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3 o pretor e o controle dos remedios legais

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3 O PRETOR E O CONTROLE DOS REMÉDIOS LEGAIS
Durante a maior parte do período republicano o direito romano se desenvolveu menos através da legislação e sua interpretação do que pelo controle dos remédios legais, ou ações (e outros instrumentos processuais posteriores). Originalmente, o primeiro estágio de um processo - procedimento legal seguido para a solução de litígios qualificados como jurídicos - era formal e técnico; havia alguns poucos modelos de ação, que se iniciavam mediante a pronúncia oral de palavras previamente fixadas, pelo autor da ação (requerente ou pleiteante) diante do réu e do magistrado. O requerente que não pronunciasse exatamente as palavras previstas podia perder a ação. Estas legis actiones também só podiam ser intentadas em dias específicos. E, uma vez mais, somente os pontífices estavam familiarizados com as frases e as datas para o início de tais ações, até que tais formas verbais e o calendário viessem a ser publicados, o que somente ocorreu por volta de 300 a.C., quando o pontificado se tornou acessível também aos plebeus. 
Os magistrados, originalmente dois cônsules eleitos anualmente que haviam sucedido ao rei como chefes de Estado, eram responsáveis pelo desempenho de todas as atividades governamentais. A administração da Justiça era apenas uma parte minoritária de seus deveres e o procedimento lhes deixava pouco espaço para inovação. Com a expansão de Roma, um magistrado especial, denominado pretor e também eleito anualmente, foi criado em 367 a.C., para lidar exclusivamente com a administração da Justiça. Ele não tinha nenhum treinamento ou expertise especial, mas esperava-se que supervisionasse o estágio inicial, formal, de cada procedimento legal. O pretor manteve a característica dual (dois estágios) das ações, sendo o primeiro relacionado à classificação do litígio em termos legais e o segundo, o julgamento propriamente dito, baseado nos fatos ocorridos entre as partes. O segundo estágio sempre havia sido – e continuaria assim – relativamente informal. Este procedimento, como um todo, era bastante econômico em termos de consumo de tempo e trabalho oficiais. O magistrado ocupava-se somente do primeiro estágio, o que era essencial, mas era o segundo estágio aquele que mais consumia tempo e trabalho. Os romanos haviam percebido que em muitas situações os litígios surgiam não devido a discordâncias em torno do direito, para eles suficientemente claro, mas sim acerca dos fatos que teriam ocorrido e originado o litígio; e, portanto, que um cidadão comum, mesmo sem experiência nenhuma em relação à lei, era efetivamente capaz de decidir sobre o que teria acontecido entre as partes litigantes.
Na segunda metade do período republicano uma importante modificação no processo foi introduzida. Quando as partes se apresentavam diante do pretor, ao invés de aderirem a formas verbais previamente fixadas (legis actiones) para expressar seus pedidos e defesas, elas passaram a fazê-lo dizendo-os em suas próprias palavras. O pretor, então, tendo identificado qual era o problema legal em questão, expressava-o em termos hipotéticos em um documento denominado formula (de onde o novo procedimento retiraria a designação de per formulas). Esta instruía o iudex (árbitro leigo) a condenar o réu, caso aquele concluísse pela veracidade das alegações feitas – e provadas – pelo requerente, ou a absolvê-lo, caso não se convencesse de tais alegações. A fórmula, uma vez fixada pelo pretor a partir das alegações das partes, era selada, para que o iudex, ao abri-la, pudesse certificar-se de sua autenticidade. O iudex derivava toda a sua autoridade da fórmula e, portanto, tinha que agir estritamente dentro de seus termos. Desde que assim se mantivesse, ele possuía significativa liberdade para conduzir o julgamento e, frequentemente, utilizava-se da consulta a um consilium de amigos para ajudá-lo a chegar a uma decisão. Nos primeiros anos da república as partes haviam representado a si mesmas, mas posteriormente adquiriu-se o hábito de recorrer a oradores profissionais, treinados em retórica, para defender suas posições no caso frente ao iudex.
O pretor podia conferir uma fórmula ao requerente toda vez que acreditasse que o direito, em termos axiológicos (com referência aos valores protegidos pela comunidade romana) o justificasse, no sentido de que se considerava que, se um requerente aparentemente pudesse comprovar suas alegações, deveria então dispor de uma ação correspondente, um remédio legal, para garantir o direito arguído. A função do pretor era a de declarar o direito (jus dicere) e de dar efeito a ele através da concessão das fórmulas apropriadas. A maior parte das ações referia-se a litígios já conhecidos, tais como a ocupação resistida da propriedade imóvel do requerente pelo réu, ou a existência de dívida contraída em dinheiro (pecuniária). Contudo, o pretor podia conceder uma fórmula em situações para as quais até então não houvesse precedentes quaisquer. Oficialmente, nestes casos ele não estava criando direito; isto estaria além de seus poderes. Com efeito, o que ele estava fazendo, nestas situações, era afirmar que o pedido do requerente justificava a concessão de um remédio legal, ou seja, de uma ação apropriada para a restituição do direito violado e que, portanto, deveria-se conceder esta ação. A despeito de se pronunciar como se estivesse apenas implementando direito já existente, ele estava, de fato, criando direito novo�.
Uma vez que as ações novas eram apresentadas como uma expressão do direito antigo, a inovação era escamoteada. Por exemplo, o pretor não podia tratar como proprietário aquele que não o fosse sob a caracterização da lei civil, à qual este estava inexoravelmente submetido, e, portanto não se podia garantir a esse indivíduo a ação do proprietário para recuperar a coisa. Ele podia, contudo, dar ao não-proprietário uma ação alternativa para garantir-lhe o direito de obter o domínio físico da propriedade, e de protegê-lo nesse controle até que este se tornasse efetivamente proprietário, decorrido o tempo necessário para tanto (aquisição originária). Similarmente, ele podia garantir ao herdeiro ação para recuperar a propriedade do falecido desde que aquele fosse efetivamente herdeiro, de acordo com a lei civil; mas também podia conceder ao não-herdeiro uma ação para obter e manter a posse da coisa. Esta pessoa utilizava a coisa como posseiro, não como proprietário. Sem dúvida, para os romanos essa distinção era meramente semântica, mas para aqueles com maior conhecimento sobre o direito ela era significativa. Reconhecida, por um lado, a distinção, mas considerada a proximidade entre as situações no que se refere ao reconhecimento do direito existente também na situação nova, estava habilitado o pretor para conceder a uma parte merecedora um remédio legal, ou ação, quando ele sentisse que o senso popular de justiça o requeria, enquanto, ao mesmo tempo, mantinha incólume a integridade formal da lei civil.
Ao início do ano de sua investidura, o pretor publicava um edito, no qual ele dispunha quais seriam as circunstâncias nas quais ele concederia uma fórmula, e eventualmente até indicava as fórmulas apropriadas. Possíveis litigantes consultariam, então, esse documento, podendo extrair dali qualquer fórmula presente no edito, desde que correspondente à situação fática suscitada. Um réu que contestasse as alegações do requerente não seria prejudicado pela concessão da fórmula ao seu oponente, pois ele estaria confiante de que este não lograria convencer o iudex da veracidade daquelas.
A fórmula era um instrumento flexível e podia ser modificada para abrigar defesas específicas arguídas pelo réu. Por exemplo, onde a lei civil prescrevia uma forma particular para uma determinada transação, ela concernia, originalmente, apenas à aferição de se a forma havia sido obedecida ou não; nada inquiria para além da forma. Um importante contrato, mencionado na Lei das XII Tábuas e denominado stipulatio, consistia em um pronunciamento oral que podia converter quase qualqueracordo em uma obrigação. Se o pronunciamento, em forma de perguntas e respostas, fosse levado a efeito, o fato de o promitente ter sido induzido a fazer sua promessa por fraude ou ameaças infligidas pela outra parte era irrelevante. Nos últimos anos da república, contudo, o pretor permitiu que a fraude e a coação fossem integradas em uma fórmula através da sua inclusão no rol de defesas oponíveis a um requerente que exigisse a implementação da promessa; e caso o réu-promitente pudesse comprovar suas alegações feitas em sede de defesa, ele seria absolvido.
Tal defesa, ou exceptio, era requerida quando o réu admitia a verdade da alegação do requerente (por exemplo, de que teria realmente feito a promessa vinculante), mas acrescentava outros fatos (por exemplo, de que somente teria se comprometido em face de fraude cometida pelo pretenso credor), os quais poderiam anular a pretensão do requerente. Ao permitir defesas em que o réu acrescentava suas próprias alegações, o pretor conferia reconhecimento legal ao princípio de que direitos oriundos de transações realizadas mediante o uso de fraude ou coação eram inexigíveis. Em certas fórmulas, o iudex era instruído a condenar o réu a pagar somente a quantia por ele devida segundo um critério de boa fé (ex fide bona), e em tais casos uma exceptio específica nem era necessária. A única modalidade possível de condenação por um iudex era aquela em danos materiais; isto se explica pelos limites previamente estabelecidos para a sua atuação; uma vez que ele julgasse a causa em favor de uma das partes, sua tarefa estava encerrada e ele deixava de existir como iudex. Sendo assim, ele não podia ordenar a uma parte que fizesse ou deixasse de fazer algo uma vez que, quando chegasse o momento de aferir se a ordem houvesse sido obedecida, ele não mais seria iudex. Uma decisão de que o réu deveria pagar uma determinada soma é a conclusão adequada para vários tipos de disputas, mas não é cabível em todos os casos. Dessarte, nos últimos anos da república, quando se requeriam outros remédios legais diferentes das ações regularmente concedidas, o pretor não podia remetê-las a um iudex, tendo que julgá-las ele mesmo. 
O mais antigo destes remédios ditos “extraordinários” (ou seja, diversos daqueles “ordinários”, consistentes nas fórmulas) é, provavelmente, o interdito, uma ordem do pretor para se fazer ou não se fazer alguma coisa. Muitos interditos destinavam-se a prevenir interferências na posse pacífica de propriedade e a assegurar que reivindicações fossem feitas apropriadamente, através dos instrumentos legais. O pretor não concedia um interdito a partir do mero pedido do interessado, mas concedia-o mediante a presença de razões fáticas suficientes para tanto. Talvez o mais drástico dentre esses remédios seja a restitutio in integrum, que consistia na reversão dos efeitos de uma transação, sendo esta formalmente válida entre as partes, mas tendo gerado efeitos especialmente injustos para uma delas. Uma vez concedido este remédio, as partes podiam dispor de ações pretorianas especiais equivalentes às ações de que disporiam se a transação ofensiva não se houvesse realizado. O pretor devia demostrar cautela na concessão dessa restitutio, pois, se ela fosse concedida com muita freqüência, isto teria minado a confiança do público no direito. Afinal, para que aderir a uma fórmula transacional prescrita pela lei se uma das partes podia conseguir anulá-la, alegando prejuízos advindos de efeitos que ela não teria sido capaz de prever? Por outro lado, a recusa na concessão da restitutio poderia significar a perpetuação de uma injustiça. Por isto, os requisitos em face dos quais o pretor podia concedê-la eram cuidadosamente estabelecidos e incluíam fraude, coação, a ausência de uma parte em razão de serviço público por período durante o qual terceiro pudesse apossar-se sua propriedade de boa fé e apropriar-se dela pela prescrição e, finalmente, o fato de que o requerente, ainda que tecnicamente fosse considerado adulto, fosse muito jovem para compreender o que estava fazendo ou os efeitos jurídicos de seu ato.
O exemplo seguinte ilustra a abordagem cautelosa dos romanos em face da reforma da lei e alteração no direito. A lei civil concedia a capacidade a qualquer menino que alcançasse a idade da puberdade, geralmente admitida como sendo aos quatorze anos. Nessa idade, ele poderia casar-se, e, se independente do poder do pater familias, lidar com propriedades por si mesmo. Esta idade era bastante apropriada considerando-se a simplicidade da sociedade romana do início da república, mas um jovem de quatorze anos podia não se mostrar capaz de lidar com um negociante esperto que o persuadisse a fazer o que ele não quisesse, efetivamente. Não há dúvida de que a maneira mais lógica de lidar com tal situação teria sido elevar a idade mínima para a aquisição da plena capacidade civil, mas teria sido uma mudança drástica na lei dispor que capacidade e puberdade não se alcançassem simultaneamente. Os romanos mostravam-se relutantes em promover tal mudança, que poderia ter conseqüências imprevisíveis. Preferiram, pois, deixar para o pretor, no exercício de sua discricionariedade, a tarefa de reverter os efeitos de transações nas quais parecesse ter-se obtido vantagens desproporcionais em razão da inexperiência da parte mais jovem. A conseqüência prática de tal opção é que usualmente as pessoas recusavam-se a negociar com jovens de menos de vinte e cinco anos de idade (a idade-limite estabelecida pelo pretor), a não ser que estes fossem aconselhados ou assistidos.
O direito derivado da concessão dos novos remédios legais (ações, interditos e outros), contido nos editos dos pretores, tornou-se conhecido como ius honorarium (dos honores – honras - detidos pelos pretores eleitos). A maior parte dos desenvolvimentos que afetaram o direito civil na segunda metade do período republicano se realizou por meio desta categoria do direito romano.
Tradução parcial da obra “Roman Law in European History”, de Peter Stein
� N.T.: a questão sobre tratar-se a fórmula como criação de direito novo, ou como instrumento que reconhece direito novo, demanda uma discussão mais profunda, considerando-se a compreensão que os romanos tinham de seu próprio direito em comparação com a idéia contemporânea de direito. Se visto como conjunto de normas oriundas de um núcleo axiológico comum, dizer-se que se cria novo direito depende de se está referindo, como direito, a este referencial axiológico que permeia o senso comum e se concretiza pela via da concessão da nova fórmula (quando, portanto, não há que se falar em direito novo) ou se o que se trata como direito é cada nova fórmula, estabelecida para garantir uma posição jurídica que ainda não havia sido distinguida e caracterizada em face de outra, ou mesmo a cada nova posição jurídica destas (quando se pode, então, falar em direito novo).. Para um aprofundamento da questão, ver na “Introdução ...”, de Ferraz Jr., capítulos introdutório e 2, itens 2.1 e 2.2.

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