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UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS MARCOS ANTÔNIO B. PACHECO DIREITOS HUMANOS E ESTADO MULTICULTURAL: políticas e direitos étnicos na Constituição Federal de 1988 São Luís 2004 UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS MARCOS ANTÔNIO B. PACHECO DIREITOS HUMANOS E ESTADO MULTICULTURAL: políticas e direitos étnicos na Constituição Federal de 1988 Tese de Doutorado apresentada à Universidade Federal do Maranhão para obtenção do título de Doutor em Políticas Públicas. Orientadora: Profa. Dra. Elizabeth Maria Beserra Coelho. São Luís 2004 Pacheco, Marcos Antônio B. Direitos humanos e Estado multicultural: políticas e direitos étnicos na Constituição Federal de 1988 / Marcos Antônio B. Pacheco. ___ São Luís, 2004. 190 f. Tese (Doutorado em Políticas Públicas) – Universidade Federal do Maranhão, 2004. 1. Direitos humanos – Estado multicultural 2.Direitos étnicos – Constituição Federal de 1998 I. Título. CDU 342.7 MARCOS ANTÔNIO B. PACHECO DIREITOS HUMANOS E ESTADO MULTICULTURAL: políticas e direitos étnicos na Constituição Federal de 1988 Tese de Doutorado apresentada à Universidade Federal do Maranhão para obtenção do título de Doutor em Políticas Públicas. Aprovada em / / BANCA EXAMINADORA __________________________________________ Profa. Dra. Elizabeth Maria Beserra Coelho _____________________________________________ Prof. Dr. Dalmo de Abreu Dallari _____________________________________________ Profa. Dra. Maria Ozanira da Silva e Silva _____________________________________________ Prof. Dr. Paulo Roberto Barbosa Ramos _____________________________________________ Prof. Dr. Carlos Benedito Rodrigues da Silva À todos aqueles que, na luta por direitos, lutam antes pelos direitos dos outros, refazendo no concreto, as palavras de quem um dia disse: não há maior prova de amor que dar a vida pelo irmão. AGRADECIMENTOS A realização de um trabalho como este, nas condições impostas ao pesquisador brasileiro, onde quase sempre estamos impossibilitados de nos dedicar exclusivamente à pesquisa, requer sempre um esforço para além da capacidade individual. Assim, várias pessoas vão contribuindo para a sua construção; umas de forma mais direta sobre o próprio texto, como os professores da qualificação, cuja contribuição foi decisiva na construção final do trabalho. Portanto, um agradecimento especial à professora Maristela Andrade, pela sua crítica rigorosa no que concerne às categorias mais utilizadas no campo da antropologia. Da mesma forma, ao professor Paulo Roberto, no que tange aos aspectos mais jurídicos do trabalho. E, muito especialmente à minha orientadora, professora Elizabeth Coelho, pela paciência com um aventureiro no campo das ciências sociais, cuja formação positivista (advinda das ciências “naturais”), por vezes, atrapalhava a construção do objeto, tarefa praticamente impossível sem a sua orientação dedicada e extremamente competente. Outras pessoas contribuíram de forma indireta. Agradecimento aos funcionários da seção de anais e documentação do Senado Federal, pela gentileza com fomos tratados e pelo fornecimento das cópias de atas da Assembléia Nacional Constituinte, na forma que demandamos. Do mesmo modo, aos colegas médicos de Barra do Corda, pelas trocas de plantões; aos colegas professores da faculdade de direito e da faculdade de medicina do UniCEUMA pelo apoio recebido. Agradecimento especial a todos os professores e funcionários do Programa de Políticas Públicas da UFMA, pelo cuidado que sempre tiveram conosco. E, também, um agradecimento à FAPEMA pela concessão de uma bolsa, fundamental para o financiamento de viagens no transcurso da pesquisa. Maior agradecimento dedico à minha família; meus pais, irmãos e, principalmente, à minha maravilhosa mulher (ou mulher maravilha), cujo laço e escudo sempre me deram proteção. Proteção particularmente necessária para um trabalho como este, inclusive, auxiliando diretamente na coleta e classificação de dados. Também, aos meus filhos, Matheus e João Marcos, pela compreensão (ou resignação talvez) com que encararam o tempo que lhes roubei para escrever este trabalho. Espero poder devolver-lhes um pouco desse tempo, mostrando-lhes a necessidade de associarmos o conhecimento ao sentimento, na lição sempre atual de Gramsci (que substituirei por um de seus heróis). E a Deus que sente e conhece o verdadeiro sentido das palavras direito e justiça. Não acredito que eu esteja lutando pela liberdade do negro, pela liberdade do indígena. Eles é que estão lutando pela minha liberdade, pela nossa liberdade – este é o sentido maior da atividade que desenvolvem. Quer dizer, no fundo estamos caindo naquela velha forma: os oprimidos ao se emanciparem, emancipam os outros. Florestan Fernandes RESUMO Direitos Humanos e Estado Multicultural – políticas e direitos étnicos na Constituição Federal de 1988. Estudo sobre os denominados direitos étnicos no âmbito do processo constituinte e de seu produto – a Constituição Federal de 1988 – objetivando uma discussão sobre as questões que envolvem os direitos humanos, na sua tradição mais hegemônica – a tradição liberal. Constitui-se em um exercício de ressemantização dos denominados direitos da pessoa humana, tomando como substrato empírico, os direitos dos povos indígenas e os direitos das comunidades quilombolas. Palavras-chave: Direitos humanos – Estado multicultural. Direitos étnicos Constituição Federal de 1998. ABSTRACT Human rights and Multicultural State - politics and ethnic right in the Federal Constitution of 1988. Study about the denominated ethnic right in the scope of the constituent process and of your product - the Federal Constitution of 1988 - objectifying a discussion on the questions that involve the human rights, in your more hegemonic tradition – the liberal tradition. It constitutes in a ressemantization exercise of the denominated person’s human right, talking as empiric substratum, the rigts os the indigenous peoples and communities’ rights quilombolas. Keywords: Human rights – multicultural State. Ethnic rights - Federal Constitution of 1998. SUMÁRIO p. APRESENTAÇÃO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 09 1 INTRODUÇÃO: CONSTRUINDO O OBJETO DA PESQUISA . . . . . . . .. . .. . . 16 2 A CONSTRUÇÃO HISTÓRICO-SOCIAL DOS DIREITOS HUMANOS . . . . . . . . 34 2.1 Contribuição a estóico-cristã na antiguidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 34 2.2 Kant e as grandes declarações do século XVIII. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45 2.3 As declarações de direitos das nações unidas . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . 55 3 A DECLARAÇÃO DE DIREITOS DE MINORIAS ÉTNICAS . . . . . . . . . . . . . . . . 63 4 CONSTITUCIONALIZAÇÃO DOS DIREITOS ÉTNICOS NO BRASIL. . . . . . .. . 75 4.1 Processo constituinte e demandas étnicas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 75 4.2 Direitos étnicos: da constituinte à constituição . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 98 5 DIREITOS QUE QUESTIONAM DIREITOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . 136 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .160 REFERÊNCIAS. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 169 DOCUMENTOS PESQUISADOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ... 175 ANEXOS .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . ... 178 9 APRESENTAÇÃO Quer nos países centrais, quer nos países em desenvolvimento, as forças progressistas preferiram a linguagem da revolução e do socialismo para formular uma política emancipatória. Todavia, com a crise aparentemente irreversível destes projetos de emancipação, essas mesmas forças recorrem hoje aos direitos humanos para reinventar a linguagem da emancipação (SANTOS, 2003, p. 429). O tema direitos humanos tem sido muito debatido por amplos setores, tanto no âmbito nacional quanto internacional; sejam ligados a agências de governos de Estados, ou a agentes de movimentos sociais organizados não governamentais. É um tema que tem ocupado agendas diversas, notadamente a partir da segunda metade do século passado com a instituição, pelas Nações Unidas, da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e dos Pactos Internacionais de Direitos Humanos de 1966. A institucionalização dos denominados direitos humanos se consolida, também, como uma reação aos grandes conflitos internacionais, principalmente a Segunda Guerra mundial e a outros conflitos localizados que se seguiram no ajuste da ordem política global, após essa última guerra. Assim, a linguagem dos direitos humanos foi utilizada, tanto para questionar os Estados que optaram por regimes cerceadores das liberdades civis (socialistas), quanto para questionar aqueles que optaram por regimes favorecedores das desigualdades econômicas (capitalistas). É um tema que arrasta consigo a marca de grandes discursos e discussões maiores ainda. Como bem aponta Bobbio (1992a, p. 07), a própria expressão “direitos do homem” carece ainda de um debate mais amplo; a sua semântica ainda encerra uma variação de significados, que colocam em permanente debate aspectos jurídicos, éticos e morais. Em decorrência disso mesmo, a questão dos direitos 10 humanos tem tomado contornos os mais instigantes nesta passagem de século. A própria questão do uso ideológico dos direitos humanos como instrumento de dominação, apontado por Santos (2003, p. 429), ao relatar o uso dos direitos humanos como parte integrante da guerra fria e, mais recentemente, como razão para a ocupação militar de países, coloca este tema em destaque nas agendas nacionais e internacionais. Este trabalho de pesquisa se propõe discutir a questão dos direitos humanos. Mas, pretende fazê-lo a partir do processo de afirmação dos denominados direitos étnicos, como uma possibilidade de abertura de novas perspectivas de discussão do tema. Para tanto, parte do contexto da Assembléia Nacional Constituinte e de seu produto final – a Constituição da Republica Federativa do Brasil. Nesse sentido, vamos procurar desenvolver um quadro analítico capaz de entender, ou oferecer elementos para a compreensão das possibilidades e dos sentidos que a categoria direitos humanos encerra, enquanto instrumento de proteção e promoção humana, quer sob o aspecto mais pessoal – como na visão mais tradicional, ou no aspecto mais coletivo – como na dimensão étnica. Para essa discussão faz-se necessária uma retomada do que vamos denominar de “construção social dos direitos humanos”. Neste caso específico, refere-se ao seu processo de afirmação histórica. Isto é, de como a idéia de direitos da pessoa humana foi sendo construída historicamente. Certamente que estamos falando de um processo de afirmação essencialmente do ponto de vista ocidental, se é que podemos falar assim. De qualquer modo, essa construção se constitui no nosso ponto de partida para uma discussão sobre uma abordagem mais específica desses direitos, como pretendemos discutir aqui – aquela referida ao problema dos direitos étnicos no Brasil. 11 O trabalho de pesquisa foi desenvolvido tendo em vista a necessidade de problematização do próprio tema. E isso torna procedente uma breve revisão histórica acerca da temática dos direitos humanos em seu sentido mais amplo. Portanto, trata-se de um trabalho sobre direitos étnicos, mas, sobretudo, de como os direitos étnicos possibilitam uma interrogação às próprias concepções construídas historicamente sobre a idéia de direitos humanos. Trata-se de anunciar a possibilidade de um quadro onde direitos questionam direitos. Realmente, como procuraremos demonstrar no desenvolvimento do trabalho, ao discutirmos os dispositivos constitucionais atinentes à questão étnica – nossas unidades de análises – resta claro o quanto essa questão interroga a concepção liberal-ocidental dos direitos humanos. O trabalho se inicia com um exercício de delimitação e problematização do seu objeto. Segue com uma discussão narrativo-teórica sobre a construção social dos direitos da pessoa humana, partindo da Antiguidade até os grandes marcos das Declarações das Nações Unidas e, após essas discussões de cunho mais teórico e fundamentais para o melhor entendimento da abordagem que pretendemos fazer do objeto, passamos à discussão dos dispositivos constitucionais de direitos étnicos, aqui apresentados como as nossas “unidades de análises”, isto é, a referência empírica do trabalho. No sentido de evitar uma análise meramente conteudista da Constituição Federal, a pesquisa se estendeu a alguns arquivos do Congresso Nacional, mais precisamente aos Anais da Assembléia Nacional Constituinte – ANC. Fizemos uma pesquisa documental nesses arquivos que evidenciavam demandas e propostas da institucionalização de direitos étnicos, perante uma das Subcomissões da ANC no processo constituinte. Essa foi uma etapa procedida diretamente na Secretaria de 12 Documentação e Informação do Senado Federal, em duas de suas Subsecretarias – Subecretaria de Arquivos e Subsecretaria de Anais. Foi um esforço da pesquisa em transcender uma interpretação meramente normativa, buscando uma análise jurídico-social. A recuperação de documentos que demonstram a participação dos movimentos sociais na ANC favoreceu esse tipo de análise. Os dispositivos constitucionais sobre os direitos étnicos constituem-se, portanto, no ponto principal de nossas reflexões. Nossa atenção foca-se sobre o processo constituinte iniciado em 1987 e concluído em 1988. Mais especificamente nos trabalhos da sua Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias, da Comissão de Ordem Social da ANC, retomando as atas de suas reuniões. Por último, o trabalho procura fazer uma discussãoexegética sobre os dispositivos constitucionais que podem contribuir com a questão principal, apontada nos seguintes termos: Tratando-se de um Estado liberal, instituído numa realidade multicultural e pluriétnica, em que medida a Ordem Constitucional brasileira dispõe sobre direitos étnicos? Esta, portanto, se constitui numa questão central da pesquisa. O problema da construção de conceitos e concepções, e o seu movimento inverso – a crítica, a relativização e a desconstrução de conceitos, assim como a formulação de perguntas e a produção de respostas, tem sido a motivação do conhecimento científico. O processo de formulação de perguntas e da produção de respostas passa, necessariamente, pela discussão de determinados conceitos. No caso de nosso trabalho, a discussão dos direitos étnicos e da possibilidade de uma cidadania multicultural nos conduziu as seguintes questões: 13 a) Dentro do que se denomina tradição liberal dos direitos humanos, existe lugar para um debate sobre direitos étnicos? b) Como a Constituição Federal do Brasil vai dispor (ou não) sobre direitos étnicos, como possibilidade de reconhecimento de uma cidadania étnica? c) Se essa cidadania é uma possibilidade constitucional, quais os meios institucionais que podem ser demandados na sua defesa e promoção? A formulação desses problemas e a construção de suas respectivas respostas devem-se constituir, para nós, em exercícios epistemológicos, nos termos colocados por Bachelard (1996: 17-8). Trata-se de superar obstáculos, revendo e relativizando conceitos, ressemantizando significados e, no nosso caso específico, intentando possibilidades e sentidos de uma interpretação constitucional mais aberta e correspondente às demandas que convergiram para a ANC, a partir dos movimentos sociais que para ai concorreram. Para tanto, faz-se necessário rediscutir alguns conceitos e delimitar a construção do nosso objeto. Conceitos como “concepção liberal-ocidental dos direitos humanos”, a própria idéia de “direitos étnicos” e a relação entre direitos humanos e direitos étnicos são objetos de uma discussão mais detalhada no capítulo introdutório. Ainda nesse mesmo capítulo, delimitamos o campo empírico da pesquisa, que toma como referência apenas os direitos das denominadas “populações indígenas” e dos “remanescentes das comunidades de quilombos”1. Nesse mesmo capítulo apontamos nossas opções metodológicas na abordagem do objeto. Em um capítulo específico, discutimos o processo constituinte com o seu modelo de organização 1 As denominações “populações indígenas” e “remanescentes das comunidades de quilombos” estão aqui utilizadas em consonância com a gramática dos dispositivos constitucionais. São denominações que encerram uma variedade muito grande de críticas. Contudo, doravante utilizaremos as denominações “povos indígenas” e “comunidades quilombolas”. Essas categorias serão discutidas posteriormente. 14 regimental, que resultou numa das maiores participações dos movimentos sociais na formatação de uma Constituição. Em seguida é abordada a constituição dos direitos étnicos no Brasil. No último capítulo fazemos uma discussão, dos reflexos de dispositivos constitucionais em políticas públicas, tomando como referência duas situações ilustrativas envolvendo relações interétnicas conflituosas, nas quais, em alguns momentos mais decisivos, foram evocados direitos constitucionalmente garantidos. O primeiro, trata-se do processo de implantação e expansão da Base Aeroespacial de Alcântara, cujo projeto entrou em conflito com interesses de comunidades quilombolas existentes na zona rural daquele município. O segundo caso, refere-se à luta travada por índios Tenetehara (conhecidos como Guajajaras) pela terra Cana Brava, na região do Alto Mearim, ambos no interior do Estado do Maranhão. Essa discussão serve para ilustrar o uso de dispositivos da Constituição e procura demonstrar como, por vezes, esses dispositivos são acionados e evocados por agências e agentes na busca da defesa de interesses legítimos de grupos sociais específicos. E como, em muitos desses casos, os direitos se fundamentam em princípios inovadores em relação à tradição jurídica liberal-ocidental. Nos casos que apontamos, uma das questões centrais são os direitos territoriais, completamente distintos do direito de propriedade da terra, como demonstramos no desenvolvimento do trabalho. São categorias constitucionais que vão surgindo e se adequando aos interesses das demandas que concorreram para a ANC. Tanto no que se refere ao “usufruto exclusivo” (artigo 231, § 2.º da CF/88) para os povos indígenas, como na “titularidade de domínio” (artigo 68 do ADCT da CF/88) para as comunidades quilombolas, não se trata de mera propriedade da terra. São categorias que não 15 podem ser entendidas numa dimensão meramente econômica ou utilitarista. A territorialidade, nesses casos, tem um papel de destaque, reveste-se de um significado que se confunde com a própria vida dessas comunidades. Elas não existem fora de seu território, porque somente ai é que está a sua tradição, a sua vida construída étnica e culturalmente. Portanto, não há como descolar esse significado do próprio sentido da expressão dos direitos humanos demandados por esses povos e comunidades. Ao final, à guisa de conclusão, procuramos apresentar sinteticamente nossas considerações acerca da questão dos direitos humanos, utilizando um instrumental metodológico construído a partir dos denominados direitos étnicos. Não é uma tarefa que se possa dizer concluída, contudo, pretendemos que seja um passo no longo percurso do processo de compreensão das questões relacionadas aos direitos humanos. 16 1 INTRODUÇÃO: CONSTRUINDO O OBJETO Em primeiro lugar, é preciso saber formular problemas. E, digam o que disserem, na vida científica os problemas não se formulam de modo espontâneo. É justamente esse sentido do problema que caracteriza o espírito científico. Para o espírito científico, todo conhecimento é resposta a uma pergunta. Se não há pergunta, não pode haver conhecimento científico. Nada é evidente. Nada é gratuito. Tudo é construído. (BACHELARD, 1996, p. 08). O processo de afirmação dos direitos humanos tem-se constituído numa marca importante no conjunto dos cenários políticos que se desenvolvem no mundo ocidental. E, dentro desse contexto, assume posição de destaque o que se denomina de tradição liberal dos direitos humanos. Contudo, mesmo dentro dessa tradição ou às vezes até contra ela, têm surgido movimentos que a interrogam, que a questionam e tentam, por assim dizer, uma relativização ou ressemantização de seus princípios. Um desses fatos foi, a nosso ver, a instituição da Declaração Sobre os Direitos das Pessoas Pertencentes a Minorias Nacionais ou Étnicas, Religiosas e Lingüísticas, estabelecida pela ONU – Organização das Nações Unidas – em 1992. De certo modo, essa Declaração é resultante de um processo que se intensificou no último quartel do século passado, que visa, em última instância, promover o “direito à identidade étnica e cultural”, posto, também, como um direito humano. Um direito de resistência. É bem possível que os acontecimentos de marcada violência e brutalidade, que irrompem após o final da guerra fria, com a fragmentação de Estados socialistas na Europa (caso dos Bálcãs), assim como os contínuos conflitos separatistas que ocorrem em todos os continentes, tenham apressado a institucionalização dessa Declaração. É uma tentativa de amenizar as tensões sociais e políticas nesses conflitos, com marcadoenvolvimento de minorias étnicas. 17 Os fundamentos conceituais de uma Declaração como esta são resultantes de um processo que, se não é de redefinição, certamente é de interrogação da tradição liberal-ocidental dos direitos humanos. Com o termo “liberal- ocidental”, pretendemos indicar uma herança eurocêntrica que marca principalmente as instituições políticas e jurídicas do mundo ocidental, cujo mais evidente exemplo é a concepção de Estado Moderno. Estado moderno constitucionalista que se consolida a partir de Declarações de direitos e de uma soberania sobre determinado território. Portanto, a construção social e o processo de afirmação histórica dos denominados direitos humanos é a base da constituição do Estado Moderno, como é conhecido atualmente. Muito embora relativizada por Hirschamn (1992), em face de sua tendência evolucionista, a concepção marshalliana de direitos (Marshall, 1967) é um dos principais esteios teóricos sobre o qual está assentada essa tradição dos direitos humanos, aqui designados, também como direitos de cidadania. A aproximação conceitual entre a idéia de direitos humanos e direitos de cidadania deve-se ao fato de que, historicamente, os direitos humanos têm sido afirmados dentro do âmbito, ou em face do Estado (a civitas ou polis “moderna”). Segundo essa concepção de direitos de cidadania, base da tradição liberal dos direitos da pessoa humana, estes podem ser classificados em civis, políticos e sociais. Nesse paradigma de classificação, os direitos civis corresponderiam àqueles relacionados às liberdades individuais e à autonomia em relação ao Estado; políticos seriam os direitos relacionados à participação na formação do próprio Estado, como o sufrágio universal; bem marcados pelas Declarações do século XVIII (Revolução Francesa e Independência Norte-Americana). Os direitos sociais seriam aqueles relacionados à condição social e econômica das pessoas, bem 18 evidenciados nas Constituições mexicana e weimariana do início do século XX. Esses direitos vão tornar-se o fundamento do denominado welfare state ou estado de bem-estar, que vai se consolidar, notadamente na Europa, na segunda metade do século passado. Uma outra concepção, ainda dentro da tradição liberal, é aquela que tem entendido os direitos humanos a partir de “gerações de direitos” (DORNELES, 1989). Por essa concepção, os direitos individuais (civis e políticos) aparecem como de primeira geração, enquanto os direitos sociais e coletivos aparecem como de segunda geração. Seguindo-se a estes, teríamos os direitos de terceira e quarta geração, envolvendo os denominados direitos dos povos, o direito ao meio ambiente, o direito ao desenvolvimento, direito à informação, entre outros. Thomas Fleiner assim se refere à relação necessária entre as gerações de direitos: Para que a liberdade seja realidade, as condições para o exercício dos direitos humanos devem ser tal que os homens possam efetivamente gozar de seus direitos. A dignidade humana e a liberdade somente podem existir se os direitos à liberdade são completados pelos direitos sociais, denominados direitos de segunda geração: por exemplo, o direito ao trabalho, à formação, à moradia etc. (FLEINER, 2003, p. 115). Como se constata, existe todo um processo em curso no sentido do fortalecimento de uma tradição teórica acerca dos direitos humanos. No dizer de Lafer, referindo-se à proposta Arendtiana de “reconstrução dos direitos humanos” (LAFER, 1988, p. 15), “esta proposta se baseia numa retomada crítica do pensamento ocidental, almeja o exame das condições políticas e jurídicas que permitam assegurar um mundo comum, assinalado pela pluralidade e pela diversidade e vivificado pela liberdade”. Assim, enquanto tradição, há uma construção em curso, cujos conteúdos teóricos, nem sempre concordam entre si. Exemplo disso são as tensões que se operam através de dicotomias como “universal 19 versus local” ou “igualdade versus diferença”. Isso está muito bem resumido em recente obra de Boaventura de Sousa Santos: Multiculturalismo, justiça multicultural, direitos coletivos, cidadanias plurais são hoje alguns dos termos que procuram jogar com as tensões entre a diferença e a igualdade, entre a exigência de reconhecimento da diferença e de redistribuição que permita a realização da igualdade. Essas tensões estão no centro das lutas de movimentos e iniciativas emancipatórias que, contra as reduções eurocêntricas dos termos fundamentais (cultura, justiça, direitos, cidadania), procuram propor noções mais inclusivas e, simultaneamente, respeitadoras da diferença de concepções alternativas da dignidade humana (SANTOS; NUNES, 2003, p. 25). Por seu turno, ao discutir a função integradora das Constituições, marcos de declarações de direitos, no contexto do Estado Moderno, Canotilho (1998, p. 1286) propõe algumas “revisões” das funções da Constituição. Uma dessas revisões, o autor denomina “função da inclusividade multicultural”, para fazer frente à tendência unificadora de “credos, culturas, grupos, etnias e povos” no mesmo território e sob a soberania de um único Estado – o Estado constitucionalista. Aponta que “a função integradora da Constituição carece hoje de uma profunda revisão originada pelo fenômeno do pluralismo jurídico e do multiculturalismo social”. Referindo-se ao dilema liberal enfrentado pela Constituição, assim se expressa o autor: O dilema liberal enfrenta a dicotomia um/todos, segundo as regras “universais” do voto ou do preço do mercado, esquecendo que a razão das regras, ditada pelas eleições ou pelo mercado, pode marginalizar outras razões – as razões de outras culturas. (CANOTILHO, 1998, p. 1287). Nesse mesmo sentido, Fleiner refere o dramático problema atual da proteção de minorias no Estado multicultural. Considerando os conflitos interétnicos na Europa, Ásia e África, argumenta que o problema exige uma rediscussão dos direitos humanos e da própria idéia de democracia. Com isso, chama a atenção para 20 a necessária discussão de um tema, que demonstra tensões conceituais e ideológicas em todos os sentidos. A minoria é também fundamento do Estado pluricultural e pode intervir em sua criação sem estar sendo constantemente vítima do princípio majoritário, ou seja, o Estado repousa em um consenso entre maioria e minoria, os membros da minoria podem identificar-se com o Estado como fazem os membros da maioria. Isso significa que o tradicional princípio democrático da maioria é ineficaz para resolver o problema das minorias. Novos mecanismos e instituições são necessários para enfrentar o problema da proteção das minorias. O problema das minorias é uma exigência concernente tanto aos fundamentos do Estado quanto aos direitos humanos em si. (FLEINER, 2003, 133). Essas anotações de Santos, Canotilho e Fleiner, e mesmo a observação dos embates que se travam em torno da questão dos direitos humanos, torna possível construirmos uma matriz comparativa entre os fundamentos conceituais da tradição liberal e aqueles que fundamentam uma idéia ou política de direitos questionadores do modelo tradicional. Desse modo, podemos observar como conceitos básicos, que servem de substrato para a categoria “direitos humanos”, podem ser confrontados. Na matriz abaixo, os conceitos da primeira coluna formam um substrato onde está assentada a tradição liberal. Na segunda coluna, elencamos alguns conceitos que fundamentam uma possível natureza pluriétnica de direitos humanos de grupos sociais específicos ou minorias nacionais. DIREITOS HUMANOS (tradição liberal) DIREITOS HUMANOS (demandas étnicas) Monoculturalismo MulticulturalismoIsonomia Identidade Homogeneidade Diversidade Universalismo Localismos Estado-nação Nações no Estado Neste trabalho pretendemos abordar o tema dos direitos humanos ou direitos de cidadania numa perspectiva que inclua a discussão sobre interrogações possíveis de serem feitas a propósito da construção social desses direitos. É nesse sentido que colocamos a questão dos direitos étnicos como elemento 21 “epistemologizador” (FOUCAULT, 1997, p. 217-8) da tradição liberal dos direitos humanos ou direitos de cidadania. A epistemologização, como apontada aqui, se refere às múltiplas possibilidades de interrogação e questionamento que se pode fazer a um dado discurso; repensar os seus limites e as suas possibilidades, refletir sobre sua relativização, ou mesmo, entender os seus processos na prática histórica. No Brasil, um marco do processo de afirmação dos direitos étnicos deu-se durante o processo constituinte, iniciado em 1987 e concluído com a promulgação da Constituição, em 05 de outubro de 1988. Desse modo, o nosso trabalho de pesquisa foi buscar na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 – CF/88, a sua unidade de análise e referência empírica, para discutir a questão dos denominados direitos étnicos. A nossa análise é construída em torno das questões dos direitos humanos, dos direitos étnicos e suas possíveis relações, tomando a CF/88 como referência da pesquisa. A forma como pretendemos trabalhar esse objeto exige uma discussão dos termos utilizados. Ao falarmos, por exemplo, de “políticas” e “direitos étnicos”, faz-se necessário explicitar a concepção que estamos adotando para estas categorias. Entendemos que a noção de direitos humanos está relacionada à afirmação de demandas sociais que resultem em bem-estar individual e coletivo. Bem-estar devendo ser entendido, aqui, a partir de critérios de autodefinição. Certamente que a noção ou sensação de bem-estar é variável de cultura para cultura. Alguns autores apontam uma diferença conceitual entre direitos humanos e direitos de cidadania. Aqueles seriam de ordem mais genérica, qualquer direito da pessoa humana, independentemente de seu reconhecimento ou não pelo Estado. Estes, por sua vez, seriam os direitos humanos em face do Estado, que têm sua 22 origem na civitas romana e pólis grega. Para Comparato (2003, p. 57), ao falarmos de direitos humanos ou diretos do homem, estamos falando de algo que é inerente à própria condição humana, e que, distinções como a que se pretende entre direitos humanos e direitos fundamentais, ou direitos de cidadania, por exemplo, têm mais uma função pedagógica. É ai que se põe a distinção elaborada pela doutrina jurídica germânica, entre direitos humanos e direitos fundamentais. Estes últimos são direitos humanos reconhecidos como tais pelas autoridades às quais se atribui o poder político de editar normas, tanto no interior dos Estados quanto no plano internacional; são direitos humanos positivados nas Constituições, nas leis, nos tratados internacionais. Segundo outra terminologia, fala-se em direitos fundamentais típicos e atípicos, sendo estes os direitos humanos ainda não declarados em textos normativos. Sem dúvida, o reconhecimento oficial de direitos humanos, pela autoridade política competente, dá mais segurança às relações sociais. Exerce, também, uma função pedagógica no seio da comunidade, no sentido de fazer prevalecer os grandes valores éticos, os quais, sem esse reconhecimento oficial, tardariam a se impor na vida coletiva (COMPARATO, 2003, p. 57). Por seu turno, o conceito de “política” não deve ser entendido apenas como “ação de governo”, como normalmente se entendem as políticas públicas, isto é, como programas ou ações do Estado em face das demandas sociais. Esse é apenas um sentido de interpretação. As políticas também devem ser entendidas como “expressão da pólis”, isto é, como expressão da cidade, dos cidadãos, dos movimentos sociais e a própria organização dessas demandas sociais na forma de luta por direitos; lutas sociais por direitos humanos. Esse é um exercício com o qual pretendemos, não apenas ampliar um conceito, mas, sobretudo, refletir sobre uma possível teia semântica que pode ser pensada a partir de uma dada categoria. E as acepções possíveis de “política” encerram muito bem essa polissemia. Um desdobramento operacional desse exercício é pensar as políticas não apenas como ações de governos, mas, ao mesmo tempo, como movimentos sociais; como ação e como reação, tanto do Estado em direção à sociedade, como da sociedade em relação ao Estado. Desse modo, é inegável uma relação entre as 23 políticas e os direitos; o mais usual é entender aquelas – as políticas, como produto destes – os direitos humanos. Mas, o contrário também é possível, afinal muitos direitos são institucionalizados a partir do processo de politização das sociedades ou grupos humanos. No caso específico do nosso objeto de estudo – direitos étnicos, podemos vislumbrar as duas possibilidades claramente. Outro conceito sobre o qual devemos nos debruçar é a noção de direitos étnicos. Certamente este é um primeiro grande obstáculo epistemológico com o qual nos deparamos. Configura-se nos termos colocados por Bachelard (1996, p. 17-8) como “limites e resistências ao ato de conhecer”. A formulação de problemas pressupõe o uso de conceitos e categorias. A noção de direitos étnicos, neste caso, se reveste de uma complexidade resultante da necessária abordagem interdisciplinar do conceito. A discussão não está restrita ao campo jurídico, sociológico (com suas dimensões políticas e antropológicas) ou ao campo filosófico isoladamente. Por vezes, dentro de um mesmo campo de conhecimento, existem concepções diferentes. Constitui-se como matéria de discussão, não apenas inter, mas, também, intradisciplinar. E é certo que cada uma dessas áreas do conhecimento conceba uma noção de direitos étnicos de forma diferenciada. É tudo isso e ainda caberá sempre algum outro elemento, ou “olhar” diferenciado. O termo “direito étnico” não é uma expressão que se possa encontrar em qualquer dicionário jurídico ou mesmo nas grandes enciclopédias. Escapa a uma conceituação fácil e simplista. Primeiro, porque a idéia de direito étnico, por vezes, se contrapõe a um dos princípios mais caros no âmbito do tema dos direitos humanos da tradição liberal-ocidental – o princípio da isonomia, segundo o qual todos são iguais perante a lei ou perante o direito. Segundo, porque a própria 24 concepção de etnia já é, por si mesma, objeto de acirradas discussões acadêmicas. A idéia de direito étnico, quase sempre, pressupõe direitos diferenciados ou políticas afirmativas para determinados grupos sociais específicos. De fato, a questão dos denominados direitos étnicos tem surgido com muita freqüência, para tornar legítimas as demandas sociais de determinados grupos humanos diferenciados; tem sido evocada como forma de reconhecer a diversidade social de Estados nacionais, geralmente tidos como “integrados”, ainda que se considere a sua pluralidade étnica, como é o caso do Brasil. Autores diversos têm mostrado grande preocupação com o tema direitos de cidadania, como um instrumento de promoção da pessoa humana e da sociedade. Mas os esforços no tocante à questão dos direitos de cidadania de determinados grupos étnicos ou grupos sociais específicos, não têm tido o mesmo aprofundamento teórico que os direitos de cidadania entendidos como uma categoria universal, isto é, concebidos de forma indistinta. A discussão sobre direitos étnicos requer uma consideração sobre a noçãode etnia. A concepção weberiana de “grupo étnico” está referida ao que denomina de “crença subjetiva numa procedência comum”. Crença que se torna fator fundamental, inclusive para a constituição e ampliação do grupo. O interessante dessa concepção é a desconstrução de critérios meramente objetivos para qualificação de grupo étnico. A idéia de etnia se amplia para além da idéia de laços de sangue, parentesco e características externas ou objetivas somente, como cor da pele, por exemplo. Ao conceber a idéia de etnia dessa forma, Weber aponta para novas possibilidades de compreensão dos conceitos de grupos étnicos e, por conseguinte, de direitos étnicos. Assim se expressa o autor: Llamaremos “grupos étnicos” a aquellos grupos humanos que, fundándose em la semejanza del hábito exterior y de las costumbres, o de ambos a la vez, o en recuerdos de colonización y migración, abrigan una creencia 25 subjetiva en una procedencia común, de tal suerte que la creencia es importante para la ampliación de las comunidades [...] El grupo étnico (en el sentido en que aquí se toma) no es en sí mismo una comunidad sino tan sólo un “momento” que facilita el proceso de comunización. Actúa, fomentándolos, en los más diferentes tipos de comunización, sobre todo en la política, según nos muestra la experiencia (WEBER, 1989, p. 318). Um outro autor de que nos servimos para discutir o conceito de grupos étnicos é Barth. Para este autor, os grupos étnicos são “categorias atributivas e identificadoras empregadas pelos próprios atores; conseqüentemente, têm como característica organizar as interações entre pessoas (2000, p. 27). Entende-os como ”unidades portadoras de cultura” e “tipos organizacionais” (2000, p. 28-32). Que devem ser compostos por “sujeitos que estejam basicamente jogando o mesmo jogo” (BARTH, 2000, p. 34). As adjetivações e noções barthianas relacionadas ao conceito de grupos étnicos não estão, portanto, da mesma forma que em Weber, referidas ao ponto de vista meramente biológico. Ao contrário: é enfatizada a dimensão político- organizacional com base numa cultura específica, numa unidade cultural. O autor lança mão, digamos, de elementos mais subjetivos, como Weber já o fizera. Aponta que a noção de grupo étnico está relacionada a um grupo que apresenta as mesmas demandas coletivas, se auto identifica e é identificado como diferente dentro de um determinado sistema social poliétnico. A idéia de discutir políticas e direitos étnicos se reveste de um desafio teórico que, em certo sentido, vai de encontro a grande tradição dos direitos humanos, cuja base consagradora é o princípio da universalidade e da isonomia. Isso porque os grupos étnicos se sentem diferentes e atribuem-se significativas diferenças, inclusive com a constituição de fronteiras étnicas e de distinções politico- organizacionais. O problema da pluralidade, aqui, toma uma dimensão das mais 26 significativas. Entra em tensão com o princípio da isonomia e o universalismo que tem consagrado esse princípio. Esse universalismo, de certo modo homogeinizante, tem justificado tentativas constantes de impor determinadas políticas de Estado a determinados grupos sociais que, por motivos diversos (e a diferenciação étnica é um deles) não logram bom êxito. E um desses motivos é o desconhecimento das diversidades, o desconhecimento das suas políticas organizacionais, suas culturas, o seu modo de ser e o seu ‘jogo”, enfim: porque insiste em vê-los a partir da lógica monoculturalista/universalista – um só povo, uma mesma política, um único direito, uma mesma razão, a razão do Estado. Como já observamos, mesmo no âmbito da ONU, é muito recente (1992) a Declaração oficial de direitos que envolvam a diversidade e as diferenças. E como veremos adiante, é uma Declaração com muitas limitações e extremamente “tímida” quando comparada, inclusive com declarações de direitos de Constituições de alguns dos Estados nacionais que a integram, como é o caso, a nosso ver, do Brasil. Como veremos, a questão de direitos étnicos já tinha sido levantada por ocasião das discussões que culminaram com o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, estabelecido em 1966 e que entra em vigor em 1976, dez anos após a sua aprovação, quando atinge o número de ratificações necessárias (PIOVESAN, 1997, p. 178; COMPARATO, 2003, p. 288). A idéia de direitos diferenciados e de uma “cidadania étnica” é recente. Muito embora exista uma preocupação com a idéia de promoção dos direitos humanos e da cidadania, que se construiu há mais tempo, o cidadão acaba sendo um ser universal, sem especificidades ou marcas de identidade. Desse modo, observamos que a idéia de cidadania embora relativamente consolidada, como 27 veremos adiante, desde o século XVIII, a idéia de uma cidadania diferenciada com base em critérios étnicos, é muito recente. Conceitos como “cidadania tutelada e cidadania emancipada” estão presentes em Demo (1995). Neste caso, é fácil reconhecer que a primeira (tutela) refere-se à proteção, enquanto a segunda (emancipação) está relacionada à promoção da pessoa humana. Da mesma forma, Jacobi (2000) fala em “políticas sociais e ampliação da cidadania”, numa clara referência à promoção e não apenas proteção do cidadão. Podemos observar abordagens semelhantes em Bobbio (1992a) e Santos (1996, p. 1997). Considerando, como em Demo (1995, p. 03), a cidadania como a “raiz dos direitos humanos”, a grande questão que se impõe é a seguinte: Como compatibilizar a generalidade desse processo de afirmação de direitos e construção de cidadania, com as especificidades dos diferentes grupos sociais e suas diversidades? Logo, não se trata apenas de afirmar constitucional ou institucionalmente os direitos humanos, mas, trata-se, também, de discutir “que direitos” estão em construção. Essa postura é uma tentativa de produzir (e não de reproduzir) uma prática de pesquisa, cujo fundamento seja “tornar simples o sistema e audível o silêncio que todo discurso arrasta consigo quando se enuncia” (FOUCAULT, 1981, p. 314). E, ainda, desconstruir para construir. “Uma desconstrução que não é ingênua nem indiscriminada porque se orienta para garantir a emancipação e a criatividade da existência individual e social, valor que só a ciência pode realizar, mas que não pode realizar [somente] enquanto ciência.” (SANTOS, 1989, p. 42). Desconstrução no sentido de questionar pela aná-lise (quebra) normativa do dispositivo. No nosso caso específico, dos dispositivos constitucionais. Buscar as 28 suas mais variadas representações simbólicas, num exercício de semiologia e, ao mesmo tempo, de exegese exaustiva do dispositivo sem, no entanto, perder de vista o seu sentido original, o seu objetivo e função social que lhe emprestou a Assembléia Nacional Constituinte. Isso que os juristas costumam denominar de interpretação extensiva e que nós vamos denominar de hermenêutica aberta do dispositivo. Em oposição às interpretações fechadas, bem típicas de uma tradição que impõe à Ciência do Direito um caráter de Dogmática Jurídica ou teoria pura do direito, segundo a qual o estudo do direito deve ser “purificado de toda ideologia política” (KELSEN, 1974, p. 20). Quando iniciamos a pesquisa não tínhamos um desenho prévio bem definido do percurso metodológico, mas tínhamos uma perspectiva que fundamentava as nossas discussões. Essa perspectiva, que também é metodológica, rejeita tenazmente apreender ou compreender uma ciência do direito (ou dos direitos) como um sistema fechado de construções dogmáticas. Nos termos de Bourdieu, uma ciência que se pretende “ciência rigorosa do direito”, não seesquiva do debate científico sobre as alternativas que interrogam o “formalismo” e o “instrumentalismo”, que concebem o direito como um “reflexo ou utensílio” a serviço dos dominantes. A ciência jurídica tal como a concebem os juristas e, sobretudo, os historiadores do direito, que identificam a história do direito com a história do desenvolvimento interno dos seus conceitos e de seus métodos, apreende o direito como um sistema fechado e autônomo, cujo desenvolvimento só pode ser compreendido segundo a sua dinâmica interna. A reivindicação da autonomia absoluta do pensamento e da ação jurídicos afirma-se na constituição em teoria de um modo de pensamento específico, totalmente liberto do peso social, e a tentativa de Kelsen para criar uma ‘teoria pura do direito’ não passa do limite ultra-consequente do esforço de todo um corpo dos juristas para construir um corpo de doutrinas e de regras completamente independentes dos constrangimentos e das pressões sociais, tendo nele mesmo o seu próprio fundamento. (BOURDIEU, 1998, p. 209). 29 No transcurso de nossa pesquisa, tratamos de abordar o direito e os direitos numa perspectiva “aberta”, onde a todo o momento fosse possível interrogá- los a partir de outras lógicas e não apenas a partir da “lógica jurídica”. Inclusive a partir da lógica do denominado “senso comum”, recuperado por Geertz (1997, p. 113) como um “saber local”; e por Santos (1989, p. 37) como “instrumento de luta”. Retomando Foucault, trata-se de submeter a ciência do direito (e dos direitos humanos) a “escansões, defasagens, coincidências, que se estabelecem e se desfazem”, isto é, trata-se de epistemologizá-la (1997, p. 217). Em certo sentido, trata-se de buscar uma pré-compreensão da relação que se estabelece entre o regimento (dispositivo) e a realidade (disposição), em matéria de efetividade de direitos e políticas sociais. Com isso, pretendemos fazer uma reflexão prévia sobre outros fenômenos que incidem e que têm repercussão sobre essa relação e seus desdobramentos. É o caso de discutirmos o processo de afirmação histórico-social dos direitos da pessoa humana que, refletem diretamente nos denominados direitos coletivos, que também são direitos de pessoas tomadas em conjunto. É uma postura nos termos propostos por Canotilho: Pretende-se tornar claro que o investigador não se pode furtar a um conjunto de influências jurídicas e extrajurídicas, políticas e sociais, decisivamente condicionadores do trabalho. Trata-se de uma questão de honestidade científica [...] A pré-compreensão continua a ser aqui uma compreensão hermenêutica, a fim de salientar a relação do sujeito cognoscente com o objeto a conhecer. (1994, p. 12). Essa pré-compreensão é uma postura metodológica que visa primordialmente estabelecer relações entre o objeto e o meio de onde deriva – o meio social, apreendido pelo pesquisador. É uma atitude relacional e relativizante. Ou, nos termos dos cuidados metodológicos propostos por Bourdieu: “Se é verdade que o real é relacional, pode acontecer que eu nada saiba de uma instituição acerca da qual eu julgo saber tudo, porque ela nada é fora das relações com o todo” (1998, 30 p. 31). Portanto, não se trata de uma pesquisa apenas sobre o conteúdo do texto constitucional, mas, também, sobre o contexto em que foi produzido. Ou seja, trata- se de estabelecer relações entre o direito instituído (a partir do Estado) e o direito demandado (a partir dos sujeitos). O nosso trabalho pretende discutir até que ponto o Regimento Constitucional pode ser considerado um instrumento de promoção da cidadania e de que cidadania. Pretende, ainda, confrontar esse Regimento com o que se convencionou denominar de “teoria liberal dos direitos humanos”, tão em voga no mundo moderno. Aliás, ela mesma se confunde com modernidade e está centrada basicamente em três pontos fundamentais: a igualdade perante a lei; o direito de propriedade e a economia de mercado. Ainda que seja uma Constituição marcada pela tradição liberal dos direitos humanos, o que é recorrente em todas as Constituições dos denominados Estados Modernos, alguns de seus dispositivos, em casos bem definidos, interrogam e podem ser interpretados como elementos epistemologizadores ou ressemantizadores dos princípios ou fundamentos dessa teoria. São dispositivos que resguardam direitos de minorias2 ou grupos sociais específicos e diferenciados, com o objetivo de prover-lhes meios próprios de produção econômica e reprodução social. Entre os múltiplos significados que a expressão “direitos de cidadania” encerra, vamos procurar apontar, neste trabalho, um desses seus significados possíveis na Constituição Federal. A idéia de cidadania como uma categoria objetiva, isto é, centrada na consolidação do princípio formal da “igualdade perante a lei”, não se tem mostrado capaz de atender às demandas das sociedades que compõem os denominados 2 Minoria entendida aqui dentro de uma concepção sociológica e não numa perspectiva quantitativa. 31 Estados nacionais modernos. Estados cuja principal característica é a diversidade e complexidade sociocultural e, em casos como o Brasil, associado a tudo isso, uma significativa (e brutal) desigualdade social e regional. Da mesma forma, a cidadania como “raiz dos direitos humanos”, arrasta consigo a necessidade de pensarmos no aspecto subjetivo dos direitos humanos. Isto é, de pensarmos nos direitos humanos como direito dos homens, dos diferentes homens e das suas diferentes subjetividades. Esta é uma realidade que aponta para os limites do próprio conceito de cidadania; da cidadania que se apóia exclusivamente no estatuto da igualdade formal. Essa é uma igualdade que, como bem expressa por Semprini Não engloba o conjunto dos cidadãos porque exclui vários indivíduos ou grupos, que não têm acesso equalizado ao espaço social como os demais [...] Esta igualdade também desconsidera as especificidades étnicas, históricas, identitárias – em suma, a diferença – que torna o espaço social heterogêneo. Cega a estas diferenças, esta igualdade é, na verdade, discriminatória. Enfim, aplicando-se somente a um cidadão ideal e não a indivíduos reais, plenos de subjetividade e de interioridade, a igualdade continua sendo um conceito abstrato. (1999, p. 93). Ante tão importante limitação imposta pela idéia da igualdade formal na construção da cidadania, é que entendemos ser pertinente discutir os fundamentos subjetivos ou direitos diferenciados que devem ser o substrato de qualquer idéia de cidadania. Trata-se de uma abordagem menos influenciada pela tradição política ou jurídica e mais centrada na sua dimensão antropo-lógica. Isto é, na subjetividade dos indivíduos e na sua identidade coletiva. Essa “ampliação” de concepções acerca da cidadania, não é, de modo nenhum uma resposta, mas, antes, uma pergunta. A saber: é possível abordar o problema da cidadania a partir do sujeito ou do grupo a que pertence e não a partir da polis (como na Antiguidade clássica), ou a partir do Estado (como nas sociedades contemporâneas)? O desenvolvimento do nosso trabalho tem como ponto de partida os trabalhos da Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes 32 e Minorias, da Comissão de Ordem Social da Assembléia Nacional Constituinte – ANC. Estávamos intencionando discutir um leque mais ou menos abrangente de direitos étnicos, entendendo o “étnico” como um coletivo de sujeitos que compartilham uma história comum, que têm as mesmas demandas, que “jogam o mesmo jogo”. Desse modo, separamos dos arquivos, os anais da Subcomissão de Minorias. Causou-nos uma certa surpresao volume de páginas dos documentos com as transcrições das atas das reuniões dessa Subcomissão. Eram mais de 420 páginas de transcrições em letras pequenas, com três colunas, distribuídas em vários volumes de anais, correspondendo a mais de cinqüenta horas de discussões em notas taquigráficas. Iniciamos um trabalho de selecionar e classificar as atas da Subcomissão de Minorias, que nos interessavam mais diretamente. Mesmo numa leitura rápida (a leitura mais cuidadosa faríamos a partir de cópias), nos deparamos com as demandas, denúncias e sugestões das mais variadas minorias. Estavam ali as demandas dos povos indígenas, do movimento negro, dos movimentos que congregam “pessoas deficientes” (físicos e mentais), hansenianos (portadores de lepra), portadores de outras doenças estigmatizantes ou relativamente incapacitantes (talassêmicos, ostomizados etc), do movimento homossexual; enfim: concorreram para essa Subcomissão “os diferentes”, “os outros”, aqueles cuja lógica ou cujo “jogo” nem sempre é lembrado quando as regras, os direitos e as políticas são pensados de forma universal e homogeinizante. Decidimos delimitar definitivamente o campo empírico e discutir somente duas abordagens: direitos relacionados aos povos indígenas e direitos relacionados às comunidades quilombolas. A escolha não foi aleatória. No primeiro caso, estávamos instigados pela nossa própria experiência profissional de médico 33 sanitarista, trabalhando há 16 anos em um município com forte presença de povos indígenas (Tenetehara, conhecidos como Guajajara e Ramkokamekra e Apaniekra, conhecidos como Canela). No segundo caso, teríamos a oportunidade de rediscutir um tema já pesquisado por ocasião da nossa dissertação de mestrado sobre o Estudo e Relatório de Impacto Ambiental – EIA/RIMA – da Base Aeroespacial de Alcântara, cujo processo de instalação e expansão, resultou em conflito de interesses com comunidades quilombolas. Nos dois casos, nos momentos de maior tensão, direitos constitucionais foram evocados e o instrumento jurídico-processual utilizado foi a Ação Civil Pública. Esta importante ação constitucional, nesses casos, foi demandada pelo Ministério Público Federal do Maranhão. A Ação foi mais satisfatória para os índios, mas no caso das comunidades quilombolas, serviu para dar mais visibilidade ao problema, inclusive com a interrupção dos deslocamentos das famílias que ainda não haviam sido deslocadas, embora o conflito permaneça com outras mediações. O nosso trabalho não é, portanto, uma ontogeneologia da cidadania ou dos direitos humanos. Não é nossa intenção e nem teríamos condições de fazê-lo. São temas inesgotáveis. Nossa perspectiva é refletir sobre as possibilidades de se pensar a idéia de direitos étnicos na Constituição da República Federativa do Brasil, como um exercício de ressemantização dos próprios direitos humanos. 34 2 A CONSTRUÇÃO HISTÓRICO-SOCIAL DOS DIREITOS HUMANOS Uma discussão sobre direitos humanos, como a que nos propomos a desenvolver, requer uma retomada do seu processo de construção histórica. Trata- se de uma breve reflexão sobre a “história social”3 dos denominados direitos humanos. Existe uma trajetória, construída socialmente em torno do que chamamos de direitos da pessoa humana. Primeiro, a própria noção de “pessoa humana” – variável na Antiguidade, como veremos adiante. Segundo, porque é preciso entender os reflexos dessa construção sobre o objeto específico de nossa discussão – os direitos étnicos. Por outro lado, não apenas sobre o curso da história dessa construção, mas, também, como um problema formulado, isto é, como se dá essa formulação. 2.1 A contribuição estóico-cristã na antiguidade Foram os cristãos que fizeram da pessoa moral uma entidade metafísica, após sentir-lhe a força religiosa. Nossa noção de pessoa humana é ainda, fundamentalmente, a noção cristã. A esse respeito só tenho que seguir o excelente livro de Schlossmann, que viu muito bem – depois de outros, mas melhor do que os outros – a passagem da noção de persona, homem revestido de um estado, à noção de homem simplesmente, de pessoa humana (...) a partir de então está feita a revolução das mentalidades, cada um de nós tem o seu “eu” – eco das Declarações de Direitos, que Kant e Fichte precederam. (MAUSS, 1974, p. 235 e 239). É corrente no pensamento ocidental que houve dois grandes legados da Antiguidade: a filosofia grega e o direito romano. E não constitui exagero afirmar que a geopolítica do mundo mediterrâneo, nos últimos séculos da Idade Antiga, foi ditada pelo helenismo, em decorrência das conquistas de Alexandre, e pelo romanismo, em 3 O conceito de “história social” é utilizado a partir de Bourdieu (1998: 37). “A história social da emergência desses problemas, da sua constituição progressiva, quer dizer, do trabalho coletivo – freqüentemente realizado na 35 face do domínio imperial romano, até a sua queda no século V. Uma das marcas características dessas sociedades, tanto a grega como a romana, era a estratificação social e um certo desprezo pelos estrangeiros. Em certo sentido, podemos dizer que a sociedade grego-romana desenvolveu uma concepção de direito, mas não o fizeram com relação a uma concepção de direitos humanos. Não como a construímos hoje. Na Roma antiga os indivíduos eram classificados segundo um determinado “status”. Havia o “status libertatis” que delimitava a condição de livre, semi-livre ou escravo; o “status civitatis” que delimitava a condição de romano ou estrangeiro (também chamado de bárbaro) e o “status familiae” que delimitava a condição de chefe da família (pater), mãe de família (mater) e os filhos. Sendo que, somente nas primeiras condições (livre, romano e pater) os indivíduos possuíam plenos direitos (POLETTI, 1996, p. 77-94; FILARDI, 1999, p. 54-80). O instituto da escravidão era naturalizado e perfeitamente legítimo, assim como a secundarização e a exclusão social dos peregrinos (sem nacionalidade romana). No dizer de Arendt, não ser reconhecido pela civitas romana ou pela pólis grega era ser desprovido de dignidade (2000: 104). Alguns autores têm chamado a atenção para o fato de que a idéia de dignidade humana, entendida como o valor supremo da vida humana em si mesma, para qualquer pessoa, independente de sua situação ou condição social, surge e vai se consolidar com o movimento social dos primeiros cristãos, contemporâneo do romanismo. Entre esses autores podemos citar, a própria Hannah Arendt, Marcel Mauss, Ágens Heller e Alain Touraine. Cada um a seu modo e por razões próprias, desenvolvendo temas distintos, recorrem a algum aspecto do pensamento moral e concorrência e na luta – o qual foi necessário para dar a conhecer e fazer reconhecer estes problemas como problemas legítimos, confessáveis, publicáveis, públicos e oficiais”. 36 ético dos primeiros cristãos e de sua noção de pessoa, liberdade e ética social, para fundamentar algumas de suas idéias sobre a centralidade do ser humano e de sua dignidade como valor central. Para estes autores, essa centralidade, que é uma categoria originária da ética estoico-cristã, é um marco conceitual revolucionário para as sociedades da época, na Antiguidade do mundo mediterrâneo. Marcel Mauss4, antropólogo francês, discorre sobre o tema no ensaio “A noção de pessoa” (1974), onde vai apontar a construção da noção de pessoa, com identidade e dignidade, a partir da noção de pessoa moral, a personados romanos, como exemplo. Hannah Arendt, filósofa e pensadora política alemã, discute o tema a partir de suas reflexões em “Entre o passado e o futuro” e “A condição humana”, de 1954 e 1958 respectivamente. Arendt aponta para as rupturas, ou como ela mesma denomina – a quebra – entre o passado e o futuro: a necessária humanização da tradição política da Antiguidade em todos os seus aspectos (2000, p. 28-68). Por sua vez, Agnes Heller5 representante da Escola marxista de Budapeste, no seu trabalho “Sociologia de la vida cotidiana”, aponta a postura superadora do fundador do cristianismo em relação à moral social de seu tempo (HELLER, 1991, p. 166-7), lançando as bases do que vai denominar de revalorização da “individualidade e da moral abstrata subjetiva, em oposição à moral concreta e objetiva” – a lei e a moral da época (HELLER, 1991, p. 152). E, por fim, o sociólogo contemporâneo Alain Touraine, na sua obra “Crítica da modernidade”, publicada no Brasil na segunda metade da última década de noventa, salienta como 4 Seguidor da tradição e do pensamento de Durkheim – era seu sobrinho – é um dos mais importantes nomes da antropologia francesa. 5 É o que podemos chamar de uma autêntica e expressiva representante da Escola marxista de Budapeste; foi aluna e seguidora das idéias de György Lukács. 37 o cristianismo primitivo, nos séculos I a III, se propôs inverter a “lei” e a “ordem” do mundo (mediterrâneo), na sua época (TOURAINE, 1999, p. 219). Apesar das diferenças teórico-metodológicas com que cada um desses autores aborda o tema, e ainda, das influências de suas respectivas formações intelectuais e ideológicas, eles recorrem a um mesmo padrão explicativo. Isto é: a noção de pessoa como fundamento ético (Mauss), a vida da pessoa humana como bem supremo (Arendt), o caráter essencial da individualidade da pessoa (Heller) e a definição do sujeito como um ser de vontade e ação própria (Touraine). São concepções que podem ser encontradas, de modo mais evidente, no pensamento estóico e na ética social dos primeiros cristãos. Nesta última, de forma mais direta e pragmática e com uma aplicação social mais bem definida. O motivo pelo qual a vida [da pessoa] se afirmou como ponto último de referência na era moderna e permaneceu como bem supremo para a sociedade foi que a moderna inversão de posições ocorreu dentro da textura de uma sociedade cristã, cuja crença fundamental na sacrossantidade da vida sobrevivera à secularização e ao declínio geral da fé cristã, que nem mesmo chegaram a abalá-la. Em outras palavras, a moderna inversão imitou, sem questionar, a mais significativa viravolta com a qual o cristianismo irrompera no cenário do mundo antigo, viravolta politicamente mais importante e, pelo menos historicamente, mais duradoura que qualquer conteúdo dogmático ou crença específica (ARENDT, 2001, p. 327). Para a história do problema da liberdade, a tradição cristã tornou-se de fato o fator decisivo. A razão para este notável fato é que, tanto na Antiguidade grega como na romana, a liberdade era um conceito exclusivamente político, a quintessência, na verdade, da cidade-estado [...] É somente quando os cristãos primitivos, particularmente Paulo, descobriram uma espécie de liberdade que não tinha relação com a política que o conceito de liberdade pôde penetrar na história da Filosofia (ARENDT, 2000, p. 204-5). Arendt deixa claras as limitações das concepções grega e romana de cidadania e de direitos da pessoa humana. A liberdade do cidadão da pólis (grega) ou civitas (romana), não é a liberdade do homem pelo fato de ser homem. A idéia de liberdade, no pensamento clássico, era aquela centrada na ordem e não na pessoa humana. A pessoa era uma categoria relativa. Isto é, para ser considerado pessoa, com direitos, não bastava ser homem em sentido genérico. Era necessário ter um 38 “nome”, que designava uma ascendência, uma família ou seu pater e não podia ser escravo, pois este era considerado como objeto no Direito Romano clássico. É significativa uma frase romana sobre a condição do escravo: “servus est res” (escravo é coisa). Como se pode deduzir, ser pessoa e ter direitos inerentes à qualidade de pessoa, estava relacionado a um determinado “status”; condição que não se colocava para qualquer indivíduo. Segundo a autora, só com o cristianismo, tomado aqui como um sistema de idéias e não como religião, a vida individual e a pessoa humana passam à condição de categoria absoluta. Ou seja: a partir daí, a noção de pessoa, nesse sistema, não está mais referida a “status”, a títulos ou propriedades. Isto é, não há na ética cristã primitiva pré-condições para ser pessoa. Ser livre, semi-livre ou escrava; ser patrícia, plebéia ou estrangeira; ser desse ou daquele grupo social; ser “igual” ou “diferente”, todos são designados pela categoria pessoa. O que importa, a partir do momento em que se afirma, ou reafirma, a centralidade da pessoa, é tão somente a sua natureza humana, a dignidade que lhe é inerente. Mesmo uma exegese breve de alguns textos cristãos escritos até o século III (Evangelhos e Cartas de Paulo basicamente), deixa entrever que na moral cristã primitiva, o entendimento da idéia de pessoa estava relacionada à sua natureza (physis) humana. Isto é, a sua condição física de ser humano. E nisso estava reproduzindo, numa dimensão, digamos mais popular (senso comum mesmo), o pensamento estóico, como procuraremos demonstrar adiante. Desse modo, o problema do reconhecimento da dignidade humana como algo inerente à condição de pessoa, para o cristianismo nascente, era irrefutável. A idéia de pessoa não era limitada, por exemplo (no caso do direito romano), por deformidades físicas. O que 39 ditava a condição de pessoa era a sua própria natureza e não a sua forma física ou status político. Considerando a perspectiva cristã, a sociedade grego-romana tinha uma ética marcada pela estratificação social e pela ausência dos direitos da pessoa humana, tomados de forma indistinta, isto é, para qualquer pessoa. O problema da liberdade passa a ser emblemático dessa questão porque, diferentemente do pensamento da época, o movimento cristão primitivo desloca a importância das instituições (a pólis ou o direito) para a pessoa humana (a dignidade e a individualidade – não o individualismo). O ser humano é que passa a ser importante e não a moral, as instituições ou o direito da polis. Estes passam a ter importância instrumental. “O sábado (uma instituição) foi feito para o homem e não o homem para o sábado”. Igualmente a moral e o direito, como instituições socialmente construídas, deveriam estar a serviço do homem, de qualquer homem, e não o contrário. Essa perspectiva pode ser vista como uma ruptura. Jesus de Nazaré e Paulo de Tarso são os principais sujeitos fundantes da ética social dos primeiros cristãos. Podemos suscitar, com algum grau de razoabilidade que, tanto Mauss (1974), como Heller (1991), Arendt (2002; 2001), e Touraine (1999), redescobrem elementos dessa ética e de sua importância para o que denominamos de humanismo e para a formulação das grandes declarações institucionais de direitos humanos. Essas coisas, como aponta Mauss, referindo-se à idéia de pessoa e de direitos da pessoa humana, não são naturais: ao contrário, foram socialmente construídas. A noção de pessoa e de sua dignidade, a importância da individualidade e da diversidade que ela representa, de certo modo, tendem a contrapor-se às instituições da cidadania helênica e romana, na Antiguidade. 40 A ética social do cristianismo primitivo concebe uma forma diferente de ver o lugar dapessoa na civitas e na polis, isto é, no mundo. Uma nova concepção de cidadania, diferente daquela sedimentada, até então, pelo pensamento da Antigüidade, inicia seu processo de consolidação. Essa nova concepção de cidadania – fundamentada na pessoa humana, e não mais na ordem, opera um deslocamento. A pessoa humana, e com ela a sua subjetividade, passa a ter mais importância que as instituições (morais ou legais) e as suas supostas objetividades. A idéia de cidadania como uma categoria que oscila entre a subjetividade da pessoa (ou do grupo a que pertence) e a objetividade do Estado é um tema retomado, recentemente por Boaventura de Sousa Santos nos seguintes termos: “A nova cidadania tanto se constitui na obrigação política vertical entre os cidadãos e o Estado, como na obrigação horizontal entre cidadãos [diferentes]. Com isso revaloriza-se o princípio da comunidade e, com ele, a idéia da igualdade sem mesmidade” (SANTOS, 1996, p. 278). Alguns elementos dessa “nova” cidadania podem ser retomados, como referimos, de movimentos populares do início de nossa Era. Com esses movimentos constroem-se novas concepções nas relações interpessoais e sociais. Promoveram- se rupturas com as normas e os costumes de seu tempo e inovou-se no campo da ética. Essas concepções reaparecem, numa dimensão laica, no que se convencionou denominar movimento humanista, que influencia significativamente o Renascimento e o Iluminismo, curiosamente movimentos anticlericais, demonstrando, historicamente, a dialética e as contradições que o cristianismo encerra, enquanto sistema de idéias (seu aspecto filosófico) e enquanto religião (seu aspecto institucional). 41 Numa época e lugar em que importava, e muito, ter nascido homem, livre e com uma nacionalidade (cidadania) definida, surge um líder carismático que trata mulheres, escravos e estrangeiros em igualdade de condições. Isso tem impactos morais muito fortes. Tende a romper toda uma tradição construída historicamente. E não importam muito, neste caso, as discussões sempre presentes em torno da “tese mitológica” de Jesus (segundo a qual Ele não teria existido como é apresentado pela tradição cristã). O que importa aqui é, muito mais, a criação de um sistema de idéias que apresenta traços de ruptura com dogmas e sedimentos morais muito fortes. É nesse sentido que Weber vai apontar Jesus como um “profeta” e não como um “sacerdote” (WEBER, 1989, p. 303-4). Para Weber há uma distinção entre o que denomina de “profeta” e “sacerdote”. Na sua concepção, o sacerdote reclama autoridade em razão de uma tradição e o profeta, de modo diferente, em razão de uma inovação-anunciação. Jesus ou Yeshuah (como era chamado em aramaico) move-se contra uma tradição; inverte algumas perspectivas morais e legais já bem “naturalizadas” na época. Uma sociologia jurídica do cristianismo primitivo é possível, a partir das falas e dos encontros de Jesus e de seus seguidores, os nazarenos. Gostavam de discutir a força e a fraqueza da “ordem jurídica” moisaica e romana nas sinagogas que visitava6. Com o cristianismo primitivo, as mulheres, as crianças, os escravos, os enfermos, os pobres, os diferentes, os estrangeiros, os incapazes, enfim: os “excluídos” e os outros povos (as outras etnias) passam a ser vistos como pessoas plenas e providas de dignidade, até então não reconhecida pela tradição vigente. 6 Interessante coleção sobre o tema foi publicada pela Editora Paulus, onde destacamos as seguintes obras: “As origens cristas em perspectiva sociológica” de H. C. Kee; “O mundo moral dos primeiros cristãos” de Wayne A. Meeks; “Bandidos, profetas e messias – movimentos populares no tempo de Jesus” de Richard Horsley e John Hanson; “Religião e formação de classes na antiga Judéia” de Hans G. Kippenberg. 42 Com isso, inicia-se um processo de consolidação de um sistema de idéias que deixa de excluir da categoria pessoa, indivíduos que, mesmo tendo a natureza humana, não tinham um determinado status ou condição social que lhe favorecesse. Como dizia Paulo de Tarso, voz firme nas primeiras contendas envolvendo cristão judeus e cristãos não judeus (gentios), citado por Mauss (1974, p. 235) e Arendt (2000, p. 191-2) – “não há mais nem judeus, nem gregos; nem escravos, nem livres; nem homens, nem mulheres: todos sois um só em Jesus” (Carta aos Gálatas; 3,28). Embora essa frase de efeito, anunciada por Paulo, possa permitir uma interpretação de que, quem não está com Jesus não é pessoa (interpretação recorrente entre colonizadores europeus diante de ameríndios e africanos), essa não parece ser a intenção do autor da frase. A sua preocupação é a estratégia da promoção da igualdade como forma de promover a tolerância à diferença. É talvez a primeira grande discriminação positiva anunciada socialmente, exatamente onde essa discriminação era mais necessária. O embate entre uma tradição estratificante e a nascente concepção dignificante da pessoa humana teve, em Jesus de Nazaré e Paulo de Tarso, defensores laboriosos. Nesse sentido, Bonavides ainda destaca que: Na raiz disso tudo estava a discriminação orgulhosa com que o grego se presumia superior ao bárbaro, o senhor ao escravo, o nobre [patrício] ao plebeu, convicções expressivas de uma desigualdade natural convertida em desigualdade social. A Antigüidade clássica viveu em larga parte à sombra dessa crença, só abalada posteriormente com os estóicos e os cristãos (BONAVIDES, 1996, p. 113). Em relação ao pensamento estóico, podemos dizer que no conjunto da filosofia helenista, o estoicismo se caracteriza pela moral da liberdade absoluta da pessoa humana. Como aponta Russ, “a liberdade dessa perspectiva, designa a potência de agir por si mesmo no nível do pensamento e do juízo. A moral estóica é, portanto, uma doutrina voltada para a liberdade humana” (1994, p. 332). Esse 43 esforço intelectual acaba por exigir dessa escola do pensamento grego da Antiguidade algumas redefinições em relação ao lugar da pessoa no mundo e, sobretudo, a discutir os diferentes status e condições entre as pessoas (escravos e livres; homens e mulheres; eupátridas e estrageiros e assim por diante). Não podemos dizer que o movimento estóico modificou a realidade social de sua época, mas, de algum modo, começou a discuti-la. E é certo que vai influenciar o movimento cristão, que também teve seu esforço especulativo. É inegável a influência helênica (estoicismo) e judaica (essenismo) sobre o movimento dos primeiros cristãos, também chamados, na época, de nazarenos. O Estoicismo, que vai atingir seu apogeu na Grécia do século III a.C., vai ressurgir em Roma com Sêneca e Marco Aurélio (REALE, 1990, p. 254). Uma análise mais detalhada da ética social dos nazarenos, particularmente das falas e posições de Jesus de Nazaré e das Cartas de Paulo de Tarso, mostra a influência e as semelhanças desse movimento com o pensamento estóico. No dizer de Bertrand Russel, a unidade do pensamento ético-estóico em torno do desprendimento material e da valorização dos homens como seres morais, foi o grande responsável pelo seu prestígio como doutrina (RUSSEL, 2002, p. 153). Quando o cristianismo primitivo inicia o seu processo de expansão no mundo mediterrâneo, a moral estóica, mesmo sendo considerada “pagã”, já havia colocado em questão as distinções, estratificações e exclusões da cidadania grega e romana. Para o estoicismo, os homens, como seres da natureza, devem ser tratados como iguais em que pesem as suas diferenças. A idéia de natureza (physis), portanto, fundamenta o viver social para os estóicos. Foram francamente contrários à escravidão.
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