Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
* CONDE J. W. ROCHESTER A VINGANÇA DO JUDEU Obras do Conde J. W. Rochester (Autor Espiritual) (Editados pela LAKE) 1 - Abadia dos Beneditinos 2 - Naema, a Bruxa 3 - Episódio da Vida de Tibério 4 -0 Faraó Menerphtah 5 - Herculanum 6 -A Lenda do Castelo de Montinhoso CONDE J. W. ROCHESTER (Espírito) (Romance Mediúnico) . ÍNDICE Prólogo 7 PRIMEIRA PARTE . A LUTA DOS PRECONCEITOS, 9 1. O Milionário 9 i 2. A Grande e Imprevista Desgraça 22 3. O Padre Martinho de Rothey 37 i 4. O Noivo Judeu 48 5. Novo Sacrifício pela Honra do Nome 71 I 6. O Fim do Sonho deSamuel 99 7. Samuel e sua Esposa 139 ' 8. 159 I 9. O Baile de Máscaras e suas Consequências 172 í SEGUNDA PARTE tO HOMEM PROPÕE E DEUS DISPÕE, 205 1. Tribunal Familiar 205 * 2. A Voz de Além-Túmulo 226 3. A Conversão do Ateu 235 4. A Confissão 25 5 , 5. A Reconciliação 26 3 6. Os Degraus da Escada 281 jj 7. Não se Aproveita u m Be m Mal Adquirido 305 8. Nemese, a Deusa da Vingança e da Punição I (segundo a mitologia) 312 9. O Pagamento da Dívida 329 * 10. A Viuvez 341 11. A Carta de Raul 350 PRÓLOGO Em sua encarnação humana, John Wilmot, Conde de Rochester, foi poeta inglês satírico e célebre por seu espírito e sua vida desordenada. Nascido em Ditchley, condado de Oxford, em 1647, morreu em 1680. Após ter efetuado ótimos estudos na Universidade de Oxford, no qual foi conhecido por original vate, viajou pela França e Itália. De retorno à alegre Inglaterra, Rochester, que tinha então dezoito anos, foi apresentado à corte. Espiritual, belo e ardente, dotado do requinte de agradar e cativar, o jovem cavalheiro brilhou na corte de Carlos II, a mais voluptuosa e corrompida da época. As obras poéticas de Rochester tiveram inúmeras reedições (1681-1756-1821) compondo-se de sátiras, canções, peças licenciosas e de um pequeno poema intitulado "Nada". As sátiras são, porém, o que fez de melhor, crivando com suas farpas os homens do poder, os ministros do rei e o próprio Carlos II, que o baniu da corte. Aos trinta anos, a saúde do poeta estava completamente comprometida e, segundo suas próprias afirmações, embebedava-se todos os dias. Perdera também, suas qualidades de coragem e bravura, de que havia dado inúmeras provas. Não resta dúvida que Rochester constitui-se de grande recurso na divulgação da Doutrina Espírita. Suas obras como autor espiritual, Abadia dos Beneditinos, Naema, a Bruxa, Episódio da Vida de Tibério, O Faraó Menerphtah, Herculanum, A Lenda do Castelo de Montinhoso e A Vingança do Judeu, além de outras lançadas por editoras diversas, são de inegável êxito junto à massa anónima. Por outro lado, a médium mecânica Wera Krijanovsky estudou e adquiriu uma ótima instrução do Instituto Imperial de São Petersburgo, na Rússia, tendo recebido estes livros de forma inteiramente inconsciente e com enorme rapidez. As narrações são ditadas com descrição minuciosa dos fatos ocorridos e revestem-se do suspense, fazendo com que o leitor se apegue com entusiasmo à leitura que faz com que os fatos revividos da poeira dos séculos se tornem realidade palpável. Certa crítica nunca perdoou neste autor espírita sua ardente imaginação. Fertilíssimo, como que dotado de asas, Rochester não respeita os horizontes e não se contém junto aos limites do concebível. Aliás, a sua escola literária impõe a que se porte assim, com seu estilo e forma inimitáveis. A Editora PRIMEIRA PARTE A LUTA DOS PRECONCEITOS 1 — O MILIONÁRIO Elegante carruagem percorria, num lindo dia da primavera de 1862, ao trote de dois magníficos cavalos, as ruas animadas da cidade dePesth(1). Frente a u m palácio, localizado no bairro aristocrático por excelência, deteve-se a fogosa parelha e um servo de libré abriu a portinhola da carruagem. Dela apeou-se com desenvoltura um rapaz elegante, vestindo-se pelo último figurino e, respondendo à reverente saudação do porteiro com leve aceno de cabeça, subiu, a passos vagarosos, a longa escadaria, de corrimão dourado, a qual levava aos aposentos do pavimento superior. — Vosso pai informou-se de vós, senhor — anunciou um dos serviçais, enquanto lhe tirava o chapéu e o sobretudo. — Está no escritório, mas pede-vos que o espereis no seu gabinete. Se m responder, o moço percorreu alguns salões, com móveis compondo um luxo exagerado, e penetrou no gabinete paterno. Vasta sala, a cujo bom gosto, na ornamentação exageradamente rica, se poderia objetar, contudo, distinguia-se das demais: todo o mobiliário era dourado; estendia-se pelo pavimento extenso tapete: aqui e ali, obras de arte, custosíssimas formando u m conjunto desarmonioso, 1 Atual Budapeste, capital da Hungria. Na época, capital do então Império da Áustria-Hungria. enchiam as mesas e os consolos; apenas a grande secretária, atulhada de papéis, e o amplo cofre-forte, à prova de fogo, indicavam o gabinete de trabalho de um negocista. Após passear, por alguns minutos, impacientemente, pelo aposento, o moço jogou-se a uma poltrona e, com cabeça voltada para o alto, apoiada no espaldar, franzindo o sobrecenho, engolfou-se nas suas meditações. Abrão Maier, velho financista, era desses israelitas que conseguem, sem explicação plausível, amealhar grande fortuna, partindo da mais completa obscuridade. De humilde loja, onde nasceu, numa pequena cidade da província, começou a vida como mascate; levando às costas a tralha de miudezas, pervagara o país e m todos os rumos, não descurando o lugarejo mais modesto. Auxiliado por um desses acasos que são aliados sempre do esforço do semita, moderado, se m medir esforços, e m pouco adquiriu pequeno pecúlio; certa especulação, com êxito concluída, num átimo fê-lo homem abastado, e o tempo, banqueiro milionário. Apesar de se manter, ele próprio, israelita a toda prova, e exato observador da Lei de Moisés, propiciara ao filho único, Samuel, educação liberal. O menino, cujo advento, após o duodécimo ano de casamento, custara a vida à mãe, era o ídolo, o ponto principal dos carinhos do velho Maier; trabalhava e amealhava, sem canseiras, novas riquezas para ele. Para educá-lo, nada poupava. Confessemo-lo, em honra a Samuel, que este soubera aproveitar com largueza os meios postos à sua disposição. Sob a direção dos mais competentes professores, no princípio, e, na Universidade, a seguir, concluíra estudos brilhantes; viajando, depois, dera à sua educação o último retoque; manejava com segurança seis idiomas, pintava com algum merecimento e era músico refinado. Dotado ricamente, porém orgulhoso e arrebatado, desprezava sua origem judaica, a qual já lhe fizera sofrer inúmeros desgostos, além de lhe vedar a entrada das casas realmente aristocráticas, que ele se empenhava em frequentar. Com a liberdade dada pelo pai, de seguir os seus ditames íntimos, vivia como fidalgo, praticava os esportes, reatava relações entre os ex-companheiros de estudos e com a juventude fina da cidade, que comparecia às suas festas de moto próprio, e à qual emprestava ele dinheiro, e m caso de precisão. E m muitas ocasiões, velhos amigos de Abrão Maier observaram- lhe o fato de o filho não frequentar jamais a Sinagoga, descurando por completo as prescrições da sua Lei, interessando-se tão-só 11 pela sociedade e costumes cristãos. O velho banqueiro, meneando a cabeça, com um risinho seco, redarguiu: — Deixemo-lo gozar a mocidade; os próprios cristãos o farão desiludir-se de tais amizadese, sem mais ilusões, ele tornará à religião de seus pais, a qual, não obstante, vive em seu coração. Samuel conta somente cinco lustros de idade; trabalha judiciosamente; possui o instinto dos negócios; uma vez que estes devaneios juvenis passem, tornar-se-á meu legítimo sucessor... Longo lapso de tempo se passara desde sua chegada; mergulhado, contudo, em seu sombrio cismar, não se apercebera disso, nem notara erguer-se o reposteiro de veludo e um ancião, barbas alvas, franzino e curvado, deter-se no limiar da porta, fixando nele um olhar escrutador. De improviso, Samuel ergueu-se e, correndo as mãos pela espessa cabeleira, exclamou com voz embargada pelo desespero e pela ira: — Oh! maldição nascer judeu! No seio desta raça abominada, de cujo estigma não nos livra nem a educação, nem o dinheiro! — Estás equivocado, filho; o ouro apaga os preconceitos mais arraigados; esses cristãos, cheios de si, abaixam a fronte até o pó, diante do judeu desprezado, no afã de conseguirem u m pouco desse metal que, nem por passar pelas nossas mãos, se encontra maculado. — Fechando com cautela a porta do aposento, o banqueiro prosseguiu: — Desde quando, porém, sentes o mórbido desejo de desprezar teus avós e a vontade de cristianizar-te? Será pelo fato de eles quase nunca comparecerem às nossas festas? — concluiu com um sorriso de malícia. — Vêm os que têm negócios conosco, ou não desejam magoarte, por causa das obrigações que te devem — obtemperou o rapaz, amargo. — Não obstante serem amáveis e afetarem igualdade, e apesar de nossa boa acolhida a essas pessoas, em sua intimidade ressoa uma nota que me faz ferver o sangue. A muitos dos que comparecem aos nossos jantares, antigos companheiros da Universidade e militares, tenho auxiliado, sem jamais lhes pedir conta de u m único soldo, e, no instante azado, retribuem com injuriosa repulsa, dandome a perceber o abismo que entre mim e eles cava a minha descendência... — Ingratos! Imbecis, arrogantes, como todos os da raça dos goys (cristãos) — exclamou o velho banqueiro, sentando-se numa poltrona. — E queres pertencer a esta classe, reconhecendo embora que vêm aqui apenas por interesse? Não és justo, Samuel, para com o Deus de nossos ancestrais. Não te obsequiou e com tudo o que pode tornar-te venturoso e, até, invejado? Não és moço, de corpo e espírito sadios, imensamente rico? Cuida por não te tornares malagradecido, e em não te unires tão intimamente aos nossos inimigos; enquanto precisarem de ti, adular-te-ão, expulsando-te como a um cão asqueroso, quando possam prescindir de ti. Desejo perguntar-te, porem, já que estamos neste assunto: Que se passa em teu íntimo, meu filho? Observo, desde há algum tempo, com amargura, que não és o mesmo; irritado, pálido, distraído, descurando-se dos negócios; confessa: que te preocupa? — Posso esperar que me ouças com indulgência, pai? Minha confissão deverá parecer-te odiosa, porém devo perecer se... se... Samuel tombou outra vez sobre a poltrona, passando o lenço pelo rosto abrasado. — Não importa a confissão que faças, pois u m direito arrogo para mim: o de conhecer a verdade. E m inúmeras ocasiões pudeste aquilatar da minha indulgência. — É exato, meu pai. Devo-te toda a verdade; ouve-me, pacientemente. Há cerca de 7 meses, como sabes, achava-me em nossa propriedade de Rudenhof. Como sempre, fazia meu costumado passeio na floresta que se estende até aos domínios do Conde de M""". De súbito, ouvi o estalar como de ramas que se quebram, e uma voz de mulher que gritava por socorro. Atirei-me nessa direção e divisei um cavalo, que caíra, arrastando na queda a amazona que o cavalgava. A o m e aproximar, o animal ergueu-se, querendo reencetar a carreira, arrastando com ele a cavaleira, presa como estava pelo pé ao estribo. Nu m átimo, cheguei junto dela e tomei as rédeas; desprendi- lhe o pé, em seguida, e no instante azado, porque o corcel, com um salto inesperado, arrancou de minhas mãos as bridas e partiu num galope. Curvei-me para a amazona, estirada ainda no chão, ergui-a nos meus braços; era uma jovem, para mim desconhecida, mas de fascinante beleza. Seu chapéu caíra, e duas ricas tranças, de um louro avermelhado, tombavam-lhe em desalinho sobre as espáduas. Inesperadamente, vi gotas de sangue correndo-lhe pela fronte. — "Estais ferida? — indaguei, sobressaltado. "Sem resposta, ergueu para mim seus belos olhos azul-escuros. Pensei comigo que o susto talvez a tivesse privado da fala, e concluí que se fazia necessário banhar e resguardar o ferimento. Próximo ao local, rumorejava uma fonte, em cujas adjacências mais de uma vez descansara. Correndo lá, molhei na água o meu lenço; regressando, porém, constatei que a jovem desfalecera. f "Banhei-lhe a fronte e procurei sanar o ferimento, que era leve; tais medidas não surtiram efeito, já que ela continuava sem sentidos. Achei-me em grande embaraço: ignorava-lhe o nome e a residência; deixá-la, para ir e m busca de socorro, isso eu não faria, porque ela 'exercia sobre mim tal fascinação que me prendia a seu lado. "Tomando súbita resolução, eu a ergui nos meus braços e rumei para nossa casa. Longo era o caminho, e além do mais exigia os -maiores cuidados aquele inapreciável fardo; juro-te, contudo, pai, que não desejaria abreviá-lo, pois não me saciava de contemplar a formos a criatura; o só contato desse corpo flébil e flexível entontecia-me. "Vendo-me chegar, ofegante, tendo nos braços uma mulher desfalecida, aproximaram-se nossos servos e me auxiliaram a deitar a jovem em um leito. Súbito, o criado de quarto; que se aproximara com u m travesseiro, disse, surpreendido: I — Senhor, esta é a Condessa de M , irmã do Conde Rodolfo; tenho-a visto algumas vezes, pois conheço sua criada, a Marta. — Então, — repliquei — expeça já um mensageiro a cavalo, a avisar o Conde de que sua irmã aqui se encontra a salvo." —• Esse Conde Rodolfo é oficial de Cavalaria e tem frequentado a nossa casa várias vezes; seu pai é camarista da Corte, não é certo? — inquiriu o velho banqueiro. — É esse, exatamente, pai! — Ignoravas, pois, que ele tem uma irmã? — E o velho banqueiro teve um sorriso de ironia — Não saberás, presumo, que estes grandes senhores estão encalacrados de dívidas. Guardo de ambos mais de uma letra de câmbio em minha carteira. Continua. — Graças aos meus esforços, Valéria (este o nome da Condessa) bem rápido pôde abrir os olhos, e agradecer-me efusivamente o tê-la salvo. — "Exagerais, Condessa — respondi-lhe, sorrindo. — Cabe-me apenas o mérito de acudir a tempo. "Ao saber que eu mandara prevenir seus familiares, com um sorriso tão encantador me estendeu a mão, que não me contive, e apertei contra os lábios sua mão. Ofereci-lhe, então, uns calmantes, que ela aceitou, informando-me, depois, que só de pouco estava ali residindo. Concluíra sua educação num pensionato da Suíça e, com uma parenta, tinha passado um ano na Itália, e almejava que viéssemos a ser bons vizinhos. "Extasiado, ouvia-lhe as palavras e me u coração pulsava tão forte que parecia estalar, quando seus olhos azuis, claros e risonhos, se encontravam com os meus. Fascinara-me! "Nossa palestra interrompeu-se com a chegada do Conde Ro- • dolfo. Abraçando a irmã agradeceu-me de todo o coração o auxílio que lhe prestara, e a notificação feita por mim, a qual os livrara da dolorosa angústia provocada pelo aparecimento do cavalo de Valéria, coberto de espuma e de joelhos feridos e sangrentos. A seguir, pediu à irmã que o acompanhasse, para tranquilidade do pai, e ofereceu- Ihe o braço. Fui com eles até o vestíbulo. Apertando-me a mão, em despedida disse-me Valéria: "Aguardovossa presença muitas vezes em nossa casa; papai e Rodolfo sentir-se-ão felizes em manifestar sua gratidão ao meu sal-' vador. Não fora a vossa pronta intervenção, eu teria partido a cabeça nas pedras e nos troncos. "Percebi da parte do Conde um olhar de surpresa em direção à irmã, mal ela terminara suas palavras e, sem confirmar o convite, com sua anuência, torceu o bigode, dizendo: j — "Suponho, Valéria, que não sabes, ainda, o nome de teu salvador; permite-me reparar este esquecimento e apresentar-te o Sr. Samuel Maier. "O tom era calmo e indiferente; contudo, apesar disso, vibrava aí u m oculto sentido, que me feriu e à jovem; olhou fixamente o irmão, depois a mim e, sem qualquer palavra, subiu ao carro. Rodolfo seguiu- a rapidamente, levando a mão ao boné, e chicoteou os cavalos. "Voltei-me, o coração desgovernado. Entendi a leve insinuação e' previ a consequência. Que eu me esquecesse da ocorrência, ordena-, vam-me a razão e o orgulho; mas, pobre de mim! atingira-me a fatalidade; lembrando-me de Valéria, não podia repousar; noite após noite, dia após dia, evocava-lhe o rosto encantador, o fascinante sorriso. "Guiado por força superior à minha vontade, dirigi-me à Quinta de M""". Afirmaram-me que os dois Condes estavam na cidade, e a Condessa não podia receber ninguém, por estar bastante indisposta; indisposição que não foi suficiente, contudo, para obstar ao seu passeio, à tarde, em carruagem. Saltava aos olhos o mau acolhimento; ' aventurei-me, apesar disso a uma nova visita... não m e receberam. Restava-me, pois, chorar em silêncio um insulto que não merecera, dado o serviço prestado. "Que dizer mais, pai? Ardia em meu imo surda revolta e, apesar disso, detal modo estava preso à minha paixão, que sofregamente busquei todas as oportunidades de ver Valéria, sem que ela mesma o soubesse; no passeio, às vezes no teatro, eu a avistava. De tempos ' a tempos, Rodolfo visitava-me, pelo motivo costumeiro, mas não falava de Valéria. "Ontem à tarde, em casa do Barão Kirchberg, com surpresa, avistei Valéria que, enrubescendo, evitou meu olhar. Não podia, porém, deixar escapar esta oportunidade de me explicar e, na salaestufa, em um momento em que ela se achava só, aproximei-me: — "Escusai-me, por vos importunar, Condessa — e inclinei-me, assim falando — é meu desejo, porém, conhecer a razão de vossa mudança de atitudes para comigo. Por que vós mesma me tratastes tão benevolamente e m e convidastes a ir ver-vos? "Tornou-se pálida e mediu-me com um olhar de orgulho e desprezo. — A explicação que provocais, Senhor, preferível seria evitá-la — disse, com acento glacial e duro, de que eu julgava incapaz aquela purpurina boca. — Sobrelevando o favor que me prestastes, desculpo, por ele, a ousadia do tom e a familiaridade que usastes para comigo, pela qual acreditei fosseis u m gentil-homem nosso vizinho. Desfeita a ilusão, agi como é dever meu; somos escrupulosos em nosso meio, Sr. Maier; devo obedecer a certas considerações em relação àqueles que frequentam o salão de meu pai e não posso exigir que se encontrem ali com aqueles de quem os separa um preconceito de raça. "Acentuando estas palavras, que, sem dúvida, provavam ser eu u m pária aos olhos dessa donzela que eu adorava, e da sua orgulhosa classe, o sangue refluiu-me todo do coração e uma nuvem obscureceu- me a visão. "Se m dúvida, apercebeu-se ela do transe que provocara, porque, mudando subitamente de tom, descansou a mão em meu braço, com aflito interesse: "— Que pálido estais, senhor. Senti-vos mal? "Recuei, como se me ferisse a picada de uma serpente. — "Deixai-vos arrastar, Condessa, e poluir-vos ao contato de um ser inferior a vós? Concedei-me, pelo menos, que vos apresente meus sentimentos e minhas escusas por haver vos tirado de sob as patas do cavalo, sem acudir ao fato de que é desonroso para os privilegiados que os homens de minha raça lhes prestem serviços; não olvidarei jamais esta lição. Permiti-me uma última pergunta, e libertar-vos-ei de minha presença — acrescentei, vendo que ela me dava as costas. — Foi o senhor Conde, vosso irmão, quem vos instruiu acerca da suscetibilidade de vossos visitantes e da diferença estabelecida entre os homens pelos preconceitos de raça? — "Sim, Rodolfo fez-me ver a inconveniente maneira como me conduzira. 16 — "Sabeis da situação em que ele próprio se encontra para comigo? "Valéria fez-se corada, olhando-me com despeito. — "Disse-me ele que vos conhecia e que frequenta a vossa casa, às vezes, porque tem negócios com o vosso estabelecimento bancário; mas, via de regra, o homem não tem precisão de mostrarse tão escrupuloso e m suas relações, o que não se faculta à mulher. "Enquanto ela discorria, retirei da carteira uma carta recebida de Rodolfo, quinze dias antes, naqual me pedia grossa importância em dinheiro, para liquidar dívidas de jogo, suplicando-me salvá-lo daquela enrascada e tratando-me por amigo! — "Vede por vós mesma, Condessa, que Sr. Conde, vosso irmão, abusa, sem dúvida, da condição invejável e masculina de estar acima dos escrúpulos, e que os preconceitos raciais não se estendem ao dinheiro. "Corada a mais não ser, Valéria arrancou-me a missiva das mãos, percorrendo-a com um olhar. Ao deparar; antes da assinatura, com "Vosso dedicado e agradecido", cravou os dentes nos lábios e estendeu-me o papel em silêncio. Afastei-lhe a mão. "Guardai-a, Condessa. Esta carta vos dirá se me fiz merecedor de tanto desprezo, salvando a vida da irmã e socorrendo ao irmão, em situação crítica. É um auxílio destituído de interesse, pois o Conde no está e m condições de m e restituir a importância; estou a par de seus negócios. "Se m esperar sua resposta, saí; não voltei para aqui, porém; dirigi-me à nossa casa de arrabalde, ansioso que me achava de ar e movimento para me refazer". Cansado, talvez, Samuel calou-se, afastando os negros anéis de cabelo que se colavam à fronte. Se m o interromper, o velho Abrão escutou a longa narrativa do filho. Alisando a barba grisalha, fixava- Ihe, de quando em quando, um olhar misto de piedade e íntimo regozijo. — Bem, que pretendes fazer, agora, Samuel? Destruir esses canalhas, creio? — indagou depois de curto silêncio. — Exato, meu pai; diferentemente, contudo, do que supões. Por ora, é meu desejo apenas ter em minhas mãos todas as letras de câmbio e obrigações aceitas pelos dois Condes. Ajudar-me-ás nesse intento? — Por que deixaria de atender tão justo propósito? Não és meu herdeiro único? Chama Levi, vamos regular esse assunto como desejas. Passados dez minutos, um homem idoso, feições pronunciadas do semita típico, apresentou-se no escritório. Era Josué Levi, primeiro agente da Casa. — Meu caro Levi — disse o banqueiro, respondendo à servil e profunda saudação do subordinado com um leve aceno de cabeça — é me u desejo estar de posse de todas as obrigações e letras de câmbio aceitas pelos Condes de M""", pai e filho; conferencie com os homens de negócios da cidade, os quais talvez estejam de posse destes títulos. Seis semanas é o prazo que lhe dou para concluir esta operação, e não me esquecerei de recompensar o seu zelo. — Sabeis, por certo, Sr. Maier, que tais documentos são de muito duvidoso valor — observou o agente. — São os Condes jogadores, despendem além de seus rendimentos; têm hipotecadas as propriedades, e acredito-os insolúveis. — Tais fatos não modificam minha resolução em nada; busque esses papéis, ainda que à custa de sacrifícios de nossa parte, e, assim que os reúna, entregue-os a Samuel, que cuidará deste assunto. Agora, meu filho, vai e descansa; não estás em condiçõesde trabalhar, não é certo? Eu o farei por dois, e tenho de falar de negócios com Levi. Cerca de três semanas depois desta entrevista narrada por nós, vamos encontrar Valéria M" e sua amiga afeiçoada, a Condessa Antonieta de Eberstein, reunidas num aposento maravilhoso, ornado profusamente das mais raras flores e revestido de seda azul. Formavam as duas jovens perfeito contraste: pequena e franzina, de tez nacarada, cabelos louros e harmonia nos movimentos ondulantes, o que lhe valera o cognome de fada, Valéria mais se parecia a uma menina, ao lado de Antonieta, com suas negras tranças, olhos cintilantes e ar destemido. Amigas desde a meninice e educadas no mesmo pensionato, queriam-se com sinceridade e passavam semanas inteiras juntas, sendo Antonieta considerada e tratada e m casa do Conde de M""" no grau de parenta próxima. Antonieta corria os olhos pelas páginas de um jornal ilustrado, distraída e cismativa, de quando e m vez lançando u m olhar perquiridor para a amiga, que parecia sonhar, os olhos postos no vácuo, recostada nas almofadas do pequeno divã. Vestia ainda um penteador branco, apesar de ser quase meio-dia, e suas mãos delicadas brincavam com as borlas do cinto que lhe cingia o talhe. Num repelão, Antonieta atirou para o lado o jornal e exclamou, erguendo-se: — Enfim, essa situação não se pode prolongar! Que se passa contigo, Valéria? Essa melancolia, essa palidez, essas cismas infini tas, tudo tem um motivo: confessa-me a verdade. Não juramos jamais esconder, uma à outra, nossos segredos? Co m leve estremecimento, Valéria endireitou-se no divã: — És impulsiva — disse, e, segurando a mão da amiga, puxoua para perto de si. — Nada devo ocultar de ti, tens razão. Antes, porém, promete-me guardar segredo total sobre o que te vou revelar, pois, para minha infelicidade, Rodolfo está com seus negócios embaraçados. Àquele nome, intenso rubor coloriu as faces de Antonieta; ensimesmada, porém, nos seus próprios pensamentos, não o notou Valéria, e prosseguiu: — Sim, contar-te-ei tudo; principiando pelo acidente que sofri nos últimos dias de setembro, vinte dias antes de teu retorno. — Ah! a tua queda do cavalo? Rodolfo contou-me esse acidente, que não foi funesto, nem transformou tua saúde. — Equivocas-te; corri, realmente, perigo de morte; mas, não sabes a quem devo a graça de que tudo terminasse bem. Não te revelei jamais o nome dessa pessoa, por não ser ela agradável a me u pai e a meu irmão. — Aí está o que é estranho. Contudo, é certo que ninguém pronunciou o nome daquele que te prestou tão inestimável auxílio. — Relatarei a história com todos os pormenores — disse Valéria, após hesitar ligeiramente. — Quando meu cavalo, Febo, tombou, caí, e minha cabeça bateu no chão com violência, obscurecendo-se tudo a meus olhos; percebi de modo vago que o cavalo se erguia e me arrastava pelas urzes, estando eu com o pé preso ao estribo. Dissipado o torpor, encontrei-me nos braços de um mancebo, muito belo, que se esforçava por acomodar-me debaixo de uma árvore; perdendo os sentidos, nada mais vi, e, quando os recuperei, estava deitada sobre um divã, junto aoqual se achava, ajoelhado, o mesmo jovem, o qual me dava a aspirar essências e, de outro lado, uma copeira de aspecto respeitável mantinha-se em pé. Reparei, então, que meu salvador era de incomum formosura; apenas a cútis morena, de um pálido ictério, denotava procedência estrangeira. "Ofereceu-me calmantes, conversou e eu, sem reservas, entre- guei-me à simpatia que m e inspirou. Por suas atitudes delicadas e pela riqueza do mobiliário, acreditei estar tratando com pessoa igual em hierarquia. Ao saber que ainda tivera a fineza de prevenir os meus, estendi-lhe a mão que ele, sem dissimular, beijou efusivamente, o que me fez corar. Deu-se pressa em chegar Rodolfo e, despedindo- me de meu salvador, convidei-o a vir visitar-nos. Imagina, po 19 rém, a minha confusão, quando Rodolfo, endereçando-me um desses ^blhares que conheces, me apresentou o jovem — era o Sr. Samuel ^/láier! 9 — Como? Samuel Maier! O filho do banqueiro judeu? — excla^ TIOU Antonieta, deixando-se cair sobre o divã, dominada por insopi^^ ável crise de riso. — Óh!, pobre Valéria, compreendo tua sorte ad^/ ersa: carregada nos braços de um judeu, e tua bela cabecinha de longos cabelos anelados descansando em peito ou ombros judeus — ^detestável! — Tal fato não é tão detestável quanto à convicção de que u m 4Jj#iomem de semelhante aparência e modos de gentil-homem é judeu, _e legítimo, nem sequer batizado — disse Valéria, com leve tremor na 9/oz. MM* Antonieta olhou com surpresa a fisionomia agitada e ardente da cimiga. éMk — E crês, verdadeiramente, Valéria, que o batismo venha a destruir semelhante origem? E com que vantagem? Não vejo, finalmente, motivo de teu imenso pesar. — Espera que eu termine. Duas vezes Maier apresentou-se em ^hoss a casa: no campo, e aqui. Por ordem de meu pai e de Rodolfo, contudo, não foi recebido. w — Medida muito razoável em que eu espero não encontres o gmaue objetar, — interrompeu a ardente Antonieta — pois os desobriga ^i o desprazer de ver em teu salão esse homem que exalará, por ^perto, o odor nauseante, característico de sua raça! Não me fites assim admirada: a hereditariedade desse odor é u m fato. 4j£ — Não, não! — exclamou Valéria, rindo largamente — Nenhum cheiro mau exala esse mancebo. Estava bem discretamente perfuma^ fco, como qualquer de nós, e seus trajes eram de elegante simplicidade. — Cuida-te, Valéria; tanto defendes esse judeu, que não me •;ust a suspeitar-te de enormidades! — exclamou Antonieta, simulando ^nquietude. ™ — Nada receies; mas, se me interrompes continuamente, não ^conhecerás a mais notável parte de minha narrativa. Há cerca de ^/int e dias, e m casa do Barão Kirchberg, encontrei-me, inesperada^ nente , com esse Maier. Pois acreditas que me pediu satisfação de meu procedimento, e co m a mais tenaz impertinência, exigiu lhe dis^ feesse por que me mantinha oculta para ele, após tê-lo convidado a ^i r à nossa casa! 9 — Forte esta, e próprio de judeu não desconfiar da razão de tal ^procedimento. J.W. ROCHESTER — Suponha, cara Antonieta, que nem parecia perturbar-se! Estava mais exasperada com essa importunação, porque me obrigava^ a envergonhar-me de mim mesma, pois é algo ingrato mostrar a porta^ da rua a um homem que nos livrou de morte certa. • — Não, quando ele é judeu... — obtemperou Antonieta. ^ — É certo; mas, acima de tudo, eu estava aborrecida e fiz-lhe^ entender, talvez muito rudemente, que seu lugar não era em nossq^ meio; ele sentiu o ultraje, porque seu rosto tornou-se de lívida palidez, e cheguei a crer que fosse desmaiar. Dirigi-me, pois, a ele con ^ palavras condoídas; ah! se ouvisses a resposta afrontosa a respeito da estima que nos inspira o ouro dos judeus! Estendeu-me, os olho^ ^ despedindo chispas de ódio e despeito, uma carta de Rodolfo, errw que lhe pedia grande soma, tratando como amigo; acrescentando que ^ nossas finanças estavam arruinadas, saiu, sem que eu tivesse tempi^ de tornar a mim. Valéria ergueu-se, vivamente, e, correndo para um pequeno^ móvel, retirou dali u m papel. — Eis a carta, veja; não ousei mostrá-la a Rodolfo, apesar démY certa de que ele não pagou tal importância. Antonieta segurou a carta, com mão trémula, e leu-a num relanceJP — Como podes estar certa — perguntou — de que esse dinhei ^ ro não foi reembolsado? m9* — Não observaste o pós-escrito — replicou Valéria, mostrando ^ lhe as linhas — Lê: "Caro Samuel, esta carta servirá como garantia^ de que pagarei minha dívida com o primeiro dinheiro de que pude ^ dispor;restituir-me-ás, então, esta, que a mãos discretas confio, creio-o bem". 9 — Primeiramente, mister se faz saber se teu irmão não pagou a esse judeu sovina, e esqueceu em suas mãos o bilhete! Esses ra^^ pazes são deveras imprudentes! — exclamou Antonieta, que tomava,^, pelo visto, o mais vivo interesse pelos assuntos do jovem Conde. l9 — Qu e grave motivo tendes para vos agitar, assim, minhas se-^ nhoras? — indagou naquele mesmo instante uma voz forte. Era Rodolfo que, sorrindo, alegremente, se aproximou das duas moças^ as quais, imersas em profundas cismas, não perceberam sua entrada. — Vamos a ver! Posso ser o juiz nessa causa? Tens as faces err^ fogo, Valéria; e vós... — e não prosseguiu, ruborizando-se, arrebatando com violência a carta que vislumbrara na mão de Antonieta. — En # que circunstâncias este papel veio ter as vossas mãos? — indagou ^ com voz rouca. — Teria tido Maier a desfaçatez de apresentar-se^ ante Valéria com suas reclamações? ^ aMf 21 — Não! Não! Foi por motivo diverso que ele me apresentou esta 'Rarta. E e m breves palavras a jovem expôs a conversa que mantivera •com o banqueiro no salão do barão Kirchberg. A Rodolfo ouviu-a cabisbaixo, e mordiscando, nervoso, o fino bigode loiro. ^ — Ainda assim, Valéria, fizeste mal em tratar esse homem com um desprezo tão evidente, sem dissimular, ao menos; é um mesqui^ ih o judeu, certamente, mas é milionário e pode causar-nos males qu e nem supões, nem compreendes — concluiu o Conde, com um ^suspiro. A — Ele afirmou, sem pejo, que nossos negócios estavam em "ruína; ao menos lhe reembolsaste a quantia a que se refere este ^bilhete ? — indagou Valéria, curiosa. Rodolfo hesitou. £ — Espero restituí-la e m breve. — Não há em breve; é necessário, ainda hoje, pagar a esse pre^^ tensioso e avaro — explodiu a impetuosa Antonieta. E prosseguiu, ar_ dente, tendo entre as suas as mãos do Conde — Rodolfo, sois meu Wamigo desde a infância, e, se tendes ainda alguma afeição por vossa ^amig a de traquinadas, permiti-me resgatar-vos de tão desprezível "compromisso. Tenho, atualmente, em minha residência, a importância ^necessária; aceitai pagar a Maier e, quando vos for possível, me restituireis essa ninharia. Vamos, dizei-me que aceitais, e m atenção £a todos os conceitos e biscoitos que, e m pequenos, lealmente repartimos. 9 Os olhos molhados, embora travessos, de Antonieta, tão arden temente suplicavam, que Rodolfo, subjugado totalmente apertou con- 9(ra os lábios a mão pequena da moça. gm> — E como recusar uma oferta feita assim? Aceito, Antonieta, •reconhecidamente, pois de alma e corpo sou vosso! A — Obrigada! Obrigada! Compreendo o que sacrificais por mim, neste instante — e a jovem corou, dizendo estas palavras. — Até ^!ogo, meus amigos, minha carruagem me espera, em baixo; vou e torno; calma, querida fada, tudo se arranjará. 9 Nesse momento, um servo ergueu o reposteiro de seda e anunciou, respeitosamente: 9 — Senhor Conde: Josué Levi, funcionário da casa bancária ^vláier, deseja falar ao senhor vosso pai. Sabedor de que V. Excia. •saíra, pediu para tratar convosco, pois o assunto, segundo diz, requer ^urgência. 22 9 # — Bem, levai este senhor ao meu gabinete, e que espere; tão pronto haja acompanhado a Condessa de Eberstein ao coche, irei ^ tratar com ele. 2 - A GRANDE E IMPREVISTA DESGRAÇA ^ Após acompanhar Antonieta à carruagem, e com ela trocar um * derradeiro olhar afetuoso encaminhou-se o jovem Conde, à pressa, ao seu gabinete. Refervia-lhe no peito um pouco ainda da dolorosa^ emoção que acabara de sofrer, o que lhe transmitia às feições um ar arrogante e frio, mais do que nunca. Mal respondendo ao profundo^ cumprimento de Levi, jogando sobre a mesa o bilhete por ele remetido outrora a Samuel, disse, ríspido: mw — Vosso patrão pretende, sem dúvida, lembrar-me o texto desta^ carta, da qual se desfez de modo tão imprudente; acalmai-o, dizei-lhe^ que hoje mesmo a quantia mencionada nesta carta lhe será paga * inteiramente. Sentou-se e abriu um livro, significando, com esse gesto, que ^ estava finda a audiência; como, porém, o israelita não arredasse pé, Rodolfo encarou-o, surpreso: — Tenho a honra de saudar-vos, Sr. Levi e... estou bastante ocupado. w — Sinto muito, Sr. Conde, por vos desiludir quanto ao assunto. — Levi saudou-o com humildade. — Não me esquecerei de transmitir™ o que me honrais em cientificar; a minha visita, contudo, prende-se* a um fim bem diverso. Estou incumbido pelo meu patrão de vos apresentar vários títulos em poder da Casa Maier, e prevenir-vos de que ^ o pagamento deve ser feito sem falta, dentro de dez dias. Aos olhos espantados do jovem Conde, expôs, abrindo sua ^ grande pasta, não pequena quantidade de obrigações e letras de câmbio, emitidas por ele e pelo pai a favor de várias pessoas da w cidade, e até da Capital. A importância das mesmas atingiu uma cifra que provocou mal-estar a Rodolfo, que nem julgava poder ter esban-^ jado tais fortunas. Foi com voz sumida que, reunindo toda sua energia, disse: " — Por quais circunstâncias esses papéis estão condensados ^ em vossas mãos? — Senhor Conde, as vossas assinaturas têm o valor da moeda 9 corrente — respondeu servilmente o judeu. — Oferecidos que nos foram como pagamento, aceitou-os nossa casa, sem obstáculos, w segura que está quanto a honrardes as vossas obrigações. Ousarei. — ainda, com vossa permissão, notar ao Sr. Conde que muitos destes títulos estão de há muito vencidos e que, em atenção a V. Excia., acordamos em esperar dez dias, a fim de lhe dar tempo às providências necessárias. Permita-me saudá-lo honrosamente, Sr. Conde! — Um momento! Rapidamente, Rodolfo escreveu algumas linhas, nas quais pedia, em tom glacial, que Abrão viesse a sua residência, com o fito de se explicar o mal-entendido. — Esquecia-me dizer-vos que o patrão encontra-se enfermo — esclareceu Levi, ao segurar a carta — Todos os negócios estão sendo dirigidos pelo Sr. Maier Filho, e, no caso em apreço, deveis entender- vos com ele. E o israelita sumiu-se pela porta, após saudá-lo com inúmeras provas de respeito. Só, Rodolfo levantou-se e, num gesto de desespero, apertou a cabeça com ambas as mãos. Nem por sonho poderia resgatar aquela soma e, não o fazendo, estariam arruinados e desonrados. Num ímpeto, rerolveu cientificar de tudo o pai. Tinha -".cabado de chegar, o velho Conde, quando Rodolfo irrompeu no aposento e, ríspido, ordenou que o criado saísse. Ao espanto do pai, ante o inesperado gesto do filho, sucedeu o desespero, cientificando-se do ocorrido. Dominou-o profunda prostração; afundou-se numa poltrona e, pela vez primeira, experimentava remorso o velho fidalgo, pelo desleixo com que se escravizara às paixões dispendiosas. O tempo, contudo, era escasso para lamentações inócuas; necessário era encontrar um meio de aparar o golpe que os ameaçava. Tomando do lápis, pai e filho fizeram o levantamento de seus recursos; ainda que dispondo da prataria, das jóias de família, das cavalarias, das carruagens e das propriedades menos oneradas, não conseguiriam a cifra necessária, não desprezando ainda a circunstância desfavorável de uma venda forçada e prematura. Pagar-se-ia, é verdade, ao judeu, vendendo tudo em leilão, e o velho cortesão era bem capaz disso, mas que lhes restaria, após este escândalo? A ruína e uma vergonha desonrosa. Rodolfo seria forçado a abandonar o serviço militar. Pesquisas em casa de vários usurários não deram nenhum resultado; apoderou-se dos dois nobres tredo desconsolo, aumentado pelo fato de não haver resposta à carta do jovem Conde. Doisdias após essas horas desesperadoras, uma nova imprevista correu a cidade: Abrão Maier falecera repentinamente, vitimado 24 por uma apoplexia, que o liquidara em três horas. Quarenta e oito horas após o enterro do velho banqueiro, Rodolfo recebeu um curtíssimo bilhete, da parte de Samuel, que lhe comunicava que das onze às quinze horas, recebia e m seu escritório todos os que tivessem negócios a tratar com ele. Caso desejasse falar-lhe, ali o acharia Rodolfo. Tremendo de ira ante o novo ultraje, o jovem oficial prometeu a si mesm o que, se a Providência o ajudasse a salvar-se da miséria e do escândalo, abandonaria todos os prazeres mundanos e seria um outro homem. Esses bons propósitos de nada lhe serviam no momento e Rodolfo, com o coração oprimido, resolveu ir, a toda a pressa, à presença de Maier; três dias o separavam do fim do prazo do pagamento, e era seu desejo poupar ao velho pai a penosa entrevista. Encaminhou-se, assim, ao escritório, e foi sem tardança introduzido no gabinete de Samuel, o qual se ergueu, cumprimentando-o, e lhe ofereceu, obsequiosamente, uma poltrona. Entre eles estabeleceu- se u m instante de silêncio. A morte dopai influíra bastante sobre Samuel: estava magro e pálido; entre as sobrancelhas, cavara-se uma ruga profunda. Expressão ríspida e amarga lhe repuxava os lábios. — Pesa-me sobremaneira, a mim, Sr. Maier, — principiou Rodolfo, com incontida irritação — falar sobre o motivo que me trouxe. Permiti-me dizer-vos, aqui, que sei bem as causas da vossa atitude. Pois bem: não é digno buscar, por vingança contra uma jovem, a minha irmã, por todos os meios, a ruína de uma família, fazendo pagar, com a miséria e a desonra, algumas palavras afrontosas. — Olvidais — cortou friamente o banqueiro — que tais palavras inspirou-as as sutis explicações de seu irmão! — Sim; confesso: sou responsável pela afronta que lhe fez Valéria; contudo, Sr Maier, não sou eu o primeiro, nem o último, de minha classe, que se acha preso de preconceitos que a vossa raça de há muito tempo se esforça por enraizar. É por semelhante motivo, portanto, que buscais arruinar-nos? — Absolutamente; de vós, Conde, depende o conciliarmos a questão de um modo amigável, e quero crer não sofrestes, de minha parte, até este dia, as qualidades desagradáveis que assacais à minha raça. — Oh! Se consentirdes em um acordo amigável — exclamou o jovem Conde, animado.— Peço-vos, de todo o meu coração, Samuel, desculpas por vos ter ofendido. Concedei-nos a moratória de um ano, tempo necessário para as reformas em nossa economia doméstica e 25 algumas vendas, sem prejuízos, e liquidaremos literalmente nosso débito. Acre sorriso escorregou pelos lábios de Samuel. — Enganai-vos, Conde. Não se trata de desculpas entre nós; nem sequer uma hora vos concedo de prorrogação e se não me pagardes dentro destes três dias, porei sob penhora quanto possuis. Existe, somente, uma terceira solução, e de vós decorre eu adotá-la ou não, e só então queimarei todos os papéis da dívida e nada vos tornarei a pedir. Rodolfo encarou-o, completamente surpreendido: — Não chego a entender-vos — disse. — Que exigis, pois, de mim? Com gesto de irritação, Samuel empurrou os papéis empilhados e m sua frente, e brilhou-lhe nos olhos estranho fulgor. — Escutai, Conde, a minha proposta: dai-me por esposa a Condessa Valéria e todas as obrigações que pesam sobre vossos haveres serão por mim destruídas. O rosto pálido de Rodolfo cobriu-se de uma onda de sangue e, empurrando violentamente a cadeira, ergueu-se: — Enlouquecestes, Maier? Rides do nosso infortúnio? Valéria esposar-vos! Olvidais que sois ... E não completou a frase. —... um judeu! — concluiu Samuel, com voz gutural. — Mas um judeu que não o será mais, pois é meu intento batizar-me. Além disso, para contentar o orgulho de vossa irmã, dei os passos necessários para adquirir u m antigo baronato, e m toda a descendência extinto, e conseguir do Governo o direito de usar o título e o nome das terras. Preferiria, é certo, conquistar Valéria de modo diverso; minha origem, porém, é u m obstáculo. Uso, por isso, de todos os meios para obter a mulher que fez brotar em mim uma dessas paixões fatais e desatinadas, que aniquilam um homem e o arrastam ao crime. Isto que vos digo, custou a vida a meu pai. Ante a iminência de me ver cristão, sobreveio-lhe a apoplexia que o matou. Se uma tal ocorrência não teve o condão de mudar minha atitude, haveis, de compreender que não há obstáculo algum capaz de me deter. Reitero- vos meu desejo, pois, a mão da Condessa Valéria ou a desonra! Escolhei, nestes três dias, entre mim e a miséria total! Meditai calmamente sobre estas coisas, e não vos parecerá desmedida a minha proposta. Nestas alturas, porém, Rodolfo estava absolutamente incapaz de analisar friamente semelhante proposta. Com olhar de supremo desprezo, mediu o jovem banqueiro e respondeu, com uma voz rouca e trémula, que denotava a tormenta que lhe ia na alma. — Necessitaria ser judeu para ponderar, com frieza, as vantagens de tal ajuste, e ainda que fossemos ignóbeis bastante, para concordarmos com essa combinação degradante, Valéria nunca se submeteria a isso... e aprendei, se o ignorais, que o coração da mulher conquista-se, não se negocia. Se m esperar contestação, Rodolfo atirou-se para fora da sala; não percebeu o rubor que queimava a face de Samuel, e o clarão de u m ódio que lhe acendia chispas no olhar. — Conquistar o coração damulher! — murmurou em tom acre — Tentá-lo-ei, assim que esteja aberto o caminho para ele! A qualquer preço! Quando o filho regressou, desarvorado, e lhe deu a conhecer o resultado da entrevista, o velho Conde de M'"" julgou que ia enlouquecer. Pálido, sem voz, deixou-se cair sobre uma poltrona; só o pensar em entregar a filha, sua Valéria, ao insolente judeu, revolvia-o de pesar e de orgulho ultrajado. — Ah! sempre essa raça daninha — murmurou ele, finalmente, — raça que se banqueteia, há séculos, no sangue dos cristãos; este cão abjeto pretende, da mesma forma, não obstante seu verniz de civilização, repastar-se na carne humana, qual o Shyloc da Idade Média. Jamais terei a triste coragem de dizer à inditosa filha, o que nos propõe ousadamente. Seria o mesmo, se lhe exigisse esse sacrifício, que lhe pedir o da própria vida, e semelhante arranjo vale por uma desonra tão grande quanto a ruína. — Penso do mesmo modo, pai; também eu não tenho forças para contar a Valéria toda a verdade, e tenho para mim que, um tiro de pistola, bem dirigido, afastará de maneira mais digna este obstáculo. Abatido, o velho aristocrata baixou a cabeça. Oh! quanto deplorava, agora, os excessos de sua juventude, as doidices de sua idade provecta, e esse mau exemplo com que levaria o filho aos caminhos da leviandade e da dissipação! Valéria, objeto de toda a celeuma, não estava ainda sabedora da tormenta que se formava sobre a cabeça dos seus; a agitação nervosa, a sombria preocupação dopai e de Rodolfo entravam-lhe pelos olhos, e terrível ansiedade, a presciência de um grande infortúnio lhe possuía a alma. Natureza flébil, lânguida e impressionável, Valéria deixou-se abater pressentindo a chegada do perigo, e apenas Antonieta, com sua presença, pôde evitar que ela caísse doente dada a inquietação em que vivia. No dia da entrevista fatal, então, quando os 27 dois Condes escusaram-se de comparecer ao jantar, a angústia de Valéria não conheceu limites. — Afianço-te que nos ameaça u m grande infortúnio, e algo de medonho se prepara contra nós — exclamou. — Hoje, de minha janela, vi quando Rodolfo desceu do carro, paraentrar em casa; parecia embriagado, e apresentava feições que nunca lhe vi. Mais tarde desejando ir aos aposentos de meu pai, não fui introduzida; agora, não comparecem ao jantar... Oh! meu Deus, que desgraças nos estão reservadas? O coração de Antonieta encheu-se de amargura; não se atreveria ela mesma a confessar quanto Rodolfo lhe era querido, e esse absurdo perigo que parecia ameaçar o ente amado tirava-lhe o descanso. Mais decidida, porém, do que Valéria, resolveu pôr fim àquela dúvida — Calma, Valéria. Escreverei um bilhete a Rodolfo, pedindo-lhe que me conceda, sem mais tardar, um instante de conversação. A mim, não me esconderá a verdade! Rascunhando às pressas algumas linhas, retornou para perto da amiga que, da agitação, passara a um evidente mal-estar; com rogos, acabou por deitá-la num divã, desatou-lhe as tranças para aliviar-lhe a cabeça ardente e cobriu-lhe os pés com um manto. Mal terminara esses cuidados, e um servo veio anunciar a Antonieta que o jovem Conde a esperava no terraço. Rodolfo encostava-se a uma coluna, braços cruzados; não levantou a cabeça senão quando Antonieta lhe tocou no braço. Diante da palidez e da contração nervosa das feições do Conde, a moça exclamou: — Que vos sucedeu, Rodolfo? Contai-me, por piedade! Atraindo para um banco o jovem oficial, sentou-se junto dele e tomou-lhe a mão. — Falai com franqueza, meu amigo; o que vos perturba, desta maneira atroz, não deve permanecer para sempre oculto; confiai a um coração fraterno. — Não sou digno de sua amizade, Antonieta, — sussurrou ele com os dentes apertados — Miserável que sou! A desgraça que paira sobre nós, eu ajudei-a a acumular-se; só uma bala me libertará! Não abandoneis, porém, Valéria, a vítima inocente, nesta desgraça! A donzela desferiu u m grito sufocado. — Rodolfo, não é digno de u m nobre e honrado fidalgo o que acabais de dizer. Fracassastes, dizeis-me; mas, é com um crime que se repara u m erro? Jurai-me abandonar esse fatal pensamento, ou será preciso que vos declare que a bala atravessará também o meu coração após passar pelo vosso? O jovem Conde estremeceu e terna alegria iluminou-lhe o rosto num clarão. — Antonieta, minha querida, não compreenderás, por certo, o que sinto neste momento. Não tenho para te ofertar nem um nome honrado, quando é meu desejo consagrar toda a minha vida à tua felicidade. Agora, que estás certa de que te amo, vou dizer-te toda a verdade: não és, apenas, ainda, a minha colega de infância, és também a metade de minha alma e tens direito à minha completa confiança. Atraindo-a para si, expôs pormenorizadamente, o estado de suas finanças, as peripécias dos últimos dias, concluindo pela proposta injuriosa de Samuel. — Por aí vês, Antonieta — concluiu — que nos falta a necessária coragem de pedir a Valéria um sacrifício que equivale ao de sua vida, e como nos é impossível continuarmos vivendo depois de tal infâmia. A jovem ouvia, palpitante e comovida; às palavras finais do Conde, fez-se pálida. — Oh! não, Rodolfo, eu te repito que não se lavam os erros com um crime. Oh! se eu tivesse alcançado a maioridade, livrar-te-ia logo do embaraço; ao meu tutor, porém, embora bondoso, não posso pedir a metade de minha fortuna. — Acreditas-me capaz de aceitar semelhante sacrifício? — cortou Rodolfo, de modo brusco. — Não te zangues, querido, e conversemos razoavelmente. Correndo a mão pela fronte úmida, acrescentou: — De qualquer modo, nada há no mundo capaz de impedir a nossa união, visto que nos amamos; julgo, porém, obrigação nossa, por outro lado, tudo revelar a Valéria, antes que se consuma a ruína da família; entanto, não te apoquentes; tudo chegará a bom termo, Deus se apiedará de nós. — Meu anjo bom, Deus é cheio de misericórdia — murmurou o jovem, cingindo-a ao peito — pois permitiu ligar minha vida à tua, nesta hora de cruéis tormentos. Vai, portanto, e fala à minha infeliz Valéria, a fim de que ela mesma decida do seu e do nosso porvir. Transtornada, com o coração cheio de amargura, Antonieta dirigiu- se ao aposento da amiga. À porta, parou, e olhou, com tristeza e admiração, para Valéria, que permanecia estirada na espreguiçadeira, e levemente dormindo. Ela estava fascinante naquela posição, 29 graciosa no seu abandono, mechas de seus longos cabelos, desatadas, descansavam sobre o tapete, brilhantes como cascata, à luz de uma lâmpada fixada no teto. — Como é bela! Sem dúvida é capaz de inspirar a um homem louca paixão! — pensou Antonieta, suspirando — Como dizer-lhe, porém, que somente ela é a vítima destinada a sacrificar-se pela ventura dos seus, casando-se com esse judeu abominado? Chegando-se à jovem, inclinou-se e osculou-a na testa. Valéria abriu os olhos, endireitou-se. — És tu, Antonieta? Quanto demoraste! E m teu rosto percebo que nada de bom te contou Rodolfo. Antonieta sentou-se junto da amiga e apertou-lhe a mão com firmeza. — Adivinhaste, minha pobre Valéria; bem tristes coisas tenho a dizer-te; poderias ouvir com coragem toda a verdade? A donzela fez-se pálida; apelando, porém, a toda a sua energia, murmurou: — A mais dolorosa verdade é preferível à incerteza, à expectativa de uma ignota desgraça. Conta-me, portanto, Antonieta; estou pronta a inteirar-me de tudo e a todos os sacrifícios. A condessa de Eberstein narrou, com os cuidados que lhe inspirava a amizade, a tremenda verdade, observando, inquieta, a lívida palidez da amiga, e o tremor nervoso que se apossava dela, a pouco e pouco; quando fez menção da condição estipulada por Samuel, Valéria soltou um grito e saltou do sofá, como se a movesse poderosa mola. — Desposar Maier! Mas, isto não é sacrifício apenas, senão uma prolongada e indefinida tortura! Se apenas se tratasse de morrer!... Viver com esse judeu imundo e nauseante, oh!... Valéria pôs-se a andar, agitada, pelo quarto, ora estorcendo as mãos, ora quase sufocada pelos soluços, num desespero atroz. Súbito, parou junto a Antonieta, que chorava e m silêncio. — Ouve-me — pediu ela, com o olhar brilhante defebril agitação - eu não tenho o direito nem a força de deixar perecer meu pai e Rodolfo; todo condenado à morte, porém, tem o recurso de apelar para uma graça; eu também tentarei, e irei mesm o pedir a Maier que nos conceda a moratória, independente de exigir minha mão, que não lhe trará felicidade. Hoje, ainda, farei isso! Antonieta segurou as mãos da amiga, espantada: — Valéria, é uma loucura o que vais tentar; onde, e de que modo verás este homem? 30 , — Tenho tudo calculado — interrompeu Valéria, impaciente. — A casa do banqueiro não está muito afastada da nossa; cerca-a um vasto jardim murado; numa viela que costeia esse muro, pequena porta abre-se para o jardim, a qual se destina aos visitantes que não pretendem que os vejam, quando entram; ela fecha-se apenas depois da meia-noite. Não há razão para pasmares assim: Rodolfo deu-me todos estes pormenores, não prevendo que eles me serviriam um dia. É por essa porta que entrarei; no andar térreo aloja-se Samuel, e seus aposentos têm comunicação pelo jardim, ao que parece; hei de encontrá-lo, portanto, e lhe falarei. — Desejas, então, arriscar-te, sozinha, a uma entrevista com esse homem loucamente apaixonado por ti? Inútil expor-te assim, és por demais bela para que ele renuncie a ti, e tua presença exacerbará apenas sua insana paixão. — Olvidas que ele me quer para esposa e que sabe ter-nos em suas mãos — retrucou Valéria, com riso acre — Nada ousará, pois, contra a minha honra; além do mais, não estarei desarmada (ela tomou um pequeno revólver de sobre a secretária, presente de Rodolfo) e, paraque fiques perfeitamente tranquila, irás comigo; permanecerás junto da pequena entrada e darás alarme, se eu gritar. Não me detenhas, porém, pois talvez — quem sabe? — eu possa ser bem sucedida. Diz-se que o pranto da mulher amada quebranta o homem mais inflexível. Se sente amor por mim, não resistirá às minhas lágrimas, ou o seu orgulho de judeu talvez possa contentar-se com a minha humilhação — concluiu Valéria, subitamente alterada — Oh! como o detesto, pelo aviltamento que nos inflige! — E se estiver lá um grupo de pessoas e algumas te reconhecer? — interpôs Antonieta, fracamente, cheia de temores pela agitação febril da amiga. — Não, não, quem poderia recepcionar, alguns dias apenas após o falecimento do pai?... Demo-nos pressa, contudo; são nove horas e meia, e já brilha a lua; este é o melhor momento; ajuda-me a arrumar os cabelos; depois nos envolveremos em mantos negros; não quero trocar de roupa, pois temo chamar a atenção da criada. A jovem Eberstein, sem mais opor-se, trançou, com mãos trémulas, os longos cabelos de Valéria. Ambas se envolveram, depois, em longos mantos de seda preta, cobrindo com mantilhas de renda a cabeça, e desceram sem ruído ao jardim. Por uma portinhola, fechada por dentro a ferrolho, que se destinava ao jardineiro, chegaram à • calçada, onde, ordenando ao primeiro coche dealuguel que passou que parasse, entraram nele e pediram que as levasse à rua paralela ao jardim do banqueiro. Não conversaram durante o percurso; o estado de espírito em que se achava Valéria tirava-lhe a capacidade de raciocinar. Débil e de natureza exaltada, habituada aos mimos e adulações da parte de todos os de sua convivência, faltara-lhe uma mãe de fato, cujo afeto natural pudesse sofrear e encaminhar os arrebatamentos de seu génio; à velha parenta que, depois da morte da Condessa, encarregara-se de cuidar da orfãzinha, faltava essa qualidade de educadora, e Valéria crescera sem criar em si esse freio íntimo que dá à razão forças para regular os impulsos naturais. No tocante a Antonieta, igualmente órfã desde tenra idade, era um caráter honesto, reto, porém amiga das aventuras, do perigo e das resoluções intempestivas; naquele instante, seu coração agitava-se; compreendia perfeitamente estar auxiliando Valéria numa aventura que estava no dever de obstar; contudo, o romanesco da empresa a conquistara, e a esperança de socorrer a Rodolfo, evitando, além do mais, tão aviltante casamento, silenciara em seu íntimo os derradeiros escrúpulos. A parada do coche arrancou-as de suas cismas; apearam, ordenando ao cocheiro que aguardasse na esquina da rua, e rumaram, quase a correr, em direção à pequena porta, à qual Rodolfo fizera menção. Estava ela realmente aberta, de acordo com os informes do Conde. — Espera-me neste canto escuro, e reza a Deus que me ampare! — disse Valéria, apertando a mão da amiga. E sem ouvir a resposta, meteu-se por uma alameda umbrosa, de árvores centenárias. Movida por desesperada resolução, Valéria buscava orientar-se pelos arvoredos e vielas do jardim que não conhecia, deserto e quieto, com o fito de encontrar o caminho da casa. Súbito, estacou, estremecendo; vinha de surgir em ampla clareira, que a lua, erguendose, iluminava. Um canteiro de flores cercava uma fonte, que jorrava numa bacia de mármore; curtos atalhos coleavam por entre estátuas e blocos de laranjeiras floridas, conduzindo a um terraço enorme, ao qual se chegava através de muitos degraus, e que introduzia aos aposentos do andar térreo. Nesta varanda, ornada também de arbustos raros, via-se elegante mesa, cheia de livros e papeis, junto da qual, numa poltrona, se sentava um homem, porém sem trabalhar. A luz de uma lâmpada iluminava-lhe perfeitamente os cabelos pretos e ondulados, assim como a parte inferior de seu rosto que as mãos cobriam. Ao pé da mesa, grande cão terra-nova estava deitado numa esteira. Ao avistar aquele a quem procurava, Valéria estacou, como que presa ao solo, e segurou-se, trémula, ao pedestal de uma estátua. Quais os pensamentos daquele homem terrível e odioso? Pensaria na morte do pai (que não suportou ante a perspectiva do batismo do filho) ou em novo processo de destruir e rebaixar suas vítimas? Toda a fictícia coragem de que a donzela se munira, desapareceu subitamente; o pensamento de falar a Samuel, humilhar-se diante dele, tocou-a em sua dura realidade; sentiu temor e vergonha e, assaltada de um nervoso tremor, desviou-se para escapar dali; contudo, o ouvido acurado do cão distinguira o farfalhar de sua túnica de seda, contra a pedra do pedestal. O cão ergueu-se; de um salto, estava no jardim e, latindo doidamente, lançou-se contra a jovem, que se petrificara de horror. Espantado, Samuel levantou a cabeça e chamou o cão; observando, porém, que o animal dava voltas, rosnando, em torno de algo que ele não distinguia bem, desceu de um salto e, notando um vulto de mulher que o cão atacava, correu, gritando para ele: "Deixa, Marte!" e agarrou-o pela coleira. Com crescente espanto, o jovem examinou a desconhecida, que continuava parada, junto da estátua, e cujas vestes apontavam-na como pessoa da alta sociedade. — Quem sois e por que motivo vos achais extraviada aqui? — indagou. — Emudeceste, senhora? A quem procurais, aqui? — A vós! — retrucou Valéria, dando alguns passos à frente e retirando o chalé de rendas que lhe cobria os cabelos. Vendo-se impedida de se retirar, a jovem recuperara a resolução desesperada que a levara até ali. Reconhecendo aquela que lhe roubara a calma dos seus dias, por cujos olhos de safira tudo olvidara, Samuel recuou, como se o atingisse um raio. — Aqui, Condessa, em hora tal? Oh! Pressinto não ser a paz o que me viestes trazer! — Estais equivocado, senhor Maier, venho propor-vos a paz, se a aceitais, contudo — redarguiu Valéria, em voz baixa e surda. — Oh! Suplico-vos, dai a meu pai a moratória de um ano que lhe faculte liquidar seu débito e eu vos serei eternamente reconhecida; foi para implorar que aqui vim... E estendia as pequenas mãos para ele, suplicante. O olhar de Samuel prendia-se a este amorável rosto, mais en cantador ainda pela emoção; às últimas palavras, porém, cruzou os braços e, na fronte, rasgou-se o sulco de profunda ruga. — Conheço, Condessa, — sua voz era sombria, mas calma — que vosso pai vos pôs a par de tudo; sabeis, assim, que em vossas mãos está a salvação da honra dos vossos. — Mas, a que preço? Pedis o que é impossível. O jovem sorriu, contristado. — Que fazer? A felicidade só se alcança com dificuldades. Acreditais possa ser menor o preço pelo qual pretendo conquistar a mulher que amo com loucura? — Oh! E com o sacrifício de uma alma pretendeis comparar o de um pouco de ouro? — cortou Valéria — Avaliais por bem pouco a humilhação e o inferno íntimo de uma vida inteira, vós que apenas sacrificais uma quantidade de dinheiro. É esse, sem dúvida, para os de vossa raça, o mais insuportável dos sacrifícios, e causa-me admiração haver o vosso gosto destoado, a ponto de vos apaixonar por uma cristã arruinada, — acrescentou, desdenhosamente irónica. Súbito rubor cobriu as faces pálidas de Samuel; respondeu, contudo, com calma: — Tendes razão, Condessa; é loucura aspirar ao coração da mulher que atira seu escárnio ao rosto daquele que a ama; porém, iludi-vos completamente supondo que um homem de minha raça apenas possa sacrificar um pouco desse ouro que os cristãos despendem com tanta facilidade. Eu sacrifiquei mais do que isso; sobre o altar do vosso culto, Condessa, deixei a vida de meu progenitor, quando lhe declarei que me ia tornar cristão; não pôde ele resistirà perspectiva de ver o filho transformado em renegado de seu Deus, de sua raça e da sua família. Seja-me permitido dizer ainda que nenhum homem é responsável pelo acaso, que o lança, ao nascer, nesta ou naquela religião. Desde há muito, habituei-me, e mais por gosto, aos usos cristãos, e a educação, única linha que traça limites aos homens, faz-me igual a vós. Não posso compreender, assim, como possa ser revoltante o meu ato, querendo desposar uma donzela cristã, que me traz apenas a sua pessoa, ao passo que eu lhe sacrifico a minha religião, dando à sua família paz e fortuna, visto ser eu o único credor. É voluntário o meu sacrifício Condessa Valéria, porém não menor que o vosso; tendes uma garantia para o futuro, porque eu o faço por amor e, com toda a certeza, podereis cair em mãos piores do que estas. Podeis crer - terminou ele, com repentina amargura - que entre os cristãos não existem maus maridos, nem homens sem fé, nem lei?... Ouvindo estas palavras, que provavam a inamovibilidade da resolução tomada pelo banqueiro, a superexcitação nervosa de Valéria atingiu o auge; sacudiam-na tremores de febre, seu coração agi- tava-se e um desespero, mesclado de ira, quase a enlouquecia. — Ah! sois sem piedade! — exclamou, apertando a cabeça entre as mãos — Inutilmente, vim eu aqui; todas as coisas de que me falais não podem apagar a mancha que é o vosso nascimento, pois todos haveriam de dizer, sempre, que eu me casei com um judeu; vede, pois, que nem riqueza, nem educação podem preencher tal abismo! Óh! Deus! Senhor Maier: podeis encontrar uma mulher que não eu; salvai os meus da ruína, se de fato o vosso amor é tão avassalador como afirmais, sem me obrigardes a um casamento que me provoca a mais invencível náusea. Sede generoso, e eu vos terei na conta de um amigo, com.... (sumiu-lhe a voz). — Com desprazer — concluiu Samuel, cambaleante, como se uma bala o ferisse, ante a impiedosa e inoportuna confissão de Valéria. — Não, não, com reconhecimento — interpôs ela. — Desejo acreditar na magnanimidade de vossa alma, e nenhuma humilhação me parece exagerada para conseguir a recuperação dos meus. Exaltada, com os nervos tensos, pelas muitas emoções do dia, inconsciente quase do que fazia, Valéria pôs-se de joelhos. — Vede, de joelhos vos suplico: arrancai-me a vida e contentai- vos com meu sacrifício, em troca da salvação dos meus! O jovem, trémulo, passou a mão pela fronte, banhada de suor. Seu primeiro desejo foi arrojar-se, para erguê-la; reprimindo-o, porém, deu um passo atrás; ira e paixão permutavam-se em seus olhos quando, com voz rouca e plena de amargor, respondeu: — Não ouso, Condessa, erguer-vos com minhas mãos indignas; sofro, pois, a vergonha de ter uma mulher suplicante a meus pés, mulher que ao meu amor prefere a morte. Ao vosso amor não renunciarei, apesar de todas as ofensas porque vos amo, ainda assim como sois: insensível, má e cega por um preconceito mesquinho; não vos matarei, quero que vivais para o meu amor! Valéria ergueu-se bruscamente; o colchete do manto soltou-se com o gesto violento, e a capa rolou por terra. A donzela, porém, não o percebeu; com os olhos despedindo chispas, ergueu a mão: — Maldição sobre vós e vossos empreendimentos, homem sem piedade! - gritou, com voz entrecortada. E, voltando-se, atirou-se pela aléia que conduzia à saída; mas, apenas dera alguns passos e as forças a abandonaram, a cabeça andou-lhe à roda, tudo se obscureceu diante de seus olhos, e ela tombou, desmaiada. Com gestos mecânicos, Samuel levantara do solo o manto e pusera-se no encalço da donzela. Vendo-a abater-se, olvidou tudo; correu para ela, ergueu-a e levou-a para um banco; vendo, porém, que ela permanecia completamente sem sentidos, deitou-a sobre o banco, sustendo-lhe a cabeça com o manto enrolado, e correu ao seu aposento, de onde voltou trazendo um cálice de vinho e um vidro de sais, que a fez aspirar. Ao fim de alguns instantes, a Condessa reabriu os olhos; mas, seu olhar esgazeado, sua fraqueza, mostravam que uma completa debilidade sucedera à exaltação nervosa de desespero. Inerme, deixou derramar na boca um pouco de vinho: quando, porém, quis colocar- se em pé, tornou a cair, sem forças. O jovem correu a mão nos cabelos, desorientado. — Que fazer? — murmurou, — Menina sem juízo, não pensastes sequer no risco de que alguém vos visse aqui? Vossa reputação estaria perdida. Não tremais assim, — acrescentou, curvando-se para ela. — Dizei-me, como viestes? Espera-vos alguma carruagem ou pessoa? — Minha amiga Antonieta, perto da porta — murmurou Valéria num esforço, com a voz apenas audível. Sem perda de um segundo, Samuel encaminhou-se para a saída e, entreabrindo a porta, divisou uma sombra de mulher encolhida, na escuridão. — Sois a senhorita Antonieta? — sussurrou o banqueiro. — Sim. Dizei-me, por Deus, onde está Valéria? — respondeu a moça, com voz sumida, — Após emoções muito fortes, ela sentiu-se mal; admiro-me, contudo, senhorita, de que a tenhais secundado numa empresa que poderia julgar-se de modo severo. Tendes vós carruagem? — Sim, um fiacre espera-nos, na esquina. — Vinde, pois, senhorita; procurai sossegar a vossa amiga e vede se está capacitada a retornar para casa. Sacou do relógio e, avançando para a rua, procurou inteirar-se da hora à claridade do lampião. — Quase onze horas. É necessário darem-se pressa, pois poderiam notar a vossa ausência no palácio do conde de M""". Vinde, depressa, senhorita. Antonieta lançara um olhar crítico sobre o jovem judeu, apesar da emoção que a dominava. Não conhecia senão de nome aquele que tinha em suas mãos o futuro de Rodolfo e dela própria. Essa primeira observação favoreceu a Samuel; não correspondia, de modo nenhum, esse moço elegante e bonito, à figura do israelita sórdido e esquálido que a sua imaginação criara. Seguiu-o um tanto mais tranquilizada; porém, ao ver Valéria prostrada sobre um banco, como fulminada por uma desgraça, atirou-se para ela, inquieta. — Fada, querida Fada, como te sentes? — perguntou, tomando- Ihe a mão. — Vamos! Ânimo, coragem! Precisamos retornar. Poderás caminhar? — Tentarei — murmurou Valéria. Com a ajuda de Antonieta, ela ergueu-se e intentou alguns passos; assaltada, contudo, por súbita atonia, não se pode suster nas pernas fracas e cairia, certamente, não a tivesse amparado o banqueiro. — Que fazer, meu Deus! — exclamou Antonieta. — Bem se vê, Senhor, que inútil foi o sacrifício e que continuais sem piedade para com esta infeliz família. — Não me condeneis insensatamente, senhorita — disse o moço, com vivacidade. — Colocai-vos na minha posição: se amásseis, poderíeis renunciar aquele que vos fosse mais precioso que a própria vida? — Não — respondeu a jovem, de modo franco, pois em seu espírito erguera-se a figura de Rodolfo. — Sede, pois, complacente para com a minha fraqueza. Levarei, agora, a Condessa Valéria até o carro e vos servirei de guardião até ao jardim do Conde de M Vinde! Sem aguardar resposta, ergueu Valéria nos braços, a qual não procurou resistir de nenhum modo e encaminhou-se rápido para a saída. Os sentimentos mais desencontrados agitavam a Condessa de Eberstein, a qual seguindo-o, observava cada um de seus movimentos, curiosa e desconfiada; seu caráter reto porém, forçava-a a reconhecer que, pelos modos e pela aparência, Samuel Maier não era em nada diferente dos rapazes que frequentavam a sua sociedade, todos os dias. A elegante simplicidade de toda sua pessoa, fazia-o completamente diverso das outras pessoas de sua raça, imunda e bruta, que ela vira nas cidadezinhas próximas a suas terras; na mão, alva e delicada,que sobressaía claramente no manto negro de Valéria, não havia um único anel, dos que, no juízo de Antonieta, deviam enclausurar todos os dedos de um judeu. — Em verdade, não é de maneira alguma, feio como eu o julgara — pensou a noiva de Rodolfo. — Quem sabe? Pode ser que tudo termine melhor do que esperamos. Nesse instante, Samuel susteve os passos. Estavam diante da pequena porta. — Ordenai que se aproxime o carro, senhorita — pediu ele, em voz baixa. Quando a carruagem se aproximou, ele colocou nela Valéria, que permanecia de olhos fechados, e parecia inconsciente de tudo; auxiliou Antonieta a subir e, então, sentando-se no banco fronteiro, fechou a portinhola do carro. — É preciso que eu vá ajudar-vos a transportá-la pelo jardim; não teríeis forças para tanto — esclareceu, como se desculpando. Alguns instantes depois o carro chegou à entrada do jardim do palácio do Conde de M"". Descendo primeiro, Antonieta deu uma moeda de ouro ao cocheiro, e, abrindo a portinhola, espraiou um olhar para dentro do jardim. Tudo parecia quieto e vazio. — Depressa, descei com ela — sussurrou a jovem de Eberstein. E guiou Samuel que retornara o seu valioso fardo, até um caramanchão perto da saída e no qual havia um banco. — Graças a Deus, estamos em casa! — exclamou Antonieta, persignando-se. — Recebei, senhor, os meus agradecimentos e abandonai, o mais rápido possível, este jardim. Do peito de Samuel escapou-se um largo suspiro; sem responder, porém, voltou-se e caminhou para a saída; no instante de transpor a porta, parou: — Dizei, senhorita, à Condessa Valéria, que parece por demais aflita, a resolução que tomo de lhe conceder oito dias de prazo para meditar e resolver de modo definitivo; mostrai-lhe, ainda, que ela labora em erro, persistindo em um preconceito indigno de nosso século, repelindo um homem que a ama com todas as forças de sua alma! 3 — 0 PADRE MARTINHO DE ROTHEY Apôs fechar-se por detrás dele a portinhola, Samuel viu-se em plena rua, sem sobretudo e sem chapéu. O carro já se fora. Aturdido como estava por tudo quanto ocorrera naquela noite, tais circunstâncias não lhe causaram nenhuma impressão. Sem pensar que seu traje seria motivo de estranheza, encetou a largos passos o caminho para sua residência; não a reflexão, mas a necessidade de achar-se só, inspirou-lhe a ideia de afastar-se da rua principal, cheia ainda de movimento e ruído, e caminhar por veredas pouco procuradas e silenciosas e desertas aquela hora. Próximo já se achava de sua casa, quando esbarrou, sem o querer, á esquina da rua, num homem, que caminhava sem pressa, as mãos cruzadas atrás das costas, e do qual Samuel queria passar à frente. Tão violento foi o choque, que o chapéu do desconhecido caiu, pondo a mostra a cabeça tonsurada de um padre. — Perdoai-me, Reverendo — desculpou-se Samuel, tomando o chapéu e apresentando-o ao padre, que se mostrava muito indignado. Quase no mesmo instante, porém, este emitiu uma exclamação de surpresa: — Oh! sois vós, Sr. Maier! — disse o sacerdote. Gostais, pelo que vejo, de passear à noite, e sem chapéu, ainda mais... oh! oh! é um pouco displicente para um negocista importante e... tão severo! Isto lhe digo, porque acabo de vir da casa de um homem aflitíssimo por vossa causa, o Conde de M""". — Conheceis, então, os negócios que se tratam, no momento, entre mim e o Conde de M"""? — indagou Samuel, surpreso. O padre Rothey, assaz popular em Pesth, pregador e membro de todas as sociedades de caridade, era conhecido pelo banqueiro, que não sabia ter ele relações com a família de M""". — Sou o confessor do Conde e de sua família — esclareceu o padre. — E, não tendo, embora, direito algum no caso, lembrarei, senhor Maier, que a vossa religião, assim como a nossa, proíbe de ser desapiedado para com o próximo; o que exigis, além do mais, é impossível de se realizar. Leve rubor coloriu as faces do israelita. — Por que motivo o dizeis? — perguntou, parando, chegados que eram à entrada do jardim. — Quero ser batizado, e julgo que o desejo de me tornar cristão, de afastar minha alma de uma crença que vós condenais, deveria alegrar-vos, reverendíssimo padre! O reverendo balançou a cabeça. — Louvável é a vossa intenção; mas, com certeza, como muitos de vossos correligionários, pretendeis abraçar a fé dos protestantes, a qual, no meu pensar, é também uma heresia, igual à da Lei de Moisés. — Laborais em erro, padre; meu desejo é fazer-me católico e imitar a crença daquela a quem amo; se a Condessa condescender ao meu desejo, é a vós, padre, que pretendo pedir aceiteis por neófito. Não vos negareis iniciar-me, creio, nos símbolos de vossa religião, e, esperando ser digno do batismo, dar-vos o encargo de ser o portador das esmolas que pretendo distribuir aos necessitados. Ape t 39 nas a necessidade, e não a falta de coração, obriga-me a não transigir para com o Conde de M""". Um sorriso de compreensão e satisfação brilhou nos lábios do ^padre Rothey. Não era ele mau, mas sim fanático pela sua religião. Desviar as almas do inferno da heresia e aumentar o círculo de sua 'beneficência, tais os fins a que dedicava a vida. A perspectiva de juma conversão tão retumbante, como a do banqueiro milionário, li sonjeou-o grandemente, e o cálculo das grossas quantias que o zelo ^desse riquíssimo neófito lhe faria chegar às mãos, baniu os últimos escrúpulos. I — Sem dúvida, o que me dizeis, meu jovem amigo, altera em grande parte a minha opinião. Naturalmente, não repelirei uma alma )que busca salvar-se no seio da Santa Madre Igreja, reconhecendo os ipróprios erros. Contai comigo, portanto; o lugar, porém, não é próprio 'para se tratar assuntos tão graves. Procurai-me em minha casa, ^amanhã, após a missa, e trataremos seriamente do assunto. ' Samuel agradeceu a boa-vontade do sacerdote e, após sauda^ rem-se, um, benevolamente, outro, respeitoso, separaram-se os dois homens. 9 la alta a manhã, no dia seguinte a essa noite agitada, quando ^Valéria despertou de um sono pesado e febril. Um fiapo de sol, pas •sand o pelas cortinas, brilhava sobre os ramos de miosótis, desenha- Ado s no tapete, e iluminava de suave meia-sombra essa alcova virginal, forrada de cetim branco e profusamente enfeitada de mil luxuo^ sa s quinquilharias. Com um olhar cansado, a jovem fitou aqueles objetos tão seus ^conhecidos. Tinha a cabeça oca, o coração opresso, e uma ligeira impressão de que se sentira mal durante a entrevista da véspera. WCom o viera ter à sua casa? Não o sabia. Com um gesto nervoso, » levantou-se e abriu as cortinas do leito. A sua cabeceira, parcialmente "vestida , encolhida numa espreguiçadeira, pálida, abatida, Antonieta ^ressonava; a mantilha preta e o chalé rendado que levara na véspera, •estava m sobre uma poltrona. Com um longo suspiro, Valéria recaiu ^sobr e os travesseiros. — Pobre Antonieta! — pensou — Como irmã, partilha todos os ^meu s sofrimentos! Triste sina, a minha! Lágrimas ardentes desceram-lhe pelas faces. Humilhara-se em 9vão\ O famigerado espectro da ruína continuava com a mão erguida, sobr e os seres que ela amava pintou-se-lhe no espírito, com tintas A 40 fl| impressionantemente reais, o escândalo de uma hasta pública, a ^ desonra, que obrigaria seu pai e seu irmão a abandonarem os ser-^ viços oficiais e, por fim, os reparos das pessoas de suas reações, os olhares maldosos e zombeteiros das amigas invejosas, ciumentas de ^ sua beleza e de seus triunfos sociais. Rir-se-iam, porém, e caçoariam _ menos se ela desposasse um judeu? De que maneira e sob que w olhares seria recebida a Sra. Maier? Da
Compartilhar