição sacrificial que aparece num discurso extremamente
lateral. Este é o elemento do recalque que certamente lembra a crueldade do supereu,
tão característica dessa neurose.
Sobre esta espécie de falência da imagem corporal, vale a pena trazer uma
passagem do final do texto freudiano analisado:
“É sabido, e já deu muito o que lamentar aos homens, que o caráter das mulhe-
res costuma mudar singularmente ao sobrevir a menopausa e pôr término à sua função
genital. Fazem-se ranzinzas, impertinentes e obstinadas, mesquinhas e avaras, mos-
trando, portanto, típicos traços sádicos e erótico-anais, alheios antes a seu caráter (...)
esta transformação do caráter corresponde à regressão da vida sexual à fase pré-genital
sádico-anal, na qual achamos a disposição à neurose obsessiva. Esta fase seria, pois,
não somente precursora da genital, senão também, em muitos casos, sucessora e subs-
tituta sua, uma vez que os genitais cumpriram sua função.” (Freud, 1913, pg.1742)
Essa função dos genitais, no contexto freudiano, tem uma representação dife-
rente do nosso. Essa função, para ele, está referida à procriação, da qual derivam as
funções maternidade e paternidade. Maria Rita Kehl (1998) escreveu um ensaio, do
qual é necessário partir para pensar essa questão. Talvez isso que a mulher descrita por
Freud vivia no âmbito privado – a incidência da obsessão pela perda da função genital
(procriação) como possibilidade de representação de identidade – as mulheres passa-
ram hoje a viver no âmbito público com muito maior antecedência: hoje as obsessivas
rejuvenesceram, tanto na idade, quanto na imagem (pelas plásticas das mais velhas).
Uma questão que seria importante desenvolver é a grande incidência de um discurso
obsessivo em mulheres que precisaram extirpar órgãos ligados à procriação. Aqui se
poderia indagar em que medida a perdada função decreta a falência do órgão.
Queria retomar o termo bilingüismo proposto por Freud para sua paciente. Freud
já se referira à obsessão como um dialeto, e constantemente se confirma que na clínica
das neuroses há uma passagem necessária pela histeria. No entanto, talvez essa condi-
ção bilíngüe seja mais evidente no caso das mulheres, na particularidade que assume
seu sexo na função fálica. Nesse sentido – e de uma forma mais abrangente – o corpo
ficcional, resultante da função fálica, tanto produz efeitos nas funções corporais quan-
to também é resultante das modificações das mesmas. Assim, nas diferentes passagens
da vida, pode-se pensar que haja uma reinterpretação do sexual, disso que primeiro se
constitui na infância. Ou seja, pensar na adolescência, na maternidade ou paternidade,
na menopausa ou perda de funções corporais, implica pensar em momentos diferenci-
ais na interpretação do corpo ficcional, enquanto corpo social: quer dizer, a interpreta-
ção do sexual. Estas passagens sempre têm um duplo sentido: um que se orienta ao
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passado, como fracasso da versão ficcional e outro que relança a demanda ao Outro,
constituindo o duplo sentido da obsessão de repetição. Pode-se perceber que a convi-
vência da diferença das gerações está sempre colocando em xeque as versões ficcionais,
quase como se fossem diferenças de línguas. Freud vislumbrou o único ponto em
comum na diferença geracional, ao dizer que o supereu da criança é o de seus avós. O
supereu, então, constitui uma espécie de língua única, que amarra as gerações, que
problematiza as mudanças do endereço discursivo, tanto quanto o reconhecimento da
diferença, que a convivência das gerações instala.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FREUD, S. La disposición a la neurosis obsesiva. Una aportación al problema de la elección de
neurosis (1913). In: _____. Obras completas. Madrid: Biblioteca Nueva, 1972.
KEHL, M. R. Deslocamentos do feminino. A mulher freudiana na passagem para a modernidade.
Rio de Janeiro: Imago, 1998.
LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Seminário XI. Rio de Janeiro: J.
Zahar, 1985.
POMMIER, G. A ordem sexual. Perversão, desejo e gozo. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1992.
A OBSESSÃO E A CLÍNICA CONTEMPORÂNEA
16
TEXTOS
RESUMO
A partir da constatação de um acréscimo no número de mulheres obsessivas
em relação ao de mulheres histéricas, a proposta deste texto é procurar e
aprofundar as razões que a justifiquem. Através da abordagem de um caso de
uma neurótica obsessiva, sempre perpassado por uma reflexão comparativa à
histeria, o autor trabalha temas cruciais à clínica das neuroses: a atualidade de
uma estrutura clínica, a transferência e a estrutura, a compulsão, o fantasma,
o falo, a inveja do pênis numa mulher, a forclusão do falo, o significante fálico e
a condução do tratamento.
PALAVRAS-CHAVE: neurose obsessiva feminina; compulsão; transferência;
falo
ABSTRACT
From the finding of an increase in the number of obsessive women in relation to
hysterical women, the proposal of this text is to search and enhance the reasons
behind it. Through the study of a case of obsessional neurosis in a woman,
always crossed by a comparative consideration with hysteria, the author
approaches crucial themes to the clinic of neuroses: the actuality of a clinical
structure, transference and structure, compulsion, phantom, phallus, penis envy
by a woman, phallus forclusion and the direction of treatment.
KEYWORDS: feminine obsessional neurosis; compulsion; transference; phallus
* Este texto é uma tradução do trabalho apresentado na conferência em Caxias do Sul, em 12/08/
99, uma dentre as realizadas pelo autor no Rio Grande do Sul, reunidas sob o título Um
questionamento lacaniano na atualidade, e promovidas pela Associação Psicanalítica de Porto
Alegre, UNISINOS e Espaço de Estudos Psicanalíticos (Ijuí).
** Psicanalista, membro da Association Freudienne Internationale, autor de Dicionário de Psi-
canálise Larousse (POA, Artes Médicas, 1995) e Eléments lacaniens pour une psychanalyse
au quotidien (publicação da A.F.I., Paris, 1994).
A NEUROSE OBSESSIVA
FEMININA HOJE*
Roland Chemama* *
Tradução: Francisco Settineri
17
Antes de mais nada, é preciso, por certo, falar um pouco sobre a própria idéia de seinterrogar sobre a atualidade de uma estrutura clínica. Será que estruturas como a
fobia, a histeria, a neurose obsessiva e a perversão não conservam sempre os mesmos
traços, a mesma realidade?
Não o creio. E, por exemplo, para mostrá-lo a vocês inicialmente a partir de
uma questão que não é a da neurose obsessiva, parece-me que vocês compreendem
facilmente que a histeria possa não assumir, em todos os tempos e lugares, a mesma
forma e o mesmo sentido. Dizemos freqüentemente que a histérica, que colocamos
com bastante freqüência no feminino, a histérica, pois, interpela o mestre. Ela o inter-
roga sobre seu poder e seu saber, ela sublinha seus limites, em suma, ela procura um
mestre sobre quem reinar. Concebe-se então que isso pressupõe, precisamente, a exis-
tência de mestres que não sejam desacreditados de saída. Ora, em nossos dias, em um
número crescente de países democráticos, a desconfiança legítima que se pode ter
contra a opressão se transforma em crítica de toda posição de exceção, de maestria, de
autoridade. Isso é sem dúvida devido ao peso crescente do discurso da ciência, a ciên-
cia que substitui os discursos que, até aqui, precisamente, constituíam a autoridade,
mas que os substitui ao excluir, pelo menos aparentemente, toda posição de maestria.
No limite, um enunciado científico parece mesmo poder dispensar a dimensão da
enunciação. De qualquer modo, é claro que nessa nova configuração não encontrare-
mos mais na mesma escala uma histeria comparável à que Freud conheceu. Bem, não
falarei de histeria, mas vejam bem que a questão que vou propor está ligada a esta. Se
me interesso mais particularmente pela neurose obsessiva feminina, é porque, há al-
guns anos, acredito ter recebido um pouco menos mulheres histéricas e um pouco
mais mulheres obsessivas. Essa era também a impressão de muitos colegas, quando
das jornadas que tivemos há um ano em Paris, e cada um, à sua maneira, tentou com-
preender o porquê. É esse trabalho que vou procurar prolongar e aprofundar.
Minha segunda observação, antes de me engajar no essencial do assunto, é a de
que hoje evidentemente dispomos de numerosos textos sobre a neurose obsessiva, que
valorizam aspectos diferentes. Há os textos de Freud, sobretudo os centrados em histó-
rias de casos, em particular o “Homem dos Ratos”. Há os “Escritos” e sobretudo os
“Seminários” de Lacan, dado que este se ocupou muitas vezes da neurose obsessiva. E
depois, dentre todas as elaborações ulteriores, é certo que atribuo um valor particular
à que Charles Melman trouxe. Há, pois, coisas o bastante, e o risco, por certo, seria o
de querer reunir tudo, o risco seria o de dar uma apresentação totalizante, impecável
do ponto de vista teórico, mas eu diria tão obsessiva quanto o objeto que ela pretende-
ria descrever. É difícil, de fato, não falar da neurose obsessiva em termos obsessivos.
O obsessivo, como se sabe, tenta articular séries de enunciados que obedeceriam a
regras estritas de inferências. Ele procura, de uma certa forma, evitar toda ruptura
naquilo que diz, e, ao mesmo tempo, toda expressão de sua subjetividade. Pois bem, o
A NEUROSE OBSESSIVA FEMININA HOJE
18
TEXTOS
risco seria o de repetir, no nível teórico, uma empresa desse tipo. O risco é o de propor
a vocês um discurso fechado, auto-suficiente, sem falha. Espero que suas observações,
suas reservas, eventualmente suas críticas possam assegurar-me de que não tenha sido
assim.
Por outro lado, para evitar um efeito desse gênero, não pretendo, de fato, res-
peitar totalmente o título que foi anunciado. Em vez de falar da neurose obsessiva
feminina como se falasse de umuniversal – todas as mulheres neuróticas obsessivas –
irei falar a vocês sobretudo de um caso que segui durante muitos anos. Nunca é sim-
ples, nem que seja por razões de discrição, falar de um caso. Entretanto é certamente
muito importante para nosso trabalho. Então, como falo aqui, longe de Paris, onde
atendi a pessoa de quem vou lhes falar, autorizo-me a falar dela um pouco mais em
detalhe e a tentar articular algo a partir desse caso. Serei levado, certamente, durante
este trajeto, a falar do obsessivo em geral, mas tentarei não perder de vista que falo
disso a partir de um caso singular.
Trata-se de uma mulher com cerca de quarenta anos – chamá-la-ei de Floria –,
que tinha vindo consultar-me depois de ter feito uma primeira análise com uma psica-
nalista, uma mulher psicanalista. Essa primeira análise tinha sido determinada pelo
seguinte fato: um dia em que Floria ia doar sangue, a pessoa a quem ela se dirigiu lhe
disse que ela não devia ter vindo. De fato, segundo seu dossiê, haviam-lhe indicado,
na vez precedente, que não se podia aceitar seu sangue, que ele estava contaminado.
Ela sabia bem que isso não era verdade, que nunca tinham rejeitado seu sangue, e
pôde, aliás, ter a certeza, dirigindo-se a outro lugar, de que não estava em absoluto
contaminada. Isso não impediu que, a partir desse dia, ela não cessasse de duvidar de
si mesma. Não teria havido, mesmo assim, alguma coisa desse tipo? Não poderia ser
que ela mesma tivesse esquecido algo desse gênero? Estaria doente? Ela não podia
afastar esse tipo de idéias.
Parece que seu primeiro tratamento teve, pelo menos, o efeito de acalmá-la.
Não obstante, não estava muito satisfeita com ele. Percebia bem, de fato, que sua
psicanalista se apressava demais em dar-lhe explicações, que esta lhe havia proposto,
de modo rápido e artificial, interpretações que ela teve dificuldade em integrar. Por
exemplo, para explicar por que a história do sangue tinha sido tão obsessiva, a psica-
nalista indicara que se tratava sem dúvida de uma questão edípica, porque é com os
pais que se partilha o mesmo sangue.
De fato, Floria não apresentava um quadro sintomático muito impressionante.
Salvo uma compulsão particular, de que irei falar longamente, pode-se dizer que o
resto era bastante banal.
Floria rapidamente me põe a par de sua neurose infantil: ela se recorda de ter
sido uma criança com muito cuidado em respeitar, além mesmo daquilo que se lhe
pedia, as regras que lhe eram prescritas, em particular as regras religiosas. Por exem-
19
plo, tinham-lhe proibido beber antes de uma cerimônia religiosa. Ela tinha ampliado
esse interdito. Não apenas não devia beber, mas não devia engolir sua saliva. E, quan-
do ela mesmo assim o fazia, sentia-se impura. Por essa idade, ela acusava suas bonecas
de se sujarem fazendo pipi e as punia. Mais tarde, ela se tornou muito escrupulosa,
sempre ansiosa diante da idéia de ter feito algo que não devia. Por outro lado, ela sofria
daquilo que chamamos de fobia de impulsão. Ela se sentia compelida, quando se depa-
rava com um bebê, a jogá-lo pela janela e temia não poder impedir-se disso. Mas, com
mais freqüência, seus escrúpulos referiam-se a coisas menores da vida quotidiana. Por
exemplo, ela era professora e, quando distribuía doces, devia cuidar para não prejudi-
car ninguém. Em suma, não irei demorar-me em todos esses pormenores.
Seria conveniente, em contrapartida, que nos detivéssemos um pouco mais
longamente sobre seu estilo na transferência. Antes de mais nada, é a partir disso que
podemos colocar da melhor maneira, para cada uma das pessoas que se endereçam a
nós, a questão da estrutura. Sabemos assim que, na histérica, a questão do desejo do
Outro está sempre muito viva. Isso se traduz, no tratamento, por uma atenção constan-
te aos significantes que podem vir do psicanalista. Uma histérica não cessa de interpe-
lar seu psicanalista, de interpretar seus atos e suas palavras, e é nessa forma de diálogo
que se dá o tratamento. Seu modo de se defender do encontro com sua própria falta é
perscrutar a falta no Outro. Por sua vez, o obsessivo tem antes a tendência a anular a
dimensão do Outro. Parece-me que é por isso que ele tenta fazer entrar tudo em sua
lógica, em seu discurso bem organizado. Esse era o caso de Floria. Acrescentemos
que, quando, apesar de tudo, algo um pouco vivo se arriscava a ser dito, ela procurava
anulá-lo, mostrando indiferença em relação a seu psicanalista, em relação ao trata-
mento e a tudo o que se poderia dizer no tratamento.
Gostaria, por outro lado, de acrescentar uma observação quanto ao estilo de
diversos obsessivos no tratamento. Tornou-se banal se oporem os obsessivos às histé-
ricas, no que concerne à regularidade, o respeito dos horários, etc. Porém, como uma
outra jovem obsessiva me dizia um dia, se ela respeitava a regra é porque, no fundo,
não acreditava em absoluto que a regra pudesse valer para ela própria. Era sem dúvida
assim, no caso de Floria.
Chego, entretanto, àquilo de que Floria mais falou durante seu tratamento. Ela
o chamava de seu fantasma. Era, de fato, uma compulsão a fazer algo, compulsão da
qual se defendia, mas à qual ela cedia com muita freqüência. É preciso aliás reconhe-
cer que a passagem ao ato é mais freqüente na neurose obsessiva do que às vezes se
acredita. Quanto ao termo de fantasma, ele não era, no fundo, tão mal escolhido. Digo
isso não no sentido em que ele fosse feito de um cenário imaginário que proporcionas-
se um certo gozo, mas porque se organizava em formulações que eram bastante próxi-
mas daquilo que chamamos de fantasma fundamental, ou seja, ele permitia isolar a
relação do sujeito com o objeto causa de seu desejo.
A NEUROSE OBSESSIVA FEMININA HOJE
20
TEXTOS
De que se tratava? Floria sentia-se periodicamente compelida a se tornar gor-
da. Ela punha sob suas roupas fraldas ou absorventes higiênicos ou ainda outras coi-
sas. E depois ela se olhava no espelho, e encontrava um estranho gozo em olhar seu
corpo assim deformado. A partir disso, o cenário podia transformar-se um pouco. No
começo, tratava-se sobretudo de ir comer, exageradamente, em um restaurante popu-
lar, sob o olhar zombeteiro de operários da vizinhança. Mais tarde, o cenário se fixou
um pouco sob uma forma diferente. Ela devia ir às lojas, endereçar-se a vendedoras
um tanto idosas e pedir para provar roupas visivelmente pequenas, em relação ao ta-
manho que ela se tinha conferido. Também aí ela devia provocar ou supor um olhar
zombeteiro. É em relação a este último cenário que ela havia verdadeiramente passado
ao ato, aliás com bastante freqüência.
O que dizer dessa compulsão? E, sobretudo, o que a própria Floria chegou a
dizer disso? Pode-se, por comodidade, evocar inicialmente o evento desencadeador
dessa compulsão. Ela se sentira, em sua infância, muito enamorada por um irmão que
lhe dizia, de brincadeira, que a desposaria. Esse irmão, não obstante, tinha encontrado
uma amante, ela própria um tanto gorda, e Floria tivera a ocasião de vê-la de cinta, o
que permanece como lembrança investida de uma precisão particular. Ao mesmo tem-
po, essa lembrança se liga ao momento em que essa jovem, com quem seu irmão não
era casado, engravidou. A jovem, entretanto, abortou, e Floria percebeu que havia
nela sentimentos muito ambivalentes. Essa criança carregada no ventre, mas também
o próprio ventre da jovem, tornam-se símbolos do desejo, diremos que eles assumem
um valor fálico. Desse modo, são investidos ao mesmo tempo de amor e de ódio.
Quando Floria faz para si uma barriga grande, é como se ela endossasse a imagem
fálica de sua cunhada de cinta; mas ela veio também a pensar que a criança que gosta-
ria de jogar pela janela é a criança que seu irmão fez para uma outra.
Irei evocar pela primeira vez a questão do falo. É claro que é uma questão que
vai organizar toda esta observação, mas eu diria que é bem complexa, que pode assu-
mir formas bem diferentes.Fiquemos um momento sobre esse falso ventre que Floria faz para si. Reservo
para logo mais certos desenvolvimentos sobre a significação peniana que estão em
jogo aqui. O falo masculino está de qualquer modo presente, já que se trata da questão
do desejo do irmão. Porém, vê-se que há também, por completo, o lugar daquilo que
Freud já designava como transposições das pulsões. O grande ventre, que evoca a
gravidez, permite a substituição do falo pelo bebê. Por outro lado, os absorventes
higiênicos e sobretudo as fraldas que Floria utiliza remetem-na a um objeto anal, ou
uro-anal, muito investido na infância. Ela, aliás, foi enurética e não se lembra mais se,
quando de uma visita a uma amiga, por volta dos doze anos, temia ainda manifesta-
ções de enurese ou um escorrimento menstrual. Não esqueçam, por outro lado, sua
compulsão a punir as bonecas que se sujavam, e que por certo a representavam. Pode-
21
se pensar que as zombarias que é preciso suscitar estão de início em relação com esse
tema. Ele está, aliás, bastante presente, a ponto de voltar claramente em certos sonhos.
Tudo isso, entretanto, não basta , por certo, para entender o essencial daquilo
que estava em jogo nas espécies de exibições às quais Floria se via compelida. Vocês
irão ver que esses comportamentos são bastante sobredeterminados, que não é fácil,
em todo caso, dar-lhes um sentido. É uma pena, aqui também, ter de apresentar de
modo necessariamente um tanto ordenado o que veio de maneira bem descosida, no
fio das sessões.
Foi evidentemente a personagem da mulher idosa, da vendedora, que guiou
Floria na direção de sua mãe. Isso nos permitirá situar como tudo isso poderia ser
apresentado em uma perspectiva edipiana, digamos, na perspectiva de Lacan quando
ele formaliza, em seus primeiros seminários, o édipo freudiano.
Floria sabia bem que tinha uma relação difícil com sua mãe. Esta jamais parou
de tentar controlar sua vida, ela lhe pedia para ser perfeita. Um objeto perfeito, dizia
Floria, que não estava longe de notar de que objeto poderia tratar-se.
Ela pôde assegurar-se disso melhor e estabelecer um laço com seu sintoma, por
ocasião de um de seus sonhos. Tratava-se, nesse sonho, de ir uma vez mais provar
roupas em um magazine. Mas, nesse dia, havia algo de particular. Sua mãe estava mais
claramente presente, mais ou menos confundida com a vendedora. E estava em ques-
tão dar-lhe um vale ou haver1 .
Quando, na França, um cliente tem de devolver uma roupa que comprou, mas
que não lhe convém verdadeiramente, quando se aceita essa restituição mas não se
pode fazer imediatamente a troca do artigo, dá-se a ele o que se chama de vale ou
haver (avoir). É um documento pequeno – um pedaço de papel – que lhe permitirá,
mais tarde, adquirir um outro objeto. Mas haver, o verbo haver, faz equívoco também
com o verbo ver. Posso mostrar algo a alguém, dar-lhe alguma coisa a ver.
Foi então que decidi intervir. Disse a Floria: você dá a ver a sua mãe, o que
incluía dar um haver e dar a ver2 .
Foi a partir de um tratamento de mulher obsessiva, apresentado por Maurice
Bouvet, que Lacan voltou, durante vários anos consecutivos, ao tema da interpretação
da inveja do pênis. Com muita freqüência, mostra, reduzimos uma boa parte do dis-
curso da paciente à inveja de ser um homem, ou ainda de ter um pênis. Ora, fazendo
isso, deixamos a paciente pensar que se trata, para ela, de assumir essa inveja, que a
solução para suas dificuldades se encontra nesse plano. Ora, ocorre que em casos
desse tipo o sujeito, no término do tratamento, não está verdadeiramente mais avança-
A NEUROSE OBSESSIVA FEMININA HOJE
1 Em francês, avoir, que pode significar ter ou haver. Nota do tradutor.
2 Em francês, vous donnez avoir à votre mère. Em francês, o jogo de palavras não tem a falha
provocada pela tradução. Nota do tradutor.
22
TEXTOS
do, pois se identifica em uma posição de reivindicação que ele não poderá ultrapassar.
O que se trata, antes, de lhe fazer entender é de que maneira ele pôde ser o falo do
Outro, ser, sobretudo, o falo de sua mãe. Aqui o ter (avoir), ter o falo, corresponde à
mãe. Floria, para que sua mãe o tivesse, teve ao mesmo tempo que sê-lo e dá-lo a ver.
Foi dessa posição que a análise teve de ajudá-la a sair, o que produziu um apazigua-
mento, não apenas relativo às compulsões, mas também em relação às mulheres de seu
trabalho, com quem tinha relações muito complicadas. Notemos que uma só interpre-
tação não foi suficiente. Ela reconstituiu por si mesma, por exemplo, o discurso de sua
mãe, que periodicamente a recriminava por ser mole demais. Vejam que a questão se
tornava bem clara.
Entretanto, além do que aparece ali, há um segundo esclarecimento, que me
parece igualmente necessário e que nos permitirá, sobretudo, refletir mais precisa-
mente sobre a idéia de uma atualidade da neurose obsessiva feminina.
Floria, quando se sentia compelida a se exibir, sentia ao mesmo tempo uma
culpa. Nessas circunstâncias, mas às vezes mesmo fora delas, sofria de uma idéia ob-
sessiva que considerava absurda, a de ser um homem violador. A imprensa havia rela-
tado, por esse anos, algumas histórias de violação de crianças, e ela não podia impedir-
se, dizia, de se situar do lado do criminoso.
É aí que é preciso relatar um evento de sua infância, um desses eventos que
chamamos de traumas. Este, em todo caso, tinha-se passado nas formas que Freud
indicou para o obsessivo. Sabe-se, de fato, que Freud destaca que, quando a criança se
torna obsessiva, é geralmente porque participou com prazer, e de maneira ativa, para a
sedução do adulto. Por certo, Freud irá relativizar em seguida o lugar do próprio trau-
ma no determinismo da neurose. Aqui, em todo caso, um vizinho tinha dado a ver seu
pênis a Floria, e sem dúvida tinha obtido dela algumas carícias. Mas o que ela não
pode esquecer é que voltou lá no dia seguinte. Certamente, na idade adulta, ela conde-
na as ações desse homem. Mas, como disse a vocês, toda essa história a conduz a
experimentar a idéia de que ela se encontra no campo dos violadores. Por exemplo,
quando não fala, é invadida pela idéia de que eu vou supor que ela violou crianças e
que procura dissimulá-lo.
Então, tudo isso faz com que Floria se diga anormal. E é preciso acrescentar
então que ela não está longe de entender énorme mâle3 (enorme macho). Quando ela
se torna gorda, pode experimentar que se transforma em um homem ameaçador, como
a espécie de gigante um tanto bêbado com quem ela sonhava quando criança. Ela não
está mesmo longe de sentir que, quando se fantasia, é todo o seu corpo que se torna um
3 Há um jogo de palavras entre anormal e énorme mâle, que são parônimos em francês. Nota do
tradutor.
23
enorme falo. “Ela está gorda” (em francês, o órgão sexual masculino é muitas vezes
designado por um termo no feminino, eventualmente até mesmo apenas pelo pronome
ela).
Teríamos voltado então à idéia de uma identificação masculina e até mesmo ao
desejo de ter um pênis? De fato, as coisas são mais complicadas do que isso.
Inicialmente, no nível dos fantasmas, Floria desenvolve igualmente o de ser
violada. É apenas quando consegue desenvolver bastante esse fantasma – ligado a
outros fantasmas de prostituição, de envilecimento – que pode experimentar o prazer
no ato sexual com seu marido. De outro modo, é preciso dizê-lo, o desejo circula
muito mal entre eles.
E depois, por certo, se tomarmos o ventre grande como símbolo fálico, é claro
que as zombarias que se trata de desencadear não têm apenas o sentido de dissimular
um desejo de ter um pênis. Elas têm um valor próprio. Ridicularizam o falo. Ora, esse
ridículo vem afetar, por diversas vezes, os homens que a rodeiam, desde o pai, que
aparentemente interessava pouco para a mãe, até o analista.
Charles Melman chegou a falar recentemente, a propósito da neurose obsessi-
va, não apenas de anulação do falo, mas de forclusão do falo. É uma concepçãointe-
ressante, que não é sempre fácil de compreender, tanto mais que o próprio Melman diz
que aquilo que o obsessivo tenta forcluir não deixa de voltar. É como se, diz ele, um
canal de evacuação de águas servidas estivesse entupido e a coisa não cessasse de
refluir. Vejam, então, que isso viria muito bem aqui. No essencial, a prescrição fálica
– digo uma prescrição fálica porque é ela que comanda nossa sexualidade – é anulada,
como se vê, aliás, nas relações distantes que Floria mantém com seu marido. Ela só
pode voltar – essa prescrição – sob uma forma derrisória, em que o objeto fálico tende,
por outro lado, a se confundir com o objeto anal.
Mas é também a partir disso que gostaria, mesmo assim, de dizer algo sobre a
atualidade da neurose obsessiva.
 Há um tema que, creio, voltará muitas vezes: é o de uma forclusão contempo-
rânea do falo, de uma forclusão do falo no discurso social.
Não sei o que isso evocará quanto ao que vocês conhecem no Brasil. Mas vocês
pensarão, por exemplo, no que se desenvolveu, inicialmente nos Estados Unidos, em
matéria de luta contra o assédio sexual. Sabe-se que, pouco a pouco, foram condena-
das muitas condutas como sendo de assédio, até o ponto em que, em certos setores da
sociedade, os homens não sabem mais que comportamento adotar. Em outros lugares,
por exemplo na França, sob o pretexto de lutar contra a pedofilia, institui-se um con-
trole minucioso que faz com que muitos educadores fiquem inquietos por saber se um
gesto bastante banal não será interpretado e denunciado como perverso. Mais funda-
mentalmente, a partir do momento em que um homem pronuncia uma fala em que
manifesta um desejo um tanto afirmado ou ainda uma tentativa de afirmar uma autori-
dade, ele é facilmente desvalorizado como machista. Sabe-se, aliás, que em nossas
A NEUROSE OBSESSIVA FEMININA HOJE
24
TEXTOS
civilizações contemporâneas tende-se cada vez mais a homogeneizar o papel do pai e
o da mãe e, além disso, a anular a diferença dos sexos. Em suma, o falo não pode mais
ser um significante que orienta o desejo sexual. Ele se torna, em vez disso, um objeto
perigoso – pensemos, por exemplo, no tema da contaminação –, ou ainda um objeto
degradado. Pois bem, eu diria que a neurose obsessiva feminina deve muito bem ser
situada, hoje, em relação a essas coordenadas. O que me surpreende, não apenas nesse
tratamento, mas em alguns outros, é até que ponto o tema do falo insiste de uma ma-
neira paradoxal. São mulheres que freqüentemente estão muito longe de uma realiza-
ção sexual satisfatória. E, ao mesmo tempo, os fantasmas sexuais invadem seu pensa-
mento ou seus sonhos, sobretudo sob uma forma sádica. É como se essas mulheres
retomassem por sua própria conta uma significação fálica que o homem não pode mais
assumir, mas dando a ela uma dimensão de ridicularização.
Insistamos um pouco sobre tudo isso. Podem-se apresentar as coisas de um
modo um pouco diferente.
O significante fálico desempenha no discurso, ordinariamente, um papel de
corte. Permite evitar que tudo seja equivalente, permite distinguir o mesmo e o outro.
Vocês sabem que, nesse sentido, há tanto valor para uma mulher quanto para um
homem. Isso pode, aliás, exprimir-se de maneira sintomática, como se vê na histeria, à
qual há pouco fiz alusão. O que se passa, quando o significante declina, de algum
modo, no discurso social? Ele não desempenhará mais seu papel de corte. Para uma
mulher, sobretudo, pode-se conceber que isso possa engajá-la de uma maneira muito
diferente. Digamos que isso marcará seu próprio estilo. O discurso tenderá a se reduzir
a cadeias de razões, em que nada vem constituir um ponto de parada. Ora, esta é a
própria definição do estilo obsessivo. Concebe-se que haverá, senão forçosamente
uma multiplicação das neuroses obsessivas femininas, mas, pelo menos, uma espécie
de obsessionalização do discurso feminino.
Pode-se, então, ir um pouco mais longe. Em um obsessivo, quer seja homem ou
mulher, esse discurso sem corte vem de algum modo excluir o próprio sujeito, como se
toda afirmação subjetiva tivesse alguma coisa de indecente. Mas sabe-se que, a partir
disso, no pensamento e até mesmo na fala do obsessivo, as piores indecências, as
piores obscenidades, irão fazer irrupção. Ora, encontrei isso em numerosos tratamen-
tos femininos. É por isso que me parece que, se há em Floria uma espécie de degrada-
ção da instância fálica, ela é bastante representativa de algo que se encontra hoje cada
vez mais.
Bem, é certo que falei a vocês de um caso, um caso singular. Há certamente
formas bem diferentes dessa neurose, formas que não evocarei para não misturar tudo.
Se eu tivesse, entretanto, de acrescentar uma observação no plano clínico, seria esta:
falei a vocês de uma dimensão sobretudo bastante destruidora em relação ao falo.
Parece-me que, se formos um pouco mais longe a partir disso, poderemos situar o
25
parentesco entre essa estrutura e o que se desenvolve hoje do lado das patologias da
oralidade. Com efeito, quando uma mulher centra toda a sua questão sobre a comida
que ela absorve e que rejeita, isso já pressupõe – é uma evidência, mas é preciso
lembrá-lo – que a questão de seu desejo não esteja tomada na relação com o desejo
masculino. Neste sentido, essas patologias que hoje se desenvolvem parecem-me estar
bem mais no fio da neurose obsessiva que no da histeria.
Enfim, gostaria de terminar por uma observação metodológica. Vocês viram
que o que é central na paciente de que lhes falei, esse fantasma ou essa compulsão,
revela-se sobredeterminado. A própria Floria, aliás, podia falar de tudo isso com uma
grande inteligência, mas – como dizer? – com, igualmente, uma maneira muito obses-
siva de racionalizar tudo o que podia descobrir. O sintoma, assim como aliás a própria
palavra, pode certamente ser entendido sempre de modo polissêmico. Mas, enquanto,
na histérica, a dimensão de surpresa é freqüentemente preservada, na neurose obsessi-
va, ela se arrisca sempre a ser reabsorvida. O sujeito reconhece que um mesmo sinto-
ma pode ter sentidos muito diferentes, mas isso é sobretudo para tornar toda idéia
semelhante a uma outra, para manter-se bastante cético em relação a tudo o que pode-
ria ser dito. Em suma, as idéias podem acrescentar-se umas às outras, podem-se mes-
mo fazer sínteses bastante hábeis delas, mas isso bem prova que elas não valem grande
coisa. Devemos pensar nisso na condução do tratamento. Em vez de validar demasia-
do depressa as idéias que surgem, temos, aí mais do que em outros casos, de jogar com
o corte, de parar as sessões sobre alguma coisa que se integra mal ao que o analisante
tenta dizer. É, em todo caso, o que tentei fazer no tratamento de Floria. Evidentemen-
te, é bem difícil dar conta disso, mas me parece que foi isso que permitiu não se fechar
em certas significações, que teriam sido muito redutoras. Espero que vocês tenham
entendido que, além daquilo de que posso dar conta, não está em questão explicar
tudo. É preciso sempre sustentar que o real dos tratamentos de que falamos não é
inteiramente simbolizável. É preciso que reconheçamos bem que nossa teoria não sim-
boliza completamente o real, ao passo que, no fundo, o perigo de todas as nossas
elaborações seria o de nos fazer esquecer disso.
Eis, pois, o que eu queria dizer a vocês esta noite, a partir de um caso que me
ensinou muito, porque, de saída, provocou muitas questões.
A NEUROSE OBSESSIVA FEMININA HOJE
26
TEXTOS
CAMILLE CLAUDEL
Uma neurose obsessiva feminina*
Alfredo Jerusalinsky* *
RESUMO
Discute-se o tradicional diagnóstico de psicose atribuído à Camille Claudel,
propondo uma leitura de seu caso como uma neurose obsessiva, o que, na
mulher, acarreta um plus de sofrimento pela discordância entre a estrutura
psíquica e a estrutura da sexuação. O lugar do pai como produtor de um reco-
nhecimento prévio ao cumprimento de qualquer condição por parte da filha
gera nela umaposição de devedora de uma dívida impagável, a qual o pai, de
modo imperativo e cruel, insiste em lhe cobrar. Esta dívida passa, assim, de
simbólica à real. Esse nó central da neurose obsessiva articula-se a uma ne-
gativa – própria dessa época – a aceitar que uma mulher se represente no
discurso social por meio de sua obra.
PALAVRAS-CHAVE: neurose obsessiva; função paterna; discurso social; fe-
minilidade
ABASTRACT
In this article the traditional Camille Claudel’s diagnosis of psychosis is discussed,
proposing a lecture of this case as an obsessional neurosis wich, in women,
results in a suffering plus because of its disagreement between psychic structure
and sexuation structure. The father’s place, as a generator of previous
recognition to the fullfilment of any condition from the daugther, puts her in an
owing position of a debt that is impossible to pay and wich the father, in an
imperative and cruel way, insists to charge. This debt turns from symbolic to
real. This central knot of obsessional neurosis articulates itself to a denial -
peculiar in this time- to accept that a woman represents herself in the social
discourse through her work.
KEYWORDS: Obsessional neurosis; paternal function; social discourse;
feminility
* Este texto é uma versão, revisada e modificada pelo autor, da transcrição de um vídeo-debate
sobre o filme Camille Claudel, promovido pelo COESP/UFRGS em 21/10/93.
** Psicanalista, presidente da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, membro da Association
Freudiene Internacionale, Mestre em Psicologia Clínica pela PUC/RS e autor de Psicanálise e
desenvolvimento infantil, 2. ed., Porto Alegre, Artes e Ofícios, 1999.
27
Se eu tivesse que tecer qualquer consideração acerca do filme Camille Claudel, oúnico que poderia fazer seria tentar lutar um pouco contra o fascínio que provoca
Isabelle Adjani, o que não seria trabalho fácil, porque na verdade eu gostaria de me
deixar fascinar tranqüilamente.
 Não irei falar sobre o filme como tal nem sobre Camille Claudel. Depois de ver
esse filme, certamente para os que conheceram a biografia de Camille Claudel, ter a
pretensão de falar dela seria quase um sacrilégio. Imediatamente me assalta um certo
sentimento de sacrilégio quando nos arrogamos o papel de analisar a vida e a persona-
lidade de um artista. Evidentemente há elementos contraditórios nas versões que sobre
ela se produziram, e me parece quase um desrespeito pretender sintetizar de um modo
esquemático o que se refere à sua vida e produção.
Neste sentido, penso que Freud tinha razão quando se perguntava a respeito da
analisabilidade de um artista. Quando esta questão em algum momento lhe foi coloca-
da, diria que a deixou suspensa, apesar de ter, evidentemente, entrado na consideração
analítica de artistas como Leonardo da Vinci, Michelangelo Buonarotti, Goethe, Jensen,
e, notadamente, Sófocles. Porém é pertinente sublinhar que, na abordagem freudiana,
prevalece o valor mítico que, na cultura de seu tempo, ocuparam esses autores e suas
obras, como marcadores de uma torção no discurso social que, dali em diante, passou
a orientar vastas extensões da produção social e artística. Ter ensaiado considerações
psicanalíticas acerca dessas construções poéticas ou escultóricas aponta, então, muito
menos o interesse de explicar a produção da obra mesma (o que seria da ordem de uma
aplicação da psicanálise) e muito mais o de apoiar-se no seu caráter revelador de uma
verdade fundamental que, embora recalcada, organiza aspectos decisivos da vida indi-
vidual e coletiva. Mas, para Freud, não passava inadvertido, como também não para
Lacan, que, quando se trata de um artista, trata-se de alguém que está inserido numa
posição tal que, desde o ponto de vista da sua subjetividade, está engatado, articulado,
ao discurso social numa nuança, num remanso1 desse discurso onde um resto de real
se aninha. Carniça, excremento, vazio, miséria, beleza extrema que revela por contras-
te a imperfeição quotidiana, amor impossível, eternidade inatingível, gozo sem limite.
Vértice extremo do real que, pela sua virulência, potência, crueza e até crueldade,
requer uma competência, esforço e condição muito especiais deste sujeito que ali fi-
cou engatado, para poder simbolizar esse resto.
De modo que a primeira expressão, que podemos formular acerca do que de
Camille Claudel se conta neste filme, é de respeito pela capacidade desta produção
cinematográfica de traduzir pelo menos uma versão da vida de Camille Claudel e de
1 Na significação precisa da palavra portuguesa: uma volta, uma torção, um apaziguamento da
correnteza ou, também, uma turbulência.
CAMILLE CLAUDEL
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traduzir a sua produção como esta condição especial para inventar uma simbolização
ali onde o discurso social tem fracassado, sucumbido a uma repetição. Esse remanso
se produz porque o discurso social, na sua fluência, encontra um obstáculo contra o
qual não consegue avançar. E de repente2 surge alguém que tem uma capacidade de
escuta, produção e articulação que lhe permite introduzir um significante, como por
exemplo Camille Claudel o faz na escultura, produzir um significante numa posição
tal que permite simbolizar aquilo que fazia ali obstáculo decisivo.
É por isso que a produção artística, quando ocupa esta posição–em que parece
merecer verdadeiramente o nome de arte –, convoca, evidencia-se para todo o mundo
e fica inscrita de modo indelével na história da produção humana. Muita gente se
pergunta: Mas como é possível, por exemplo, colocar uma patente, um mictório, como
o faz Michel Duchamp no início deste século, assinado por ele, no meio do museu de
arte moderna? O que faz com que essa insolência se transforme numa obra fundamen-
tal, numa obra de arte? Isso é possível porque Michel Duchamp não o fez em qualquer
lugar nem em qualquer momento, senão que colocou esta patente precisamente no
remanso do discurso onde o objeto pronto e serviçal (o ready made) ficava atravessa-
do entre o sujeito e o discurso social, impedindo a sua representação a não ser como
mera necessidade. Esta barreira se erguia, assim, como um real incontornável, um real
indiscernível e não simbolizado. E este ato de arrojo e de coragem de se confrontar
com este real cara a cara, que nunca é gratuito para um artista, pois nunca é sem custo
para sua subjetividade, é o que fez com que esse vulgar mictório se constituísse numa
famosa obra de arte.
Daí o horror de Rodin quando ele se encontra com essa produção última de
Camille Claudel. Ele diz: “Não é possível lhe recriminar, ela está produzindo morte”.3
Com efeito, ela estava produzindo em carne viva a desesperança, introduzindo o
2 De repente não é o modo mais culto de referir, em português, a emergência de uma surpresa,
mas – falando em arte – decidimos deixá-lo assim mesmo, como ele apareceu na nossa fala,
porque nela essa forma é sustentada pelo respeito à invenção constante da língua brasileira que,
no Nordeste, praticam esses poetas silvestres que se chamam, precisamente, repentistas.
3 A morte, antecipada na série significante, constitui o ordenador simbólico do gozo da vida. É
dessa posição futura da morte que advém a significação do tempo e o ordenamento dos atos.
(Talvez aqui caiba inventar um novo termo para denominar essa posição da morte enquanto
significante antecipatório de um limite que impõe uma significação e um corte ao gozar. Não
estaríamos ali falando do amorte ?) Jacques Lacan destaca essa função da morte no seu texto “A
Terceira” (Roma, 1974), onde faz notar que há uma superposição entre seu registro e o do
simbólico, já que do que se goza é da vida. Eis ali que podemos encontrar a razão da recorrência
incessante do neurótico obssessivo à fantasmática da morte, tentando encontrar nela algum
modo de re-fazer o pai, sob a face e uma ordem extrema e inapelável. (Veja-se no “Correio da
APPOA”, nº 73, um condensado da conferência: “Neurosse Obssessivahoje: re-fazer o pai a
cada instante”, pronunciada pelo autor em 28/08/99, na UNISINOS, São Leopoldo, RS)
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significante da desesperança no campo da es-cultura 4 , rompendo a magnificência
racionalista da es-cultura de Rodin, atacando furiosamente a ilusão do triunfo do
racionalismo burocratizado, a ilusão do triunfo da magnificência do Estado como pro-
dutor de cultura, arte, etc., sob uma ordem eminentemente administrativa.Em outros
termos, rompendo a magnificência dos grandes monumentos. Ela atacava essa
magnificência com uma escultura do íntimo, com a expressividade banal, como a cena
das Bisbilhoteiras ou a cena da desesperança dos pais diante de um filho ingenuamen-
te sentado. É evidente que, na introdução deste significante da desesperança e da mor-
te (e não sei por qual via), Camille Claudel estava prevendo a guerra; talvez estivesse
prevendo o fracasso da instituição racionalista e fazia disso uma encenação pessoal.
Para poder suportar o que sua percepção e sua escuta do mundo lhe diziam, não podia
senão encarná-lo e transformá-lo numa cruzada, sob a forma que ela podia empreendê-
la, que era sob a forma da produção de sua arte.
Antes de entrar nas questões mais singulares a respeito da psicopatologia e da
história de Camille Claudel – não vou falar muito da história, vou falar mais de
psicopatologia –, eu queria fazer estes comentários prévios, que me parecem prelimi-
nares e imprescindíveis a qualquer abordagem psicopatológica da personagem do fil-
me. Porque, quando terminou o filme, resultava-me chocante pensar que eu iria falar,
desde o ponto de vista psicopatológico, acerca de Camille Claudel, pela impressão que
sua vida nos deixa. Parecia-me quase como uma afronta, sobretudo pelo caráter ofen-
sivo que, mesmo no filme, tiveram para a sua vida as considerações psicopatológicas
a seu respeito. E também, porque estas, apesar do trabalho da psicanálise, ainda têm
socialmente um caráter pejorativo. Desembaraçando a psicopatologia, progressiva-
mente, de sua carga discriminativa social, de seu significado de exceção, como se o
portador de sofrimento mental fosse uma exceção, a psicanálise tem realizado uma
crítica radical. Freud descobre que todos somos sofredores, todos somos, sem exce-
ção, portadores de uma certa psicopatologia, que não há sujeito sem uma psicopatologia
determinada, ou seja, sem uma patologia psíquica determinada, portanto, a
psicopatologia não é exceção. Mas ainda há, socialmente, uma carga muito intensa em
qualquer consideração psicopatológica, como se esta representasse o sujeito pela via
de uma exceção, de alguém que se deve colocar fora da norma, da normalidade.
Portanto, é particularmente delicado abordar esta personagem desse ponto de
vista, precisamente porque Camille Claudel foi vítima dessa concepção da patologia
psíquica como exceção, isto é, como exceção à norma. A meu modo de ver, Camille
Claudel não padecia de outra coisa senão da normalidade neurótica que caracteriza
4 Permitam-me esta pequena escansão para denotar que essa marca no entalhe é um significante
que encontra sua verdadeira extensão na cultura toda.
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todos nós. Em circunstâncias muito particulares, muito singulares, porque ela padecia
da normalidade neurótica que caracteriza todos nós sob uma forma particularmente
delicada quando se trata de uma mulher: a neurose obsessiva.
A neurose obsessiva numa mulher é bastante mais devastadora do que num
homem. Não há simetria possível com o quadro de histeria num homem. Digo, por-
que, rapidamente fazendo equação das proporções, poder-se-ia pensar que a histeria
enquadra melhor a feminilidade, e a neurose obsessiva enquadra melhor a masculini-
dade. Pelo menos há textos que vão nesta direção...5 Não é por acaso que, em termos
de desenvolvimento, a neurose obsessiva tem sido analisada mais do lado dos ho-
mens, e a histeria, mais do lado das mulheres e que, quando se fala da histeria, fala-se
no feminino e, quando se fala da neurose obsessiva, fala-se no masculino. Poder-se-ia
pensar rapidamente que, se eu digo que a neurose obsessiva, quando se trata de uma
mulher, é mais devastadora, haveria uma certa simetria: como a histeria não enquadra
também os homens, não encaixa também os homens, também seria devastadora para
os homens. E não é assim. Nesta questão das proporções, a psicopatologia é comple-
tamente injusta com as mulheres.
Por que afirmo que Camille Claudel padeceu de uma neurose obsessiva? Por-
que a questão fundamental que se agita na vida de Camille Claudel é a questão do
reconhecimento, e, através dele, re-fazer um pai para ela. Reconhecimento é a palavra
que, por outro lado, repete-se incessantemente ao longo de todo o filme, palavra repe-
tida por ela mesma. Poderíamos dizer que ela insiste que não se trata do amor nem do
sucesso nem do brilho. Trata-se do reconhecimento. Um reconhecimento que ela de-
manda sem concessões: qualquer coisa que a leve a suspeitar de uma oferta qualquer
de brilho ou de sucesso que não implique claramente um reconhecimento é rejeitada
por ela. Ela resiste ferozmente a qualquer expressão que indique um mínimo de dúvi-
da, uma dúvida ainda que mínima acerca de que o reconhecimento não esteja ali em
jogo de um modo fundamental.
Sua demanda gira fundamentalmente ao redor dessa questão. O que é curioso,
porque, tomando a sua história desde o ponto de vista de seu pai, poder-se-ia dizer que
reconhecimento não lhe falta. Tanto que ela parece ser a filha na qual seu pai faz as
maiores apostas. Tanto que seu pai lhe expressa seu reconhecimento desmerecendo o
reconhecimento em direção a Paul, seu irmão. Disso é que se queixa Paul: que ela, a
Camille, é que tem todo o reconhecimento do pai e que ele não recebe mais do que
desprezo.
Mas está aqui colocada a questão fundamental da neurose obsessiva. A neuro-
se obsessiva não consiste na ausência ou na carência do reconhecimento. Na neurose
obsessiva o sujeito tem um reconhecimento, mas, para sustentá-lo, ele tem que pagar
5 Charles Melman e Jean Jacques Rassial são autores que partilham dessa concepção.
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um preço extraordinariamente alto e nunca está seguro de poder sustentar esse reco-
nhecimento passo a passo na sua vida. O drama do sujeito consiste precisamente em
que ele tem o reconhecimento, mas se encontra em risco permanente de perdê-lo. Esse
reconhecimento foi dado antecipadamente, como uma espécie de adiantamento em
dinheiro, e é por isso que ela o recebe tão dubiamente, tão resistentemente, com tanta
dificuldade, porque ele lhe foi dado como por conta de futuro rendimento. Quer dizer,
um grande aparente amor, um grande reconhecimento do pai, que não é precisamente
do signo do amor. Poder-se-ia dizer que não é um amor desinteressado do pai, é um
amor que tem um preço, o preço que ela terá que pagar com seu sucesso. Para merecer
e continuar a merecer o reconhecimento paterno – o único que ela tem, já que sua a
mãe a odeia precisamente por ser a candidata do pai –, ela terá que ter sucesso. Levar
o nome do pai a um lugar de exceção, a um lugar de brilho social, que é o que o pai
almeja. O pai a reconhece para fazê-la a representante de seu desejo. Para Camille
Claudel, a questão do reconhecimento a obter é o que coloca em jogo o fantasma
fundamental de sua subjetivação (obviamente, a posição do Nome-do-Pai). Se ela não
obtiver o reconhecimento posterior, o que é fundante da sua subjetividade – o reco-
nhecimento anterior, primordial – ficará em questão. Isto é o que define uma neurose
obsessiva, e introduz um ponto de forclusão – a posteriori – na série de representações
do sujeito em questão. Por quê? Qual é o valor simbólico desta questão do reconheci-
mento?
Evidentemente sabe-se que a questão do reconhecimento é uma questão de
imagem, de espelho; é uma questão imaginária, não é simbólica em si. Ela pode adqui-
rir um valor simbólico. O reconhecimento, por exemplo, para um histériconão tem a
mesma importância simbólica que tem para um neurótico obsessivo, de modo ne-
nhum, não tem o mesmo peso simbólico. Por que, então, o reconhecimento se torna
um pivô na articulação da neurose obsessiva?
No filme, Camille Claudel fala de estranhamento, de sentir-se estranha em di-
ferentes momentos e no momento crucial em que ela se reencontra com Rodin já de-
pois da separação. Nesse encontro tão trágico em que se produz a separação definitiva,
ela diz que se sente estranha. O mesmo acontece na cena final em que ela vai buscar
um resto de reconhecimento no pai, e na qual ele lhe afirma que, como ela fracassou,
não merece o reconhecimento que ele lhe dava, que ele se equivocou, que era Paul que
o merecia e não ela. Assim como no momento em que ela vai embora e pede ao último
espelho com o qual ela conta na vida para lhe devolver alguma imagem em que possa
reconhecer-se, e a mãe gira e lhe devolve um olhar de transparência, ou seja, um não-
registro de sua presença.
Aqui se começa a ver, parece-me, por que a questão do reconhecimento na
neurose obsessiva adquire este peso. Precisamente porque o traço unário – que é
fundante do sujeito, traço que marca a possibilidade de que o sujeito recolha alguma
imagem de si que venha a se repetir ao longo de sua história, na qual ele possa reco-
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nhecer-se e que fará, desde o ponto de vista significante, o estilo de sua produção e de
seu engate no discurso social – está dado em hipoteca na neurose obsessiva. Isso quer
dizer que ele está outorgado, este significante filiatório, que é o traço unário, que
depois se transforma em significante de reconhecimento, mas que primordialmente é
um traço filiatório – entra na estirpe desse sujeito, à qual ele é filiado de um modo
condicional. Quer dizer, ele terá que pagar a dívida que está contraindo no momento
em que lhe é doado este significante. Secundariamente, o reconhecimento, que se
deriva deste traço unário, aparece como reconhecimento inicial que, diferido, terá que
ser reencontrado em cada momento da vida. É por isso que o fatigante e prolixo traba-
lho do obssessivo – tanto nos seus devaneios como nos seus rituais – sempre aparece
como uma tentativa de recuperar a ordem de alguma coisa que se desorganizou. Dito
de outro modo, refazer essa posição do inconsciente onde a função do pai continue
viável.
É a repetição desse traço unário, ou seja, a repetição desse significante, que é
fundante na vida de Camille Claudel, não é o reconhecimento. O significante fundante
na vida de Camille Claudel é a produção de uma obra de exceção, é o Nome-do-Pai. O
Nome-do-Pai marca o significante que a obriga a produzir uma obra de exceção. Isto
é o que a subjetiva, em definitivo, é o que subjetiva todo neurótico obsessivo. Todo
neurótico obsessivo está condenado a ser um gênio, por sinal, fracassado. Não há
nenhuma possibilidade de vir a satisfazer o ideal parental. É por isso que, para uma
mulher, a neurose obsessiva se transforma em algo extremamente devastador. Diga-
mos que são poucas as análises de mulheres neuróticas obsessivas que têm bom futu-
ro, que chegam a recompor a posição desta mulher numa certa condição produtiva.
Geralmente as mulheres neuróticas obsessivas constituem um personagem triste na
família: personagem da louca da família, o personagem que é abandonado, fracassado,
porque não tem em quem nem em que se reconhecer, refugia-se num ritual, numa
repetição ou no auto-abandono. Entende-se bem por que a neurose obsessiva é devas-
tadora numa mulher, quando se pensa que a filiação, ou seja, a instalação de um
significante que subjetiva, é da ordem da significação fálica. É da ordem deste sujeito
ter alguma versão do que o dotaria para o gozo na vida. Quer dizer que, para uma
mulher, a restituição de sua condição fálica atravessaria, na neurose obsessiva, pela
via da realização do ideal parental de uma obra de exceção; ela mesma se constituir na
exceção fálica. E como a obra de exceção está fadada ao fracasso, somente poucas
mulheres são capazes de se sustentar, desde a neurose obsessiva, frente a esta catástro-
fe fálica, já que não bastaria para essa mulher obter o falo no outro, como bem diz o pai
a Camille Claudel: “és tu quem tem que ter nome e trabalhar para ti e não trabalhar
para ele”. No momento em que Camille Claudel ensaia uma solução histérica, que
seria a possibilidade de gozar da realização fálica de Rodin, o pai lhe lembra: “tu não
és histérica, tu és neurótica obsessiva”.
Uma pergunta talvez interessante de considerar é o que finalmente leva Camille
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Claudel à internação? Eu diria que ela não se resigna a ser a louca da família. É isto
que a leva à internação. Não se resigna a não realizar o destino para o qual o pai a
marcou. E ela por isto diz: “não preciso de ninguém, não quero ninguém, a realização
tem que ser minha”. Sabemos que a solução histérica não é esta, ao contrário, é fazer
com todo mundo: “vamos, grande festa!”. A solução histérica é estar muito acompa-
nhada, não é a da solidão. Por isso, o sonho dela, último, nas suas cartas, é trancar a
porta da sua casa – não oferecendo suas esculturas a ninguém, senão ao grande Outro,
ali completamente abstrato. Bem, este é o preço que paga um neurótico obsessivo. E
eu me indagaria com bastante cuidado quantas mulheres internadas como psicóticas
em alguns hospitais psiquiátricos, são, em verdade, neuróticas obsessivas internadas
como loucas.
Gostaria de fazer ainda alguns comentários sobre a fronteira entre a neurose
obsessiva na mulher e a psicose.
Em primeiro lugar, a diferença é que o Nome-do-Pai faz função. E que função!
O pai faz função simbólica em Camille. Toda a produção dela é extremamente simbó-
lica. Ela tem uma interpretação significante para toda a sua produção. Seu estilo está
regido pelo simbólico. Ela sabe discursivamente dar conta de sua produção. Não há
nenhum delírio na sua produção. Todo seu delírio é no desafio àqueles que não a
reconhecem. Ou seja, seu desafio é pela quebra do imaginário. Mas é um delírio acer-
ca do qual cabe perguntar-se em que momento ele é um delírio de ficção e em que
momento é um verdadeiro delírio. Esta impressão nos fica incessantemente. Em que
momento ela produz um delírio ficcional que está a serviço de sustentar a sua luta pela
condição de exceção na sua obra? Quando ela aparece pintada como uma punk
extemporânea na última exposição que lhe ofereceu a chance de se reerguer. Chance
de todo modo negada pela crítica que se ergueu, mais uma vez, como conservadora
dos padrões estéticos tradicionais.6
 Sabemos que o delírio é completamente compatível com as neuroses7 . E se
apresenta justamente no momento em que o sujeito se vê acuado a ter que sustentar
6 É interessante esse deslocamento da função de reconhecimento do pai para a estética. Um pai
para o qual a questão moral da relação sexual ficava relativizada à realização da exceção fálica,
o terreno da estética – mais neutro para a questão moral – oferecia a Camille a chance de uma
recuperação ética pela via de encontrar um traço estético que fosse capaz de representar o nome
do pai como exceção no discurso social. Dito de outro modo, aqui se desdobra mais uma vez o
drama – já vivido por Hamlet – de um fantasma do pai que não reconhece nem aceita sua
castração. Se Hamlet é lançado a um confornto incessante com a morte –To be or not to be –,
Camille Claudel é lançada à obssessão de fabricar esse traço estético que a salve da morte
subjetiva, ou seja, a loucura. Nenhum dos dois conseguiu escapar.
7 Lembremos a posição da Sigmund Freud a este respeito em “O sonho e o delírio na Gradiva de
W. Jensen” (in Obras Completas, 1912).
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uma autonomia radical. Esse é o momento em que na neurose aparece o delírio, em
que para sustentar a sua subjetividade ele tem que, de um modo completamente radi-
cal, produzir algo que o mantenha numa posição de autonomia;

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