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na IV Jornada de Direito Civil organizada pelo Conselho da Justiça Federal, assinala que “pode o lesionado optar por não pleitear a anulação do negócio, deduzindo, desde logo, pretensão com vistas à revisão judicial do negócio por meio da redução do proveito do lesionador ou do complemento do preço”. Mesmo que o autor postule somente a anulação do contrato, será facultado ao outro contratante ilidir a pretensão de ruptura do negócio, mediante o referido suplemento, suficiente para afastar a manifesta desproporção entre as prestações e recompor o patrimônio daquele, salvando a avença. Competirá ao juiz decidir se o suplemento foi ou não suficiente para evitar a perpetuação do locupletamento. A lesão pode estar presente em todo contrato bilateral e oneroso, que suscita prestações correlatas, sendo a relação entre vantagem e sacrifício decorrente da própria estrutura do negócio jurídico549. A possibilidade de oferecimento de suplemento suficiente, prevista no mencionado art. 157, reforça a ideia defendida pela doutrina de que a lesão só ocorre em contratos comutativos, e não nos aleatórios, pois nestes as prestações envolvem risco e, por sua própria natureza, não precisam ser equilibradas. Em verdade, somente se poderá invocar a lesão nos contratos aleatórios, excepcionalmente, “quando a vantagem que obtém uma das partes é excessiva, desproporcional em relação à álea normal do contrato”550. ■ 7.5.7. A fraude contra credores ■ 7.5.7.1. Conceito O novo Código Civil coloca no rol dos defeitos do negócio jurídico a fraude contra credores, não como vício do consentimento, mas como vício social, uma vez que não conduz a um descompasso entre o íntimo querer do agente e a sua declaração. A vontade manifestada corresponde exatamente ao seu desejo, mas é exteriorizada com a intenção de prejudicar terceiros, ou seja, os credores. Por essa razão, é considerada vício social. A regulamentação jurídica desse instituto assenta-se no princípio do direito das obrigações segundo o qual o patrimônio do devedor responde por suas obrigações551. É o princípio da responsabilidade patrimonial, previsto no art. 957 do novo Código, nesses termos: “Não havendo título legal à preferência, terão os credores igual direito sobre os bens do devedor comum”. O patrimônio do devedor constitui a garantia geral dos credores. Se ele o desfalca maliciosa e substancialmente, a ponto de não garantir mais o pagamento de todas as dívidas, tornando-se assim insolvente, com o seu passivo superando o ativo, configura-se a fraude contra credores. Esta só se caracteriza, porém, se o devedor já for insolvente ou tornar-se insolvente em razão do desfalque patrimonial promovido. Se for solvente, isto é, se o seu patrimônio bastar, com sobra, para o pagamento de suas dívidas, ampla é a sua liberdade de dispor de seus bens. Fraude contra credores é, portanto, todo ato suscetível de diminuir ou onerar seu patrimônio, reduzindo ou eliminando a garantia que este representa para pagamento de suas dívidas, praticado por devedor insolvente ou por ele reduzido à insolvência552. Tendo em conta que o patrimônio do devedor responde por suas dívidas, pode-se concluir que, desfalcando-o a ponto de ser suplantado por seu passivo, o devedor insolvente, de certo modo, está dispondo de valores que não mais lhe pertencem, pois tais valores se encontram vinculados ao resgate de seus débitos. Daí permitir o Código Civil que os credores possam desfazer os atos fraudulentos praticados pelo devedor, em detrimento de seus interesses553. ■ 7.5.7.2. Elementos constitutivos Dois elementos compõem o conceito de fraude contra credores: ■ o objetivo (eventus damni), ou seja, a própria insolvência, que constitui o ato prejudicial ao credor; e ■ o subjetivo (consilium fraudis), que é a má-fé do devedor, a consciência de prejudicar terceiros. ■ 7.5.7.2.1. Elemento subjetivo Ao tratar do problema da fraude, o legislador teve de optar entre proteger o interesse dos credores ou o do adquirente de boa-fé. Preferiu proteger o interesse deste. Se ignorava a insolvência do alienante nem tinha motivos para conhecê-la, conservará o bem, não se anulando o negócio. Desse modo, o credor somente logrará invalidar a alienação se provar a má-fé do terceiro adquirente, isto é, a ciência deste da situação de insolvência do alienante. Este é o elemento subjetivo da fraude: o consilium fraudis, ou conluio fraudulento. Não se exige, no entanto, que o adquirente esteja mancomunado ou conluiado com o alienante para lesar os credores deste. Basta a prova da ciência da sua situação de insolvência. O art. 159 do Código Civil presume a má-fé do adquirente “quando a insolvência (do alienante) for notória, ou houver motivo para ser conhecida do outro contratante”. ■ Insolvência notória — a notoriedade da insolvência pode se revelar por diversos atos, como pela existência de títulos de crédito protestados, de protestos judiciais contra alienação de bens e de várias execuções ou demandas de grande porte movidas contra o devedor. ■ Motivos para conhecê-la — embora a insolvência não seja notória, pode o adquirente ter motivos para conhecê-la. Os casos mais comuns de presunção de má-fé do adquirente, por haver motivo para conhecer a má situação financeira do alienante, são os de aquisição do bem por preço vil554 ou de parentesco próximo555 entre as partes. Jorge Americano, citado por Silvio Rodrigues556, refere-se a algumas presunções que decorrem das circunstâncias que envolvem o negócio e são reconhecidas pela jurisprudência. Assim, os contratos se presumem fraudulentos: “a) pela clandestinidade do ato; b) pela continuação dos bens alienados na posse do devedor quando, segundo a natureza do ato, deviam passar para o terceiro; c) pela falta de causa; d) pelo parentesco ou afinidade entre o devedor e o terceiro; e) pelo preço vil; f) pela alienação de todos os bens”557. A prova do consilium fraudis não sofre limitações e pode ser ministrada por todos os meios, especialmente indícios e presunções558. ■ 7.5.7.2.2. Elemento objetivo O elemento objetivo da fraude é o eventus damni, ou seja, o prejuízo decorrente da insolvência. O autor da ação pauliana ou revocatória tem, assim, o ônus de provar, nas transmissões onerosas, o eventus damni e o consilium fraudis. ■ 7.5.7.3. Hipóteses legais Não apenas nas transmissões onerosas pode ocorrer fraude aos credores mas também em outras três hipóteses. Vejamos as espécies de negócios jurídicos passíveis de fraude. ■ 7.5.7.3.1. Atos de transmissão gratuita de bens ou remissão de dívida O art. 158 do Código Civil declara que poderão ser anulados pelos credores quirografários, “como lesivos dos seus direitos”, os “negócios de transmissão gratuita de bens ou remissão de dívida” quando os pratique “o devedor já insolvente, ou por eles reduzido à insolvência, ainda quando o ignore”. ■ 7.5.7.3.1.1. Atos de transmissão gratuita de bens O estado de insolvência, segundo Clóvis Beviláqua, é objetivo — existe ou não, independentemente do conhecimento do insolvente559. Nesses casos, os credores não precisam provar o conluio fraudulento (consilium fraudis), pois a lei presume a existência do propósito de fraude. Tendo de optar entre o direito dos credores, que procura evitar um prejuízo, qui certant de damno vitando, e o dos donatários (em geral, filhos ou parentes próximos do doador insolvente), que procura assegurar um lucro, qui certat de lucro captando, o legislador desta vez preferiu proteger os primeiros, que buscam evitar um prejuízo.Atos de transmissão gratuita de bens são de diversas espécies: doações; renúncia de herança; atribuições gratuitas de direitos reais e de retenção; renúncia de usufruto; o que não é correspectivo nas doações remuneratórias, nas transações e nos reconhecimentos de dívidas; aval de favor; promessa de doação; deixa testamentária e qualquer direito já adquirido que, por esse fato, vá beneficiar determinada pessoa560. ■ 7.5.7.3.1.2. Remissão de dívida O Código Civil menciona expressamente a remissão ou perdão de dívida como liberalidade que também reduz o patrimônio do devedor, sujeita à mesma consequência dos demais atos de transmissão: a anulabilidade. Os créditos ou dívidas ativas que o devedor tem a receber de terceiros constituem parte de seu patrimônio. Se ele os perdoa, esse patrimônio, que é garantia dos credores, reduz-se proporcionalmente. Por essa razão, seus credores têm legítimo interesse em invalidar a liberalidade, para que os créditos perdoados se reincorporem no ativo do devedor 561. ■ 7.5.7.3.2. Atos de transmissão onerosa O art. 159 do Código Civil trata dos casos de anulabilidade do negócio jurídico oneroso, exigindo, além da insolvência ou eventus damni, o conhecimento dessa situação pelo terceiro adquirente, qual seja, o consilium fraudis. O aludido dispositivo proclama que ocorrerá a anulabilidade dos contratos onerosos, mesmo havendo contraprestação, tanto no caso de conhecimento real da insolvência pelo outro contratante como no caso de conhecimento presumível, em face da notoriedade ou da existência de motivos para esse fato. Como dito no item anterior, a insolvência é notória principalmente quando o devedor tem títulos protestados ou é réu em ações de cobrança ou execuções cambiais. É presumida quando as circunstâncias, mormente o preço vil e o parentesco próximo entre as partes, indicam que o adquirente conhecia o estado de insolvência do alienante. Assim, o pai que negocia com filho ou irmão insolvente não poderá arguir sua ignorância sobre a má situação econômica destes, bem como aquele que adquire imóvel por preço ostensivamente inferior ao de mercado, dentre outras hipóteses. Não se exige conluio entre as partes, bastando a prova da ciência dessa situação pelo adquirente. Se, no entanto, ficar evidenciado que este se encontrava de boa-fé, ignorando a insolvência do alienante, o negócio será válido. Incumbe ao credor a prova da notoriedade ou das condições pessoais que ensejam a presunção. Como assinala Yussef Said Cahali, “doutrina e jurisprudência são concordes, no sentido de que compete, ao autor da ação pauliana, demonstrar a ocorrência do consilium fraudis, para o êxito da mesma; o que, de resto, mostra-se inteiramente conforme aos princípios (onus probandi incumbit actori), no pressuposto de que a fraude bilateral (consilium fraudis incluindo a scientia fraudis do copartícipe no contrato) representa elemento constitutivo da pretensão revocatória (art. 373, n. I, do CPC)”562. ■ 7.5.7.3.3. Pagamento antecipado de dívida Dispõe o art. 162 do Código Civil: “O credor quirografário, que receber do devedor insolvente o pagamento da dívida ainda não vencida, ficará obrigado a repor, em proveito do acervo sobre que se tenha de efetuar o concurso de credores, aquilo que recebeu”. Credor quirografário, etimologicamente, é o que tem seu crédito decorrente de um título ou documento escrito. A ele se refere o estatuto civil como aquele que tem como única garantia o patrimônio geral do devedor, ao contrário do credor privilegiado, que possui garantia especial. O objetivo da lei é colocar em situação de igualdade todos os credores quirografários. Todos devem ter as mesmas oportunidades de receber seus créditos e de serem aquinhoados proporcionalmente. Se a dívida já estiver vencida, o pagamento não é mais do que uma obrigação do devedor e será considerado normal e válido, desde que não tenha sido instaurado o concurso de credores. Se o devedor, todavia, salda débitos vincendos, comporta-se de maneira anormal. Presume-se, na hipótese, o intuito frau- dulento e o credor beneficiado ficará obrigado a repor, em proveito do acervo, o que recebeu, instaurado o concurso de credores563. Essa regra não se aplica ao credor privilegiado, que tem o seu direito assegurado em virtude da garantia especial de que é titular. Como o seu direito estaria sempre a salvo, o pagamento antecipado não causa prejuízo aos demais credores, desde que limitado ao valor da garantia. ■ 7.5.7.3.4. Concessão fraudulenta de garantias Prescreve o art. 163 do Código Civil: “Presumem-se fraudatórias dos direitos dos outros credores as garantias de dívidas que o devedor insolvente tiver dado a algum credor”. As garantias a que se refere o dispositivo são as reais, pois a fidejussória não prejudica os credores em concurso. A paridade que deve reinar entre os credores ficará irremediavelmente comprometida se houver outorga, a um deles, de penhor, anticrese ou hipoteca. A constituição da garantia vem situar o credor favorecido numa posição privilegiada, ao mesmo tempo que agrava a dos demais, tornando problemática a solução do passivo pelo devedor 564. É essa desigualdade que a lei quer evitar ao presumir fraudulento o procedimento do devedor 565. A presunção, in casu, resulta do próprio ato, uma vez demonstrada a insolvência do devedor, sendo juris et de jure. O que se anula, na hipótese, é somente a garantia, a preferência concedida a um dos credores. Continua ele, porém, como credor, retornando à condição de quirografário. Preceitua, com efeito, o parágrafo único do art. 165 do Código Civil que, se os negócios fraudulentos anulados “tinham por único objeto atribuir direitos preferenciais, mediante hipoteca, penhor ou anticrese, sua invalidade importará somente na anulação da preferência ajustada”. Anote-se que somente na fraude cometida nas alienações onerosas exige-se o requisito do consilium fraudis ou má-fé do terceiro adquirente, sendo presumido ex vi legis nos demais casos, ou seja, nos de alienação a título gratuito e remissão de dívidas, de pagamento antecipado de dívida e de concessão fraudulenta de garantia. ■ 7.5.7.4. Ação pauliana ou revocatória A ação anulatória do negócio jurídico celebrado em fraude contra os credores é chamada de revocatória ou pauliana, em atenção ao pretor Paulo, que a introduziu no direito romano566. É a ação pela qual os credores impugnam os atos fraudulentos de seu devedor. ■ 7.5.7.4.1. Natureza jurídica O Código Civil de 2002 manteve o sistema do diploma de 1916, segundo o qual a fraude contra credores acarreta a anulabilidade do negócio jurídico. A ação pauliana, nesse caso, tem natureza desconstitutiva do negócio jurídico. Julgada procedente, anula-se o negócio fraudulento lesivo aos credores, determinando-se o retorno do bem, sorrateira e maliciosamente alienado, ao patrimônio do devedor. O novo Código não adotou, assim, a tese de que se trataria de hipótese de ineficácia relativa do negócio, defendida por ponderável parcela da doutrina, segundo a qual, demonstrada a fraude ao credor, a sentença não anulará a alienação, mas simplesmente, como nos casos de fraude à execução, declarará a ineficácia do ato fraudatório perante o credor, permanecendo o negócio válido entre os contratantes: o executado-alienante e o terceiro adquirente. Para essa corrente, a ação pauliana tem natureza declaratória de ineficácia do negócio jurídico em face dos credores, e não desconstitutiva. Se o devedor, depois de proferida a sentença, por exemplo, conseguir levantarnumerário suficiente e pagar todos eles, o ato de alienação subsistirá, visto não existirem mais credores. Não obstante tratar-se de questão controvertida na doutrina, o Superior Tribunal de Justiça, encarregado de uniformizar a jurisprudência no País, nos precedentes que levaram à edição da Súmula 195, adiante transcrita (item 7.5.7.7), criados antes da promulgação do novo Código Civil, já vinha aplicando, por maioria de votos, a tese da anulabilidade do negócio, e não a da ineficácia567. A tendência é que essa orientação seja mantida na aplicação do novo Código Civil, como vem ocorrendo. ■ 7.5.7.4.2. Legitimidade ativa Estão legitimados a ajuizar ação pauliana (legitimação ativa): ■ Os credores quirografários (CC, art. 158, caput) — essa possibilidade decorre do fato de não possuírem eles garantia especial do recebimento de seus créditos. O patrimônio geral do devedor constitui a única garantia e a esperança que possuem de receberem o montante que lhes é devido. ■ Só os credores que já o eram ao tempo da alienação fraudulenta (CC, art. 158, § 2º) — os que se tornaram credores depois da alienação já encontraram desfalcado o patrimônio do devedor e mesmo assim negociaram com ele. Nada podem, pois, reclamar. Somente os credores quirografários podem intentar a ação pauliana, porque os privilegiados já têm, para garantia especial de seus créditos, bens destacados e individuados, sobre os quais incidirá a execução. Mas, já dizia Caio Mário, se normalmente não há necessidade de o credor privilegiado revogar o ato praticado in fraudem creditorum, “não está impedido de fazê-lo” se vier a sofrer um prejuízo decorrente da alienação da coisa hipotecada e da circunstância de “a sua garantia tornar-se in- suficiente”568. A jurisprudência, igualmente, vinha proclamando: “Tem-se entendido que mesmo contra o devedor que ofereceu garantia real é possível o ajuizamento de ação pauliana, na hipótese dos bens dados em garantia serem insuficientes”569. O Código Civil de 2002, assimilando essa orientação e inovando em relação ao diploma de 1916, proclama, no § 1º do citado art. 158, que o direito de anular os atos fraudulentos, lesivos dos seus direitos, igualmente “assiste aos credores cuja garantia se tornar insuficiente”. Não pode o próprio devedor e fraudador ajuizar a ação pauliana, porque seria absurdo que pudesse agir em juízo invocando sua própria fraude. Embora esta ação compita aos credores, vítimas da fraude, porém não coletivamente, faculta-se-lhes, havendo dois ou mais credores prejudicados pelo mesmo ato fraudulento do devedor comum, a formação do litisconsórcio ativo para demandarem em conjunto, com respaldo no art. 113, II, do Código de Processo Civil, pois “a doutrina, de um modo geral, considera ocorrer conexão em tais casos”570. Tal fato não impede o acolhimento da demanda em relação apenas a um dos credores e rejeição quanto aos demais, cujos créditos não eram anteriores, por exemplo. Há consenso na doutrina de que não apenas os primitivos credores como igualmente seus sucessores, a título singular ou universal, atingidos pelo ato fraudulento, desfrutam de legitimidade ativa para a ação revocatória571. ■ 7.5.7.4.3. Legitimidade passiva Dispõe o art. 161 do Código Civil que a ação pauliana, “nos casos dos arts. 158 e 159, poderá ser intentada contra o devedor insolvente, a pessoa que com ele celebrou a estipulação considerada fraudulenta, ou terceiros adquirentes que hajam procedido de má-fé”. A ação anulatória deverá (e não apenas poderá) ser intentada (legitimação passiva) contra: ■ o devedor insolvente; ■ o adquirente que com ele celebrou a estipulação considerada fraudulenta; e ■ os terceiros adquirentes que hajam procedido de má-fé, se o bem alienado pelo devedor já houver sido transmitido a outrem. De nada adianta acionar somente o alienante se o bem se encontra em poder dos adquirentes. Com efeito, o art. 506 do Código de Processo Civil estabelece que “a sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não prejudicando terceiros”. A doutrina, em geral, consolidou-se no sentido de que o devedor e o terceiro adquirente ou beneficiário devem figurar necessariamente no polo passivo da relação processual na revocatória, estabelecendo-se entre eles o litisconsórcio necessário de que trata o art. 114 do Código de Processo Civil 572. No mesmo sentido desenvolveu-se, em termos incontroversos, a jurisprudência de nossos tribunais573. Desde que, pela natureza da relação jurídica, é instaurado um litisconsórcio necessário, envolvendo alienantes devedores e adquirentes, considera-se que, quando o credor não tiver chamado a juízo o devedor ou o adquirente, deve o juiz, de ofício, ordenar a integração da lide, pois é nulo o processo em que não foi citado litisconsorte necessário574. ■ 7.5.7.5. Fraude não ultimada Quando o negócio é aperfeiçoado pelo acordo de vontades, mas o seu cumprimento é diferido para data futura, permite-se ao adquirente, que ainda não efetuou o pagamento do preço, evitar a propositura da ação pauliana ou extingui-la mediante depósito em juízo, se for aproximadamente o corrente, requerendo a citação por edital de todos os interessados. Nesse sentido, dispõe o art. 160 do Código Civil: “Art. 160. Se o adquirente dos bens do devedor insolvente ainda não tiver pago o preço e este for, aproximadamente, o corrente, desobrigar-se-á depositando-o em juízo, com a citação de todos os interessados. Parágrafo único. Se inferior, o adquirente, para conservar os bens, poderá depositar o preço que lhes corresponda ao valor real.” O adquirente do bem que desfalcou o patrimônio do devedor pode, desse modo, elidindo eventual presunção de má-fé, evitar a anulação do negócio. O depósito do preço equivalente ao valor de mercado da coisa impede que se considere consumada a fraude, pois demonstra a boa-fé do adquirente e que nenhuma vantagem patrimonial obteria em prejuízo dos credores. Cessa, com isso, o interesse dos credores, que, por conseguinte, perdem a legitimação ativa para propor a ação pauliana575. Essa possibilidade de suplemento do preço pelo adquirente, para evitar a anulação do negócio e conservar os bens, foi introduzida no parágrafo único do art. 160 do Código de 2002, retrotranscrito, como inovação. Trata-se “de uma espécie de ‘posterior regularização da situação’, de uma ‘chance’ que a lei dá ao comprador de sanar possível vício original”. Como o sistema “permite a sanação, que é uma correção quanto ao defeito original, não subsistirá viciado o negócio, pois socialmente aceitável com a correção. Não existirá aí fraude contra os credores, visto que não haverá diminuição patrimonial”576. ■ 7.5.7.6. Validade dos negócios ordinários celebrados de boa-fé pelo devedor Não obstante o devedor insolvente esteja inibido de alienar bens de seu patrimônio, para não agravar e ampliar a insolvência, admitem-se exceções, como na hipótese em que ele contrai novos débitos para beneficiar os próprios credores, possibilitando o funcionamento de seu estabelecimento, ou para manter-se e à sua família. Dispõe, com efeito, o art. 164 do Código Civil: “Art. 164. Presumem-se, porém, de boa-fé e valem os negócios ordinários indispensáveis à manutenção de estabelecimento mercantil, rural, ou industrial, ou à subsistência do devedor e de sua família.” Permite-se, portanto, ao devedor insolvente evitar a paralisação de suas atividades normais, fato este que somente agravaria a sua situação, em prejuízo dos credores, que veriam frustradas as possibilidades de receber os seus créditos. Dessa forma, o dono de uma loja, por exemplo, nãofica, só pelo fato de estar insolvente, impedido de continuar a vender as mercadorias expostas nas prateleiras de seu estabelecimento. Não poderá, todavia, alienar o próprio estabelecimento, porque não se trataria de negócio ordinário nem destinado à manutenção de sua atividade comercial. A novidade trazida pelo Código de 2002, no citado art. 164, é a de que os gastos ordinários do devedor insolvente são válidos não apenas quando eles derivam da necessidade de manter os estabelecimentos mercantis, rurais ou industriais que possuem mas também quando se destinam à subsistência daquele e de sua família. Essa inovação permite que o devedor insolvente venha a contrair novo débito, destinado apenas à própria subsistência ou à de sua família. ■ 7.5.7.7. Fraude contra credores e fraude à execução ■ 7.5.7.7.1. Requisitos comuns A fraude contra credores não se confunde com fraude à execução. Todavia, apresentam os seguintes requisitos comuns: ■ a fraude na alienação de bens pelo devedor, com desfalque de seu patrimônio; ■ a eventualidade de consilium fraudis pela ciência da fraude por parte do adquirente; ■ o prejuízo do credor (eventus damni), por ter o devedor se reduzido à insolvência ou ter alienado ou onerado bens quando pendia contra o mesmo demanda capaz de reduzi-lo à insolvência577. ■ 7.5.7.7.2. Principais diferenças Não obstante, os dois institutos apresentam diversas e acentuadas diferenças, que podem ser assim esquematizadas578: FRAUDE CONTRA CREDORES FRAUDE À EXECUÇÃO ■ É defeito do negócio jurídico (vício social), disciplinado pelo direito civil (CC, arts. 158 a 165). ■ É incidente do processo, regulado pelo direito processual civil (CPC, art. 792). ■ Configura-se quando ainda não existe nenhuma ação ou execução em andamento contra o devedor, embora possam existir protestos cambiários. ■ Pressupõe demanda em andamento, capaz de reduzir o alienante à insolvência, sendo efetivada pelo devedor para frustrar-lhe a execução (CPC, art. 792, IV). ■ Provoca a anulação do negócio jurídico, trazendo como consequência o retorno dos bens ao patrimônio do devedor, em proveito do acervo sobre o qual se - tenha de efetuar o concurso de credores (CC, arts. ■ Acarreta a declaração de ineficácia da alienação fraudulenta, em face do credor exequente.
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