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Meu pequeno jardim Paulo Gleich

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03 de janeiro de 2017
Autor(es): Paulo Gleich
Em um pequeno apartamento onde vivi tempos atrás, tive um pequeno jardinzinho de temperos, instalado, na falta de jardim, terraço ou sacada,
sobre a superfície do ar condicionado que se estende do lado de fora da janela da sala. Desde então, incorporei ao meu cotidiano o hábito da rega,
que em dias de verão precisa ser diário; no �nal da tarde, a terra que dá sustento e sustância às plantas já está seca, como se há dias ansiasse por um
pouco d'água.
Na hora de regar, geralmente à noite, ao contato das folhas com a água desprende-se um aroma de manjericão, orégano, hortelã, tomilho, como se
as plantas retribuíssem com um "obrigado" discreto, como é de seu feitio, ao meu gesto. À noite esse momento parece ainda mais mágico que
durante o dia; talvez porque a noite em si é mágica, sua penumbra ajuda a enxergar com a imaginação, ou talvez porque no escuro silêncio o olfato
consiga escutar melhor.
Regar minhas plantas não é um hábito como tantos outros, que tenho mais por obrigação do que por prazer em incorporar ao meu dia. É quase uma
pequena conquista diária: enche-me de prazer ver que elas continuam ali, que cresceram, que a murchidão do dia anterior deu novamente lugar ao
viço, que seguem vivas mesmo depois de terem quase se entregue à terra, da qual algum dia voltarão a fazer parte. A além do prazer do "obrigado", é
um senso de responsabilidade que me leva a não deixá-las de lado, mesmo em dias em que o cansaço, a tristeza ou outras ocupações parecem mais
importantes do que elas, meras plantas. Sua vida depende de mim, vivem apenas graças ao cativeiro no qual as mantenho; e somos eternamente
responsáveis por aqueles que cativamos, todos sabemos, embora nem sempre pratiquemos.
Regar as plantas é também um gesto de amor; e, como todo gesto de amor para com outro, é também um gesto de amor para comigo mesmo. Sinto-
me melhor por ver que elas estão bem, graças ao meu cuidado. Esse pequeno ato diário carrega em si uma grandiosidade espantosa: são dois
minutos de meu dia que são o dia seguinte para elas. Se lhes roubo esses dois minutos, sofrerão; se o roubo se repete muito, de�nharão. Elas
precisam muito mais desses dois minutos do que eu, e eu seria mesquinho, ruim, negligente se os negasse a elas.
A rega diária vem também acompanhada de uma certa surpresa, quase um susto: elas ainda estão vivas! Tinha, e em algum depósito de minha alma
ainda tenho, a crença de que não seria capaz de manter uma planta viva; elas estariam fadadas a morrer em minhas mãos. Confesso: sou
responsável por um �tocídio - samambaias, violetas, pés de manjericão, bonsai e até mesmo suculentas, que têm fama de duronas, já pereceram em
minhas mãos. Quando era �tocida, era um déspota que reinava absoluto e indiferente, ignorante dos prazeres que um reinado mais fraterno teria
proporcionado. Agora, cada vez que as rego, sinto-me mais leve: vejo-me mais distante do veredito de carrasco do reino vegetal que em algum
momento de minha trajetória foi semeado e cresceu em mim.
Reconheço em meu pequeno jardim improvisado, mas verdejante, coisas que vim aprendendo ao longo da vida. É possível criar, mesmo sem contar
com as condições que consideraria ideais para isso; aliás, a criação precisa de uma certa insu�ciência, o improviso é bem-vindo. A constância e a
perseverança, em alguma medida, são condição para fortalecer raízes e crescer; uma rega esporádica é gota d'água em pedra quente. Um gesto
pequeno, quase insigni�cante, pode ter outra dimensão para aquele a quem se dirige: tudo o que fazemos tem pelo menos dois pesos e duas
medidas, a nossa e a do outro, e este é um frágil equilíbrio ao qual é preciso sempre estar atento. E, talvez, mais que tudo: nem sempre precisamos
ser aquilo que, por resignado hábito, pensamos que somos.
 
Paulo Gleich é psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA); jornalista.
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SUL 21 | 03 de janeiro de 2017
MEU PEQUENO JARDIM

ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE 
Rua Faria Santos, 258 Petrópolis - Porto Alegre, RS CEP 90670-150
Fone: (51) 3333.2140 ou (51) 3333.7922 
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