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Os afogados e os sobreviventes - Primo Levy
GERAL: 
Literatura de testemunho: Primo Levi retoma sua reflexão sobre o campo de extermínio nazista 40 anos depois de ter escrito o primeiro livro sobre o Holocausto.O Holocausto, as deportações, os trens, as câmaras de gás e seis milhões de judeus realmente existiram. Faz pouco mais de meio século. Não é possível que isso se repita, nem mesmo sob diferentes roupagens, interesses e alvos. Este é o ponto principal do que este livro tem a dizer. Os afogados e os sobreviventes traz a reflexão de Primo Levi sobre o dia a dia de Auschwitz, a disciplina cega dos SS, os milhões que tiveram seu futuro negado pelo simples fato de nasceram judeus. O autor italiano revisita aqui sua primeira obra e, com maturidade crítica, busca respostas para perguntas que durante anos martelaram em entrevistas ou no senso comum: por que vocês não fugiram? Por que não se rebelaram? Um registro fundamental para que as novas gerações conheçam e entendam o que foi o holocausto, e com isso nunca permitirem que história se repita. 
Os afogados e os sobreviventes foi o último livro publicado em vida por Primo Levi, onde ele faz um balanço final de sua passagem por Auschwitz. Entre os temas que desenvolve, destaco o capítulo da violência inútil, no qual enfatiza o que é a crueldade, feita de violência, sem outro propósito a não ser fazer o mal ao outro. Esse tema, aliás, é um dos que segue sendo desafiante até hoje e o será sempre, pois o que ocorreu na Segunda Guerra não pôde ser imaginado pelos mais pessimistas pensadores. 
As últimas quatro páginas do livro, denominadas “Conclusão”, são para serem estudadas e não simplesmente lidas. São chaves para se pensar o que é mesmo o homem, quem é esta humanidade que tanto nos orgulha, por que a crueldade é tão poderosa. Primo Levi não analisa ponto por ponto todas estas questões, mas as destaca, chama a atenção dos leitores. 
Uma das propostas da obra é desmitificar a romantização pós-guerra relacionada aos judeus sobreviventes, provenientes da literatura e do cinema. Tenta mostrar de forma mais crua e realista o quão 'perdida' estava aquela geração que sobreviveu fisicamente, mas tiveram seu psicológico destruído, sofrendo as consequências anos depois. Primo critica o estereótipo do fim da guerra veiculado em filmes e romances, nos quais se retrata a felicidade de todos pelo fim do sofrimento, o reencontro com os parentes e amigos. Contudo, e ao contrário do que se poderia imaginar, esse cenário de libertação era marcado pela emergência de sentimentos como a angústia e a vergonha.
O mais popular escritor sobre os campos de extermínio formula questões para se pensar. Em sua opinião, Rumkowski não é um homem comum, nem um monstro; a questão é como, ao obter uma pequena fatia de poder, mudou seu comportamento. Ele é só um símbolo de milhares de judeus que colaboraram de diferentes formas com os nazistas. Levi escreve que o poder é como a droga, uma vez iniciado desencadeia uma dependência e necessidade de doses cada vez mais altas. Nasce a recusa da realidade e o retorno dos sonhos infantis de onipotência, transformados em arrogância e desprezo às leis. 
Essa história, segue Levi, é a história desagradável e inquietante dos kapos, dos funcionários dos Lager, dos chefetes que serviram a um regime despótico e criminoso. Em geral justificam-se assim: “Se eu não fizer, um outro pior que eu o fará”. O escritor conclui que todos se espelham no presidente do Gueto de Lodz, feitos de barro e espírito, que sua febre é a da civilização ocidental, que pactua com o poder. 
O dia-a-dia no campo de concentração de Auschwitz. A disciplina cega da SS, os prisioneiros debilitados que aceitavam o colaboracionismo como único modo de escapar, os milhões que tiveram seu futuro negado pelo simples fato de serem judeus. Primo Levi reconstitui lembranças, memórias, faz história oral. E cada palavra, cada recordação, cada ponto de vista seu aqui relembrado objetiva esclarecer as novas gerações, demasiadamente afastadas do horror que foi a guerra. 
Perguntas como “Por que os judeus não se rebelaram?“, ou “Como o povo alemão aceitou aquilo como normal?” e outras questões que afloram em nossa consciência sempre que nos lembramos daqueles aterradores fatos estão dura e claramente discutidas nestas páginas. 
E neste livro Primo Levi reforça o meu fascínio por esta capacidade humana. Ele esclarece como é que pessoas comuns passaram a ser duros algozes de outras pessoas comuns baseando-se em argumentos ínfimos e pouco palpáveis. Para quem está do lado de fora, sem viver a realidade na pele, parece absurdo dizer que alguém aceitaria determinadas ordens de extermínio sob a alegação de que “não há mais nada que eu possa fazer”. Ou ainda poderia soar estranho dizer que alguém que está à beira do limite de sobrevivência se sente ameaçado por outro alguém que acaba de chegar para compor o mesmo quadro de sobrevida. Mas era assim que os “moradores” dos campos de concentração se sentiam quando um novo grupo chegava. Não era somente dos soldados da SS que deveriam sentir medo, também o deveriam vivenciar em relação aos “veteranos” de sofrimento. Algo inimaginável, olhando-se de fora. 
Na concepção do autor, o termo “incomunicabilidade” não existe. Sempre se pode, e se deve comunicar. No universo em questão, “Saber ou não o alemão era um divisor de águas” (p. 53) e, sendo assim, os que não entendiam a língua se viam numa situação pior dos que a entendiam. A língua alemã ia pouco a pouco se transformando em golpes e tapas, atos próprios para se lidar com os animais.: “Nós vivemos a incomunicabilidade de modo mais radical. […] Logo nos demos conta, desde os primeiros contatos com os homens desdenhosos com distintivos negros, de que saber ou não o alemão era um divisor de águas. […] A quem não os compreendia os homens de negro reagiam de um modo que nos espantou e amedrontou: a ordem, que havia sido pronunciada com voz tranquila de quem sabe que será obedecido, era repetida em voz alta e enfurecida, depois berrada a plenos pulmões, como se faria com um surdo, ou melhor, com um animal doméstico, mais sensível ao tom do que ao conteúdo da mensagem. […] Era um sinal: para eles, não éramos mais homens; conosco, como com vacas ou mulas, não havia diferença substancial entre o berro e o murro.”
Ainda que a memória seja a matéria prime de suas reflexões, Levi aponta que ela pode falhar. A fabricação de uma realidade conveniente tanto por parte dos torturadores quanto dos sobreviventes é um fenômeno no qual a distinção entre verdadeiro e falso vai se perdendo. No primeiro caso, o processo leva à diminuição da culpa; já no caso dos inocentes, muitas vezes à memória pessoal vai se adicionando fragmentos de histórias de outros que também sobreviveram; quanto aos parentes, esse fenômeno se traduz na invenção de uma verdade consolatória.
Para o autor, o homem é compelido a simplificar tudo entre dois pólos diametralmente opostos: “nós” e “eles”, o bem e o mal. Mas logo ao se chegar ao Lager, vê-se que esse tipo de bipartição não existe apresentada nessa forma. O choque e a surpresa advêm da existência do que o autor descreve como uma zona cinzenta, comportada por pessoas que transitam entre a fronteira inimigo e amigo. A existência dessas figuras fantasmas, os prisioneiros privilegiados, os pridurki, e os Kapos, prisioneiros chefes que atuavam em diversas áreas, eram sistemas de reproduzir a hierarquia do regime dentro do cativeiro. Em outras palavras, de trazer para a esfera dos inocentes um pouco da culpa dos “outros”; o trabalho sujo era delegado aos prisioneiros para sua própria degradação moral. E como estes iriam recusar, se aquilo representava a sobrevivência nem que fosse por algumas semanas a mais?
Angústia pela família perdida, pelo cansaço que parecia haver consumido toda a vida e alegria. Mas também vergonha pelo sentimento de culpa; mesmo que no plano racional não seja justificável, no plano moral as coisas mudam de proporção. O mal-estar de nãoter feito nada, de não ter resistido, de ter esquecido a solidariedade humana, por não ter socorrido seus iguais pode seguir o indivíduo até a morte.
O homem intelectual, no sentido de homem culto das ciências, e não só da filosofia e da política, estava numa situação pior que o inculto. Faltava-lhe força física e experiência nos trabalhos manuais, os mais requisitados nos campos. No caso de Primo, o ofício de químico o ajudou a sobreviver posto que seus serviços foram colocados à disposição de uma indústria. Da mesma forma que um trabalho especializado, a cultura, nesse contexto, podia servir de ligação com o passado nas horas mais devastadoras. O universo dos sobreviventes é amplamente marcado por algumas perguntas, normalmente feitas por jovens, quase acusatórias algumas vezes, que giram em torno de dois temas: a fuga e a rebelião. Por que não fugiram? Por que não se rebelaram? Por que não fugiram antes da captura? As respostas a tais indagações são várias, mas nem sempre entendidas, pois partem de visões de mundo diferentes, destinadas a ter seu grau de julgamento aumentado de acordo com o tempo.
No oitavo capítulo, Cartas de alemães, faz um balanço das cartas que recebeu após a publicação da tradução em alemão de seu livro É isto um homem. As quarenta cartas que apresenta tentam, em sua maioria, responder a questão: Seria possível compreender os alemães? As respostas demonstram certa vergonha por parte dos alemães em relembrar seu passado recente, o qual muitos nem viveram nem viram, mas ainda assim sentem o peso da História cair sobre si.
A experiência dos sobreviventes é decerto estranha às novas gerações, e o será mais e mais à medida que os anos se passam, em parte porque os problemas de hoje são diferentes, a configuração do mundo mudou. Mas os sinais precursores continuam a existir: violência, intolerância, fanatismos religiosos e políticos, conflitos raciais. 
As representações (CHARTIER, 2002) adotadas na obra de Levi anunciam, por meio de rememoração e testemunho, a manutenção de uma experiência individual e, ao mesmo tempo, a constituição da própria história como lembrança, através de uma memória coletiva. 
Repito, não somos nós, os sobreviventes, as autênticas testemunhas. Esta é uma noção incômoda, da qual tomei consciência pouco a pouco, lendo as memórias dos outros e relendo as minhas muitos anos depois. Nós, sobreviventes, somos uma minoria anômala, além de exígua: somos aqueles que, por prevaricação, habilidade ou sorte, não tocamos o fundo. Quem o fez, quem fitou a górgona, não voltou para contar, ou voltou mudo; mas são eles, os ‘muçulmanos’, os que submergiram – são eles as testemunhas integrais, cujo depoimento teria significado geral. Eles são a regra, nós, a exceção. Sob um outro céu, mas sobreviventes de uma escravidão análoga e diferente ( LEVI, 1990, p. 47). 
Trabalhando com o conceito de memória coletiva, Maurice Halbwachs (2004) afirma em sua obra que a memória individual existe sempre a partir de uma memória coletiva. Visto que as lembranças são constituídas no interior de um grupo, o indivíduo carrega a lembrança, mas está sempre interagindo com a sociedade, seus grupos e instituições. As lembranças se alimentam das diversas memórias oferecidas pelo grupo, o que é designado pelo autor como “comunidade afetiva”. 
Primo Levi tinha a necessidade de falar porque teve a sorte de sobreviver, mas, muitas vezes, o seu relato era pontuado de silêncios, decorrentes da impossibilidade de verbalizar o ocorrido. O silêncio e a solidão estavam presentes em suas memórias. Mas sabendo da importância de seu testemunho, teve a consciência de narrar, de testemunhar por aqueles que não puderam, que não conseguiram. Nesse sentido, o conceito de testemunho por delegação é de fundamental importância para a compreensão de sua obra, pois quem viveu a experiência dos campos de extermínio até o fim não pôde dar seu testemunho. 
Condição humana mais miserável não existe, não dá para imaginar. Nada mais é nosso: tiraram-nos as roupas, os sapatos, até os cabelos; se falarmos, não nos escutarão – e, se nos escutarem, não nos compreenderão. Roubarão também o nosso nome, e, se quisermos mantê-lo, devemos encontrar dentro de nós a força para tanto, para que além do nome, sobre alguma coisa de nós, do que éramos (LEVI, 1985, p.25) 
Nessa primeira obra de Primo Levi, o autor narra o cotidiano dentro do campo de concentração, a impiedosa luta pela sobrevivência, as “seleções” feitas pelos nazistas dos prisioneiros destinados ao extermínio, a fome sempre insaciável – uma fome nunca imaginada –, o trabalho desumano, a violência dos “Kapos”, o frio e a imundície, as humilhações e, principalmente, a apatia que os derrotava. Fica clara, também, a primordial necessidade de se adaptar àquele inferno onde tudo era proibido, apenas pela razão de ser proibido.
Em Os afogados e os sobreviventes, Levi nos ajuda a refletir sobre a memória e sua conservação com o passar do tempo. É interessante ressaltar que essa obra foi escrita em 1986, ou seja, é a última de Primo Levi, na qual o autor expõe, com muita lucidez, o fenômeno da deformação das lembranças que, de certa forma, aproxima as vítimas dos opressores, mecanismo esse às vezes necessário para a sobrevivência após Auschwitz. Muitos foram os sobreviventes que fizeram a “escolha” de esquecer para tentar viver. 
Nessa obra, Levi discorre sobre sua lembrança em relação aos horrores nazistas e faz uma reflexão sobre o tema que mais o angustiava: será que o mundo que permitiu a formação dos campos de concentração realmente desapareceu com o fim do regime nazista ou, de certa forma, pode voltar? O autor, de forma peculiar, acredita que esse perigo não acabou e, se aconteceu uma vez, pode acontecer de novo. O que mais inquietava Levi, certamente, era a possibilidade de narrar a sua experiência e não ser ouvido, ou ser desacreditado. A máquina de destruição nazista previa não só a destruição física dos judeus, mas pretendia também eliminar toda a memória que pudesse dar algum indício, alguma prova desse massacre sem precedentes na história.

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