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ISSN 0034-9275
REVISTA
DOS TRIBUNAIS
ano 95 • volume 854 • dezembro de 2006 • p. 1-800
Repositório de Jurisprudência autorizado pelo Supremo Tribunal Federal,
Proc. 33/85 — DDID (DJU 23.10.1985, p. 18.861), registrado
sob n. 006/85 e pelo Superior Tribunal de Justiça,
Port. n. 8, de 31.05.1990 (DJUO6.06.1990, p. 5.171).
Publicação Oficial
Tribunais de Justiça dos Estados
Acre Maranhão Rio de Janeiro
Alagoas Mato Grosso Rio Grande do Norte
Amapá Mato Grosso do Sul Rio Grande do Sul
Amazonas Minas Gerais Rondônia
Bahia Pará Roraima
Ceará Paraíba Santa Catarina
Distrito Federal Paraná São Paulo
Espírito Santo Pernambuco Sergipe
Goiás Piauí Tocantins
Tribunais Regionais Federais
la, 2.a, 4.~e 5•a Regiões
Tribunais de Justiça Militar
São Paulo
EDITORA
REVISTA DOS TRIBUNAIS
ATENDIMENTO AO CONSUMIDOR
Tel.: 0800-702-2433
(ligação gratuita, de segunda a sexta-feira, das 8 às 17 horas)
http://www.rt.com.br
Primeira Seção
RISCO, SOLIDARIEDADE E RESPONSABILIDADE OBJETIVA
MARIA CELINA BODIN DE MORAES
Segunda Seção
RESPONSABILIZAÇÃO NO DIREITO SOCIETÁRIO DE TERCEIRO
POR OBRIGAÇÃO DA SOCIEDADE
ViNíclus JOSE MARQUES G0NTIJ0
Pnmeira Seçao
Terceira Seção
JULGAMENTO PRIMA FAC/E (IMEDIATO) PELA TÉCNK2A DO ART. 285-A DO CPC
EDUARDO CAMBI
RISCO, SOLIDARIEDADE
E RESPONSABILIDADE OBJETIVA’
MARIA CELINA BODIN DE MORAES
Professora Titular de Direito Civil da Faculdade de Direito da UERJ
e Professora Associada do Departamento de Direito da PUC-Rio.
SUMÁRIO: 1. A invenção da responsabilidade sem culpa —2. Primeiras inter-
pretações doutrinárias acerca da cláusula geral — 3. As causas justificativas
da responsabilidade objetiva — 4. O sistema dualista da responsabilidade ci-
vil —5. Os múltiplos fundamentos da responsabilidade objetiva e seu funda-
mento constitucional — 6. A imputação objetiva de responsabilidade e seus
problemas — 7. Aplicação da cláusula geral aos danos causados por automó-
veis? — 8. Conclusão.
Resumo: O artigo analisa o sistema da responsabilidade objetiva, tendo em vista especialmente a
cláusula geral instituída pelo parágrafo único do art. 927 do CC/2002. Para tanto examina suaevolu-
ção histórica, as justificativas sociais de sua implementação, seus fundamentos ético-jurídicos eprin-
cipalmente seu fundamento constitucional, que é o princípio da solidariedade social. A partir dos
resultados alcançados, sugere critérios para a interpretação do que seja atividade normalmente de-
senvolvida que, por sua natureza, implique risco para os direitos de outrem e considera suaaplicação
aos danos causados por automóveis.
Palavras-chave: Responsabilidade civil—Responsabilidade objetiva — Critérios de imputação Ris-
co — Princípio da solidariedade.
AgradeçoaCarlos Nelsoo Konder, MarcusDantas, Wesley Louzada, Gustavo Kloh, Roberta
Mauro, Pablo Rentería eMaurício Menezes, alunos de doutorado em direito civil da UERJ,
com quem compartilhei as diversas etapas desta elaboração.
RT/Fasc. Civ. Ano 95 v. 854 dez. 2006 p. 11-37
12 RT-854 - DEZEMBRO DE 2006 - 9i°ANO DOUTRINA CIVIL - PRIMEIRA SEÇÃO 13
1. A INVENÇÃO DA RESPONSABILIDADE SEM CULPA Raymond Saleilles, em famoso comentário àdecisão Teifaine, fazia notar então queem
determinados casos, como nos acidentes de trabalho, exigir da vítima a prova da culpa equi-
Sob a inspiração genérica de princípio elaborado no direito romano, consolidado pelo valia a não ressarcir o dano, pela própria impossibilidade de se demonstrar uma qualquer
direito canônico e com base na influência direta do Código Napoleão,2 o Código Civil brasilei- individualização de culpa.7 Louis Josserand, a partir da mesma decisão, consignava a criação
ro de 1916 fundou o seu sistema de responsabilidade civil na prática de um ato ilícito, isto é, de um princípio geral de responsabilidade pelo fato da coisa, uma responsabilização quase
numacláusula geral cujo elemento nuclear se configurava na noção de culpa lato sensu.3 Para ‘~iutomática”,postulando o surgimento da responsabilidade civil não somente em decorrên-
quesurgisseo deverde indenizar fazia-seimprescindível quehouvesseculpa porparte do agente cia de fatos culposos, “faitsfautifs”, mas fundando-aem todo e qualquer fato aque uma pes-
causador do prejuízo e que a vítima lograsse demonstrar tal comportamento. O princípio era
soa desse origem, isto é, nos “faits-tout court”.t
tido então como axiomático, isto é, moralmente universal, pois deduzido de uma razão ético-jurídica válida atemporalmente, correspondente à idéia de punição por um ilícito cometido.4 No Brasil, diante do expressivo e constante aumento da utilização dos transportes fer-
roviários, e do correspondente incremento no número de acidentes, deparou-se o legislador
No entanto, ainda na Europa do séc. XIX, o dano causado por alguns tipos de acidentes
deixou de ser aferido pela medida da culpabilidade. Em 1838, com base na responsabilidade com a necessidade de regulamentar a responsabilidade do transportador ferroviário. E o fez
sem culpa, editou-se a lei prussiana sobre acidentes ferroviários; em 1861, foi promulgadaa com base na responsabilidade objetiva, optando por retirar das costas da vítima os prejuízos
lei das minas e, posteriormente, a partir de 1884, no que seria a primeira lei específica de por ela sofridos, independentemente de culpa. Em 1912, foipromulgado o Dcc. 2.681, o qual
acidentes de trabalho, o governo de Bismarck determinou que o empreendedor passasse a abria exceção ao princípio da culpa, forjando-se inteiramente no âmbito do risco criado ao
suportar, através de um seguro social, areparação do dano causado por ocasião do trabalho, viajante, embora o legislador tenha então mantido a expressão culpa presumida.9 Em 1919
respondendo assim pelos riscos inerentes ao exercício de sua atividade, foi promulgada aprimeira lei acidentária brasileira, o Dec. Leg. 3.724, de 15.01.1919, com
base na teoria do risco profissional.’°A razão de justiça subjacente atais leis era antiga e se baseava em princípio elaborado
no jusnaturalismo casuísta romano. De fato, já Paulo expressara no Digesto (D. 50, 17, 10): A partir deste momento, ao longo do séc. XX, a legislação nacional consagrou a res-
“Secundum naturam est, commoda cuiusque rei unum sequi, quem sequentur incommoda”, ponsabilidade objetiva, além dasjá mencionadas hipóteses das estradas de feno e dos aci-
no que foi seguido, no direito canônico, por Dino, no Liber Sextus (5, 13, 55): “Qui sentit dentes de trabalho, para as atividades de mineração (Dec.-lei 227/67), acidentes de veículos
onus, sentire debet commodum, et contra”. Talprincípio vem expressar a idéia segundo a (Leis 6.194/74 e 8.441/92), atividades nucleares (Lei 6.453/77), atividades lesivas ao meio-am-
qual quem obtém as vantagens de uma determinada situação, deve assumir seus inconve- biente (Lei 6.938/81), transporteaéreo (Lei 7.565/86) erelações de consumo (CDC, arts. 12
nientes, sendo freqüentemente citado na seguinte formulação: ubi emolumentum, ibi onus. e 14). A Constituição de 1988 atribuiu responsabilidade objetiva às pessoas jurídicas de di-
Em 1896, a Corte de Cassação francesa, na chamada decisão “Teffaine”,’ ao determi- reito público e às pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviços públicos (art.
nar a reparação pelo patrão dos prejuízos causados a um empregado pela explosão de uma 37, § 6°)e àqueles que exploram energia nuclear (art. 21, XXIII, c). Por seu turno, doutrina
caldeira, introduziuanoção de risco no direito francês. Ajurisprudência criou neste acórdão ejurisprudência caminharam no sentido de admitir presunções de culpa para possibilitar a
aregra da responsabilidade civil pelo fato das coisas, fundando-a no art. 1.384, alínea 1, e na
idéia de queo proprietário deve assumiro risco pelo acidente decorrente do trabalho. O legis-
lador não ficou insensível à elaboração jurisprudencial e, em seguida, uma lei especial inter- (“ Raymond Saleilles. Les accidents dutravail et la responsabilité civile. Essai d’une théorie
veio para regular tais casos. Assim, em 1898, promulgou-se alei francesa sobre acidentes de objetive de la responsabilité délictuelle, Paris: A. Rousseau, 1897. No âmbito da doutrina
trabalho, estabelecendo-se a responsabilidade do patrão, independentemente de culpa, com européia, são considerados precursores de Saleilles, entre outros, Venezian (1884), Coviello
fundamento no risco profissional.6 (1887) e Orlando (1893) na Itália e Merkel (1885) e Mataja (1888) na Alemanha.
~ Louis Josserand. La responsabilité dufait des choses inanimées. Paris: A. Rousseau, 1897. V.
também do autor. Évolutions e actualités. Conférences de droit civil. Paris: Sirey, 1936, p. 45.
t2) Art. 1.382. “Tout fali quelconque de l’honime qui cause àautrui un dommage oblige celui A responsabilidade pelo fatoda coisa (animada ou inanimada) na França é considerada obje-
par la fauteduquel il est arrivé à le réparer”, apartir de enunciadoatribuído precursoramente tiva e se funda, desde a sentençaTeifaine, no art. 1.384 do Code Civil que estabelece: “On est
a Grotius e, posteriormente, aDomat, através de cuja obra chegou ao Code Civil. responsable non seulement du dornmage que l’on cause de son propre fait, mais encore du
t3) Art. 159. “Aquele que por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violar di- dommage qui résulte du fait des personnes ou des choses queloa a sous sa garde”.
reito ou causar prejuízo aoutrem fica obrigado a reparar o dano”. Ressalte-se, porém, que o t9) Prevê o art. 17 do aludido Decreto: “As estradas de ferro responderão pelos desastres que
CC/1916 admitira hipóteses de responsabilidade sem culpa, como, por exemplo, aresponsabi- nas suas linhas sucederem com viajantes e de que resultem a morte, ferimento ou lesão
lidade em estado de necessidade (art. 160 c/c arts. 1.519 e 1.520). A respeito, indaga Clovis corporal. A culpa será sempre presumida, só se admitindo em contrário alguma das seguin-
Bevilaqua no seu Comentários ao Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. v. 1, 7. ed. Rio de tes provas: i. caso fortuito ou força maior; ii. culpa do viajante”. Por analogia, a normativa
Janeiro: Francisco Alves, 1944, p. 454: “Qual é a idéa dominante nessa construcçãojurídica?” foi estendida, posteriormente, aos demais meios de transporte coletivos, isto é, aos bondes,
E responde: “É que todo damno deveser reparado, independentementede culpa ou dólo”. às empresas de õnibus, ao metrô, etc.
t4) o maior representante deste pensamento foiRudolf von Jhering, para quem não erao dano ~ A responsabilidade objetiva foi adotadaem todas as sucessivas leis especiais sobre aciden-
que obrigava o ressarcimento, mas aculpa, assim como não é achama da vela que queima tesdo trabalho que vigoraramno país até 1967, quando o seguro foi integrado àPrevidência
mas o oxigênio: R. von Jhering. II momentodella colpa nel diritto privato romano (1867). Social, e passaram a carecer de fundamento as coberturas com base na responsabilidade
Trad. de F. Fusili. Napoli: Jovene, 1990, p. 38. civil do patrão. De acordo com a teoria atualmente em vigor nesta área, a teoria do risco
~n Arrêt Veuve Teffaine: Cass. civ., 16 juin 1896, D. 1897, 1, 433, com nota de Saleilles. social, a responsabilidade pelos danos advindos dos acidentes do trabalho deve ser da cole-
~ No mesmo período foram promulgadas as leis acidentárias inglesa (1897) e italiana (1898). tividade, tendo em vista a função social que a empresa desempenha.
14 RT-854 - DEZEMBRO DE 2006 - 95° ANO DOUTRINA CIVIL - PRIMEIRA SEÇÃO 15
fuga às dificuldades de suaprova» Pouco a pouco, passaram aidentificar, além da previsão 2. PRIMEIRAS INTERPRETAÇÕES DOUTRINÁRIAS ACERCA DA CLÁUSULA GERAL
do antigo art. 1.529 sobre coisas lançadas ou caídas, hipóteses de responsabilidade objetiva
no próprio corpo do Código Civil de 1916, como por exemplo a responsabilidade pelo fato O Código Civil de 2002 alterou substancialmente o sistema ao adotar aregra geral de
dos animais (art. 1.527) e a responsabilidade decorrente de ruína (art. 1.528)» Foi o que responsabilidade objetiva para as atividades de risco.” Deixou, contudo, à doutrina e à
ocorreu também com a responsabilidade do patrão pelos atos culposos de seus empregados jurisprudência atarefa de esclarecero sentido e o alcanceda expressão, isto é, de que espécie
e o STF acabou por instituir, na década de 1960, aSúmula 341,13 adotando verdadeira inter- de risco se trata eainda se se refere àpessoa, incidindo emprofissionalidade ou habitualida-
pretação contra legem emrelação ao art. 1.523 do CC/1916.4 de, ou se o desenvolvimento normal diz respeito às características da própria atividade.
O sistema brasileiro era, então, dotado de uma regra geral, baseada na culpa ede casos Diversamente de outrasnormas que prevêem a responsabilidade objetiva, aredação da
especiais, que independiam de culpa, expressamente previstos em lei. A idéia dominante cláusula geral do parágrafo único do art. 927 não se mostra rigorosa, uma vez que toda e
era a dé que só poderia haver responsabilidade objetiva (exceção) quando o legislador ex- qualquer atividade pode implicar “riscos para os direitos de outrem”. A excessiva abertura da
pressamente afastava a culpa (regra geral). Em 2002, porém, o Código Civil estabeleceu, cláusula tem sido criticada pordeixar ao arbítrio do julgador a definição da natureza da res-
ao lado da cláusula geral da culpa (art. 927, capu:), outra regra geral, esta com base no ponsabilidade, permitindo a fluidez da noção de atividade de risco a instituição de regimes
chamado “risco da atividade”, prevendo o parágrafo único do art. 927: “Haverá obrigação de responsabilidade sem culpa que não estejam caracterizados na lei.’8
de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados emlei, ou quando A partir do expresso teor do parágrafo único do art. 927, a maiorparte da doutrina re-
a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco conduz a responsabilidade objetiva à noção de risco. Normalmente se sustenta a adoção da
para os direitos de outrem”. chamada “teoria do risco da atividade” aplicável também nas relações de consumo e nos
Uma cláusula geral de responsabilidade objetivaera, de há muito, aventadapela doutri- danos causados ao meio ambiente. Segundo a aludida teoria alguém incorre na obrigação de
na germânica,’3 liderando tendência, presente em alguns países desenvolvidos, de incremen- indenizar, independentemente de culpa, sempre que sejam produzidos danos no decurso
tar as hipóteses reguladas pela responsabilidade sem culpa como meio de oferecer melhor de atividades deter,ninadas, realizadas no seu interesse ou sob seu controle.
proteção e mais garantias aos direitos dos lesados. O Brasil parece ter sido o primeiro país a Não obstante, há várias concepções acerca do risco da atividade, havendo também
concretizar tal anseio.’6 numerosas teonas em debate. Segundo a teoria do risco-proveito, também chamada de risco
benefício, entende-se que deva suportar aresponsabilização pelos danos todo aquele que tire
real e efetivo proveito da atividade, isto é, que esta lhe forneça lucratividade ou benefíciosAndersonSchreiber. Novas tendências da responsabilidade civil brasileira. Revista Trimes-
tral de Direito Civil — RTDC, n. 22, 2005, pp. 49-50. econômicos. Neste sentido, invoca-se Alvino Lima, para quem “a teoria do risco não se jus-
(13) Os principais defensores da objetivação destas hipóteses foram Orlando Gomes, José de tifica desde que nãohaja proveito para o agente causador do dano, porquanto, se o proveito
Aguiar Dias e Silvio Rodrigues. é a razão de ser justificativa de arcar o agente com os riscos, na sua ausência deixa de ter
(‘3) Súmula 341: “É presumida a culpa do patrão ou comitente pelo ato culposo do empregado fundamento a teoria”.’9 Afirma-se, ainda, na defesadesta interpretação, que aexpressão “ativi-
ou preposto.” Inicialmente tal presunçãofoi tida comorelativa, mas passou, com o tempo, dade ‘normalmente’ desenvolvida” nãodeixa dúvidas quanto ao fato de o agente se beneficiar
aser consideradaabsoluta. Assim, embora teoricamente se trate de caso de responsabili-
dade subjetiva, a impossibilidade de provar a não culpa insere-a no âmbito da responsabi- (“1 Em sentido contrário, Rui Stoco. Tratado de responsabilidade civil. São Paulo: Revista dos
lidade objetiva, aliás depois consagrada pelo CC/2002 (art. 932). Tribunais, 2004, p. 133, o qual sustenta ter havido apenas “pequena alteração redacional”,
(l4) Amoldo Wald. Obrigações e contratos. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, ~. 710. permanecendo incólume a regra geral da responsabilidade por culpa.
(IS) V. referências detalhadas em Jorge Sinde Monteiro. Estudos sobre a responsabilidade civiL (‘8) Em crítica à “natureza fluídica da expressão ‘atividade de risco’ — conceito demasiadamen-
Coimbra: Almedina, 1983, p. 53, nota 148 e p. 124, nota 129. Segundo Aguiar Dias. Da res~
ponsabilidade civiL 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 52, cumpre reconhecer a impor- te aberto”, v. Pablo Stolze Gagliano. A responsabilidade extracontratual no novo Código
tante contribuição da doutrina germânica para o desenvolvimento da responsabilidade obje- Civil e o surpreendente tratamento da atividade de risco. Doutrina Adcoas. v. 7, n. 1, jan. de
tiva, especialmente através da sistematização dos princípios do interesse ativo, da prevenção, 2004, pp. 13-17. No mesmo sentido, Leonardo de Faria Beraldo. A responsabilidade civil
da eqüidade ou do interesse preponderante, da repartiçãodo dano e do caráter perigosodo ato, no parágrafo único do art. 927 do Código Civil e alguns apontamentos do direito compara-
(ló) Cabe uma referência aos Princípios de Direito Europeu de Responsabilidade Civil, divulgados do. Revista de Direito Renovar, n. 29, 2004, p. 66 e Sflvio Venosa. A responsabilidade obje-
em maio de 2005, elaborados depois de mais de uma década de debates pelo European Group tiva no novo Código Civil, disponível em http://www.societario.com.br/demarestI
on Tort Law os quais também adotaram a formulação de cláusulas gerais nesta seara. No Ca- svrespobjetiva.html, acesso em 15 dez 2005, que afirma: “É discutível a conveniência de
pítulo 5, relativo à “Responsabilidade Objectiva”, estabelece-se: “Art. 5:101. Actividades anor- uma norma genérica nesse sentido. Melhor seria que se mantivesse nasrédeas do legislador
malmente perigosas (1) Aquele que exercer uma actividade anormalmente perigosa é respon- a definição da teoria do risco”. Contra, ainda, a liberdade do julgador de definiro regime de
sável, independentemente de culpa, pelos danos resultantes do risco típico dessa actividade. responsabilização. Alvaro Villaça Azevedo. Jurisprudência não pode criar responsabilidade
(2) Uma actividade é considerada anormalmente perigosa quando: a. cria um risco previsível objetiva, só a lei. Análise das súmulas 341, 489 e 492 do Supremo Tribunal Federal, e 132
ebastante significativo de dano, mesmo com observânciadocuidado devido, e b. nãoé objecto do Superior Tribunal de Justiça. RT, n. 743, set. 1997, pp. 109-128.
de uso comum. (3) O risco de dano pode ser considerado significativo tendo em consideração ~9) Alvino Lima. Culpa e risco. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1960, p. 198. No mesmo
agravidade ou a probabilidade do dano. (...).“ Sobre a relevância do trabalho desenvolvido sentido, Pontes de Miranda. Tratado de direito privado. t. LIII. Rio de Janeiro: Borsoi,
pelo European Group on Tort ILaw, v. http://civil.udg.es/tort, acesso em 10 dez 2005. 1966, p. 197.
16 RT-854 - DEZEMBRO DE 2006 - 95.’ ANO DOUTRINA CIVIL — PRIMEIRA SEÇÃO 17
em decorrênciada atividade.20 A teoria do risco profissional sustentaigualmente este provei- vidade esporádica ou eventual,24 mas a exigência de que se trate de uma atividade econômi-
to, mas relativamente a uma atividade empresarial específica. ca, no sentido de um proveito ajustificar a responsabilidade pelo risco, é muito debatida.25
A teoria do risco criado, mais ampla emais benéfica para a vítima, considera que toda O enunciadon. 38 aprovado na 1 Jornada de Direito Civil, promovida pelo Conselho de
atividade que exponha outrem a risco toraa aquele que a realiza responsável, mesmo nos Justiça Federal em 2002, ofereceu uma interpretação ainda mais restritiva à cláusula geral,
casos em que não haja atividadeempresarial ou atividade lucrativa (proveitosa) propriamen- especificando que a “atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano” deve gerar,
te dita.2’ Neste sentido, favorável àadoção da teoria do risco criado encontra-se, entre outros, 1tara ensejar a reparação independentemente de culpa, “um ônus maior apessoa determinadaCaio Mário da Silva Pereira, segundo o qual: “se alguém põe em funcionamento uma quai- que aos demais membros da coletividade”.26
quer atividade, responde pelos eventos danosos que esta atividade gera para os indivíduos”.22 A doutrina diverge, enfim, acerca da freqüência e utilidade da cláusula geral. De um
A teoria do risco excepcional trata do risco advindo de atividades que, em si, apresen- lado, afirma-se que afalta de adequada delimitaçãolegislativa sobre o significado da expres-
tem risco exacerbado, como ocorre, na normativa brasileira, com a exploração de energia são utilizada pelo legislador acarretará uma “ampliação dos casos de dano indenizável”,27
nuclear (Lei 6.453/77). Asexcludentes são específicas, limitando-se às situaçõesde conflito embora haja quem entenda que o parágrafo único do art. 927 “não será usado com muita
armado, guerra civil, hostilidades, insurreição ou fato excepcional da natureza (art. 8.’). Já a largueza, pois a maioria das atividades de risco em nosso ordenamento já é regulada pela
teoria do risco integral, ao não admitir excludentes de quaiquer espécie, é a mais extremada, responsabilidade objetiva” 28
sendo adotada em nosso país, através do mecanismo do seguroobrigatório, apenas nos casos
de atropelamento por veículos automotores.22 3. AS CAUSAS JUSTIFICATIVAS DA RESPONSABILIDADE OBJETIVA
A controvérsia, porém, não se resume a qual dentre as teorias do risco se aplicaria ao
parágrafo único do art. 927, mas se estende ainda à referência à noção de “atividade normal- Há um paradoxo queinsere o conceito de risco no centro do funcionamento da socieda-
mente desenvolvida” e à apresentação de risco “por sua natureza”. Afirma-se que deve ser a de industrializada. O acidente, como emerge da sociedade industrial, tem características que
atividade costumeira do ofensor, sua conduta reiterada, habitual, constante, e não uma ati- impedem de interpretá-lo nos significados anteriores de acaso ou providência. O conceito
obedece aum tipo de objetividade específica edecorre do curso natural das atividades cole-
tivas, enão de acontecimentos excepcionais ou extraordinários. O evento danoso deixa, pois,
(20) Pablo Stolze Gagliano. A responsabilidade extracontratualno novo Código Civil, cit., p. 15. de ser considerado uma fatalidade e passa a ser tido como um fenômeno “normal”, estatisti-
Também favoráveis ao risco proveito são, dentre outros, Paulo de Tarso Sanseverino e Carlos camente calculável. De fato, é na organização coletiva — e devido mesmo aesta organização
Roberto Gonçalves. — que, com regularidade, como demonstram as estatísticas, danos ocorrem para os indivf-
(21) As teorias do risco proveito e do risco criado podem ser reconduzidas, respectivamente, a duos: nenhuma causa, nem transcendente nem pessoal, pode disso dar conta.29 Trata-se, sim-
Raymond Saleilles e a Louis Josserand. ParaSalleilles, o risco deveser suportado porquem plesmente, de danos que “devem acontecer”.3°
“extrai proveito” da atividade danosa; já a teoria do risco criado, de Josserand, pode ser Tais danos “inevitáveis” todavia, na lógica da culpa seriam necessariamente irressar-
equiparada ao significado moral presente na teoria da culpa, justamente porque se imputa cíveis.Torna-seevidente “a desadaptação deste esquema a um sistema de responsabilidade
ao sujeito, que com asua atividade expôs terceiros ao risco de serem lesados, aresponsabi- pensado e estruturado na base de que só seriam ressarcíveis os danos provocados pelo com-
lidade derivante desta “culpa”. portamento voluntáriode um indivíduo”.31 A partir, pois, da nova conotação dada ànoção de
(22) Responsabilidadecivil. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 270. No mesmo sentido, já
Silvio Rodrigues e Serpa Lopes. Mais recentemente, Alexandre Miguel. A responsabili-
dade civil no novo Código Civil: algumas considerações. RT, v. 809, 2003, pp. 11-27 eJosé (24) Neste sentido, Sergio Cavalieri Filho. Responsabilidade civil no novo Código Civil, cit., p.
Acir Lessa Giordani, A responsabilidade civil objetiva genérica no Código Civil de 2002. 39; Silvio Venosa. A responsabilidade objetiva no novo Código Civil, cit.; Leonardo de Faria
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 71. Sergio Cavalieri Filho. Responsabilidade civil no Beraldo. A responsabilidade civil no parágrafo único do art. 927 do Código Civil, cit., pp.
novo Código Civil, cit., p. 42, embora adotando ateoria do risco criado, mitiga sua aplica- 67-68 e Alexandre Miguel. A responsabilidade civil no novo Código Civil, cit., p. 17.
çáo através da exigência da violação de um dever de segurança, doutrina inserida no movi- (25) V. Leonardo de Faria Beraldo. A responsabilidade civil no parágrafo único do art. 927 do
mento de subjetivação da responsabilidade objetiva: “Quem exercer atividade normalmen- Código Civil, cit., p. 70.
te perigosa — entenda-se, atividade habitual, reiterada, profissional — responderá objetiva- (26) O enunciado não se encontra fundamentado: v. publicação intitulada Jornada de Direito
mente se o fizer com defeito, considerada como tal a atividade exercida sem a segurança Civil. Org. Mi Ruy Rosado de Aguiar Jr. Brasilia: CFJ, 2003, p. 262.
legalmente exigida, sem a segurança legitimamente esperada”. Sobre esta última posição, (27) Carlos Roberto Gonçalves. Responsabilidade civil. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 25.
v., infra, item 4. (28) Silvio Venosa. Direito civil. v. 3. São Paulo: Atlas, 2003, p. 20.
(23) Veja-se a jurisprudência específica relativa ao Dpvat: “Se a lei especial (Lei n. 6.194/1974)
(29) V. François Ewald. L’Étatprovidence. Paris: Grasset, 1986.
não prevê, não pode uma resolução da SUSEP determinar a exclusão de determinada cate-
goria de veículos automotores do sistema legal de pagamento de indenização a vítimas de (30) Stefano Rodotà. 11 problema della responsabilità civile. Milano: Giuffrà, 1967, p. 21.
acidente automobilístico, ainda que não identificado o veículo e a seguradora”. (STJ, 3’ T., (31) Jorge Sinde Monteiro. Estudos, cit., p. 18. Segundo Louis Josserand. Evoluçãoda respon-
REsp. 620.178, reI. Mm. Carlos Alberto Direito, j. em 25.10.2005). Na legislação estran- sabilidade civil. Revista Forense, v. 86, p. 52 e ss.: “Ao tempo dos nossos antepassados, o
geira, costuma-se mencionar, como exemplo de sistema de responsabilidade integral, a lei acidente era raro, ou, pelo menos, apresentava~sesob uma feição tal que não era absoluta-
de acidentes da Nova Zelândia (Accident Compensation Comission Act, de 1974). mente gerador de responsabilidades; as guerras, o assassinato, as epidemias, a fome, faziam
18 RT-854 - DEZEMBRO DE 2006 - 95.’ ANO DOUTRINA CIVIL - PRIMEIRA SEÇÃO 19
acidente, não mais um evento atribuível ao acaso ou à fatalidade, teve-se que abandonar a compatível com aideologia do Código Civil de 1916, para o chamado modelo solidarista, ba-
noção geral de que a responsabilidade civil só poderia ser invocada como sanção por uma seado na Constituição da República e agora no Código Civil de 2002, fundado na atenção e no
falta cometida. A responsabilidade fundada exclusivamente na culpa entrou assim em crise cuidado para com o lesado: questiona-se hoje se àvítima deva ser negado o direito ao ressarci-
e esta é concomitante, como bem foi assinalado, com a perda de centralidade do esquema niento enão mais, como outrora, se há razões para que o autor do dano seja responsabilizado.36
proprietário tradicional.32 O modelo liberal, forjado nos albores da Revolução Francesa, que Desta forma, a responsabilidade civil desvincula-se da idéia de punição-sanção em favor
servira afundamentar tanto apropriedadeprivada absolutacomoaresponsabilidade porculpa, du reparação da vítima injustamente lesada,37 optando o ordenamento por dar prioridade aos
estava sendo ultrapassado. princípios do equilíbrio, da igualdade eda solidariedade em detrimento do objetivo anterior de
De fato, aevolução econômica esocial tomara claro que a tradicional responsabilidade sancionar culpados. Afasta-se, por igual, da ideologia liberal, comprometida essencialmente
subjetiva era insuficiente, qualitativa e quantitativamente, para tutelar diversas espécies de com a garantia da liberdade de iniciativa e com o desenvolvimento das atividades empresariais.
relações jurídicas próprias da sociedade industrializada. Na nova realidade social, arepara- São diversas as vantagens da responsabilidade objetiva sobre o sistema da culpa. A pri-
ção da vítima não poderia dependerda prova impossível que identificasse quem, de fato, agiu meira, já mencionada, énão impor à vítima uma prova diabólica (rectius, virtualmente impos-
de forma negligente para estabelecer a reparação de danos injustamente sofridos. sível); depois, sem aexigência da prova da culpa, os processos tomam-se muito mais céleres e
Os termos da responsabilidade civil então tiveram que mudar drasticamente em decor- bem menos custosos; enfim, emais importante, nas atividades perigosas, nasquais danos ocor-
rência do grande aumento das ocasiões de dano derivantes do processo de industrialização e rerão independentemente do grau de diligência do agente, o sistema da culpa mostra-se inefi-
do desenvolvimento dos transportes. No início do processo, ainda com fundamento na ideo- cazporque, comodemonstrou aanálise econômicado direito, é incapaz de induzir no agente os
logia liberal, propugnava-se aexclusão de qualquer responsabilização poratividades perigo- níveis de atividade socialmente desejáveis.3’ De fato, no sistema da culpa, a fim de elidir o
sas, sustentando-se a aplicação da regra segundo a qual “as perdas devem ficar onde caírem”,
como um meio de evitar que o progresso técnico viesse a ser dificultado pelo pagamento de pagamento de indenizações, basta ao agente atingir o nível de cuidado exigível, isto é, ser dili-
indenizações, a não ser que houvesse “alguma forte razão justificativa” para determinar que gente. Se agir com diligência, nãoenfrentará o problema de ter queindenizar pelos danos que
o dano fosse transferido da vítima ao agente.33 A única razão justificativa para tal desloca- suaatividade causar (ese sabeque suaatividade, perigosa, causará danos de qualquer modo) de
mento, porém, era identificada na própria noção de culpa.34 Tal lógica ensejou uma espécie maneira que aregra da culpa nãoo incentivaráa adotar o volume de atividades mais adequado,
de imunidade àburguesiaempresarial em ascensão eteve como conseqüência direta favore- do ponto de vista da redução eficiente dos danos delas derivados. O sistema da responsabili-
cer a acumulação do capital em detrimento das vítimas injustamente lesadas.33 dade objetiva, ao contrário, forçará o agente aintemalizar o custo de sua atividade: uma vez
A transformação da responsabilidade civil em direção à objetivação corresponde a uma que, independentemente de seumaiorou menorcuidado, terá quepagar por todo dano causado,
lhe convém, em seu próprio interesse, escolher o nível de atividades que acarreta amaiordife-mudança sócio-cultural de significativa relevância que continuaa influenciaro direito civil neste
início de século. Ela traduz a passagemdo modelo individualista-liberal de responsabilidade, rença entre autilidade resultanteda atividade eos danos por ela produzidos.394. O SISTEMA DUALISTA DA RESPONSABILIDADE CIVIL
muitas vítimas, mas se suportava então, sem recurso, o que se chamou os riscosda humanidade,
pois nãose podia cogitar de pedir contas de sua desgraça a quem quer que fôsse. Numa época Apesar de suas vantagens, entende-se que a responsabilidade objetivanão veio substituir
em que reinava só a pequena indústria, quando o operário manejava individualmente utensí- ou eliminar aresponsabilidade fundada na culpa.4°Considera-se geralmente que nas relações
lios inofensivos, quando as viagens, mesmo consideráveis, eram feitas a pé ou em veículos a
tração animal, os fatos suscetíveis de importar em responsabilidade delitual, puramente civil,
erampouco freqüentes, e o homem se sentiaemsegurança, na ma, como na oficina, ou na loja”. (36) Maria Celina Bodin de Moraes. Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional
(32) Massimo Franzoni. Dei fatti illeciti. Commentario dei codice civile ScialoJa-Branca. do dano moral. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 29.
Bologna-Roma: Zanichelli-Foro italiano, 1993, p. 40. Com efeito, a função social da pro- (37) V., por todos, José de Aguiar Dias. Responsabilidade civil de direito especial e de direito
priedade e a objetivação da responsabilidade integram a mesma tendência à socialização comum. Estudos jurídicos em homenagem ao Professor Caio Mário da Silva Pereira. Rio
do direito civil, iniciada no séc. XX~ de Janeiro: Forense, 1984, p. 273: “Noção útil em tempos passados, como fundamento da
(33) OliverWendell Holmes Jr. The Common Law. Boston: Little, Brown and Company, 1881, responsabilidade civil, a culpa vem cedendo terreno a outras idéias. (...) Prevalece sobre
p. 76 e ss. O autor, já ministro da Suprema Corte, é considerado um dos fundadores do todas as considerações ado dano injusto. É a esta influênciaque se deve atender, é aela que
direito norte-americano e um dos pais do direito da responsabilidade civil nos EUA. se deve dar ênfase antes de a qualquer outra, para erigir um sistema de reparação do dano
Holmes, em total coerência com o modelo liberal, afirmava que a intervenção do Estado, -que reuna todas as preocupações dos juristas em tomo do mesmo problema.”
em si mesma, configurava um prejuízo de modo que, uma vez ocorrido o dano, não se 0)) V.,por todos, Steven Shavell. Strict Liability versus Negligence. The JournalofLegal Studies,
deveria fazer com que o custoso aparelho estatal fosse colocado em funcionamento “a
menos que se deva atender a uma vantagem evidente da mudança do status quo”. V., para 1980, v. IX, pp. 1-25.
essas observações, CarloCastronovo. La nuova responsabilità civile. Regola e metafora. ~ Assim, Fernando Gómez Pomar. Carga de la prueba y responsabilidad objetiva. ln Dret n.
Milano: Giuffrõ, 1991, p. 337 e ss. 1,2001. Disponível em http://www.indret.com, acesso em 20 jul 2006.
~» O. W. Holmes Jr. The Common Law, cit., p. 80 e ss. identifica a culpa como a única razão (~0) Salienta Jorge Sinde Monteiro. Estudos, cit., p. 21, nota 34, em sua origem a teoria do risco
idônea ajustificar a transferência do dano de quem sofreu a quem provocou, pretendia superar a teoria da culpa mas as teorias mistas acabaram porprevalecer. No Brasil, a
(“) Massimo Franzoni. Dei fatti illeciti, cit., p. 44. própria Constituição estabelecea responsabilidade subjetiva do empregadorno art. 7°,XXVffl.
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inter-individuais, a adoção da responsabilidade subjetiva ainda se apresenta como conveniente, acriação de graus intermediários, em conformidade com a atividade desenvolvida, como se
ficando a responsabilidade objetiva reservada especialmente às relações em que há intrínseca se tratasse, na verdade, de um prolongamento ou de uma transição gradual de uma espécie de
desigualdade entre as partes, tais como as relações de consumo, os acidentes de trabalho e as responsabilidade em direção à outra.46
relações com o Estado.Em posição crítica aesta reserva, afirmou-se que “o sistema dualistade Assim, não obstante a menção à distinção estrutural, baseada na diversidade de conceitos
responsabilidade atende aum incindível dever de solidariedade socialdeterminado pelo cons- de justiça subjacentes, há quem sustente que o sistema tende a reunificar-se, com a convergência
tituinte, que não se restringe à relação entre o cidadão e o Estado e para cuja efetividade se cjcis noções de culpa ede risco.47 De fato, se se entende porculpa não o conceito psicológico mas
revela indispensávela sua incidência, em igual medida, sobre as relações de direito público e de o conceito normativo, baseado emstandards de conduta, sempre mais a culpa se toma “objetiva”,
direito privado”.43 Também para Caio Mário da Silva Pereira, “aculpa exprimiria anoção bási- configurando-se como o descumprimento de um deverde cuidado ou de diligência.43 De outro
ca eo princípio geral definidor da responsabilidade, aplicando-se a doutrina do risco nos casos lado, os juízos que os tribunais fazem sobre as hipóteses de responsabilidade objetiva tendem a
especialmente previstos, ou quando a lesão provém de situação criadapor quem explora profis- ser permeados por considerações acerca do comportamento do ofensor e isto é normalmeate le-
são ou atividade que expôs o lesado ao risco do dano que sofreu”.42 vado em conta quando se estabelece, por exemplo, o valor indenizatório. Além disso, cumpre
De fato, segundo se afirma, o sistema dualista da responsabilidade funda-se emconceitos mencionar, como exemplos de confluência dos dois campos, a tese da responsabilização subje-
de justiça diferenciados. Enquanto a responsabilidade porculpa corresponderia àjustiça retri- tiva do Estado por ato omissivo;49 o incremento das hipóteses de inversão do ônus da prova,
butiva ou comutativa, aresponsabilidade objetiva diria respeito àconcepção de justiça distribu- com base na teoria da carga da prova, as causas excludentes do ilícito que não excluem a res-
tiva.43 A primeira se referiria ao juízo de reciprocidade, e asegunda aum juízo de proporciona- ponsabilidade e as construções doutrináriasejurisprudenciais de presunção absoluta de culpa.
lidade. Assim, enquanto ajustiça compensatória regula o equilíbrio entre os interesses emcon- A manutenção da dicotomia culpa-risco torna-se ainda mais complexa quando se pensa
filio, a justiça distributiva pronuncia-se sobre a repartição dos bônus e dos ônus. Em conse- que, do ponto de vista teórico, vacilam a doutrina e ajurisprudência quanto aos fundamen-
qüência, a responsabilidade subjetiva referir-se-ia à conduta pessoal do causador dos danos tos seja da culpa, seja do risco; a propósito, chega-se mesmo a afirmar que a noção de ris-
enquanto a responsabilidade objetiva funcionaria como uma espécie de seguro coletivoY co/perigo desempenha um papel importante em ambos os critérios de imputação: assim,
Embora normalmente se considere que culpa erisco convivem em harmonia, manten- quanto mais perigosa (rectius, quanto maior o risco) é uma situação, mais cuidado e dili-
do âmbitos de atuação distintos, diversos são os autores que criticam a bipolaridade e men- gência devem ser adotadospara prevenir os danos.5°A conseqüência disto é que em algu-
cionam substanciais aproximações entre a responsabilidade subjetiva ea objetiva.45 De qual- mas hipóteses será impossível separar as duas noções e tanto faz atribuir a responsabili-dade por um ou outro fundamento.quer modo, afirma-se que dicotomia perdeu muito de seu caráter antinômico, tendendo para Por outro lado, há quem sustente que todas as hipóteses de responsabilidade civil vin-
culam-se, no final das contas, à noção de culpa, não se podendo, por esta razão, discriminar
~ Gustavo Tepedino. A evolução da responsabilidade no direito brasileiro e suas controvér- adequadamente as duas situações.5’
sias na atividadeestatal. Temas do direito civil 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 196,
para quem a configuração do sistema dualista “embora intuitivamente compreendidapelajurisprudência, ainda passa despercebida pela doutrina dominante, vinculada à vetusta par- (46) Nils Jansen. Estructura de um derecho europeode daílos, cit.
tição do direito entre público e privado”, de modo que “ao direito civil seria atribuída a (47) Sustentam o fim da dicotomia em prol da unidade do instituto. Nils Jansen. Estructura de
dogmática da responsabilidade aquiliana, deferindo-se ao domínio do direito público a res- un derecho europeo de daflos, cit., passim e Cesare Salvi, Responsabilità extracontrattuale
ponsabilidade objetiva, ou seja, o dever de reparação fundado em previsões legais especí- (dir. vig.). Enciclopedia dei diritto. v. XXXIX. Milano: Giuffrè, 1980, p. 1.222 e ss.
ficas”. (p. 195). (43) O conceito de culpa também se encontra em estado de indefinição no atual direito da res-
(42) Caio Mário da Silva Pereira. Responsabilidade civil, cit., p. 268. ponsabilidade civil. Originalmente, culpa era apenas a atuação contráriaao direito, porque
(45) A idéia é hoje generalizada mas atribui-se a Joseph Esser a construção da tese do duplo negligente, imprudente, imperita ou dolosa, que acarretavadanos aos direitos de outrem.Modernamente, todavia, diversos autores abandonaram esta conceituação, preferindo con-
fundamento de justiça na responsabilidade civil. A distinção é aceita hoje até mesmo pelos siderar a culpa o descumprimento de um standard de diligência razoável, diferenciando
críticos do sistema dualista: v. Phillipe le Tourneau. Droit dela responsabilitá et des contrats. esta noção, dita “normativa” ou “objetiva” da outra, dita “psicológica”.
Paris: DalIoz, 2006, p. 25, segundo o qual na responsabilidade objetiva a indenização é (495 Sobre o tema, recentemente manifestou-se Paulo de Tarso Vieira Sanseverino. Revisão cri-
grandemente facilitata “mais cela au prix d’une perversion de la responsabilité, qui n’est
plus commutative (comme elIe devrait l’être) mais distributive”. Na doutrina brasileira, v. tica da responsabilidade extracontratual do Estado no direito brasileiro, disponível em http://www.revistadoutrina.trf4.gov.br, acesso em 25 mai 2006, segundo o qual: “Nos atos
Clovis do Couto e Silva segundo o qual: “Na hipótese de responsabilidade porrisco, impera comissivos, a responsabilidade civil do Estado é independente da licitude ou ilicitude do
a justiça distributiva, e o evento é satisfeito por quem o assumiu” (O direito privado na fato. Ou seja, a ilicitude é irrelevante, podendo estarpresente ou não. (...) Todavia, na res-
visão de Clovis do Couto e Silva. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p. 214). ponsabilidade do Estado por atos omissivos, a situação é diferente. Nos atos omissivos
~ J. Esser. Gefdhrdungshaflung, p. 69 e ss. apud MIs Jansen. Estructurade un derecho europeo imputados ao Estado, haverá responsabilidade quando ocorrer uma falha no dever jurídico
de daflos. Desarrollo histórico y dogmática moderna. lii Dret n. 2, 2003, disponível em de agirdos agentes ou órgãos estatais. Ou seja, somente haverá responsabilidade extracon-
http://www.indret.com, acesso em 10 jan 2006, p. 10. tratual do Estado na hipótese de uma atuação omissiva ilícita da administração pública”.
(45) V. Pablo Salvador Coderch. Nuno Garoupa e Carlos Gómez Ligüerre. El círculo de (50) MIs Jansen. Estructura de um derecho europeo de daflos, cit.
responsables. La evanescente distinción entre responsabilidad por culpa y objetiva. iii Dret (5» Entre os principais representantes desta corrente estão H. L. et 1. Mazeaud. Leçons de droit
n. 4, 2005, disponível em http://www.indret.com, acesso em 10 jan 2006. civil. Obligations. t. II, premier volume, 8. ed. (F. Chabas). Paris: Montchrestien, 1991, p.
22 RT-854 - DEZEMBRO DE 2006 - 95.’ ANO DOUTRINA CIVIL PRIMEIRA SEÇÃO 23
Portanto, de várias partes levantam-se dificuldades para manter o duplo fundamento do as correntes objetivistas, ao contrário, excluem da fundamentaçâoa vinculaçãoà culpa em prol
sistema, na culpa eno risco, apesar da recente atribuição de uma base positiva para a distin- de fundamentos outros tais como aconfiguração de uma obrigação geralde segurança, a recon-
ção, conforme a expressa previsão do Código Civil de 2002. Este é, notoriamente, um dos dução a fatores de garantia, asituação de exposiçãoa perigo, o controle ou o poder de impedir
maiores problemas por que passa a teoria da responsabilidade civil emnossos dias: com efei- urna situação de risco propriamente dita, a eqüidade e até mesmo acaridade cristã.56
to, as múltiplas ddvidas existentes acerca das funções e dos modelos de responsabilidade Em síntese, o pensamento da corrente dita subjetivista pode ser resumido da seguinte
civil indicamque o instituto ainda não está estabilizado.52 maneira: opróprio conceito de responsabilidade implica necessariamente o conceito de san-
A existência de uma ou mais cláusulas gerais, porém, não muda o entendimento atual ção por um ato que o ordenamento julga negativamente em relação àquele sobre o qual faz
deque i) “responsabilidade” significa a transferência da incidência de um dano de um sujeito gravaro custo: “qualquer queseja o critério de imputação, o fato do qual responde deveria ter
aoutro; ii) se pode falar de dano injusto (ou injustificado do ponto de vista da vítima) sem- sido evitado por aquele que é considerado responsável”.57
pre que ocorrer lesão a uma situação jurídica subjetiva protegida pelo ordenamento; iii) Com freqüência, porém, mesmo os autoresque buscam distanciar-se de qualquer idéia de
este dano será imputado a um sujeito com base em critérios jurídicos, estabelecidos no culpa, e portanto ocupariam posição entre os objetivistas, não raramente sucumbem a ela ao
ordenamento jurídico.53 pavimentar suas teorias. Isto ocorre porduas razões: a primeira refere-se ao fato de não assumi-
reminteiramente que a responsabilidade objetiva é uma responsabilidade por ato lícito, haven-
5. OS MÚLTIPLOS FUNDAMENTOS DA RESPONSABILIDADE OBJETIVA E SEU do ainda fortíssimas resistências à idéia de que possa haver responsabilidade sem qualquer
FUNDAMENTO CONSTITUCIONAL antijuridicidade. A segunda, corolário da primeira, é que a responsabilidade objetiva é vista
comosendo o efeito de alguma forma de violação de deveres ou de conduta anti-social. Portan-
A idéia subjacente à responsabilidade subjetiva possui raízes tão profundas na cultura to, aqueles que sustentam que aresponsabilidade objetiva nada mais é do que a conseqüência
ocidental que nunca foi preciso, realmente, explicar porque a culpa enseja responsabilidade, de atos ilícitos, como a violação de um dever de segurança,58 tratam, na verdade, o risco nos
sendo ela própria a suarazão justificativa. Justamente por isso, quando se trata de analisar uma mesmos moldes da culpa. A segurança violada põe-se, no terreno da responsabilidade objetiva,
responsabilização que da culpa independe estabelece-se uma discussão infinita, para além da na mesma posição da culpa no âmbito da responsabilidade subjetiva.59
própria previsão normativa, buscandoexplicitara ratio normativa como um meio de escaparda Há ainda autores, embora também supostamente partidários do risco, que abandona-
idéia quecritérios objetivos de imputação decorram exclusivamente do arbítrio do legislador.TM ram qualquer esperança de fundamentação, considerando a responsabilidade objetiva como
Questiona-se assim emque se baseia aresponsabilização objetiva e se épossível atribuir- uma técnica transitória que será, mais dia menos dia, substituída pela ampladifusão dos se-
lhe um fundamento único, já que tantase tãodiversificadas são as hipóteses hoje recondutíveis guros obrigatórios, não sendo senão “um processo ou instrumento técnico de deslocar os
a ela. Em princípio, tem se afirmado que todas as hipóteses provêm da noção extrajurídica de
risco, mas parece difícil inserir no mesmo fundamento ético-jurídico a responsabilidade pela (56) Para uma completa resenha acerca das opiniões dos autores clássicos, principalmente fran-
atividade de riscopropriamente dita (prevista na cláusula geral do parágrafo único do art. 927) ceses, italianos e brasileiros, sobre o fundamento da responsabilidade objetiva, v. Wilson
e a responsabilidade dos pais pelos atos culposos dos filhos menores, porexemplo, responsa- MeIo da Silva, Responsabilidade sem culpa e socialização do risco. Belo Horizonte: B.
bilidadeque tambémiadepende de culpa por força do art. 932, 1, do CC/2002. Álvares, 1962, p. 51 e ss.
Parabem examinar o problema do fundamento da responsabilidade objetivaserá pre- ~“) Assim, Carlo Castronovo. La nuova responsabilità civile, cit., p. 366. Na doutrina nacio-
ciso indicar duas correntes contrapostas, a subjetivista e a objetivista.55 Os defensores da nal, v. aposição de Guilherme Couto de Castro. A responsabilidade civil objetiva no direito
corrente subjetivista apontam um fundamento comum e os propugnadores das correntes brasileiro. O papel da culpa em seu contexto. Rio de Janeiro: Forense, 1997, passim.
objetivistas buscam fundamentos variados, conforme a hipótese de que se trata. Assim, para (58) V., por todos, Carlos Alberto Menezes Direito eSergio Cavalieri Filho. la: 5. de Figueiredo
a corrente subjetivista, toda e qualquer responsabilidade, inclusive a objetiva, implica sem- Teixeira (coord.). Comentários ao novo Código Civil. Da responsabilidade civil. Das pre-
pre uma idéia subjacente de culpa erepresentaa conseqüente sanção acargo do responsável; ferências e privilégios creditórios. v. XHI (arts. 927 a965), p. 145: “Lembramos, então, que
os princípios da responsabilidade subjetiva são aplicáveis à responsabilidade objetiva. Tam-
bém aqui serão indispensáveis a conduta ilícita, o dano e o nexo causal. Só não será neces-
424: “La fautedoit être maintenue comme condition et fondament dela responsabilitécivile. sário o elemento culpa”. Mais detalhadamente, Sergio Cavalieri Filho. Responsabilidade
Lã est le principe: pas de responsahilité civile sans une faute”. V., a seguir, o item 5. civil no novo Código Civil. Revista da EMERJ, v. 6, n. 24, 2003, p. 40 e ss.: “Não é o risco,
(52) Assim, Geneviève Viney. Introduction à la responsabilitá. 2. ed. Paris: LGDJ, 1995, p. 94. portanto, que por si só gera o dever de indenizar, mas sim o dano causado pela violação do
No mesmo sentido, Luís Díez-Picazo. Derecho de dafios. Madrid: Civitas, 1999, segundo dever jurídico, e isso em qualquer tipo de responsabilidade. (...) E o dever jurídico que se
o qual: “El derecho de la responsabilidad civil se encuentra, en los momentos actuales, en contrapõe ao risco é a segurança. Quem exercer atividadede risco terá o deverde indenizar
un punto muy sensible de indefinición”. se o fizer de forma insegura, prestando serviço sem asegurança que deve ter Esta discipli-
853) Assim, Stefano Rodotà. 11 problema delia responsabilità civile, cit., p. 139. na, implícita no parágrafo único do art. 927 do CC estáexpressa no art. 14 do CDC: defeito
(54) Carlo Castronovo. La nuova responsabilità civile, cit., p. 356. do serviço. (...) O serviço é defeituoso quando não oferece a segurança legitimamente es-
(55) Para a análise das duas correntes no âmbito da doutrina argentina, v. Dora Gesualdi. perada. Eis aí o Princípio da Segurança. Devemos visualizar no parágrafo único do art. 927
Responsabilidad civil. Fatores de atribución. Relación de causalidad. Buenos Aires: do novo Código Civil a mesma disciplina jurídica do art. 14 do CDC”.
Hammurabi, 2000, p. 22 e ss. (59) Carlo Castronovo. La nuova responsabilità civile, cit., p. 359.
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danos das vítimas para os criadores do risco eindiretamente para acoletividade dos segura- com asolidariedade social.M Com tal fundamento, quemsuportará o dano causado no contato
dores aque não estáligado um fundamentomoralnem sequer o requisito da ilicitude”.6°Outros social não será mais a vítima mas aquele que gera, com a sua atividade, a mera “ocasião” ou a
autores, principalmente dentre os mais antigos, buscaram o fundamento moral (rectius, éti- “oportunidade” de dano àqual sucede, de fato, um dano: para este (agora) responsável se deslo-
co) da responsabilidade objetiva em razões de eqüidade.6’ Dentre os mais modernos, nume- cará o custo do dano quepoderá ser repartido entreos membros da coletividadeatravés de diver-
rosos são os que partem para a análise econômica do direito, examinando o problema em sos mecanismos, inclusive o do aumento do preço dos serviços e das atividades emgeral.
termos de eficiência, repartição de custos e prevenção de acidentes.62 O princípio da solidariedade não designa, mas funda-se em um dever A atitude solidária
3
Já para o chamado direito civil-constitucional, como se sabe, não pode haver norma conecta-se com o respeito àdiferença, pelo qual a pessoahumana apreende que o outro também
jurídica que não seja interpretada à luz da Constituição eque não se coadune com seus prin- pertence ao mundo. O pressuposto da solidariedadeé a interdependência humana. O princípio da
cípios fundamentais. Caberá, então, buscar o fundamento ético-jurídico na Constituição da solidariedade, ao expressar responsabilidade para com o outro, independentemente de reciproci-
República e lá será fácil identificaro princípio que dá foros de constitucionalidade, genera- dade, fundamenta-sena idéia de que “Je suis responsable d’une responsabilité totale qui répond
lidadee eticidade àresponsabilidade objetivaem todas as hipóteses em que ela se manifesta: de tous les autres et de tout chez les autres, même de leur responsabilité”.65 A propósito já se res-
é o princípio da solidariedade social.63 saltou quede todos os campos do direito civil, “aquele emquemais claramente se percebe o no-
De fato, no sistemaatual da responsabilidade civil o quese faz ésubverter aantigacoerência távei incremento das exigências da solidariedade é o da responsabilidade civil”P~De fato, a am-
do sistema, superando, emcada vez mais numerososcasos, aantigafinalidade de identificação do pia difusão da responsabilidade objetiva comprova adecadência das concepções elaboradas no
culpado. Isto ocorrepela atribuição de uma responsabilidade, sem culpa, com o objetivo de pro- âmbito do individualismo jurídico para regular os problemas mais agudos da sociedade atual.
tegeros direitos dasvítimas injustamente lesadas, realizando assim um verdadeiro compromisso De acordo com as previsões do Código Civil de 2002 pode-se dizer que, comparativa-
mente, aresponsabilidade subjetiva é que se torna residual, tantas são as hipóteses de res-
(60) Jorge Sinde Monteiro. Estudos, cit., p. 68, nota 202. ponsabilidade que independem da culpa.67 Assim, cumpre mencionar, além da cláusula geral
(68) Assim, Alberto Trabucchi. Istituzioni di diritto civile. 27. ed. Padova: Cedam, 1985, ~. 211. do parágrafo único do art. 927, as previsões relativas àresponsabilidade do incapaz (art. 928),
Mas aludem à equidade também autores atuais: v. Phillipe le Tourneau. Droit de la do empresário (art. 931), do transportador (art. 734), as diversas hipóteses de responsabili-
responsabilitá, cit., p. 25. Na doutrina brasileira, v. Amoldo Wald. Influência do direito dade indireta (arts. 932 e 933), a responsabilidade pelo fato dos animais (art. 936), a respon-
francês sobre o direito brasileiro no domínio da responsabilidade civiL Rio de Janeiro: sabilidade decorrente da ruína (art. 937), isto é, inteiras searas do direito de danos, antes vin-
Departamento de Imprensa Nacional, 1953, p. 72. culadas à culpa, hoje cumprem o objetivo constitucional de realização da solidariedade so-
cial, através da ampla proteção aos lesados, cujos danos sofridos, para sua reparação, inde-
(62) V., por todos, Guido Caiabresi. The cost ofaccidents: a legal and economic analysis. Yale:
Yale University Press, 1970. No mesmo sentido, sustentando a aplicação da análise econô- pendem completamente de negligência, imprudência, imperícia ou mesmo da violação de
mica do direito na responsabilidadecivil, v. na doutrina italiana, dentre outros, Pietro qualquer dever jurídico por parte do agente. São danos (injustos) causados por atos lícitos,
Trimarchi, e na doutrina espanhola, principalmente, Luís Díez-Picazo e Pablo Salvador mas que, segundo o legislador, devem ser indenizados.6t
Coderch. De acordo com a teoria desenvolvida por Calabresi responde pelo dano aquele Do ponto de vista sócio-cultural, a guarda ou a custódia de uma coisa, a propriedade de
que se encontra na posição mais adequada para realizar a análise custo-benefício, isto é, para um animal, e mesmo o poder familiar, ou, mais rigorosamente, atutela e a curatela não são
determinara conveniência de evitar o dano, comparando os custos relativos e o custo em que
consiste o próprio dano. Parauma introdução à metodologia da análise econômicado direito,
Richard Posner. El análisis económico dei derecho en ei common law, en eI sistema romano- ~ V. o estudo de Paul Ricoeur. Le concept de responsabilité. Essai d’analyse sémantique. La
germánico, y en las naciones en desarrollo. Revista de Economía yDerecho, v. 2, n. 7 (inviemo Juste. Paris: Esprit, 1995, pp. 41-70. Do mesmo autor, v., ainda, Lectures 2 —La contrée des
2005), pp. 7-15. Para uma crítica contundente àanálise econômica, v. Ronald Dworkin. A philosophes. Paris: Seuil, 1992, esp. pp. 265-319. Segundo Ricoeur, para além da dimensão
riqueza é um valor? E, respondendo diretamente à Caiabresi, Por que aeficiência? Ambos em jurídica, os fundamentos da solidariedade e do risco atribuem à responsabilidade uma ver-
Uma questão de princípio. São Paulo: Mastins Fontes, 2000, pp. 351-434. dadeira dimensão moral. No Brasil, v. Vicente Barretto. Responsabilidade e teoria da jus-
863) Neste sentido, cf a posição defendida desde a década de 60 por Stefano Rodotã. 11 problema tiça contemporânea. Rio de Janeiro: Renovar, 1996, p. 380, o qual, com base em Ricoeur,
della responsabilità civile, cit., pp. 89 e ss., 107 e ss., 176 e ss. Em perspectiva diversa, em- afirma: “do ponto de vista da teoria do direito, a responsabilidade civil perdeu o seu caráter
bora também aludindo àsolidariedade constitucional comojustificativa para a responsabili- de punição do culpado, dando lugar (...) à responsabilidade sem culpa, fundamentada naidéia de solidariedade. Neste sentido, o ideal inquisitório de responsabilização do agente édadeporrisco, v. Pietro Perlingieri. Eguaglianza, capacitàcontributivae diritto civile. Rassegna substituído pela perspectiva altruística de indenização da vítima”.
didiritto civile, 1980, p. 742: “Pià in generaie si ampliano o meglio acquistano una dimensione 865)
operativa diversasia la nozione di illecito sia queila di responsabilità civile, sempre pus aven- E. Levinas. Ethique et inflnL Paris: Fayard, 1982, pp. 94-95.
te unagiustificazioneneila ‘solidarietà’ di spessore costituzionale mapursempre maggiormente 866) V. Maria Celina Bodin de Moraes. O princípio da solidariedade. A.C. Alves Pereira e C.R.D.
delimitati da un sistema di sicurezza sociale ampliato nei suoi compiti tradizionali. Rischio e de Albuquerque MelIo (Coords.). Estudos em homenagem a Carlos Alberto Menezes Direi-
responsabilità tendono in tal guisa a distinguersi e la collettività ê destinata sempre piü ad to. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 527 e ss., esp. p. 545 e ss.
accollare ii peso dei rischio e a ripartirlo patrimonialmente secondo i criteri della capacità (67) No mesmo sentido, afirmando que o Código de 2002 é objetivista. Sergio Cavalieri Filho.
contributiva che è a fondamento della giustizia sociale”. Na doutrina nacional, v. Gustavo Responsabilidade civil no novo Código Civil. Revista da Emerj, v. 6, n. 24, 2003, p. 32.
Tepedino. A evolução da responsabilidade, cit., p. 194 e ss. e, mais recentemente, Raquel (68) O Código Civil de 1916 já havia previsto a responsabilidade por atos lícitos para os danos
Sailes. A justiça social ea solidariedade como fundamentos ético-jurídicos da responsabili- causados em estado de necessidade e em legítima defesa poraberratio ictus (arts. 1.519 e
dade civil objetiva. Revista Trimestral de Direito Civil, n. 18, 2004, pp. 109-133. 1.520), hipóteses que foram mantidas pelo legislador de 2002 (arts. 930 e 931).
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situações jurídicas que possuam, por si mesmas, uma capacidade evocativa de responsabili- Novamente se traz àlembrança que, enquanto se acreditou que a maneiramais adequa-
dade civil, ao contrário da noção de culpa. Então, quando se tratava de buscar estender aprote- da de tutelar os seres humanos era aquela ligadaà proteção da essência individual, ou o mdi-
ção dos direitos dos lesados, procurava-sejustamente vincular estas situações jurídicas ànoção vidualismo, aexpressão dojuristaerade desconsoladasolidão: “o direito de serhomem contém
de culpa. O pai eraconsiderado responsável pelos danos causados pelo filho por culpa in vigi- o direito que ninguém me impeça de ser homem, mas não o direito a que alguém me ajude a
lando, o empregadorpor culpa in eligendo, o dono do animal tambémpor culpa in vigilando ou conservar a minha humanidade”.7’ O princípio da solidariedade, ao contrário, é a expressão
por culpa in omittendo e, para atenuar as dificuldades de prova, adotava-se a inversão do ônus. wais profunda da sociabilidade que caracteriza a pessoa humana.72
Por que tais situações configuram hoje hipóteses de responsabilidade objetiva? Houve No contexto atual, a Constituição determina — ou melhor, exige — que nos ajudemos,
um significativo deslocamento que possibilitou a elaboração da noção éticade responsabili- mutuamente, a conservar nossa humanidade porque a construção de uma sociedade livre,
dade apartir da distinção entre as noções de ato/atividade e autor, com a conseqüente “des- justa e solidária cabe atodos e a cada um de nós.73 Este é o fundamento da reparação dos
responsabilização”jurídica do autor em prol de uma responsabilização pelos atos — e, apartir danos pessoais injustamente sofridos, não mais ignorados ou, antes, suportados solitaria-
do Código Civil de 2002, pelas “atividades” —, ultrapassando-se, pela primeira vez, a idéia mente pela vítima, mas, na lógica da justiça social distributiva, transferidos, sempre que
moral de retribuição (subjacente à culpa) para reconhecer que a relaçãoé ética ese dá com possível, à comunidade. Com efeito, subordinando-se o conceito de responsabilidade à efe-
a comunidade, com os outros e com o mundo, inclusive com as gerações futuras (eis que a tiva reparação dos danos (injustos) sofridospela vítima, independentemente da identificação
própria humanidade está em perigo),69 tratando-se então de remediar os efeitos nocivos de- de um culpado, ressalta-se a relação de solidariedade entre a coletividade (na qual se inclui
correntes de certos atos e atividades mais do que sancionar seus eveatuais autores. o autor do dano) e avítima, evidenciando-se desta forma aopção, pelo ordenamento jurídico,
Assim, o fundamento ético-jurídico da responsabilidade objetiva é idêntico, seja nas da valorização da pessoa humana, a qual terá o seuprejuízo ressarcido.
atividades ditas de risco, seja nas demais hipóteses, ditas “sem culpa”, isto é, na imposição
de responsabilidade civil ao incapaz, ao adolescente, ao pai, ao tutor, ao curador, ao dono do 6. A IMPUTAÇÃO OBJETIVA DE RESPONSABILIDADE E SEUS PROBLEMAS
animal etc., pessoas às quais o ordenamento jurídico não pressupõe que tenham agido, ou
deixado de agir, com culpa porque, justamente, prescinde desta noção (a autoria culposa) ao Sabe-se haver um amplo espaço de risco permitido, isto é, de atividades arriscadas ou
atribuir a eles a obrigação de indenizar. O fundamento ético-jurídico da responsabilidade
objetiva é unitário e deve ser buscado na concepção solidarista de proteção dos direitos de perigosas, potencialmente causadoras de danos, que, todavia, dados os benefícios que tra-
zem para a vida em sociedade, são atividades admitidas pelo ordenamentojurídico e consi-qualquer pessoa injustamente lesada, fazendo-se incidir o seu custo na comunidade, isto é, deradas lícitas. Não obstante, aassunção de um risco lícito toma-se, com a previsão do pará-
em quem quer que com o ato danoso esteja vinculado. No fuado, no sistema solidarista, in- grafo único do art. 927, critério de imputação de responsabilidade civil.
vertem-se os termos do problema e a responsabilidade subjetiva nada mais é do que uma
outra hipótese de imputação de responsabilidade.’0 O termo “risco” é, na linguagem comum, por demais impreciso para determinar o ai-
Em decorrência do princípio constitucional da solidariedade social, pois, distribuem- cance do dispositivo. Na verdade, em relação a ele, é pertinente a indagação que tem sido
se e sociajizam-se as perdas e estendem-se o mais amplamente possível as garantias àinte- freqüentemente feita: o que “não” causarisco? Partindo do princípio de que o sistema inteiro
gridade psicofísica e material de cada pessoa humana. Esta é a razão justificativa, a um só não pode ter se tornado objetivo, estando a responsabilidade subjetiva coasagrada no art.
tempo ética ejurídica, do deslocamento dos custos do dano (injusto ou iajustiflcado) da ví- 927, caput, será necessário circunscrever as atividades cujos danos, decorrentes de seus ris-
tima para os responsáveis pelo ato ou atividade bem comopara os pais, tutores e curadores, cos, deverão ser indenizados e diferenciá-las daquelas atividades (não consideradas de risco)
empregadores etc. que, nãoobstante tenham causado danos, estes só serão indenizados se tiver havido, por parte
do responsável, conduta culposa ou dolosa.
Além da controvérsia acerca do sentido e alcance da “atividade de risco”, segundo o
69) Paraessa conclusão v. P. Ricoeur. Le conceptde responsabilité, cit., p. 65: “la portée immense dispositivo mencionado, somente se definirá como objetiva a responsabilidade do causador
attribuée à nos actes par i’idée de nuisance à l’échelle cosmique (...) peut être assumée si do dano quando esta decorrer de “atividade normalmente desenvolvida” por ele. De fato, a
nous introduisons le relais des générations. 11 s’agitd’interpoler en quelque sorte entrechaque interpretação do parágrafo único do art. 927 develevar em conta o uso legislativo do termo
agent et les effets lointains de lien interhumain de fihiation. II estalors besoin d’un impératif “atividade”. Uma atividade é uma série coatínua e coordenada de atos e não se confunde com
nouveau, nous imposant d’agir de telle façon qu’il y ait encore des humains après nous”. um ato único ou com atos isolados, que permanecem sob o âmbito de incidência da culpa.
Sobre o tema, v. o estudo clássico de Hans Jonas. E/principio de responsabilidad. Ensayo
de una ética para la civilización tecnológica (1979). Barcelona: Herder, 1995, passim. Neste caso, a imputação não decorre de alguma “ação subjetiva” mas da atribuição a
(70) No sentido do texto, cf. Cesare Salvi. Responsabilità extracontrattuale, cit., p. 1.222: «41 um sujeito da responsabilidade pelosdanos causados pela atividade de que é titular, isto é, da
danno ingiusto à trasferito a un terzo se la fattispecie concreta è sussumibile in uno tra atividade porele explorada. Assim, a expressão “atividadenormalmente desenvolvida” deve
differenti criteri previsti a taie fine dail’ordinamento; fra questi è, quaiitativamente non
diversi dagli altri, la colpevolezzadella condottadannosa”. Em perspectiva fortementecrítica, (78) Assim se expressava Gioele Solari. Individualismo e diritto privato, referido por Michele
Phillipe ie Toumeau, Droit de ia responsabilité, cit., p. 25 e ss.: “L’excês contemporain de
l’indemnisation (...) traduit paradoxalement un mépris de l’homme, de sa nature véritable. Giorgianni. O direito privado e suas atuaisfronteiras. RT, v. 747, 1998, pp. 41-42.(72) V. Maria Celina Bodin de Moraes. O princípio da solidariedade, cit., passim.À force de condanmer des agents à propos de dommages qui, à proprement parler, ne leur
sont pas imputables car ils ne les ont pas causés, le Droit leur dénie leur qualité d’êtres ~ Parauma abordagem mais aprofundada deste aspecto, seja consentidoremeter aMaria Celina
libres et responsables”. Bodin de Moraes. Constituição e direito civil: tendências. RT v. 779, 2000, p. 47 e ss.
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ser interpretada como “atividade organizada”: no estágio atual de nossa sociedade, o desen- didática, a experimentação com elementos químicos potencialmente lesivos ou a instalação
volvimento continuado (não eventual ou errático) de qualquer atividadedemanda, e impõe, de uma rede de baixa tensão em um depósito de materiais inflamáveis.75
a sua organização. Nestes casos não tem sentido isolar um comportnmento, gerador em con- Há ainda situaçõesem que ambasas posiçõescausam risco para os direitos um do outro,
creto do dano, sem referi-lo à inteira atividade em virtude da qual o dano ocorreu. Confirma como ocorre no caso de dois condutores de veículos. Nestes casos, sugere-se a seguinte so-
esta interpretação o entendimento usual de que a culpa era critério de imputação suficiente lução: sempre que houver reciprocidade do risco, a disciplina a ser aplicada é a da culpa;
no “mundo dos atos”; no chamado “mundo das atividades”, ambiente por excelência dos já c~iando,ao contrário, não há reciprocidade do risco, isto é, quando apenas uma das partes
aludidos “danos anônimos”, a responsabilidade objetiva faz-se imprescindível.74 detiver afonte do risco (rectius, do perigo), quando efetivamente ela criar “risco para os di-
As atividades organizadas, por sua vez, distinguem-se em atividades econômicas e ati- reitos de outrem” aresponsabilidade será objetiva.79
vidades não econômicas (rectius, lucrativas e não lucrativas). Aqui uma dúvida se coloca: o De maneira geral, para a identificação em concreto da periculosidade, alguns critérios
dispositivo refere-se a ambas as espécies de atividades ou somente às atividades lucrativas? indicativos devem ser usados, como por exemplo, o fato de a atividade ser administrativa-
Para alguns, não caberia ao intérprete admitir a distinção simplesmente porque o legislador mente regulada, ou depender de autorização, ou, ainda, quando o prêmio do seguro for alto,
não a fez. Mas, contra esse fundamento, se replicaria que somente para as atividades econô- critérios que servem de indício de sua natureza de risco. Além disso, estatísticas deverão ser
micas, ou empresariais, a regra de justiça que deu origem àobjetivação da responsabilidade utilizadas para a especificação daquelas atividades que, com maior freqüência, ensejam aci-
— a do equilíbrio entre os ônus e os bônus — permaneceria inteiramente válida. Para estes dentes. De fato, é especialmente importanteaadoção do enfoquetécnico, porqueesta ématéria
críticos da assimilação, as atividades não econômicas, por desenvolverem-se, geralmente infensa ao senso comum. Assim, por exemplo, a psicologia cognitiva aplicada ao direito
sob a forma de associações e fundações, no interesse social, estariam alheias ao fundamento demonstra que apercepção geral do risco é freqüentemente distorcida por uma série de dis-
da responsabilidade objetiva.75 Não é possível sustentar tal distinção, excluindo do âmbito sonâncias cognitivas, gerando reações que, embora inapropriadas, são comuns. É o que faz
da regra as atividades não lucrativas, como propugnam os defensores da teoria do risco-pro-
veito, pois isto significaria desconsiderar o real fundamento — constitucional — da responsa- com que, por exemplo, as pessoas confiem muito mais em seus carros do queem viagens de
bilidade objetiva, a solidariedade social, que é a razão jurídica, como se procurou demons- avião, embora as estatísticas demonstrem ser mais arriscado fazerum passeio de automóvel
do que dar a volta ao mundo voando.80trar, da amplatutela hoje garantida à vítima.
Devem ser afastadas, por permanecerem ancoradas no paradigma da culpa,algumasE o que será uma atividadede risco? Atividades que “porsua natureza” geram riscos para
os direitos de outrem são as atividadesperigosas. A propósito, a doutrina italiana adota comu- posições mais restritivas, como a dos que sustentam que a atividade será consideradade ris-
mente dois critérios para definir as atividades perigosas, previstas pelo alt. 2.050 do CCi. São co apenas quando dela decorra um perigo que não possa ser eliminado nem mesmo com a
eles: i) a quantidade de danos habitualmente causados pela atividade em questão; ii) a gravida- mais escrupulosa diligência. Ou ainda aqueles que defendem quea noção de “atividade [de
de de tais danos.76 A atividade éconsiderada perigosa, portanto, quando, do ponto de vista es- risco] normalmente desenvolvida” significa que a responsabilidade civil resultará do poder
tatístico, causa danos quantitativamente numerosos e qualitativamente graves. Estes critérios, que temo responsável pelaatividadeperigosa de impediro fato gerador do dano, devendo ser
a serem aproveitados em nosso ordenamento, criam um standard flexível que será definido suportada somente por quem detiver o controle sobre o risco. Aqui se retorna à concepção
pela inter-relação destes dois elementos: a magnitude do dano e sua probabilidade.77 dita subjetivista da responsabilidade objetiva, já criticada, atribuindo-se o dever de indenizar
somente quando o responsável poderia, de alguma maneira, ter evitado o dano.
Eventualmente, pode ocorrer de a atividade não ser intrinsecamente de risco, mas os
meios nela empregados ou as circunstâncias fáticas a tornarem perigosa. Isto é suficiente Cumpre, ainda, na tarefa de delimitação da regra geral da imputação objetiva, proceder
ao exame das causas excludentes, de fundamental importânciana análise da responsabili-
para justificar a incidência da regra objetiva. Assim, por exemplo, no âmbito de uma atividade dade objetiva porqueao se fixaro conceito de que areparação dos danos (injustos) é a função
primordial da responsabilidade com fundamento na solidariedade social, praticamente iden-
0’» A dicotomia é explorada por alguns juristas americanos apartir da seguinte observação de tificam-se as noções de responsabilidade e causalidade, de modo que surgirá a obrigação de
OliverWendell Holmes. The Path of theLaw. Collected Legal Papers 167, 183 apud Gregory indenizar sempre que ficar comprovado o aexo de causalidade entre o dano (injustamente
Keating, Rawlsian Fairness and Regime Choice in the Law of Accidents. Fordham Law sofrido) e a atividadeperigosa.
Review, 2004, v. 72, p. 1.857 e ss., esp. p. 1.888: “Ourlaw of tons comes from the old days Em princípio, como se sabe, não haverá responsabilidade nos casos em quenão houver
of isolated, ungeneralized wrongs, assaults, slanders, and lilce, whereas the torts with which nexo de causalidade entre a atividade e o dano, quais sejam, quando a causa do dano estiver
ourcourts kept busy today are mainly incidents ofcertain well knownbussiness (...) railroads, no caso fortuito ou na força maior, no fato de terceiro e no fatoexclusivo da vítima. Ocorrendo
factories, and like.”
(75) Código Civil, arts. 53 e 62, parágrafo único.
(76) Pier-Giuseppe Monateri. lilecito e responsabilità civile. v. 2. Milano: Giuffrà, 1999. (76) Os exemplos são provenientes da jurisprudência italiana.
(79) Esta tese é defendida por George Fletcher, Pairness and Utility in Tort Theory. Harvard(77) Nils Jansen, Estructura, cit. No mesmo sentido as elaborações da análise econômica do
direito, cuja fórmula mais difundida, a fórmula de Hand, considera o risco como “o produto Law Review. v. 85, 1972, pp. 537 e ss.
da probabilidade do dano por suamagnitude” (B = P.L). V., a propósito da fórmula de Hand, (80) ~ Cass R. Sunstein. The Laws of Fear, disponível em http://papers.ssrn.com/sol3/
Pablo Salvador Coderch e Carlos Gómez Ligüerre. El derecho de dafios y la minimización papers.cfm? abstractJd= 274190, acesso em 20 jan 2006, onde se lê: “The basic conclusion
de los costes de los accidentes. In Dret, n. 4, 2005, disponível em http://www.indret.com, is that people make many mistakes in thinking about risk and that sensible policies, and
acesso em 20 dez 2005. sensible law, will follow statistical evidence, not ordinary people.”
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uma destas três hipóteses, não se estabelece o nexo de causalidade, não surgindo, em conse- Com relação ao fato de terceiro, como excludente de responsabilidade, também será
qüência, a obrigação de indenizar. A regra geral, todavia, se sujeita a exceções e especifica- precisodiferenciar. A ação do terceiro pode ser de dois tipos, isto é, pode equiparar-se ao
ções, como se verá, estado de necessidade ou ao caso fortuito (externo). A jurisprudência dominante enten-
Com relaçãoàs noções de caso fortuito e de força maior, o parágrafo único do art. 393, do de queo fato de terceiro que exclui a responsabilidade é aquele que nada tem a ver com
CC/2002, estabeleceque “o caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos a coisa, a pessoa ou a atividade, ensejando uma situação semelhante à da força maior.
efeitosnão erapossível evitar ou impedir”. Embora de idênticos efeitos, afirma-sehaver distin- Mas, para configurá-la, tem exigido ainda que o fato não “guarde conexidade” com a
ção teórica entre o fortuito e aforça maior. A doutrina, porém, diverge acerca dos significados atividade.90 Quando, porém, o fato de terceiro decorre de uma atividade considerada
a serem atribuídos aos conceitos. Para uns, o caso fortuito caracteriza-se quando se tratar de conexa ou quando dá ensejo a uma situação de estado de necessidade, não há exclusão
evento imprevisível e, por isso, inevitável. Se se tratar de evento inevitável, ainda que previsível, da responsabilidade perante a vítima, embora o responsável tenha ação de regresso em
configura-sea força maior.8’ Para outros, o caso fortuito seria o acontecimento natural, derivado face do verdadeiro culpado.9’ Também neste caso a distinção é perfeitamente coerente
da força da natureza, ou do fatodas coisas, como o raio, a inundação, o terremoto; na força maior com o sistema: como se sabe, ao contrário da força maior, o estado de necessidade não
exonera a responsabilidade.haveria o elemento humano, como a ação dasautoridades, a revolução, a greve, o assalto.82
Enfim, nãohá nexo de causalidade quando o dano decorre de fato exclusivo da vítima.Da maior importância atualmente resulta a distinção entreas noções de fortuito interno e
Aqui caberá analisar as hipóteses do consentimento da vítima e da assunção do próprio risco.externo.83 O fortuito interno seria o que se liga àpessoa ou à empresa do responsável (impossi- Embora aatividade possa ser considerada de risco, não será imputável ao agente o eventual
bilidade relativa, isto é, impossibilidade para o agente); fortuito externo seriao corresponden- resultadodanoso quando o bem jurídico lesionado édisponível e avítima houver dado o seu
te à força maiore surgiria com aocorrência de um fato sem ligação alguma com aempresa ou consentimento; tampouco deverá ser imputável o resultado quando a yftima assumiu volun-
a pessoa do responsável, como os fenômenos naturais ou as ordens emanadas pelo poder tária e conscientemente o risco de dano a bem jurídico indisponível. E o caso, por exemplo,
público (impossibilidade absoluta, isto é, para quem quer que seja). Daí adoutrina extrai a das lesões desportivas, das lesões decorrentes de atividades recreativas (alpinismo) ou vio-
seguinte conseqüência prática: se a responsabilidade se funda no sistema da culpa, tanto o lentas (boxe), ou do desenvolvimento de tabagismo e alcoolismo.
fortuito interno quanto o externo servirãoa exonerá-lo; se, porém, aresponsabilidade se fun-
dano risco, será mister o fortuito externo (ou a força maior) para a sua exoneração, sendo o ~ APLICAÇÃO DA CLÁUSULA GERAL AOS DANOS CAUSADOS POR AUTOMÓVEIS?
fortuito interno

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