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A Beleza e a Dureza da Fé A fé é possivelmente um dos temas mais complexos do cristianismo, sua natureza é diversa daquilo que nós como pessoas, esperamos e ansiamos. O que para os cristãos se torna um grande desafio a sua prática e para os não cristãos a sua compreensão. Não obstante, antes de abordarmos os desafios à cerca da fé cristã, cabe aqui se fazer uma diferenciação entre fé e razão. A razão vigora no mundo do tangível, dentro daquilo que se pode apreender e compreender, entender e provar por meio da nossa capacidade reflexiva. Por mais que não exista uma relação intrínseca entre razão e prova, é comum buscarmos essa aproximação, principalmente quando se tenta confrontar razão e fé. Mas diferente da razão, a fé em hipótese alguma têm uma natureza probatória, ela simplesmente subsiste independente daquilo que se possa provar. Com isso há de se esclarecer que fé e razão são objetos completamente distintos, que em função da sua natureza sequer podem dialogar diretamente. Kierkegaard em Temor e Tremor, tenta conciliar fé e razão, mas não como sentidos que se explicam ou se complementam, mas como possibilidades diferentes que ajudam na construção do “eu”. Por meio da razão é possível que se pense a existência humana, a relação do homem com o mundo, com as coisas e até mesmo o sentido da fé. A fé por outro lado possibilita exclusivamente uma relação profunda com Deus e com os mistérios que o cercam. A razão e a fé não se negam se excluem ou se complementam, mas agem de formas diferentes em tempos diferentes na construção do indivíduo como ser que dialoga com o compreensivo e o incompreensivo. É também importante pontuar a relação entre prova e fé, já que a prova é muitas vezes pensada como uma forma de se tentar dar crédito e valor a fé. Já digo de antemão que a ideia de se pensar a prova como meio de se alcançar a fé é uma das grandes falácias que envolvem esses dois temas. A fé não pode depender de prova, pois se assim for, não é fé, é apenas uma crendice que certamente passará assim que uma nova dúvida for suscitada. O velho testamento nos fornece um rico inventário de relatos frustrados entre prova e fé, sendo os Hebreus os maiores protagonistas dessas histórias. Ao povo Hebreu foram fornecidas inúmeras provas da ação divina, fogo descendo do céu, a face reluzente de Moisés ao sair da tenda, as chagas do Egito, a terra fendendo sobre Corá e seus rebeldes parentes, entre outras inúmeras oportunidades em que houve uma intervenção direta do poder divino. Apesar dessas inúmeras provas que lhes eram apresentadas, rapidamente os Hebreus se esqueciam de tais demonstrações da existência de Deus e voltavam a suas práticas de prostituição, bebedices, idolatrias e demais traições para com os mandamentos divinos. Para os Hebreus, prova nunca foi sinônimo de fé, na verdade os relatos bíblicos mostram como era necessária uma constante intervenção para que lhes fosse trazido à memória que deveriam crer em Deus. Talvez pensar o velho testamento possa parecer um pouco distante para tratar de prova e fé, então tentemos de outra maneira nos voltando aos nossos dias. Peço ao leitor que pense nas inúmeras histórias que provavelmente já ouviu de curas inexplicáveis que são apresentadas diariamente nos hospitais ao redor do mundo, claro que você pode atribuir a causa de tais “milagres” ao que você quiser, ao cosmos, a natureza, Deus ou se preferir a simples obra do acaso, mas me dirijo aqui às pessoas de “fé”, se você quando deparado com essas situações as atribuiu a Deus, subjetivamente você está tomando para si uma prova da existência dele, mas agora peço que pense sua relação com a fé, o quanto essas situações atribuídas ao divino interferem no seu fervor e na sua vontade de servir a Deus genuinamente? Arrisco-me a dizer que não interferem em absolutamente nada. Se um cristão dependesse de provas para crer, teria que viver uma vida voltada para tais situações probatórias e quando deparado com o silêncio ou a dúvida, sua “fé” se esmoreceria, mas a fé não tem valor probatório algum, ela é simplesmente alheia a isso. Mas qual é a natureza da fé? “A fé é a certeza das coisas que se esperam e a convicção dos fatos que não se veem. ” - Hebreus 11;1 Ter fé é ter certeza de verdades que não podem ser provadas e a convicção de coisas invisíveis como se visíveis fossem. Kierkegaard ainda em sua obra sobre fé tece elogios à fé de Abraão e como seus atos ajudam a consolidar o conceito de fé. Após ser chamado por Deus para sacrificar o seu filho, Abraão não esmorece, nem hesita, mas demonstra fé no seu sentido mais puro. Abraão começa seu caminho em direção ao sacrifício acordando cedo, como se não quisesse atrasar para o grande momento, toma três dos seus servos e os deixa a beira do monte com os dizeres de que voltariam ele e a criança após fazerem o sacrifício, Isaque estranha à falta do cordeiro e racionalmente pergunta o pai “Eis o fogo e a lenha, mas onde está o cordeiro para o holocausto? ” Abraão mesmo sabendo que o sacrifício era seu filho, responde voltado para o incompreensível, “Deus proverá para si meu filho, o cordeiro do holocausto”. O apogeu da fé é retratado em Gênesis 10; 22 - “E, estendendo a mão tomou o cutelo para imolar o filho”. Tal ato de fé pode causar certa náusea a quem lê pela primeira vez, um homem que levanta a faca para o seu amado filho com o intento de sacrifica-lo, provavelmente pode estar sofrendo algum grave distúrbio, ou até mesmo está levando sua fé a um nível de fanatismo. Todas essas interpretações são possíveis, mas não para com Abraão, de fato ele estava disposto a levar as ordens diretas de Deus até as últimas consequências, mas não por que estava limitado das suas faculdades mentais, mas por que cria apesar delas. Abraão creu desde o início nas promessas de Deus como se elas já estivessem ali mesmo que nunca chegasse a vê-las. A Abraão foi prometido ser pai de muitas nações, peregrinou e agiu como tal mesmo não vivendo para ver duas gerações a sua frente. A fé de Abraão se dissocia de qualquer necessidade de prova, independente do aparecimento do cordeiro ou da formação de muitas nações a sua posteridade, ele creu como se tudo já estivesse ali desde o início. A fé é bela, pois é um sentimento independente, puro, categórico, independe de qualquer hipótese para existir ou subsistir, não se condiciona a prova, ou a provimento, ela tem valor e fim em si mesmo. Por outro lado, tais características a tornam em algo duríssimo e desafiador. Para de fato ter fé, há de se abrir mão daquilo que consideramos muitas vezes necessário para acreditar em algo, a fé não esclarece dúvidas ou se quer cessa dores, no que Davi chama de vale da sombra da morte, a fé não faz o vale sumir, mas ajuda aquele quem crer a passar por ele. O grande desafio entre nós e a fé, é tentar aceita lá como ela é, dissociando a vontade de endossa-la ou refuta-la, apenas abraçando-a na sua beleza e dureza. Paulo afirma que “pela graça sois salvos mediante a fé. ” - Efésios 2;8 Em Hebreus 11;6 o autor afirma - “ De fato sem fé é impossível agradar a Deus, porquanto é necessário que aquele que se aproxima de Deus creia que ele existe e que se torna galardoador dos que o Buscam”. Para o cristianismo a fé é imprescindível para se ter uma relação com Deus, os cristãos atribuem a fé a possibilidade futura de salvação e a presente necessidade de se buscar o seu Criador. Mas a questão é, por que Deus escolheu algo tão duro e difícil como a fé para nos relacionarmos com ele? Uma possível resposta se encontra na nossa limitação como seres incapazes de explicar o pouco do tanto que nos cerca. Quando criança ficava pensandosobre o ponto zero da existência, não nas causas possíveis da origem do universo, mas naquilo que está antes disso, a causa da causa. Particularmente nunca encontrei uma explicação satisfatória, todas as teorias possíveis nunca responderam as minhas perguntas. A teoria cosmológica em torno do Big Bang trata de um universo denso e quente pronto para explosão, tal teoria não explica de onde surge esse universo e esses gases que deram causa a nossa existência, tal universo já existia? Quem o criará? Por outro lado, tão pouco a teoria teológica me trouxe uma resposta satisfatória, para o criacionismo Deus criou o universo e tudo que há nele, mas quem criou o Criador? A resposta bíblica para essa pergunta é que “Antes que houvesse dia ele o era”, João diz em Apocalipse “ele é o Alfa, Ômega, o princípio e o fim” ninguém poderia ter criado o criador, ele simplesmente já existia. Apesar das respostas eu não consigo imaginar alguém simplesmente estando lá, sem nascer ou ser criado. Com o tempo desistir de tentar compreender o que para mim é incompreensível, me conformo com a minha limitação de não compreender o ponto zero da criação, aceito que existem coisas que estão para além da compreensão humana. Dessa forma a fé se torna imprescindível para se relacionar com Deus, pois se precisássemos compreendê- lo em sua plenitude para ter fé, quem poderia fazê-lo? A fé é um salto para além da nossa limitação racional em direção ao incompreensível. A fé rompe todas as barreiras da racionalidade criando uma ponte entre o abismo que existe entre o homem e Deus. Por mais que compreenda o sentindo da fé e aprecie profundamente o seu caráter simples e belo, é pela sua dureza que sou constantemente confrontado. Compreender a fé não torna o silêncio menos doloroso nem a prova menos desejada. Quando me deparo com a falta de respostas, incompreensão e dor, a vontade de apostatar é quase instantânea, perante a essas situações me obrigo a rever todo o sentido da fé para que de alguma forma me sinta consolado na certeza de que a fé está para além de toda a dificuldade. Infelizmente, isso em muito pouco me ajuda na vontade impulsiva de simplesmente desistir de crer. Compreender a fé não resolve os problemas que a cercam, no máximo nos direciona a caminho da solução. Em uma passagem curiosa de Marcos, um pai de um jovem possesso, se aproxima de Jesus e clama que caso ele pudesse livrar o seu filho ele o fizesse, Jesus responde: “Se podes! Tudo é possível ao que crê. ” O pai em lágrimas dá uma resposta interessante e ambígua “ Eu creio! Ajuda-me na minha falta de fé! ” Imagino que aquele pai compreendeu que ele necessitava crer de todo o seu coração para a cura do seu filho, mas da mesma forma sentia que sua humanidade o impedia de fazê-lo. O clamor desse pai é provavelmente a melhor resposta para o dilema entre o homem racional e a fé, Senhor eu creio, mas, me ajuda na minha falta de fé.
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