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1 Ética e instrumentalidade em educação: construindo conhecimento com Role-Playing Games1 Ethics and instrumentality in education: constructing knowledge with Role-Playing Games Danilo Silva Guimarães2 Resumo: Este artigo focaliza o processo de construção de conhecimento a partir de negociações interpessoais de significados. Discutiremos os elementos simbólicos do jogo e apresentaremos uma compreensão sistêmica dos Role-Playing Games. Nosso interesse principal se assenta no processo comunicativo implicado nas sessões de RPG. Supomos que as sessões de jogo são um campo protegido para experimentação e manipulação de conhecimentos. Entendemos que a realização dos objetivos de jogo se dá pela apropriação dos recursos simbólicos que participam de sua composição. Por outro lado, entendemos que a criatividade e a imaginação caminham no sentido do compartilhamento interpessoal a partir de rupturas provocadas pelo contato com a alteridade do outro. Discutiremos a dualidade entre as noções de ética e instrumentalidade buscando apontar evidências da participação de processos relevantes para o desenvolvimento humano no contexto do jogo. Abstract: This paper focuses on the process of knowledge construction through the negotiations of interpersonal meanings. We discuss the game symbolic elements and present a systemic comprehension of Role-Playing Games. Our central point of analysis is the communicative process implied on RPG sessions. We suppose that the game sessions are a protected field of experimentation and manipulation of knowledge. We understand that accomplishment of players’ objectives occurs through appropriation of symbolic resources that participates of its composition. On the other hand we understand that creativity and imagination pursue the interpersonal sharing from rupture provoked by the contact with the alterity of the other. We argue that ethics and instrumentality duality pointing evidences of relevant process participation for the human development on the ludic context explored. Palavras-chave: dialogismo, construção de conhecimento, recursos simbólicos, alteridade, criatividade Keywords: dialogism, knowledge construction, symbolic resources, alterity, creativity 1 A pesquisa a que este texto se refere vem sendo desenvolvida com bolsa de e Mestrado (FAPESP Proc. no. 05/57436-9), concedida ao autor. 2 Psicólogo, mestrando pela Universidade de São Paulo. E-mail: danilosg@usp.br 2 As abordagens construtivistas (tanto em Psicologia quanto em Educação) partem da concepção de que os sujeitos são ativos reconstrutores da realidade em que vivem. Aqueles que adotam esta perspectiva, entretanto, vêem-se inquietados pela demanda de acolhimento de aspectos singulares e espontâneos de cada estudante e a necessidade de, nesse processo, ajudá-lo a constituir-se enquanto sujeito a partir dos recursos simbólicos oferecidos pela cultura, tais quais, por exemplo, compreensões históricas e científicas da realidade. Consideramos que os processos de construção de conhecimento se dão, portanto, no contexto das relações eu-outro e na complexidade de suas dinâmicas. Na atividade educativa professor e aluno ocupam diferentes lugares na proposição, negociação e organização de atividades. A inserção dos jogos de RPG como instrumento pedagógico pode assumir diferentes configurações com implicações para o processo de ensino-aprendizagem. Por um lado, o campo das atividades lúdicas é marcado por considerável indeterminação e imprevisibilidade e constitui-se como uma atividade temporária com finalidade autônoma, ou seja, desinteressada de outros contextos da vida (HUIZINGA, 1993, p. 12). Por outro lado, diversos estudos e autores têm demonstrado os efeitos positivos do brincar e dos jogos para o desenvolvimento humano: seja no processo de apreensão da cultura, na aquisição de habilidades cognitivas ou em elaborações afetivas (por exemplo, PIAGET, 1994; VYGOTSKY, WALLON, 1989; WINNICOTT, 1975). Huizinga (1993) discute amplamente as raízes lúdicas dos elementos culturais e aponta o divertimento que participa dos jogos como característica primária da vida, presente desde o próprio nível animal. Ao explorar a evidência do jogo enquanto “estrutura psicológica universal”, presente em todas as culturas, Bussab (2006) cita como exemplo os jogos de esconde-esconde – verificado no repertório dos bebês – e as brincadeiras de faz-de-conta. A discussão da educação em termos de ética e instrumentalidade, em relação a qual procuraremos inserir os jogos de RPG, encaixa-se no contexto das dicotomias historicamente presentes nas filosofias que embasam as compreensões psicológicas do ser humano e seu processo de construção de conhecimento. Essas dualidades se apresentam sob polaridades detectadas por alguns autores que as tentaram superar, entre inatismo x empirismo (PIAGET, 1973, p. 5), inteligência prática x pensamento (WALLON, 1989), aprendizagem e desenvolvimento (VYGOTSKY, 1994). A instrumentalidade ao visar à manipulação de objetos e métodos definidos de conhecimento – por exemplo, domínio das técnicas de jogo do RPG para efetivação de um processo de ensino-aprendizagem visando um conteúdo curricular específico – não abarca, contudo, a dimensão ética da relação eu-outro (professor-aluno, por exemplo). A significação 3 ética de outrem implica, segundo a perspectiva que adotaremos nesse artigo, uma relação com o outro que significa a partir de si-mesmo e que não se adequa a qualquer compreensão que dele possamos fazer (por exemplo, LÉVINAS, 1964). Acolher o outro em uma relação que não é de poder, na significância de seu rosto e de sua palavra, implica abertura para expressões espontâneas do outro em que não cabem previsibilidade e controle. Supomos que é a partir da significância dessas relações eu-outro, contudo, que as construções humanas são desconstruídas e reconstruídas sob novas bases. Em outro nível de análise, compreendemos que essas construções e reconstruções se realizam através do uso de recursos simbólicos (ZITTOUN et al, 2003; ZITTOUN, 2006). O uso de recursos simbólicos, por sua vez, pode evidenciar, dentre outras coisas, as aquisições conceituais cognitivas. Apresentaremos algumas de nossas reflexões acerca dos aspectos ético-motivacionais presentes no jogo de RPG. Abordaremos esses aspectos a partir das interrelações jogador(es)- narrador e o conteúdo do jogo simbolicamente mediado, ou seja, procuraremos compreender de que modo a interação com os outros desperta o desejo do conhecimento. A partir de então, e ao longo de todo o trabalho, argumentaremos a favor da idéia que “(...) compreender é inventar, ou reconstruir através da reinvenção, e será preciso curvar-se ante tais necessidades se o que se pretende, para o futuro, é moldar indivíduos capazes de produzir ou de criar, e não apenas de repetir” (PIAGET, J. 1973, p. 17). Supomos que jogo se constitui como um campo protegido de experimentação e manipulação de conhecimentos. Procuraremos elaborar uma forma de entendimento do RPG como algo que, além de ser uma possível e útil ferramenta a ser utilizada pelo educador para a transmissão de conteúdos, também possui um valor intrínseco para a constituição ética do sujeito, valor este que compartilha com as demais atividades lúdicas às quais o sujeito adere. Introduziremos a seguir algumas noções fundamentais referentes à nossas investigações acerca dos jogos de RPG. Atuaremos interdisciplinarmente no campo da Filosofia e da Psicologia Semiótico- Construtivista. Focalizaremos o estudo da interação verbal e processos de construção de conhecimento que ocorrem durante o jogo de RPG. Exposição da perspectiva metateórica A compreensão do papel potencial dos jogos de RPG no processo educativo não pode se furtar à compreensãodo que seja a dimensão lúdica e suas características essenciais. Procuraremos introduzir os aspectos essenciais do jogo a partir de seus elementos simbólicos 4 e da sua relação com a aquisição de conceitos científicos. Os jogos de RPG se desenvolvem predominantemente a partir das interações verbais de seus participantes que dialogam sobre as regras, o cenário e as ações dos personagens. Estudaremos as dimensões do jogo a partir da perspectiva do diálogo (dialogismo) e da ética no acolhimento da expressão do outro ao se constituir uma narrativa coletiva. Johan Huizinga (1872-1945), professor e historiador holandês, em sua análise da noção de jogo e sua expressão na linguagem aponta que a palavra jogo, originária do latim jocus, jocari, tem um sentido original de fazer piada, humor ao passo que o termo ludus se vincula às noções de simulação e ilusão. A proposta de Huizinga (1993), ao discutir os jogos, procura integrar este conceito ao de cultura e caracterizar o caráter lúdico das manifestações culturais, ao longo da história. Em sua compreensão do lúdico, enquanto fenômeno cultural da vida, ele aponta a tensão, a alegria e o divertimento como fortes características dos jogos. Segundo ele, o jogo produz uma descarga de energia com divertimento que transcende as necessidades imediatas da vida e confere um sentido às ações humanas. O jogo cria uma realidade autônoma imaginada e se estabelece como “uma esfera temporária de atividade com orientação própria” (HUIZINGA, 1993, p. 11). A satisfação presente nos jogos decorre da realização própria da atividade de jogar circunscrita no tempo e espaço. Em sua circunscrição está implicado um conjunto de regras acordadas entre os participantes do jogo para a definição de resultados em relação àquilo que está em jogo. Decorre, portanto, que para jogar, os participantes precisam conhecer as regras e saber manipular os elementos em jogo de maneira prática. Nos jogos de representação, por sua vez, está presente a fruição de um mundo imaginário. A representação reduz a realidade às elaborações do eu, que o faz a partir de seus elementos culturais interiorizados. De acordo com Zittoun (2006), os elementos culturais são mediações semióticas ou atos representacionais que se constituem como recurso a partir de seu uso intencional no contexto de transições significativas no campo da experiência cultural. Os usos dos recursos simbólicos podem ser verificados em relação à realidade social compartilhada, relações eu- outro ou nos processos de reflexão intrapessoal. A noção de uso corresponde, nesse caso, ao emprego de objetos como instrumentos para se fazer algo: agir sobre ou a partir do mundo físico, do mundo social e da realidade psíquica. Os recursos simbólicos atuam para reorganizar o caos e a incerteza da situação presente, tal como se apresenta a cada sujeito. Eles sugerem possíveis ações e, conseqüentemente, geram novos problemas. No processo de transformação, são os dispositivos simbólicos que suportam a reorganização. Ao serem internalizados modificam entendimentos de experiências e disponibilizam um reajuste a partir 5 de novas experiências (ZITTOUN et al, 2003, pp. 418-419). O processo de uso de recursos simbólicos é orientado para o futuro, mas pode ocorrer em diferentes níveis de reflexividade. É na interação interpessoal, e a partir do uso dos recursos simbólicos, que se constroem os objetivos das ações. Os recursos simbólicos oferecem definições temporalmente estáveis, permitem a trilhagem de possíveis caminhos de ação para o objetivo. Eles são, portanto, um tipo especial de baliza (constraint3) de que o sujeito dispõe para produzir uma tensão a partir da diferença entre o que se percebe como ‘sendo agora’ e o alvo da ação, pautado no desejo. (ZITTOUN et al, 2003). Os recursos simbólicos podem ser entendidos como ferramentas culturais do pensamento e das ações humanas (ZITTOUN, 2006, p. 104). A noção de ferramenta cultural também foi pensada por Vygotsky (1994) na sua teorização a respeito da linguagem. A fala, para ele, é tal qual um instrumento visível, uma ferramenta caracteristicamente humana para o alcance de objetivos em suas ações. As palavras internalizadas permanecem como importantes mediações das ações humanas: Usando palavras (uma classe desses estímulos) para criar um plano de ação específico, a criança realiza uma variedade muito maior de atividades, usando como instrumentos não somente aqueles objetos à mão, mas procurando e preparando tais estímulos de forma a torná-los úteis para a solução da questão e para o planejamento das ações futuras. (VYGOTSKY, 1994, p. 35) Dentre os recursos simbólicos, ou ferramentas mediacionais usadas pelo ser humano, estão os “conceitos naturais” e os “conceitos científicos” (VYGOTSKY, 2001), no qual apresentam-se integradas as dimensões significante e significado da palavra. A chave para o estudo de conceitos, na concepção vygotskyana está no “estudo do emprego funcional da palavra e do seu desenvolvimento, das suas múltiplas formas de aplicação qualitativamente diversas” (VYGOTSKY, 2001, pp. 161-162). De maneira complementar, na perspectiva de investigação que adotamos, a capacidade de representação de determinados conteúdos é dada pela possibilidade de negociação de aspectos dos conteúdos expressivos entre os interlocutores (por exemplo, professor e aluno). Nesse sentido, na construção de conhecimento está implicado o processo comunicativo. Bakhtin (1992) ao propor o enunciado como unidade de análise do processo comunicativo afirmará que esse processo ocorre sempre a partir ponto de vista de cada 3 Optamos aqui por traduzir o termo constraint (Valsiner, 1998) por baliza, cabendo informar que há traduções do termo para o português que utilizam a palavra constritor. Nossa opção fundamenta-se no fato de que a noção em Valsiner (1998) implica não só limites, mas também possibilidades de ação. Isto nos parece mais bem indicado pelo termo baliza que, além do sentido de limitar ou constringir, comporta também os sentidos de sinalizar, demarcar e distinguir (cf. FERREIRA, 2006). 6 interlocutor (a perspectiva do falante, por exemplo). Cada enunciado é caracterizado pela peculiaridade de conteúdo e está imbricado no referencial emocional do falante quando ele endereça a fala ao ouvinte. Isso significa que cada fala pode produzir múltiplas interpretações, ao invés de apenas uma interpretação correta, porque o correto irá depender dos modos de questionamento da relação entre o falante e o ouvinte. Em suma, irá depender das negociações através do encontro polifônico das várias vozes envolvidas na conversação. Na comunicação, resumidamente, o que importa é: “quem diz o que para quem quando” (WERTSCH, 1991; SIMÃO, 2003). O significado da fala é, nesse sentido, dialógico (BAKHTIN, 1992; WERTSCH, 1991; VALSINER, 1998). A noção de interação dialógica adotada por Bakhtin pressupõe um processo cuja natureza particular é a de complementaridade e mútua interdependência das entidades interatuantes, em contraposição à idéia de interação entre entidades relativamente independentes entre si. Conforme essa noção, ao tomarmos a relação eu-outro e eu-mundo no processo comunicativo – ou seja, como uma relação de complementaridade e interdependência – nem eu, nem outro e nem mundo podem ser concebidos um à priori do outro. Pelo contrário, eles vêm à existência juntos, tal qual uma relação figura-fundo: o que se torna ‘figura’ pode ser distinguido apenas em relação ao que se torna ‘fundo’. A alteração da figura implica, portanto, modificação no fundo e vice-versa (MARKOVÁ, 1997). Concebemos, portanto, uma diferença entre a literalidade do significado de um conteúdo e a possibilidade de reconstruções criativas de um discurso para além das padronizaçõesliterais. Entendemos a idéia de literalidade como um tipo de padronização autoritária que estabelece um conteúdo transmitido e aceito apenas em sua completude (BAKHTIN, 1981, apud WERTSCH, 1991). A capacidade de negociação, desse modo, além de caracterizar a capacidade representativa do sujeito em relação ao conteúdo, se aproxima da noção de compreensão de Piaget (1973) e dos objetivos apresentados por ele em relação ao processo educativo que apresentamos no início desse texto. Para Bakhtin (1992), na produção de enunciados comunicativos é fundamental a compreensão e o bom uso dos recursos da língua. A inteligibilidade de uma oração, que se encontra no nível da língua e aponta para uma entidade de sentido, entretanto, não se identifica com a totalidade do enunciado que proporciona a possibilidade de responder (de compreender de modo responsivo). Para ele, o que caracteriza a comunicação verbal é a predeterminação de posições responsivas entre os interlocutores. A alternância entre sujeitos falantes compõe o contexto do enunciado e o acabamento do enunciado é comumente marcado por uma totalidade que nos remete à possibilidade de responder. 7 A negociação de idéias implica a relação entre seres criativos, conforme enfatiza Bakhtin (1992), o pensamento, seja filosófico, científico ou artístico, “nasce e forma-se em interação e luta com o pensamento alheio” (BAKHTIN, 1992, p. 403). A relação com os objetos de conhecimento, por sua vez, é diferente da relação entre os sujeitos construtores do conhecimento: “(...) Qualquer objeto do conhecimento (incluindo o homem) pode ser percebido e conhecido a título de coisa. Mas o sujeito como tal não pode ser percebido e estudado a título de coisa porque, como sujeito, não pode, permanecendo sujeito, ficar mudo (...)” (BAKHTIN, 1992, p. 403). Encontramos, portanto, em Bakhtin (1992), uma dimensão ética que enfatiza a impossibilidade de reificação dos seres humanos sujeitos do conhecimento. A atitude ética consiste, também para Lévinas (1954), na preservação da singularidade do homem que não pode ser abordado como objeto ou produto de generalizações, ou seja, não pode ser apreendido como “(...) um conteúdo conhecido, qualificado, captável a partir de uma idéia geral qualquer e submetido a esta idéia (...)” (cf. p. 50). Lévinas (1954), por sua vez, também aposta no discurso como a possibilidade de relação com o outro sem violência. A possibilidade da linguagem despertaria não apenas o que é comum entre eu e outrem, mas também a singularidade do homem. Na abertura para a linguagem, na relação social, Lévinas (1954) defende a manutenção de um campo de interlocução em que a figura de outrem é sempre invocada, ainda que não se apresente na experiência imediata. Uma vez que a singularidade de outrem é irrepresentável e impossível de ser totalizada, a abertura do campo da linguagem se faz necessária enquanto imposição de um desejo originalmente ético. Por outro lado, concebemos que a tentativa de compartilhamento de objetos e representações de um mundo cultural produz alterações nas pessoas que participam do processo relacional dialógico. Compreendemos que na suposição de um mundo cultural comum está implicada uma perspectiva imaginária de compartilhamento: imagina-se que outrem pensa, sente e significa a realidade da mesma maneira que eu. Nesse sentido, aceitamos as proposições do outro e o fazemos pensar que aquilo que oferece faz sentido (o mesmo sentido) para o eu. Segundo Valsiner (1998, 2001) e Zittoun et al (2003), alguns instrumentos culturais são usados para garantir o compartilhamento interpessoal, dentre eles, as redundâncias de balizas e canalizações, realizadas por meio de recursos simbólicos. Discutiremos a seguir os jogos de RPG e seus recursos simbólicos e procuraremos esboçar as principais oposições dialógicas que encontramos nas situações vividas pelos jogadores. Acreditamos que o entendimento do campo dialógico do jogo poderá nos ajudar a 8 compreender dimensões da relação eu-outro em que estão implicadas a instrumentalidade (uso e fruição de recursos simbólicos) e a ética (abertura e acolhimento do outro em sua singularidade). Os jogos de RPG e seus recursos simbólicos Durante nossas investigações, no período de Iniciação Científica (2004-2005), realizamos gravações em áudio e vídeo totalizando cerca de 10 (dez) horas de sessões de jogo e entrevistas entre jogadores de um mesmo grupo de RPG, composto por estudantes universitários. Os procedimentos e metodologia referentes a essa análise podem ser encontrados em Guimarães e Simão (2006). Para os objetivos desse trabalho escolhemos apresentar um mapeamento que visa esboçar as principais oposições dialógicas que encontramos nas situações vividas pelos jogadores e os recursos simbólicos suportados por cada uma delas. Consideramos que uma das principais vias de transformação no desenvolvimento humano ocorre através da busca do sujeito pelo compartilhamento de experiências com o outro. Pensamos que as sessões de RPG constituem um enquadre empírico interessante para abordar o processo de negociação de significados por duas razões: 1) Por um lado, o RPG não se destaca como acontecimento esporádico, mas é parte inerente da vida cotidiana, rotineira, dos jogadores. 2) Por outro lado, por ser um espaço lúdico, fantasioso, o RPG permite descontextualização da própria ‘vida real’. Nesse sentido, as relações eu-outro podem ser vivenciadas em ambos os níveis, real e imaginário. A primeira versão dos RPGs modernos foi lançada em 1974, por Dave Arneson e Gary Gygax, que adaptaram os populares jogos de estratégia de guerra, para jogos com personagens fantásticos. Ao invés dos jogadores atuarem no manejo de exércitos como nos tradicionais jogos de batalhas entre miniaturas, um dos jogadores passou a fazer o papel de personagem de uma aventura, enquanto o outro organizava o cenário e interpretava personagens secundários. Dessa maneira, iniciou-se a interpretação de personagens individuais e ‘encarnados’, em contraposição ao manejo de grupos de miniaturas. Nesse sentido, os RPGs guardam semelhanças com jogos de faz-de-conta infantis, em que cada criança assume o papel de um personagem diferente de si mesma, e atua no enredo de uma história. No RPG cada participante faz o papel de um ou mais personagens que deve atuar em uma aventura imaginária (Jackson, 1994). 9 Iremos explicar com mais detalhes o funcionamento do jogo a partir de um quadro de oposições dialógicas que compomos ao longo das investigações e que descreveremos em seguida: FIGURA 1 – QUADRO DE OPOSIÇÕES DIALÓGICAS DAS SESSÕES DE RPG FONTE PRÓPRIA: Quadro de oposições dialógicas de relações interpessoais e intrapessoais e os recursos simbólicos mediadores dessas relações. A oposição narrador-jogador (ou jogadores) define dois tipos diferentes de jogadores, que compõe o jogo de RPG, e que possuem diferentes papéis. O narrador atua como juiz, responsável pelo cumprimento de regras, ele é também o responsável por dizer aos jogadores o que seus personagens estão percebendo, vendo, ouvindo, etc. Nessa descrição aparecerá algum aspecto que se constituirá em desafio (ruptura e inquietude) para os jogadores que, por sua vez, descrevem como seus personagens atuarão diante do desafio apresentado pelo narrador. Os jogadores comumente trabalham em equipe na tentativa de solucionar o problema. Em seguida, o narrador descreve os resultados conseguidos com as ações dos personagens e assim por diante. Decorre, da oposição entre narrador e jogadores, a oposição entre os elementos do cenário de jogo (expressos pelo narrador) e os personagens (interpretados pelos jogadores). No campo intrapessoal temos que cada jogador irá elaborar um personagem que se constitui como um outro de si, imaginário, com o qual eleestabelece um diálogo interno. Caracterizamos, portanto, uma oposição intrapessoal entre o jogador e seu personagem. Da perspectiva do narrador, os elementos do cenário se constituem como sua 10 elaboração, a partir de um recurso à imaginação. Então podemos caracterizar uma oposição dialógica entre o narrador e sua produção imaginativa dos elementos do cenário. As aventuras imaginárias dos personagens eram desenvolvidas nas sessões de jogo em que os jogadores interagiam ora no campo de interação face-a-face, ora no campo das representações ficcionais, com distanciamento da realidade imediatamente vivida para o compartilhamento de uma cena. Um conjunto de aventuras jogadas nas diversas sessões compunha o que os rpgistas chamam de campanha. Em nossos estudos (GUIMARÃES E SIMÃO, 2006), analisamos os momentos das sessões de jogo em que ocorreram rupturas no diálogo. As rupturas dialógicas são importantes para a compreensão das relações interpessoais na medida em que as relações de alteridade estão entranhadas em experiências inquietantes que emergem da relação com o outro (SIMÃO, 2003). Nessa perspectiva, as rupturas dialógicas significam momentos de intensa alteridade nas relações eu-outro, diferentemente do compartilhamento interpessoal. No momento de ruptura, nos diálogos, precisamos observar os elementos simbólicos envolvidos e consideramos as posições de dominância de cada um deles. É importante notar, na ruptura, os elementos que tiveram sua dominância invertida e que, por esse motivo, poderão provocar um desequilíbrio no campo do jogo. Esses elementos podem desencadear um processo de transição (ZITTOUN et al, 2003). Por exemplo, no momento em que um jogador aponta ao narrador uma contradição percebida em relação a elementos do cenário, este pode promover uma ruptura na relação jogador-narrador que inquieta o narrador. Ele, em sua abertura às colocações do outro, reduz seu domínio sobre o roteiro que elaborou previamente para a aventura e precisará reorganizá-lo. O processo de transição é caracterizado pelo uso de recursos simbólicos na tentativa estabelecer um contexto de menor tensão para a continuidade das atividades (cf. HERMANS, KEMPEN E VAN LOON, 1992). Em suma, as rupturas no diálogo provocam inquietação e desassossego. Essa inquietação leva a uma inversão nas posições de dominância no diálogo e a uma reestruturação dos recursos simbólicos implicados no conteúdo da interação. No jogo percebemos que essas reestruturações são responsáveis por algumas produções objetivas. Atentando-nos à dinâmica do jogo e ao quadro de oposições dialógicas que apresentamos acima, poderemos notar que: 1) desequilíbrios na formação de compromisso entre narrador e jogadores, evidenciados por rupturas no diálogo, pode conduzi à elaboração de novas regra de jogo, ou seja, à modificações no sistema de regras. 2) O cenário de campanha também pode se constituir como um ambiente de tensão e conflito sujeito a constantes viradas perceptivas, desde que internamente consistente com os eventos 11 de jogo. A partir da interação dos personagens com os elementos do cenário este sofre modificações e ganha uma historicidade. 3) A primeira sessão de um jogo de RPG, em geral, é dedicada à construção de personagens pelos jogadores através da elaboração de uma ficha de personagem. Essa ficha é o recurso simbólico que mediará transformações do personagem ao logo do jogo. 4) O narrador, como apontamos inicialmente, é o responsável pela descrição do que os personagens dos jogadores percebem. Ele faz isso a partir de uma seleção ativa de elementos, que sofrerão transformações ao longo das sessões. Algumas dessas transformações são planejadas no roteiro de aventura, outras demandarão uma revisão do próprio roteiro. 5) Nos jogos de RPG, percebemos que essas reconfigurações são feitas a cada rodada ou momento do jogo. Esses momentos, por sua vez, podem assumir um caráter mais lúdico, em que a ruptura geradora de uma inquietação evidente é acompanhada de divertimento e alegria. Noutros momentos, a ruptura pode estar acompanhada de outros tipos de sentimentos, por exemplo, frustração ou indiferença, com diferentes conseqüências para a narrativa e para os sujeitos envolvidos na situação de jogo. Esses momentos de jogo ficam marcados na memória dos jogadores e constituem suas narrativas pessoais acerca da experiência socialmente vivida. Podemos considerar, nesse sentido, a possibilidade da utilização prática dos RPGs e de seus recursos simbólicos na escola. Professores de história e geografia, por exemplo, podem usar cenários contextualizados em diferentes épocas e locais. Ao fazê-lo, podem utilizar em sua composição informações de relevo, classes sociais, estruturas de poder social como recursos simbólicos para contextualizar aspectos geopolíticos e ambientais. Esse trabalho pode ser feito em parceria com professores de biologia que forneceriam, por exemplo, informações de fauna e flora em diferentes âmbitos de complexidade, a depender do percurso narrativo encaminhado pelo jogo. A matemática poderia ser aplicada na discussão de regras e no cálculo de probabilidades para lances de dados em conjunto com as determinações de leis físico-químicas. Esses elementos atuariam tanto na constituição de roteiros quanto nas fichas de personagens e participariam da dinâmica das relações entre os jogadores. O ensino de línguas também pode se beneficiar dos jogos de RPG, por exemplo, com a elaboração de aventuras em que os personagens simulam viagens e contato com pessoas de países em que se fala a língua em questão. Ao final de tudo, e na elaboração de roteiros, histórico dos personagens etc, os jogadores podem construir narrativas interessantes acerca das explorações realizadas por seus personagens em jogo. Essas narrativas também poderiam fazer parte do estudo de línguas. 12 Considerações finais As diversas facetas do uso de recursos simbólicos nos jogos de RPG – e, dentre eles conceitos importantes no quadro pedagógico – podem servir como possibilidade de experimentação do emprego funcional dos conteúdos aprendidos em sala de aula. Os jogadores ao interpretarem seus personagens precisam justificar suas ações em função de recursos simbólicos. Dentre os recursos adotados, conceitos científicos definidos em jogo podem participar do enquadre. O número de recursos simbólicos usados em jogo pode variar amplamente, bem como o número de situações em que um mesmo recurso pode ser disponibilizado. O jogo se estabelece, nesse sentido, como um campo de explorações multidisciplinares. O processo de negociação dos recursos simbólicos pode ao mesmo tempo: exercitar os múltiplos usos possíveis de instrumentos simbólicos que o educador procurar fornecer ao educando e incorporá-los a uma miríade de redes conceituais. A expressão dos jogadores, por sua vez, pode evidenciar o modo como os negociadores (por exemplo, os estudantes) constroem seu pensamento. Neste processo, aparentemente puramente instrumental do uso do RPG, observamos que a negociação de significados só pode ocorrer, no diálogo entre os jogadores. O diálogo, como afirmamos, promove rupturas nas construções previamente elaboradas a respeito dos elementos em jogo. Essas rupturas, pensadas tanto a partir da relação eu-outro como das relações que os sujeitos estabelecem consigo mesmos por meio do pensamento, promovem o desenvolvimento dos recursos simbólicos expressos pelos participantes da interação e de si-mesmos enquanto sujeitos. Por esse motivo optamos por focar relações dialógicas características dos jogos de RPG enfatizando o processo comunicativo como produção de expressões com sentido que os jogadores endereçam uns aos outros. O despertar para o outro, por outro lado, pode aparecer em momentos da relação eu- outro e eu-eu, sendo da ordem de um acontecimento (SIMÃO,2003). Uma vez que as tentativas de compreensões totalizadas dos outros nunca dão conta do transbordamento de onde parte a significação da singularidade de cada um, o desentendimento é inevitável e encontraremos rupturas no compartilhamento interpessoal. Para Lévinas, (1998), desentender- se é constatar, em nossa interioridade, nossas diferenças em relação ao outro que nos é exterior. Os desentendimentos, portanto, inquietam as pessoas que, na tentativa de reduzir a tensão e inquietação, reorganizam seus mundos: seja pela produção de novos elementos objetivos que reatam e mantém a continuidade da relação, seja pela reconfiguração do quadro 13 imaginado em novas bases em que se encaixam nas compreensões pessoais e permitem a convivência com o elemento inquietante. A reorganização requerida por experiências inquietantes exige a transição de uma configuração simbólica anterior, que o sujeito já vinha construindo, para uma outra, que não exclui a anterior, mas a modifica, em uma relação de “encaixe”. Entendemos os jogas de RPG como um processo em que se tenta ordenar uma realidade fictícia e misteriosa, o que permite a produção de afirmações transitórias da realidade por meio de representações negociadas. O processo de negociação, por sua vez, estão implicado na constituição de justificações balizadas por regras e pelo contexto histórico narrado. A tensão provocada no jogo através das relações entre os jogadores mobiliza seus participantes a construírem soluções surpreendentes e inteligentes. Ao observarmos os efeitos das ações dos personagens nas situações de jogo de RPG, percebemos que os jogadores buscam (re)elaborar o conhecimento acerca das estratégias de organização dos recursos simbólicos presentes na história co-construída. Eles podem usar este conhecimento para continuar a selecionar e criar sub-objetivos até atingirem seus próprios objetivos. Nesse percurso encontramos a participação de alguns processos psicopedagógicos relevantes para o desenvolvimento humano, em concomitância com usos instrumentais e a experiência ética nele implicados. Referências BAKHTIN, M. M. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992. BUSSAB, V. S. R. 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