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Direitos Humanos e Estado Multicultural - Marcos Antonio B. PACHECO

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO 
CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS 
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS 
 
 
 
 
MARCOS ANTÔNIO B. PACHECO 
 
 
 
 
 
 
 
DIREITOS HUMANOS E ESTADO MULTICULTURAL: 
políticas e direitos étnicos na Constituição Federal de 1988 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
São Luís 
2004 
UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO 
CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS 
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS 
 
 
 
 
MARCOS ANTÔNIO B. PACHECO 
 
 
 
 
 
 
 
DIREITOS HUMANOS E ESTADO MULTICULTURAL: 
políticas e direitos étnicos na Constituição Federal de 1988 
 
 
 
Tese de Doutorado apresentada à 
Universidade Federal do Maranhão para 
obtenção do título de Doutor em 
Políticas Públicas. 
 
Orientadora: Profa. Dra. Elizabeth Maria 
Beserra Coelho. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
São Luís 
2004 
 Pacheco, Marcos Antônio B. 
 
Direitos humanos e Estado multicultural: políticas e direitos étnicos na 
Constituição Federal de 1988 / Marcos Antônio B. Pacheco. ___ São Luís, 
2004. 
 
190 f. 
 
Tese (Doutorado em Políticas Públicas) – Universidade Federal do 
Maranhão, 2004. 
 
1. Direitos humanos – Estado multicultural 2.Direitos étnicos – 
Constituição Federal de 1998 I. Título. 
 
CDU 342.7 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
MARCOS ANTÔNIO B. PACHECO 
 
 
DIREITOS HUMANOS E ESTADO MULTICULTURAL: 
políticas e direitos étnicos na Constituição Federal de 1988 
 
 
 
Tese de Doutorado apresentada à 
Universidade Federal do Maranhão para 
obtenção do título de Doutor em 
Políticas Públicas. 
 
 
 
Aprovada em / / 
 
 
 BANCA EXAMINADORA 
 
 
 
 __________________________________________ 
 Profa. Dra. Elizabeth Maria Beserra Coelho 
 
 
 
 
 _____________________________________________ 
 Prof. Dr. Dalmo de Abreu Dallari 
 
 
 
 
 _____________________________________________ 
 Profa. Dra. Maria Ozanira da Silva e Silva 
 
 
 
 _____________________________________________ 
 Prof. Dr. Paulo Roberto Barbosa Ramos 
 
 
 
 
 _____________________________________________ 
 Prof. Dr. Carlos Benedito Rodrigues da Silva 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
À todos aqueles que, na luta por direitos, 
lutam antes pelos direitos dos outros, refazendo no 
concreto, as palavras de quem um dia disse: não 
há maior prova de amor que dar a vida pelo irmão. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
AGRADECIMENTOS 
 
 
 
A realização de um trabalho como este, nas condições impostas ao 
pesquisador brasileiro, onde quase sempre estamos impossibilitados de nos dedicar 
exclusivamente à pesquisa, requer sempre um esforço para além da capacidade 
individual. 
 Assim, várias pessoas vão contribuindo para a sua construção; umas de 
forma mais direta sobre o próprio texto, como os professores da qualificação, cuja 
contribuição foi decisiva na construção final do trabalho. Portanto, um agradecimento 
especial à professora Maristela Andrade, pela sua crítica rigorosa no que concerne 
às categorias mais utilizadas no campo da antropologia. Da mesma forma, ao 
professor Paulo Roberto, no que tange aos aspectos mais jurídicos do trabalho. E, 
muito especialmente à minha orientadora, professora Elizabeth Coelho, pela 
paciência com um aventureiro no campo das ciências sociais, cuja formação 
positivista (advinda das ciências “naturais”), por vezes, atrapalhava a construção do 
objeto, tarefa praticamente impossível sem a sua orientação dedicada e 
extremamente competente. 
 Outras pessoas contribuíram de forma indireta. Agradecimento aos 
funcionários da seção de anais e documentação do Senado Federal, pela gentileza 
com fomos tratados e pelo fornecimento das cópias de atas da Assembléia Nacional 
Constituinte, na forma que demandamos. Do mesmo modo, aos colegas médicos de 
Barra do Corda, pelas trocas de plantões; aos colegas professores da faculdade de 
direito e da faculdade de medicina do UniCEUMA pelo apoio recebido. 
Agradecimento especial a todos os professores e funcionários do Programa de 
Políticas Públicas da UFMA, pelo cuidado que sempre tiveram conosco. E, também, 
um agradecimento à FAPEMA pela concessão de uma bolsa, fundamental para o 
financiamento de viagens no transcurso da pesquisa. 
 Maior agradecimento dedico à minha família; meus pais, irmãos e, 
principalmente, à minha maravilhosa mulher (ou mulher maravilha), cujo laço e 
escudo sempre me deram proteção. Proteção particularmente necessária para um 
trabalho como este, inclusive, auxiliando diretamente na coleta e classificação de 
dados. Também, aos meus filhos, Matheus e João Marcos, pela compreensão (ou 
resignação talvez) com que encararam o tempo que lhes roubei para escrever este 
trabalho. Espero poder devolver-lhes um pouco desse tempo, mostrando-lhes a 
necessidade de associarmos o conhecimento ao sentimento, na lição sempre atual 
de Gramsci (que substituirei por um de seus heróis). E a Deus que sente e conhece 
o verdadeiro sentido das palavras direito e justiça. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Não acredito que eu esteja lutando pela 
liberdade do negro, pela liberdade do 
indígena. Eles é que estão lutando pela 
minha liberdade, pela nossa liberdade – 
este é o sentido maior da atividade que 
desenvolvem. Quer dizer, no fundo estamos 
caindo naquela velha forma: os oprimidos 
ao se emanciparem, emancipam os outros. 
 
 Florestan Fernandes 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
RESUMO 
 
 
 
Direitos Humanos e Estado Multicultural – políticas e direitos étnicos na 
Constituição Federal de 1988. Estudo sobre os denominados direitos étnicos no 
âmbito do processo constituinte e de seu produto – a Constituição Federal de 1988 – 
objetivando uma discussão sobre as questões que envolvem os direitos humanos, 
na sua tradição mais hegemônica – a tradição liberal. Constitui-se em um exercício 
de ressemantização dos denominados direitos da pessoa humana, tomando como 
substrato empírico, os direitos dos povos indígenas e os direitos das comunidades 
quilombolas. 
 
 
Palavras-chave: Direitos humanos – Estado multicultural. Direitos étnicos 
Constituição Federal de 1998. 
 
 
 
 
 
 
 
 
ABSTRACT 
 
 
 
 Human rights and Multicultural State - politics and ethnic right in the Federal 
Constitution of 1988. Study about the denominated ethnic right in the scope of the 
constituent process and of your product - the Federal Constitution of 1988 - 
objectifying a discussion on the questions that involve the human rights, in your more 
hegemonic tradition – the liberal tradition. It constitutes in a ressemantization 
exercise of the denominated person’s human right, talking as empiric substratum, the 
rigts os the indigenous peoples and communities’ rights quilombolas. 
 
 
Keywords: Human rights – multicultural State. Ethnic rights - Federal Constitution of 
1998. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
SUMÁRIO 
 
p. 
APRESENTAÇÃO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 09 
1 INTRODUÇÃO: CONSTRUINDO O OBJETO DA PESQUISA . . . . . . . .. . .. . . 16 
2 A CONSTRUÇÃO HISTÓRICO-SOCIAL DOS DIREITOS HUMANOS . . . . . . . . 34 
2.1 Contribuição a estóico-cristã na antiguidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 34 
2.2 Kant e as grandes declarações do século XVIII. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45 
2.3 As declarações de direitos das nações unidas . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . 55 
3 A DECLARAÇÃO DE DIREITOS DE MINORIAS ÉTNICAS . . . . . . . . . . . . . . . . 63 
4 CONSTITUCIONALIZAÇÃO DOS DIREITOS ÉTNICOS NO BRASIL. . . . . . .. . 75 
4.1 Processo constituinte e demandas étnicas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 75 
4.2 Direitos étnicos: da constituinte à constituição . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 98 
5 DIREITOS QUE QUESTIONAM DIREITOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . 136 
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .160 
REFERÊNCIAS. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 169 
DOCUMENTOS PESQUISADOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ... 175 
ANEXOS .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . ... 178 
 
 9
APRESENTAÇÃO 
 
 
Quer nos países centrais, quer nos países em desenvolvimento, as forças 
progressistas preferiram a linguagem da revolução e do socialismo para 
formular uma política emancipatória. Todavia, com a crise aparentemente 
irreversível destes projetos de emancipação, essas mesmas forças 
recorrem hoje aos direitos humanos para reinventar a linguagem da 
emancipação (SANTOS, 2003, p. 429). 
 
 
 O tema direitos humanos tem sido muito debatido por amplos setores, 
tanto no âmbito nacional quanto internacional; sejam ligados a agências de 
governos de Estados, ou a agentes de movimentos sociais organizados não 
governamentais. É um tema que tem ocupado agendas diversas, notadamente a 
partir da segunda metade do século passado com a instituição, pelas Nações 
Unidas, da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e dos Pactos 
Internacionais de Direitos Humanos de 1966. 
A institucionalização dos denominados direitos humanos se consolida, 
também, como uma reação aos grandes conflitos internacionais, principalmente a 
Segunda Guerra mundial e a outros conflitos localizados que se seguiram no ajuste 
da ordem política global, após essa última guerra. Assim, a linguagem dos direitos 
humanos foi utilizada, tanto para questionar os Estados que optaram por regimes 
cerceadores das liberdades civis (socialistas), quanto para questionar aqueles que 
optaram por regimes favorecedores das desigualdades econômicas (capitalistas). É 
um tema que arrasta consigo a marca de grandes discursos e discussões maiores 
ainda. 
Como bem aponta Bobbio (1992a, p. 07), a própria expressão “direitos do 
homem” carece ainda de um debate mais amplo; a sua semântica ainda encerra 
uma variação de significados, que colocam em permanente debate aspectos 
jurídicos, éticos e morais. Em decorrência disso mesmo, a questão dos direitos 
 10
humanos tem tomado contornos os mais instigantes nesta passagem de século. A 
própria questão do uso ideológico dos direitos humanos como instrumento de 
dominação, apontado por Santos (2003, p. 429), ao relatar o uso dos direitos 
humanos como parte integrante da guerra fria e, mais recentemente, como razão 
para a ocupação militar de países, coloca este tema em destaque nas agendas 
nacionais e internacionais. 
Este trabalho de pesquisa se propõe discutir a questão dos direitos 
humanos. Mas, pretende fazê-lo a partir do processo de afirmação dos denominados 
direitos étnicos, como uma possibilidade de abertura de novas perspectivas de 
discussão do tema. Para tanto, parte do contexto da Assembléia Nacional 
Constituinte e de seu produto final – a Constituição da Republica Federativa do 
Brasil. Nesse sentido, vamos procurar desenvolver um quadro analítico capaz de 
entender, ou oferecer elementos para a compreensão das possibilidades e dos 
sentidos que a categoria direitos humanos encerra, enquanto instrumento de 
proteção e promoção humana, quer sob o aspecto mais pessoal – como na visão 
mais tradicional, ou no aspecto mais coletivo – como na dimensão étnica. 
Para essa discussão faz-se necessária uma retomada do que vamos 
denominar de “construção social dos direitos humanos”. Neste caso específico, 
refere-se ao seu processo de afirmação histórica. Isto é, de como a idéia de direitos 
da pessoa humana foi sendo construída historicamente. Certamente que estamos 
falando de um processo de afirmação essencialmente do ponto de vista ocidental, se 
é que podemos falar assim. De qualquer modo, essa construção se constitui no 
nosso ponto de partida para uma discussão sobre uma abordagem mais específica 
desses direitos, como pretendemos discutir aqui – aquela referida ao problema dos 
direitos étnicos no Brasil. 
 11
O trabalho de pesquisa foi desenvolvido tendo em vista a necessidade de 
problematização do próprio tema. E isso torna procedente uma breve revisão 
histórica acerca da temática dos direitos humanos em seu sentido mais amplo. 
Portanto, trata-se de um trabalho sobre direitos étnicos, mas, sobretudo, de como os 
direitos étnicos possibilitam uma interrogação às próprias concepções construídas 
historicamente sobre a idéia de direitos humanos. Trata-se de anunciar a 
possibilidade de um quadro onde direitos questionam direitos. Realmente, como 
procuraremos demonstrar no desenvolvimento do trabalho, ao discutirmos os 
dispositivos constitucionais atinentes à questão étnica – nossas unidades de 
análises – resta claro o quanto essa questão interroga a concepção liberal-ocidental 
dos direitos humanos. 
O trabalho se inicia com um exercício de delimitação e problematização 
do seu objeto. Segue com uma discussão narrativo-teórica sobre a construção social 
dos direitos da pessoa humana, partindo da Antiguidade até os grandes marcos das 
Declarações das Nações Unidas e, após essas discussões de cunho mais teórico e 
fundamentais para o melhor entendimento da abordagem que pretendemos fazer do 
objeto, passamos à discussão dos dispositivos constitucionais de direitos étnicos, 
aqui apresentados como as nossas “unidades de análises”, isto é, a referência 
empírica do trabalho. 
No sentido de evitar uma análise meramente conteudista da Constituição 
Federal, a pesquisa se estendeu a alguns arquivos do Congresso Nacional, mais 
precisamente aos Anais da Assembléia Nacional Constituinte – ANC. Fizemos uma 
pesquisa documental nesses arquivos que evidenciavam demandas e propostas da 
institucionalização de direitos étnicos, perante uma das Subcomissões da ANC no 
processo constituinte. Essa foi uma etapa procedida diretamente na Secretaria de 
 12
Documentação e Informação do Senado Federal, em duas de suas Subsecretarias – 
Subecretaria de Arquivos e Subsecretaria de Anais. 
Foi um esforço da pesquisa em transcender uma interpretação 
meramente normativa, buscando uma análise jurídico-social. A recuperação de 
documentos que demonstram a participação dos movimentos sociais na ANC 
favoreceu esse tipo de análise. Os dispositivos constitucionais sobre os direitos 
étnicos constituem-se, portanto, no ponto principal de nossas reflexões. Nossa 
atenção foca-se sobre o processo constituinte iniciado em 1987 e concluído em 
1988. Mais especificamente nos trabalhos da sua Subcomissão dos Negros, 
Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias, da Comissão de Ordem 
Social da ANC, retomando as atas de suas reuniões. Por último, o trabalho procura 
fazer uma discussãoexegética sobre os dispositivos constitucionais que podem 
contribuir com a questão principal, apontada nos seguintes termos: 
Tratando-se de um Estado liberal, instituído numa realidade multicultural e 
pluriétnica, em que medida a Ordem Constitucional brasileira dispõe sobre direitos 
étnicos? 
Esta, portanto, se constitui numa questão central da pesquisa. 
O problema da construção de conceitos e concepções, e o seu 
movimento inverso – a crítica, a relativização e a desconstrução de conceitos, assim 
como a formulação de perguntas e a produção de respostas, tem sido a motivação 
do conhecimento científico. O processo de formulação de perguntas e da produção 
de respostas passa, necessariamente, pela discussão de determinados conceitos. 
No caso de nosso trabalho, a discussão dos direitos étnicos e da possibilidade de 
uma cidadania multicultural nos conduziu as seguintes questões: 
 13
a) Dentro do que se denomina tradição liberal dos direitos humanos, 
existe lugar para um debate sobre direitos étnicos? 
b) Como a Constituição Federal do Brasil vai dispor (ou não) sobre 
direitos étnicos, como possibilidade de reconhecimento de uma 
cidadania étnica? 
c) Se essa cidadania é uma possibilidade constitucional, quais os meios 
institucionais que podem ser demandados na sua defesa e promoção? 
A formulação desses problemas e a construção de suas respectivas 
respostas devem-se constituir, para nós, em exercícios epistemológicos, nos termos 
colocados por Bachelard (1996: 17-8). Trata-se de superar obstáculos, revendo e 
relativizando conceitos, ressemantizando significados e, no nosso caso específico, 
intentando possibilidades e sentidos de uma interpretação constitucional mais aberta 
e correspondente às demandas que convergiram para a ANC, a partir dos 
movimentos sociais que para ai concorreram. Para tanto, faz-se necessário rediscutir 
alguns conceitos e delimitar a construção do nosso objeto. 
Conceitos como “concepção liberal-ocidental dos direitos humanos”, a 
própria idéia de “direitos étnicos” e a relação entre direitos humanos e direitos 
étnicos são objetos de uma discussão mais detalhada no capítulo introdutório. Ainda 
nesse mesmo capítulo, delimitamos o campo empírico da pesquisa, que toma como 
referência apenas os direitos das denominadas “populações indígenas” e dos 
“remanescentes das comunidades de quilombos”1. Nesse mesmo capítulo 
apontamos nossas opções metodológicas na abordagem do objeto. Em um capítulo 
específico, discutimos o processo constituinte com o seu modelo de organização 
 
1 As denominações “populações indígenas” e “remanescentes das comunidades de quilombos” estão aqui 
utilizadas em consonância com a gramática dos dispositivos constitucionais. São denominações que encerram 
uma variedade muito grande de críticas. Contudo, doravante utilizaremos as denominações “povos indígenas” e 
“comunidades quilombolas”. Essas categorias serão discutidas posteriormente. 
 14
regimental, que resultou numa das maiores participações dos movimentos sociais na 
formatação de uma Constituição. Em seguida é abordada a constituição dos direitos 
étnicos no Brasil. 
No último capítulo fazemos uma discussão, dos reflexos de dispositivos 
constitucionais em políticas públicas, tomando como referência duas situações 
ilustrativas envolvendo relações interétnicas conflituosas, nas quais, em alguns 
momentos mais decisivos, foram evocados direitos constitucionalmente garantidos. 
O primeiro, trata-se do processo de implantação e expansão da Base Aeroespacial 
de Alcântara, cujo projeto entrou em conflito com interesses de comunidades 
quilombolas existentes na zona rural daquele município. O segundo caso, refere-se 
à luta travada por índios Tenetehara (conhecidos como Guajajaras) pela terra Cana 
Brava, na região do Alto Mearim, ambos no interior do Estado do Maranhão. 
Essa discussão serve para ilustrar o uso de dispositivos da Constituição e 
procura demonstrar como, por vezes, esses dispositivos são acionados e evocados 
por agências e agentes na busca da defesa de interesses legítimos de grupos 
sociais específicos. E como, em muitos desses casos, os direitos se fundamentam 
em princípios inovadores em relação à tradição jurídica liberal-ocidental. Nos casos 
que apontamos, uma das questões centrais são os direitos territoriais, 
completamente distintos do direito de propriedade da terra, como demonstramos no 
desenvolvimento do trabalho. 
São categorias constitucionais que vão surgindo e se adequando aos 
interesses das demandas que concorreram para a ANC. Tanto no que se refere ao 
“usufruto exclusivo” (artigo 231, § 2.º da CF/88) para os povos indígenas, como na 
“titularidade de domínio” (artigo 68 do ADCT da CF/88) para as comunidades 
quilombolas, não se trata de mera propriedade da terra. São categorias que não 
 15
podem ser entendidas numa dimensão meramente econômica ou utilitarista. A 
territorialidade, nesses casos, tem um papel de destaque, reveste-se de um 
significado que se confunde com a própria vida dessas comunidades. Elas não 
existem fora de seu território, porque somente ai é que está a sua tradição, a sua 
vida construída étnica e culturalmente. Portanto, não há como descolar esse 
significado do próprio sentido da expressão dos direitos humanos demandados por 
esses povos e comunidades. 
Ao final, à guisa de conclusão, procuramos apresentar sinteticamente 
nossas considerações acerca da questão dos direitos humanos, utilizando um 
instrumental metodológico construído a partir dos denominados direitos étnicos. Não 
é uma tarefa que se possa dizer concluída, contudo, pretendemos que seja um 
passo no longo percurso do processo de compreensão das questões relacionadas 
aos direitos humanos. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 16
1 INTRODUÇÃO: CONSTRUINDO O OBJETO 
 
Em primeiro lugar, é preciso saber formular problemas. E, digam o que 
disserem, na vida científica os problemas não se formulam de modo 
espontâneo. É justamente esse sentido do problema que caracteriza o 
espírito científico. Para o espírito científico, todo conhecimento é resposta a 
uma pergunta. Se não há pergunta, não pode haver conhecimento 
científico. Nada é evidente. Nada é gratuito. Tudo é construído. 
(BACHELARD, 1996, p. 08). 
 
O processo de afirmação dos direitos humanos tem-se constituído numa 
marca importante no conjunto dos cenários políticos que se desenvolvem no mundo 
ocidental. E, dentro desse contexto, assume posição de destaque o que se 
denomina de tradição liberal dos direitos humanos. Contudo, mesmo dentro dessa 
tradição ou às vezes até contra ela, têm surgido movimentos que a interrogam, que 
a questionam e tentam, por assim dizer, uma relativização ou ressemantização de 
seus princípios. Um desses fatos foi, a nosso ver, a instituição da Declaração Sobre 
os Direitos das Pessoas Pertencentes a Minorias Nacionais ou Étnicas, Religiosas e 
Lingüísticas, estabelecida pela ONU – Organização das Nações Unidas – em 1992. 
De certo modo, essa Declaração é resultante de um processo que se 
intensificou no último quartel do século passado, que visa, em última instância, 
promover o “direito à identidade étnica e cultural”, posto, também, como um direito 
humano. Um direito de resistência. É bem possível que os acontecimentos de 
marcada violência e brutalidade, que irrompem após o final da guerra fria, com a 
fragmentação de Estados socialistas na Europa (caso dos Bálcãs), assim como os 
contínuos conflitos separatistas que ocorrem em todos os continentes, tenham 
apressado a institucionalização dessa Declaração. É uma tentativa de amenizar as 
tensões sociais e políticas nesses conflitos, com marcadoenvolvimento de minorias 
étnicas. 
 17
Os fundamentos conceituais de uma Declaração como esta são 
resultantes de um processo que, se não é de redefinição, certamente é de 
interrogação da tradição liberal-ocidental dos direitos humanos. Com o termo “liberal-
ocidental”, pretendemos indicar uma herança eurocêntrica que marca principalmente 
as instituições políticas e jurídicas do mundo ocidental, cujo mais evidente exemplo 
é a concepção de Estado Moderno. Estado moderno constitucionalista que se 
consolida a partir de Declarações de direitos e de uma soberania sobre determinado 
território. Portanto, a construção social e o processo de afirmação histórica dos 
denominados direitos humanos é a base da constituição do Estado Moderno, como 
é conhecido atualmente. 
Muito embora relativizada por Hirschamn (1992), em face de sua 
tendência evolucionista, a concepção marshalliana de direitos (Marshall, 1967) é um 
dos principais esteios teóricos sobre o qual está assentada essa tradição dos direitos 
humanos, aqui designados, também como direitos de cidadania. A aproximação 
conceitual entre a idéia de direitos humanos e direitos de cidadania deve-se ao fato 
de que, historicamente, os direitos humanos têm sido afirmados dentro do âmbito, ou 
em face do Estado (a civitas ou polis “moderna”). Segundo essa concepção de 
direitos de cidadania, base da tradição liberal dos direitos da pessoa humana, estes 
podem ser classificados em civis, políticos e sociais. 
Nesse paradigma de classificação, os direitos civis corresponderiam 
àqueles relacionados às liberdades individuais e à autonomia em relação ao Estado; 
políticos seriam os direitos relacionados à participação na formação do próprio 
Estado, como o sufrágio universal; bem marcados pelas Declarações do século XVIII 
(Revolução Francesa e Independência Norte-Americana). Os direitos sociais seriam 
aqueles relacionados à condição social e econômica das pessoas, bem 
 18
evidenciados nas Constituições mexicana e weimariana do início do século XX. 
Esses direitos vão tornar-se o fundamento do denominado welfare state ou estado 
de bem-estar, que vai se consolidar, notadamente na Europa, na segunda metade 
do século passado. 
Uma outra concepção, ainda dentro da tradição liberal, é aquela que tem 
entendido os direitos humanos a partir de “gerações de direitos” (DORNELES, 
1989). Por essa concepção, os direitos individuais (civis e políticos) aparecem como 
de primeira geração, enquanto os direitos sociais e coletivos aparecem como de 
segunda geração. Seguindo-se a estes, teríamos os direitos de terceira e quarta 
geração, envolvendo os denominados direitos dos povos, o direito ao meio 
ambiente, o direito ao desenvolvimento, direito à informação, entre outros. Thomas 
Fleiner assim se refere à relação necessária entre as gerações de direitos: 
Para que a liberdade seja realidade, as condições para o exercício dos 
direitos humanos devem ser tal que os homens possam efetivamente gozar 
de seus direitos. A dignidade humana e a liberdade somente podem existir 
se os direitos à liberdade são completados pelos direitos sociais, 
denominados direitos de segunda geração: por exemplo, o direito ao 
trabalho, à formação, à moradia etc. (FLEINER, 2003, p. 115). 
 
Como se constata, existe todo um processo em curso no sentido do 
fortalecimento de uma tradição teórica acerca dos direitos humanos. No dizer de 
Lafer, referindo-se à proposta Arendtiana de “reconstrução dos direitos humanos” 
(LAFER, 1988, p. 15), “esta proposta se baseia numa retomada crítica do 
pensamento ocidental, almeja o exame das condições políticas e jurídicas que 
permitam assegurar um mundo comum, assinalado pela pluralidade e pela 
diversidade e vivificado pela liberdade”. Assim, enquanto tradição, há uma 
construção em curso, cujos conteúdos teóricos, nem sempre concordam entre si. 
Exemplo disso são as tensões que se operam através de dicotomias como “universal 
 19
versus local” ou “igualdade versus diferença”. Isso está muito bem resumido em 
recente obra de Boaventura de Sousa Santos: 
Multiculturalismo, justiça multicultural, direitos coletivos, cidadanias plurais 
são hoje alguns dos termos que procuram jogar com as tensões entre a 
diferença e a igualdade, entre a exigência de reconhecimento da diferença e 
de redistribuição que permita a realização da igualdade. Essas tensões 
estão no centro das lutas de movimentos e iniciativas emancipatórias que, 
contra as reduções eurocêntricas dos termos fundamentais (cultura, justiça, 
direitos, cidadania), procuram propor noções mais inclusivas e, 
simultaneamente, respeitadoras da diferença de concepções alternativas da 
dignidade humana (SANTOS; NUNES, 2003, p. 25). 
 
 
 
 
Por seu turno, ao discutir a função integradora das Constituições, marcos 
de declarações de direitos, no contexto do Estado Moderno, Canotilho (1998, p. 
1286) propõe algumas “revisões” das funções da Constituição. Uma dessas 
revisões, o autor denomina “função da inclusividade multicultural”, para fazer frente 
à tendência unificadora de “credos, culturas, grupos, etnias e povos” no mesmo 
território e sob a soberania de um único Estado – o Estado constitucionalista. Aponta 
que “a função integradora da Constituição carece hoje de uma profunda revisão 
originada pelo fenômeno do pluralismo jurídico e do multiculturalismo social”. 
Referindo-se ao dilema liberal enfrentado pela Constituição, assim se expressa o 
autor: 
O dilema liberal enfrenta a dicotomia um/todos, segundo as regras 
“universais” do voto ou do preço do mercado, esquecendo que a razão das 
regras, ditada pelas eleições ou pelo mercado, pode marginalizar outras 
razões – as razões de outras culturas. (CANOTILHO, 1998, p. 1287). 
 
 
Nesse mesmo sentido, Fleiner refere o dramático problema atual da 
proteção de minorias no Estado multicultural. Considerando os conflitos interétnicos 
na Europa, Ásia e África, argumenta que o problema exige uma rediscussão dos 
direitos humanos e da própria idéia de democracia. Com isso, chama a atenção para 
 20
a necessária discussão de um tema, que demonstra tensões conceituais e 
ideológicas em todos os sentidos. 
A minoria é também fundamento do Estado pluricultural e pode intervir em 
sua criação sem estar sendo constantemente vítima do princípio majoritário, 
ou seja, o Estado repousa em um consenso entre maioria e minoria, os 
membros da minoria podem identificar-se com o Estado como fazem os 
membros da maioria. Isso significa que o tradicional princípio democrático 
da maioria é ineficaz para resolver o problema das minorias. Novos 
mecanismos e instituições são necessários para enfrentar o problema da 
proteção das minorias. O problema das minorias é uma exigência 
concernente tanto aos fundamentos do Estado quanto aos direitos humanos 
em si. (FLEINER, 2003, 133). 
 
 
Essas anotações de Santos, Canotilho e Fleiner, e mesmo a 
observação dos embates que se travam em torno da questão dos direitos humanos, 
torna possível construirmos uma matriz comparativa entre os fundamentos 
conceituais da tradição liberal e aqueles que fundamentam uma idéia ou política de 
direitos questionadores do modelo tradicional. Desse modo, podemos observar 
como conceitos básicos, que servem de substrato para a categoria “direitos 
humanos”, podem ser confrontados. Na matriz abaixo, os conceitos da primeira 
coluna formam um substrato onde está assentada a tradição liberal. Na segunda 
coluna, elencamos alguns conceitos que fundamentam uma possível natureza 
pluriétnica de direitos humanos de grupos sociais específicos ou minorias nacionais. 
 DIREITOS HUMANOS (tradição liberal) DIREITOS HUMANOS (demandas étnicas) 
 Monoculturalismo MulticulturalismoIsonomia Identidade 
 Homogeneidade Diversidade 
 Universalismo Localismos 
 Estado-nação Nações no Estado 
 
Neste trabalho pretendemos abordar o tema dos direitos humanos ou 
direitos de cidadania numa perspectiva que inclua a discussão sobre interrogações 
possíveis de serem feitas a propósito da construção social desses direitos. É nesse 
sentido que colocamos a questão dos direitos étnicos como elemento 
 21
“epistemologizador” (FOUCAULT, 1997, p. 217-8) da tradição liberal dos direitos 
humanos ou direitos de cidadania. A epistemologização, como apontada aqui, se 
refere às múltiplas possibilidades de interrogação e questionamento que se pode 
fazer a um dado discurso; repensar os seus limites e as suas possibilidades, refletir 
sobre sua relativização, ou mesmo, entender os seus processos na prática histórica. 
No Brasil, um marco do processo de afirmação dos direitos étnicos deu-se 
durante o processo constituinte, iniciado em 1987 e concluído com a promulgação 
da Constituição, em 05 de outubro de 1988. Desse modo, o nosso trabalho de 
pesquisa foi buscar na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 – 
CF/88, a sua unidade de análise e referência empírica, para discutir a questão dos 
denominados direitos étnicos. A nossa análise é construída em torno das questões 
dos direitos humanos, dos direitos étnicos e suas possíveis relações, tomando a 
CF/88 como referência da pesquisa. 
A forma como pretendemos trabalhar esse objeto exige uma discussão 
dos termos utilizados. Ao falarmos, por exemplo, de “políticas” e “direitos étnicos”, 
faz-se necessário explicitar a concepção que estamos adotando para estas 
categorias. Entendemos que a noção de direitos humanos está relacionada à 
afirmação de demandas sociais que resultem em bem-estar individual e coletivo. 
Bem-estar devendo ser entendido, aqui, a partir de critérios de autodefinição. 
Certamente que a noção ou sensação de bem-estar é variável de cultura para 
cultura. 
Alguns autores apontam uma diferença conceitual entre direitos humanos 
e direitos de cidadania. Aqueles seriam de ordem mais genérica, qualquer direito da 
pessoa humana, independentemente de seu reconhecimento ou não pelo Estado. 
Estes, por sua vez, seriam os direitos humanos em face do Estado, que têm sua 
 22
origem na civitas romana e pólis grega. Para Comparato (2003, p. 57), ao falarmos 
de direitos humanos ou diretos do homem, estamos falando de algo que é inerente à 
própria condição humana, e que, distinções como a que se pretende entre direitos 
humanos e direitos fundamentais, ou direitos de cidadania, por exemplo, têm mais 
uma função pedagógica. 
É ai que se põe a distinção elaborada pela doutrina jurídica germânica, 
entre direitos humanos e direitos fundamentais. Estes últimos são direitos 
humanos reconhecidos como tais pelas autoridades às quais se atribui o 
poder político de editar normas, tanto no interior dos Estados quanto no 
plano internacional; são direitos humanos positivados nas Constituições, 
nas leis, nos tratados internacionais. Segundo outra terminologia, fala-se em 
direitos fundamentais típicos e atípicos, sendo estes os direitos humanos 
ainda não declarados em textos normativos. Sem dúvida, o reconhecimento 
oficial de direitos humanos, pela autoridade política competente, dá mais 
segurança às relações sociais. Exerce, também, uma função pedagógica no 
seio da comunidade, no sentido de fazer prevalecer os grandes valores 
éticos, os quais, sem esse reconhecimento oficial, tardariam a se impor na 
vida coletiva (COMPARATO, 2003, p. 57). 
 
 
 
Por seu turno, o conceito de “política” não deve ser entendido apenas 
como “ação de governo”, como normalmente se entendem as políticas públicas, isto 
é, como programas ou ações do Estado em face das demandas sociais. Esse é 
apenas um sentido de interpretação. As políticas também devem ser entendidas 
como “expressão da pólis”, isto é, como expressão da cidade, dos cidadãos, dos 
movimentos sociais e a própria organização dessas demandas sociais na forma de 
luta por direitos; lutas sociais por direitos humanos. Esse é um exercício com o qual 
pretendemos, não apenas ampliar um conceito, mas, sobretudo, refletir sobre uma 
possível teia semântica que pode ser pensada a partir de uma dada categoria. E as 
acepções possíveis de “política” encerram muito bem essa polissemia. 
Um desdobramento operacional desse exercício é pensar as políticas não 
apenas como ações de governos, mas, ao mesmo tempo, como movimentos sociais; 
como ação e como reação, tanto do Estado em direção à sociedade, como da 
sociedade em relação ao Estado. Desse modo, é inegável uma relação entre as 
 23
políticas e os direitos; o mais usual é entender aquelas – as políticas, como produto 
destes – os direitos humanos. Mas, o contrário também é possível, afinal muitos 
direitos são institucionalizados a partir do processo de politização das sociedades ou 
grupos humanos. No caso específico do nosso objeto de estudo – direitos étnicos, 
podemos vislumbrar as duas possibilidades claramente. 
Outro conceito sobre o qual devemos nos debruçar é a noção de direitos 
étnicos. Certamente este é um primeiro grande obstáculo epistemológico com o qual 
nos deparamos. Configura-se nos termos colocados por Bachelard (1996, p. 17-8) 
como “limites e resistências ao ato de conhecer”. A formulação de problemas 
pressupõe o uso de conceitos e categorias. A noção de direitos étnicos, neste caso, 
se reveste de uma complexidade resultante da necessária abordagem 
interdisciplinar do conceito. 
A discussão não está restrita ao campo jurídico, sociológico (com suas 
dimensões políticas e antropológicas) ou ao campo filosófico isoladamente. Por 
vezes, dentro de um mesmo campo de conhecimento, existem concepções 
diferentes. Constitui-se como matéria de discussão, não apenas inter, mas, também, 
intradisciplinar. E é certo que cada uma dessas áreas do conhecimento conceba 
uma noção de direitos étnicos de forma diferenciada. É tudo isso e ainda caberá 
sempre algum outro elemento, ou “olhar” diferenciado. 
O termo “direito étnico” não é uma expressão que se possa encontrar em 
qualquer dicionário jurídico ou mesmo nas grandes enciclopédias. Escapa a uma 
conceituação fácil e simplista. Primeiro, porque a idéia de direito étnico, por vezes, 
se contrapõe a um dos princípios mais caros no âmbito do tema dos direitos 
humanos da tradição liberal-ocidental – o princípio da isonomia, segundo o qual 
todos são iguais perante a lei ou perante o direito. Segundo, porque a própria 
 24
concepção de etnia já é, por si mesma, objeto de acirradas discussões acadêmicas. 
A idéia de direito étnico, quase sempre, pressupõe direitos diferenciados ou políticas 
afirmativas para determinados grupos sociais específicos. 
De fato, a questão dos denominados direitos étnicos tem surgido com 
muita freqüência, para tornar legítimas as demandas sociais de determinados grupos 
humanos diferenciados; tem sido evocada como forma de reconhecer a diversidade 
social de Estados nacionais, geralmente tidos como “integrados”, ainda que se 
considere a sua pluralidade étnica, como é o caso do Brasil. Autores diversos têm 
mostrado grande preocupação com o tema direitos de cidadania, como um 
instrumento de promoção da pessoa humana e da sociedade. Mas os esforços no 
tocante à questão dos direitos de cidadania de determinados grupos étnicos ou 
grupos sociais específicos, não têm tido o mesmo aprofundamento teórico que os 
direitos de cidadania entendidos como uma categoria universal, isto é, concebidos 
de forma indistinta. 
A discussão sobre direitos étnicos requer uma consideração sobre a 
noçãode etnia. A concepção weberiana de “grupo étnico” está referida ao que 
denomina de “crença subjetiva numa procedência comum”. Crença que se torna 
fator fundamental, inclusive para a constituição e ampliação do grupo. O interessante 
dessa concepção é a desconstrução de critérios meramente objetivos para 
qualificação de grupo étnico. A idéia de etnia se amplia para além da idéia de laços 
de sangue, parentesco e características externas ou objetivas somente, como cor da 
pele, por exemplo. Ao conceber a idéia de etnia dessa forma, Weber aponta para 
novas possibilidades de compreensão dos conceitos de grupos étnicos e, por 
conseguinte, de direitos étnicos. Assim se expressa o autor: 
Llamaremos “grupos étnicos” a aquellos grupos humanos que, fundándose 
em la semejanza del hábito exterior y de las costumbres, o de ambos a la 
vez, o en recuerdos de colonización y migración, abrigan una creencia 
 25
subjetiva en una procedencia común, de tal suerte que la creencia es 
importante para la ampliación de las comunidades [...] El grupo étnico (en el 
sentido en que aquí se toma) no es en sí mismo una comunidad sino tan 
sólo un “momento” que facilita el proceso de comunización. Actúa, 
fomentándolos, en los más diferentes tipos de comunización, sobre todo en 
la política, según nos muestra la experiencia (WEBER, 1989, p. 318). 
 
 
Um outro autor de que nos servimos para discutir o conceito de grupos 
étnicos é Barth. Para este autor, os grupos étnicos são “categorias atributivas e 
identificadoras empregadas pelos próprios atores; conseqüentemente, têm como 
característica organizar as interações entre pessoas (2000, p. 27). Entende-os como 
”unidades portadoras de cultura” e “tipos organizacionais” (2000, p. 28-32). Que 
devem ser compostos por “sujeitos que estejam basicamente jogando o mesmo 
jogo” (BARTH, 2000, p. 34). 
As adjetivações e noções barthianas relacionadas ao conceito de grupos 
étnicos não estão, portanto, da mesma forma que em Weber, referidas ao ponto de 
vista meramente biológico. Ao contrário: é enfatizada a dimensão político-
organizacional com base numa cultura específica, numa unidade cultural. O autor 
lança mão, digamos, de elementos mais subjetivos, como Weber já o fizera. Aponta 
que a noção de grupo étnico está relacionada a um grupo que apresenta as mesmas 
demandas coletivas, se auto identifica e é identificado como diferente dentro de um 
determinado sistema social poliétnico. 
A idéia de discutir políticas e direitos étnicos se reveste de um desafio 
teórico que, em certo sentido, vai de encontro a grande tradição dos direitos 
humanos, cuja base consagradora é o princípio da universalidade e da isonomia. 
Isso porque os grupos étnicos se sentem diferentes e atribuem-se significativas 
diferenças, inclusive com a constituição de fronteiras étnicas e de distinções politico-
organizacionais. O problema da pluralidade, aqui, toma uma dimensão das mais 
 26
significativas. Entra em tensão com o princípio da isonomia e o universalismo que 
tem consagrado esse princípio. 
Esse universalismo, de certo modo homogeinizante, tem justificado 
tentativas constantes de impor determinadas políticas de Estado a determinados 
grupos sociais que, por motivos diversos (e a diferenciação étnica é um deles) não 
logram bom êxito. E um desses motivos é o desconhecimento das diversidades, o 
desconhecimento das suas políticas organizacionais, suas culturas, o seu modo de 
ser e o seu ‘jogo”, enfim: porque insiste em vê-los a partir da lógica 
monoculturalista/universalista – um só povo, uma mesma política, um único direito, 
uma mesma razão, a razão do Estado. 
Como já observamos, mesmo no âmbito da ONU, é muito recente (1992) 
a Declaração oficial de direitos que envolvam a diversidade e as diferenças. E como 
veremos adiante, é uma Declaração com muitas limitações e extremamente “tímida” 
quando comparada, inclusive com declarações de direitos de Constituições de 
alguns dos Estados nacionais que a integram, como é o caso, a nosso ver, do Brasil. 
Como veremos, a questão de direitos étnicos já tinha sido levantada por ocasião das 
discussões que culminaram com o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, 
estabelecido em 1966 e que entra em vigor em 1976, dez anos após a sua 
aprovação, quando atinge o número de ratificações necessárias (PIOVESAN, 1997, 
p. 178; COMPARATO, 2003, p. 288). 
A idéia de direitos diferenciados e de uma “cidadania étnica” é recente. 
Muito embora exista uma preocupação com a idéia de promoção dos direitos 
humanos e da cidadania, que se construiu há mais tempo, o cidadão acaba sendo 
um ser universal, sem especificidades ou marcas de identidade. Desse modo, 
observamos que a idéia de cidadania embora relativamente consolidada, como 
 27
veremos adiante, desde o século XVIII, a idéia de uma cidadania diferenciada com 
base em critérios étnicos, é muito recente. 
Conceitos como “cidadania tutelada e cidadania emancipada” estão 
presentes em Demo (1995). Neste caso, é fácil reconhecer que a primeira (tutela) 
refere-se à proteção, enquanto a segunda (emancipação) está relacionada à 
promoção da pessoa humana. Da mesma forma, Jacobi (2000) fala em “políticas 
sociais e ampliação da cidadania”, numa clara referência à promoção e não apenas 
proteção do cidadão. Podemos observar abordagens semelhantes em Bobbio 
(1992a) e Santos (1996, p. 1997). 
Considerando, como em Demo (1995, p. 03), a cidadania como a “raiz 
dos direitos humanos”, a grande questão que se impõe é a seguinte: Como 
compatibilizar a generalidade desse processo de afirmação de direitos e construção 
de cidadania, com as especificidades dos diferentes grupos sociais e suas 
diversidades? Logo, não se trata apenas de afirmar constitucional ou 
institucionalmente os direitos humanos, mas, trata-se, também, de discutir “que 
direitos” estão em construção. 
Essa postura é uma tentativa de produzir (e não de reproduzir) uma 
prática de pesquisa, cujo fundamento seja “tornar simples o sistema e audível o 
silêncio que todo discurso arrasta consigo quando se enuncia” (FOUCAULT, 1981, 
p. 314). E, ainda, desconstruir para construir. “Uma desconstrução que não é 
ingênua nem indiscriminada porque se orienta para garantir a emancipação e a 
criatividade da existência individual e social, valor que só a ciência pode realizar, 
mas que não pode realizar [somente] enquanto ciência.” (SANTOS, 1989, p. 42). 
Desconstrução no sentido de questionar pela aná-lise (quebra) normativa 
do dispositivo. No nosso caso específico, dos dispositivos constitucionais. Buscar as 
 28
suas mais variadas representações simbólicas, num exercício de semiologia e, ao 
mesmo tempo, de exegese exaustiva do dispositivo sem, no entanto, perder de vista 
o seu sentido original, o seu objetivo e função social que lhe emprestou a 
Assembléia Nacional Constituinte. Isso que os juristas costumam denominar de 
interpretação extensiva e que nós vamos denominar de hermenêutica aberta do 
dispositivo. Em oposição às interpretações fechadas, bem típicas de uma tradição 
que impõe à Ciência do Direito um caráter de Dogmática Jurídica ou teoria pura do 
direito, segundo a qual o estudo do direito deve ser “purificado de toda ideologia 
política” (KELSEN, 1974, p. 20). 
Quando iniciamos a pesquisa não tínhamos um desenho prévio bem 
definido do percurso metodológico, mas tínhamos uma perspectiva que 
fundamentava as nossas discussões. Essa perspectiva, que também é 
metodológica, rejeita tenazmente apreender ou compreender uma ciência do direito 
(ou dos direitos) como um sistema fechado de construções dogmáticas. Nos termos 
de Bourdieu, uma ciência que se pretende “ciência rigorosa do direito”, não seesquiva do debate científico sobre as alternativas que interrogam o “formalismo” e o 
“instrumentalismo”, que concebem o direito como um “reflexo ou utensílio” a serviço 
dos dominantes. 
A ciência jurídica tal como a concebem os juristas e, sobretudo, os 
historiadores do direito, que identificam a história do direito com a história do 
desenvolvimento interno dos seus conceitos e de seus métodos, apreende o 
direito como um sistema fechado e autônomo, cujo desenvolvimento só 
pode ser compreendido segundo a sua dinâmica interna. A reivindicação da 
autonomia absoluta do pensamento e da ação jurídicos afirma-se na 
constituição em teoria de um modo de pensamento específico, totalmente 
liberto do peso social, e a tentativa de Kelsen para criar uma ‘teoria pura do 
direito’ não passa do limite ultra-consequente do esforço de todo um corpo 
dos juristas para construir um corpo de doutrinas e de regras 
completamente independentes dos constrangimentos e das pressões 
sociais, tendo nele mesmo o seu próprio fundamento. (BOURDIEU, 1998, p. 
209). 
 
 
 29
No transcurso de nossa pesquisa, tratamos de abordar o direito e os 
direitos numa perspectiva “aberta”, onde a todo o momento fosse possível interrogá-
los a partir de outras lógicas e não apenas a partir da “lógica jurídica”. Inclusive a 
partir da lógica do denominado “senso comum”, recuperado por Geertz (1997, p. 
113) como um “saber local”; e por Santos (1989, p. 37) como “instrumento de luta”. 
Retomando Foucault, trata-se de submeter a ciência do direito (e dos direitos 
humanos) a “escansões, defasagens, coincidências, que se estabelecem e se 
desfazem”, isto é, trata-se de epistemologizá-la (1997, p. 217). 
Em certo sentido, trata-se de buscar uma pré-compreensão da relação 
que se estabelece entre o regimento (dispositivo) e a realidade (disposição), em 
matéria de efetividade de direitos e políticas sociais. Com isso, pretendemos fazer 
uma reflexão prévia sobre outros fenômenos que incidem e que têm repercussão 
sobre essa relação e seus desdobramentos. É o caso de discutirmos o processo de 
afirmação histórico-social dos direitos da pessoa humana que, refletem diretamente 
nos denominados direitos coletivos, que também são direitos de pessoas tomadas 
em conjunto. É uma postura nos termos propostos por Canotilho: 
Pretende-se tornar claro que o investigador não se pode furtar a um 
conjunto de influências jurídicas e extrajurídicas, políticas e sociais, 
decisivamente condicionadores do trabalho. Trata-se de uma questão de 
honestidade científica [...] A pré-compreensão continua a ser aqui uma 
compreensão hermenêutica, a fim de salientar a relação do sujeito 
cognoscente com o objeto a conhecer. (1994, p. 12). 
 
 
Essa pré-compreensão é uma postura metodológica que visa 
primordialmente estabelecer relações entre o objeto e o meio de onde deriva – o 
meio social, apreendido pelo pesquisador. É uma atitude relacional e relativizante. 
Ou, nos termos dos cuidados metodológicos propostos por Bourdieu: “Se é verdade 
que o real é relacional, pode acontecer que eu nada saiba de uma instituição acerca 
da qual eu julgo saber tudo, porque ela nada é fora das relações com o todo” (1998, 
 30
p. 31). Portanto, não se trata de uma pesquisa apenas sobre o conteúdo do texto 
constitucional, mas, também, sobre o contexto em que foi produzido. Ou seja, trata-
se de estabelecer relações entre o direito instituído (a partir do Estado) e o direito 
demandado (a partir dos sujeitos). 
O nosso trabalho pretende discutir até que ponto o Regimento 
Constitucional pode ser considerado um instrumento de promoção da cidadania e de 
que cidadania. Pretende, ainda, confrontar esse Regimento com o que se 
convencionou denominar de “teoria liberal dos direitos humanos”, tão em voga no 
mundo moderno. Aliás, ela mesma se confunde com modernidade e está centrada 
basicamente em três pontos fundamentais: a igualdade perante a lei; o direito de 
propriedade e a economia de mercado. 
Ainda que seja uma Constituição marcada pela tradição liberal dos 
direitos humanos, o que é recorrente em todas as Constituições dos denominados 
Estados Modernos, alguns de seus dispositivos, em casos bem definidos, interrogam 
e podem ser interpretados como elementos epistemologizadores ou 
ressemantizadores dos princípios ou fundamentos dessa teoria. São dispositivos que 
resguardam direitos de minorias2 ou grupos sociais específicos e diferenciados, com 
o objetivo de prover-lhes meios próprios de produção econômica e reprodução 
social. Entre os múltiplos significados que a expressão “direitos de cidadania” 
encerra, vamos procurar apontar, neste trabalho, um desses seus significados 
possíveis na Constituição Federal. 
A idéia de cidadania como uma categoria objetiva, isto é, centrada na 
consolidação do princípio formal da “igualdade perante a lei”, não se tem mostrado 
capaz de atender às demandas das sociedades que compõem os denominados 
 
2 Minoria entendida aqui dentro de uma concepção sociológica e não numa perspectiva quantitativa. 
 
 31
Estados nacionais modernos. Estados cuja principal característica é a diversidade e 
complexidade sociocultural e, em casos como o Brasil, associado a tudo isso, uma 
significativa (e brutal) desigualdade social e regional. Da mesma forma, a cidadania 
como “raiz dos direitos humanos”, arrasta consigo a necessidade de pensarmos no 
aspecto subjetivo dos direitos humanos. Isto é, de pensarmos nos direitos humanos 
como direito dos homens, dos diferentes homens e das suas diferentes 
subjetividades. Esta é uma realidade que aponta para os limites do próprio conceito 
de cidadania; da cidadania que se apóia exclusivamente no estatuto da igualdade 
formal. Essa é uma igualdade que, como bem expressa por Semprini 
Não engloba o conjunto dos cidadãos porque exclui vários indivíduos ou 
grupos, que não têm acesso equalizado ao espaço social como os demais 
[...] Esta igualdade também desconsidera as especificidades étnicas, 
históricas, identitárias – em suma, a diferença – que torna o espaço social 
heterogêneo. Cega a estas diferenças, esta igualdade é, na verdade, 
discriminatória. Enfim, aplicando-se somente a um cidadão ideal e não a 
indivíduos reais, plenos de subjetividade e de interioridade, a igualdade 
continua sendo um conceito abstrato. (1999, p. 93). 
 
 
Ante tão importante limitação imposta pela idéia da igualdade formal na 
construção da cidadania, é que entendemos ser pertinente discutir os fundamentos 
subjetivos ou direitos diferenciados que devem ser o substrato de qualquer idéia de 
cidadania. Trata-se de uma abordagem menos influenciada pela tradição política ou 
jurídica e mais centrada na sua dimensão antropo-lógica. Isto é, na subjetividade 
dos indivíduos e na sua identidade coletiva. Essa “ampliação” de concepções acerca 
da cidadania, não é, de modo nenhum uma resposta, mas, antes, uma pergunta. A 
saber: é possível abordar o problema da cidadania a partir do sujeito ou do grupo a 
que pertence e não a partir da polis (como na Antiguidade clássica), ou a partir do 
Estado (como nas sociedades contemporâneas)? 
O desenvolvimento do nosso trabalho tem como ponto de partida os 
trabalhos da Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes 
 32
e Minorias, da Comissão de Ordem Social da Assembléia Nacional Constituinte – 
ANC. Estávamos intencionando discutir um leque mais ou menos abrangente de 
direitos étnicos, entendendo o “étnico” como um coletivo de sujeitos que 
compartilham uma história comum, que têm as mesmas demandas, que “jogam o 
mesmo jogo”. Desse modo, separamos dos arquivos, os anais da Subcomissão de 
Minorias. Causou-nos uma certa surpresao volume de páginas dos documentos 
com as transcrições das atas das reuniões dessa Subcomissão. Eram mais de 420 
páginas de transcrições em letras pequenas, com três colunas, distribuídas em 
vários volumes de anais, correspondendo a mais de cinqüenta horas de discussões 
em notas taquigráficas. 
Iniciamos um trabalho de selecionar e classificar as atas da Subcomissão 
de Minorias, que nos interessavam mais diretamente. Mesmo numa leitura rápida (a 
leitura mais cuidadosa faríamos a partir de cópias), nos deparamos com as 
demandas, denúncias e sugestões das mais variadas minorias. Estavam ali as 
demandas dos povos indígenas, do movimento negro, dos movimentos que 
congregam “pessoas deficientes” (físicos e mentais), hansenianos (portadores de 
lepra), portadores de outras doenças estigmatizantes ou relativamente 
incapacitantes (talassêmicos, ostomizados etc), do movimento homossexual; enfim: 
concorreram para essa Subcomissão “os diferentes”, “os outros”, aqueles cuja lógica 
ou cujo “jogo” nem sempre é lembrado quando as regras, os direitos e as políticas 
são pensados de forma universal e homogeinizante. 
Decidimos delimitar definitivamente o campo empírico e discutir somente 
duas abordagens: direitos relacionados aos povos indígenas e direitos relacionados 
às comunidades quilombolas. A escolha não foi aleatória. No primeiro caso, 
estávamos instigados pela nossa própria experiência profissional de médico 
 33
sanitarista, trabalhando há 16 anos em um município com forte presença de povos 
indígenas (Tenetehara, conhecidos como Guajajara e Ramkokamekra e Apaniekra, 
conhecidos como Canela). No segundo caso, teríamos a oportunidade de rediscutir 
um tema já pesquisado por ocasião da nossa dissertação de mestrado sobre o 
Estudo e Relatório de Impacto Ambiental – EIA/RIMA – da Base Aeroespacial de 
Alcântara, cujo processo de instalação e expansão, resultou em conflito de 
interesses com comunidades quilombolas. 
Nos dois casos, nos momentos de maior tensão, direitos constitucionais 
foram evocados e o instrumento jurídico-processual utilizado foi a Ação Civil Pública. 
Esta importante ação constitucional, nesses casos, foi demandada pelo Ministério 
Público Federal do Maranhão. A Ação foi mais satisfatória para os índios, mas no 
caso das comunidades quilombolas, serviu para dar mais visibilidade ao problema, 
inclusive com a interrupção dos deslocamentos das famílias que ainda não haviam 
sido deslocadas, embora o conflito permaneça com outras mediações. 
O nosso trabalho não é, portanto, uma ontogeneologia da cidadania ou 
dos direitos humanos. Não é nossa intenção e nem teríamos condições de fazê-lo. 
São temas inesgotáveis. Nossa perspectiva é refletir sobre as possibilidades de se 
pensar a idéia de direitos étnicos na Constituição da República Federativa do Brasil, 
como um exercício de ressemantização dos próprios direitos humanos. 
 34
2 A CONSTRUÇÃO HISTÓRICO-SOCIAL DOS DIREITOS HUMANOS 
 
Uma discussão sobre direitos humanos, como a que nos propomos a 
desenvolver, requer uma retomada do seu processo de construção histórica. Trata-
se de uma breve reflexão sobre a “história social”3 dos denominados direitos 
humanos. Existe uma trajetória, construída socialmente em torno do que chamamos 
de direitos da pessoa humana. Primeiro, a própria noção de “pessoa humana” – 
variável na Antiguidade, como veremos adiante. Segundo, porque é preciso 
entender os reflexos dessa construção sobre o objeto específico de nossa discussão 
– os direitos étnicos. Por outro lado, não apenas sobre o curso da história dessa 
construção, mas, também, como um problema formulado, isto é, como se dá essa 
formulação. 
 
2.1 A contribuição estóico-cristã na antiguidade 
 
Foram os cristãos que fizeram da pessoa moral uma entidade metafísica, 
após sentir-lhe a força religiosa. Nossa noção de pessoa humana é ainda, 
fundamentalmente, a noção cristã. A esse respeito só tenho que seguir o 
excelente livro de Schlossmann, que viu muito bem – depois de outros, mas 
melhor do que os outros – a passagem da noção de persona, homem 
revestido de um estado, à noção de homem simplesmente, de pessoa 
humana (...) a partir de então está feita a revolução das mentalidades, cada 
um de nós tem o seu “eu” – eco das Declarações de Direitos, que Kant e 
Fichte precederam. (MAUSS, 1974, p. 235 e 239). 
 
 
É corrente no pensamento ocidental que houve dois grandes legados da 
Antiguidade: a filosofia grega e o direito romano. E não constitui exagero afirmar que 
a geopolítica do mundo mediterrâneo, nos últimos séculos da Idade Antiga, foi ditada 
pelo helenismo, em decorrência das conquistas de Alexandre, e pelo romanismo, em 
 
3 O conceito de “história social” é utilizado a partir de Bourdieu (1998: 37). “A história social da emergência 
desses problemas, da sua constituição progressiva, quer dizer, do trabalho coletivo – freqüentemente realizado na 
 35
face do domínio imperial romano, até a sua queda no século V. Uma das marcas 
características dessas sociedades, tanto a grega como a romana, era a 
estratificação social e um certo desprezo pelos estrangeiros. Em certo sentido, 
podemos dizer que a sociedade grego-romana desenvolveu uma concepção de 
direito, mas não o fizeram com relação a uma concepção de direitos humanos. Não 
como a construímos hoje. 
Na Roma antiga os indivíduos eram classificados segundo um 
determinado “status”. Havia o “status libertatis” que delimitava a condição de livre, 
semi-livre ou escravo; o “status civitatis” que delimitava a condição de romano ou 
estrangeiro (também chamado de bárbaro) e o “status familiae” que delimitava a 
condição de chefe da família (pater), mãe de família (mater) e os filhos. Sendo que, 
somente nas primeiras condições (livre, romano e pater) os indivíduos possuíam 
plenos direitos (POLETTI, 1996, p. 77-94; FILARDI, 1999, p. 54-80). O instituto da 
escravidão era naturalizado e perfeitamente legítimo, assim como a secundarização 
e a exclusão social dos peregrinos (sem nacionalidade romana). No dizer de Arendt, 
não ser reconhecido pela civitas romana ou pela pólis grega era ser desprovido de 
dignidade (2000: 104). 
Alguns autores têm chamado a atenção para o fato de que a idéia de 
dignidade humana, entendida como o valor supremo da vida humana em si mesma, 
para qualquer pessoa, independente de sua situação ou condição social, surge e vai 
se consolidar com o movimento social dos primeiros cristãos, contemporâneo do 
romanismo. Entre esses autores podemos citar, a própria Hannah Arendt, Marcel 
Mauss, Ágens Heller e Alain Touraine. Cada um a seu modo e por razões próprias, 
desenvolvendo temas distintos, recorrem a algum aspecto do pensamento moral e 
 
concorrência e na luta – o qual foi necessário para dar a conhecer e fazer reconhecer estes problemas como 
problemas legítimos, confessáveis, publicáveis, públicos e oficiais”. 
 36
ético dos primeiros cristãos e de sua noção de pessoa, liberdade e ética social, para 
fundamentar algumas de suas idéias sobre a centralidade do ser humano e de sua 
dignidade como valor central. 
Para estes autores, essa centralidade, que é uma categoria originária da 
ética estoico-cristã, é um marco conceitual revolucionário para as sociedades da 
época, na Antiguidade do mundo mediterrâneo. Marcel Mauss4, antropólogo francês, 
discorre sobre o tema no ensaio “A noção de pessoa” (1974), onde vai apontar a 
construção da noção de pessoa, com identidade e dignidade, a partir da noção de 
pessoa moral, a personados romanos, como exemplo. Hannah Arendt, filósofa e 
pensadora política alemã, discute o tema a partir de suas reflexões em “Entre o 
passado e o futuro” e “A condição humana”, de 1954 e 1958 respectivamente. 
Arendt aponta para as rupturas, ou como ela mesma denomina – a quebra – entre o 
passado e o futuro: a necessária humanização da tradição política da Antiguidade 
em todos os seus aspectos (2000, p. 28-68). 
Por sua vez, Agnes Heller5 representante da Escola marxista de 
Budapeste, no seu trabalho “Sociologia de la vida cotidiana”, aponta a postura 
superadora do fundador do cristianismo em relação à moral social de seu tempo 
(HELLER, 1991, p. 166-7), lançando as bases do que vai denominar de 
revalorização da “individualidade e da moral abstrata subjetiva, em oposição à moral 
concreta e objetiva” – a lei e a moral da época (HELLER, 1991, p. 152). E, por fim, o 
sociólogo contemporâneo Alain Touraine, na sua obra “Crítica da modernidade”, 
publicada no Brasil na segunda metade da última década de noventa, salienta como 
 
4 Seguidor da tradição e do pensamento de Durkheim – era seu sobrinho – é um dos mais importantes nomes da 
antropologia francesa. 
5 É o que podemos chamar de uma autêntica e expressiva representante da Escola marxista de Budapeste; foi 
aluna e seguidora das idéias de György Lukács. 
 37
o cristianismo primitivo, nos séculos I a III, se propôs inverter a “lei” e a “ordem” do 
mundo (mediterrâneo), na sua época (TOURAINE, 1999, p. 219). 
Apesar das diferenças teórico-metodológicas com que cada um desses 
autores aborda o tema, e ainda, das influências de suas respectivas formações 
intelectuais e ideológicas, eles recorrem a um mesmo padrão explicativo. Isto é: a 
noção de pessoa como fundamento ético (Mauss), a vida da pessoa humana como 
bem supremo (Arendt), o caráter essencial da individualidade da pessoa (Heller) e a 
definição do sujeito como um ser de vontade e ação própria (Touraine). São 
concepções que podem ser encontradas, de modo mais evidente, no pensamento 
estóico e na ética social dos primeiros cristãos. Nesta última, de forma mais direta e 
pragmática e com uma aplicação social mais bem definida. 
O motivo pelo qual a vida [da pessoa] se afirmou como ponto último de 
referência na era moderna e permaneceu como bem supremo para a 
sociedade foi que a moderna inversão de posições ocorreu dentro da 
textura de uma sociedade cristã, cuja crença fundamental na 
sacrossantidade da vida sobrevivera à secularização e ao declínio geral da 
fé cristã, que nem mesmo chegaram a abalá-la. Em outras palavras, a 
moderna inversão imitou, sem questionar, a mais significativa viravolta com 
a qual o cristianismo irrompera no cenário do mundo antigo, viravolta 
politicamente mais importante e, pelo menos historicamente, mais 
duradoura que qualquer conteúdo dogmático ou crença específica 
(ARENDT, 2001, p. 327). 
 
Para a história do problema da liberdade, a tradição cristã tornou-se de fato 
o fator decisivo. A razão para este notável fato é que, tanto na Antiguidade 
grega como na romana, a liberdade era um conceito exclusivamente 
político, a quintessência, na verdade, da cidade-estado [...] É somente 
quando os cristãos primitivos, particularmente Paulo, descobriram uma 
espécie de liberdade que não tinha relação com a política que o conceito de 
liberdade pôde penetrar na história da Filosofia (ARENDT, 2000, p. 204-5). 
 
 
 Arendt deixa claras as limitações das concepções grega e romana de 
cidadania e de direitos da pessoa humana. A liberdade do cidadão da pólis (grega) 
ou civitas (romana), não é a liberdade do homem pelo fato de ser homem. A idéia de 
liberdade, no pensamento clássico, era aquela centrada na ordem e não na pessoa 
humana. A pessoa era uma categoria relativa. Isto é, para ser considerado pessoa, 
com direitos, não bastava ser homem em sentido genérico. Era necessário ter um 
 38
“nome”, que designava uma ascendência, uma família ou seu pater e não podia ser 
escravo, pois este era considerado como objeto no Direito Romano clássico. É 
significativa uma frase romana sobre a condição do escravo: “servus est res” 
(escravo é coisa). Como se pode deduzir, ser pessoa e ter direitos inerentes à 
qualidade de pessoa, estava relacionado a um determinado “status”; condição que 
não se colocava para qualquer indivíduo. 
Segundo a autora, só com o cristianismo, tomado aqui como um sistema 
de idéias e não como religião, a vida individual e a pessoa humana passam à 
condição de categoria absoluta. Ou seja: a partir daí, a noção de pessoa, nesse 
sistema, não está mais referida a “status”, a títulos ou propriedades. Isto é, não há 
na ética cristã primitiva pré-condições para ser pessoa. Ser livre, semi-livre ou 
escrava; ser patrícia, plebéia ou estrangeira; ser desse ou daquele grupo social; ser 
“igual” ou “diferente”, todos são designados pela categoria pessoa. O que importa, a 
partir do momento em que se afirma, ou reafirma, a centralidade da pessoa, é tão 
somente a sua natureza humana, a dignidade que lhe é inerente. 
Mesmo uma exegese breve de alguns textos cristãos escritos até o século 
III (Evangelhos e Cartas de Paulo basicamente), deixa entrever que na moral cristã 
primitiva, o entendimento da idéia de pessoa estava relacionada à sua natureza 
(physis) humana. Isto é, a sua condição física de ser humano. E nisso estava 
reproduzindo, numa dimensão, digamos mais popular (senso comum mesmo), o 
pensamento estóico, como procuraremos demonstrar adiante. Desse modo, o 
problema do reconhecimento da dignidade humana como algo inerente à condição 
de pessoa, para o cristianismo nascente, era irrefutável. A idéia de pessoa não era 
limitada, por exemplo (no caso do direito romano), por deformidades físicas. O que 
 39
ditava a condição de pessoa era a sua própria natureza e não a sua forma física ou 
status político. 
Considerando a perspectiva cristã, a sociedade grego-romana tinha uma 
ética marcada pela estratificação social e pela ausência dos direitos da pessoa 
humana, tomados de forma indistinta, isto é, para qualquer pessoa. O problema da 
liberdade passa a ser emblemático dessa questão porque, diferentemente do 
pensamento da época, o movimento cristão primitivo desloca a importância das 
instituições (a pólis ou o direito) para a pessoa humana (a dignidade e a 
individualidade – não o individualismo). O ser humano é que passa a ser importante 
e não a moral, as instituições ou o direito da polis. Estes passam a ter importância 
instrumental. “O sábado (uma instituição) foi feito para o homem e não o homem 
para o sábado”. Igualmente a moral e o direito, como instituições socialmente 
construídas, deveriam estar a serviço do homem, de qualquer homem, e não o 
contrário. Essa perspectiva pode ser vista como uma ruptura. 
Jesus de Nazaré e Paulo de Tarso são os principais sujeitos fundantes da 
ética social dos primeiros cristãos. Podemos suscitar, com algum grau de 
razoabilidade que, tanto Mauss (1974), como Heller (1991), Arendt (2002; 2001), e 
Touraine (1999), redescobrem elementos dessa ética e de sua importância para o 
que denominamos de humanismo e para a formulação das grandes declarações 
institucionais de direitos humanos. Essas coisas, como aponta Mauss, referindo-se à 
idéia de pessoa e de direitos da pessoa humana, não são naturais: ao contrário, 
foram socialmente construídas. A noção de pessoa e de sua dignidade, a 
importância da individualidade e da diversidade que ela representa, de certo modo, 
tendem a contrapor-se às instituições da cidadania helênica e romana, na 
Antiguidade. 
 40
A ética social do cristianismo primitivo concebe uma forma diferente de 
ver o lugar dapessoa na civitas e na polis, isto é, no mundo. Uma nova concepção 
de cidadania, diferente daquela sedimentada, até então, pelo pensamento da 
Antigüidade, inicia seu processo de consolidação. Essa nova concepção de 
cidadania – fundamentada na pessoa humana, e não mais na ordem, opera um 
deslocamento. A pessoa humana, e com ela a sua subjetividade, passa a ter mais 
importância que as instituições (morais ou legais) e as suas supostas objetividades. 
A idéia de cidadania como uma categoria que oscila entre a subjetividade 
da pessoa (ou do grupo a que pertence) e a objetividade do Estado é um tema 
retomado, recentemente por Boaventura de Sousa Santos nos seguintes termos: “A 
nova cidadania tanto se constitui na obrigação política vertical entre os cidadãos e o 
Estado, como na obrigação horizontal entre cidadãos [diferentes]. Com isso 
revaloriza-se o princípio da comunidade e, com ele, a idéia da igualdade sem 
mesmidade” (SANTOS, 1996, p. 278). 
Alguns elementos dessa “nova” cidadania podem ser retomados, como 
referimos, de movimentos populares do início de nossa Era. Com esses movimentos 
constroem-se novas concepções nas relações interpessoais e sociais. Promoveram-
se rupturas com as normas e os costumes de seu tempo e inovou-se no campo da 
ética. Essas concepções reaparecem, numa dimensão laica, no que se 
convencionou denominar movimento humanista, que influencia significativamente o 
Renascimento e o Iluminismo, curiosamente movimentos anticlericais, 
demonstrando, historicamente, a dialética e as contradições que o cristianismo 
encerra, enquanto sistema de idéias (seu aspecto filosófico) e enquanto religião (seu 
aspecto institucional). 
 41
Numa época e lugar em que importava, e muito, ter nascido homem, livre 
e com uma nacionalidade (cidadania) definida, surge um líder carismático que trata 
mulheres, escravos e estrangeiros em igualdade de condições. Isso tem impactos 
morais muito fortes. Tende a romper toda uma tradição construída historicamente. E 
não importam muito, neste caso, as discussões sempre presentes em torno da “tese 
mitológica” de Jesus (segundo a qual Ele não teria existido como é apresentado pela 
tradição cristã). O que importa aqui é, muito mais, a criação de um sistema de idéias 
que apresenta traços de ruptura com dogmas e sedimentos morais muito fortes. É 
nesse sentido que Weber vai apontar Jesus como um “profeta” e não como um 
“sacerdote” (WEBER, 1989, p. 303-4). 
Para Weber há uma distinção entre o que denomina de “profeta” e 
“sacerdote”. Na sua concepção, o sacerdote reclama autoridade em razão de uma 
tradição e o profeta, de modo diferente, em razão de uma inovação-anunciação. 
Jesus ou Yeshuah (como era chamado em aramaico) move-se contra uma tradição; 
inverte algumas perspectivas morais e legais já bem “naturalizadas” na época. Uma 
sociologia jurídica do cristianismo primitivo é possível, a partir das falas e dos 
encontros de Jesus e de seus seguidores, os nazarenos. Gostavam de discutir a 
força e a fraqueza da “ordem jurídica” moisaica e romana nas sinagogas que 
visitava6. 
Com o cristianismo primitivo, as mulheres, as crianças, os escravos, os 
enfermos, os pobres, os diferentes, os estrangeiros, os incapazes, enfim: os 
“excluídos” e os outros povos (as outras etnias) passam a ser vistos como pessoas 
plenas e providas de dignidade, até então não reconhecida pela tradição vigente. 
 
6 Interessante coleção sobre o tema foi publicada pela Editora Paulus, onde destacamos as seguintes obras: “As 
origens cristas em perspectiva sociológica” de H. C. Kee; “O mundo moral dos primeiros cristãos” de Wayne A. 
Meeks; “Bandidos, profetas e messias – movimentos populares no tempo de Jesus” de Richard Horsley e John 
Hanson; “Religião e formação de classes na antiga Judéia” de Hans G. Kippenberg. 
 42
Com isso, inicia-se um processo de consolidação de um sistema de idéias que deixa 
de excluir da categoria pessoa, indivíduos que, mesmo tendo a natureza humana, 
não tinham um determinado status ou condição social que lhe favorecesse. Como 
dizia Paulo de Tarso, voz firme nas primeiras contendas envolvendo cristão judeus e 
cristãos não judeus (gentios), citado por Mauss (1974, p. 235) e Arendt (2000, p. 
191-2) – “não há mais nem judeus, nem gregos; nem escravos, nem livres; nem 
homens, nem mulheres: todos sois um só em Jesus” (Carta aos Gálatas; 3,28). 
Embora essa frase de efeito, anunciada por Paulo, possa permitir uma 
interpretação de que, quem não está com Jesus não é pessoa (interpretação 
recorrente entre colonizadores europeus diante de ameríndios e africanos), essa não 
parece ser a intenção do autor da frase. A sua preocupação é a estratégia da 
promoção da igualdade como forma de promover a tolerância à diferença. É talvez a 
primeira grande discriminação positiva anunciada socialmente, exatamente onde 
essa discriminação era mais necessária. O embate entre uma tradição estratificante 
e a nascente concepção dignificante da pessoa humana teve, em Jesus de Nazaré e 
Paulo de Tarso, defensores laboriosos. Nesse sentido, Bonavides ainda destaca 
que: 
Na raiz disso tudo estava a discriminação orgulhosa com que o grego se 
presumia superior ao bárbaro, o senhor ao escravo, o nobre [patrício] ao 
plebeu, convicções expressivas de uma desigualdade natural convertida em 
desigualdade social. A Antigüidade clássica viveu em larga parte à sombra 
dessa crença, só abalada posteriormente com os estóicos e os cristãos 
(BONAVIDES, 1996, p. 113). 
 
 
Em relação ao pensamento estóico, podemos dizer que no conjunto da 
filosofia helenista, o estoicismo se caracteriza pela moral da liberdade absoluta da 
pessoa humana. Como aponta Russ, “a liberdade dessa perspectiva, designa a 
potência de agir por si mesmo no nível do pensamento e do juízo. A moral estóica é, 
portanto, uma doutrina voltada para a liberdade humana” (1994, p. 332). Esse 
 43
esforço intelectual acaba por exigir dessa escola do pensamento grego da 
Antiguidade algumas redefinições em relação ao lugar da pessoa no mundo e, 
sobretudo, a discutir os diferentes status e condições entre as pessoas (escravos e 
livres; homens e mulheres; eupátridas e estrageiros e assim por diante). 
Não podemos dizer que o movimento estóico modificou a realidade social 
de sua época, mas, de algum modo, começou a discuti-la. E é certo que vai 
influenciar o movimento cristão, que também teve seu esforço especulativo. É 
inegável a influência helênica (estoicismo) e judaica (essenismo) sobre o movimento 
dos primeiros cristãos, também chamados, na época, de nazarenos. O Estoicismo, 
que vai atingir seu apogeu na Grécia do século III a.C., vai ressurgir em Roma com 
Sêneca e Marco Aurélio (REALE, 1990, p. 254). Uma análise mais detalhada da 
ética social dos nazarenos, particularmente das falas e posições de Jesus de Nazaré 
e das Cartas de Paulo de Tarso, mostra a influência e as semelhanças desse 
movimento com o pensamento estóico. 
No dizer de Bertrand Russel, a unidade do pensamento ético-estóico em 
torno do desprendimento material e da valorização dos homens como seres morais, 
foi o grande responsável pelo seu prestígio como doutrina (RUSSEL, 2002, p. 153). 
Quando o cristianismo primitivo inicia o seu processo de expansão no mundo 
mediterrâneo, a moral estóica, mesmo sendo considerada “pagã”, já havia colocado 
em questão as distinções, estratificações e exclusões da cidadania grega e romana. 
Para o estoicismo, os homens, como seres da natureza, devem ser tratados como 
iguais em que pesem as suas diferenças. A idéia de natureza (physis), portanto, 
fundamenta o viver social para os estóicos. Foram francamente contrários à 
escravidão.

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