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Um Cinema Sem Respostas - Eduardo Cesar Maia

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fotos: divulgação
Artigo
EDUARDO 
CESAR MAIA
UM CINEMA SEM
RESPOSTAS
Quando Tropa de elite, do diretor José 
Padilha, recebeu o Urso de Ouro em 
Berlim, gerou-se imediatamente uma 
ampla discussão internacional. A 
impactante narrativa, que mostrava, de 
forma crua, a atuação da polícia do Rio 
de Janeiro no combate ao narcotráfico, 
converteu-se em tema de intensos e 
apaixonados debates em vários países 
(no Brasil, como se sabe, a polêmica se 
formou mesmo antes do lançamento 
oficial). A revista pop norte-americana 
Variety e a intelectualizada Cahiers 
du Cinéma, da França, consideraram 
a obra execrável por “apresentar 
um teor fascista” e classificaram a 
premiação alemã como uma das mais 
equivocadas da história. Na ocasião, o 
presidente da comissão que outorgou 
o prêmio em Berlim era o cineasta 
grego Costa-Gavras, famoso por seu 
engajamento político, por suas posições 
esquerdistas e pelo seu cinema 
político. O diretor de Missing e Z elogiou 
efusivamente o filme, justamente pelo 
seu conteúdo de denúncia a graves 
problemas sociais. Os críticos de 
cinema, brasileiros ou não, também 
não chegaram a um acordo sobre 
esse ponto específico. Mas, como são 
possíveis leituras tão contraditórias, 
e mesmo opostas, de uma mesma 
experiência cinematográfica?
Não pretendo aqui apresentar 
uma crítica de cinema, mas somente 
sugerir que algumas características 
peculiares dos filmes Tropa de Elite e 
Tropa de Elite 2 os colocam num lugar, 
a meu ver, particular dentro da 
história do cinema social brasileiro, e 
abrem uma alternativa à concepção 
tradicional em nosso país de cinema 
engajado e de denúncia. Para isso, 
acho pertinente estabelecer algumas 
relações entre o filme e a série 
televisiva norte-americana The wire, 
escrita e produzida por David Simon, 
e que foi levada ao ar pelo canal HBO, 
entre os anos de 2002 e 2008.
Os dois Tropa supõem um marco 
no cinema de denúncia social no 
Brasil, por não se utilizarem de 
pré-concepções ideológicas ou de 
esquemas generalizantes para explicar 
uma realidade ou fundamentar uma 
crítica social. Por isso, eles dividem 
tanto as opiniões: o conteúdo crítico 
está implícito simplesmente naquilo 
que é mostrado, na complexidade 
da situação tratada e não em uma 
apresentação dramatizada de 
um discurso ideológico, de uma 
reivindicação política ou numa 
encenação de uma teoria social 
disfarçada de narrativa. Uma declaração 
de José Padilha nos dá uma pista: “A 
esquerda acha que tudo depende da 
solução da desigualdade social; a direita 
entende que o caminho é o aumento da 
repressão; nenhuma das duas dá conta 
da questão da segurança”. O diretor, 
em entrevistas, mencionou várias vezes 
que todo seu trabalho no cinema busca 
tratar de indagações muito complexas, 
que ele mesmo se faz porque a 
observação da realidade concreta põe 
em dúvida suas próprias convicções 
políticas e éticas. 
A influência que, segundo 
Padilha, Tropa de elite recebeu da série 
americana The wire, que trata das 
intricadas relações entre tráfico de 
drogas, violência, polícia, e o sistema 
educacional e político na cidade 
americana de Baltimore, também 
é reveladora. Filme e série partem 
do mesmo: não se trata de explicar 
nada, mas de simplesmente mostrar 
os eventos sob as mais variadas 
perspectivas. Tampouco se trata de 
apresentar soluções para os grandes 
conflitos narrados: o que nos ensina 
a complexidade dos problemas e das 
relações humanas retratadas – se é 
que ensina algo – é que as reflexões 
que fazemos na vida pessoal e 
social não podem ser nunca plena e 
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satisfatoriamente respondidas por 
teorias gerais, ideologias ou abstrações. 
Tropa de elite e The wire são exemplos de 
uma forma de olhar realista particular, 
que se distancia da ingenuidade 
pretensiosa de mostrar o real como 
uma totalidade compreensível 
através de uma teoria; eles partem do 
entendimento de que nenhum ponto 
de vista, nenhuma ideia ou doutrina 
podem esgotar a realidade; portanto, 
o caminho prudente é trabalhar 
com rigor e humildade uma boa 
quantidade de perspectivas diferentes 
(e mesmo contraditórias) sobre um 
tema determinado. Nessa estética 
particular, a contradição já não é um 
problema para o realismo e para a 
verossimilhança porque a própria 
realidade é, em si, contraditória. 
Uma comparação inevitável 
entre filme e série se relaciona às 
semelhanças entre seus respectivos 
protagonistas. Capitão Nascimento 
problema demasiadamente complicado 
e difícil de administrar. 
Nascimento e McNulty se sentem 
seguros fora de casa porque parecem 
ter uma ideia clara a respeito daquilo 
que deve ser uma correta conduta 
moral e prática de um policial: eles 
pensam que dominam completamente 
esse jogo (ambos se referem ao 
trabalho com esse termo). Mas mesmo 
as regras claras do jogo se mostram 
insuficientes, e MacNulty se dá conta 
disso quando percebe que, ainda 
quando é capaz de resolver casos 
difíceis, a dura realidade das ruas de 
Baltimore permanece inalterável. Não 
aparecem caminhos de salvação nem 
de resoluções definitivas: a sabedoria 
de The wire está no entendimento de que, 
na vida real e cotidiana, o importante 
é conseguir suportar e administrar a 
intranscendência, lidar com a falta de 
um sentido superior, redentor. 
No caso de Nascimento, a 
aprendizagem não é diferente: a forte 
crença que ele sustenta no princípio 
de que uma polícia incorruptível, 
preparada e violenta, é a solução 
definitiva para os problemas do 
“sistema”, não suporta o confronto 
com sua própria experiência. Não há 
didatismos fáceis para explicar uma 
realidade tão complicada e cheia de 
matizes: as condições de vida nas 
favelas; o tráfico de drogas; a falta 
de presença do Estado; o ambiente 
de violência e medo constantes; a 
corrupção da polícia; o alto índice 
de consumo de drogas pelas classes 
média e alta, que acabam estimulando 
e financiando as facções criminosas; a 
ligação dos traficantes com políticos... 
Capitão Nascimento, seguindo 
de perto os passos do seu colega 
MacNulty, vai aprendendo a se 
relacionar com o contingente, 
com o parcial e precário, com 
soluções provisórias: é o único saber 
possível, o resto são teorias... 
e James McNulty são personagens 
que refletem toda a complexidade 
e contradições que mencionei. 
Ambos são profissionais competentes 
e dedicados que, contudo, não 
conseguem encontrar um ponto 
de equilíbrio entre o trabalho e a 
vida familiar. Eles enxergam na 
boa realização dos seus deveres 
profissionais um sentido vital mais 
nítido e determinado que qualquer 
outro, porque a vida policial tem 
regras e objetivos estabelecidos; a vida 
familiar, por sua vez, aparece como um 
os dois Tropa 
marcam o cinema de 
denúncia no Brasil 
por não se utilizarem 
de pré-concepções 
ideológicas
1-2 confluência
 tanto Tropa de 
elite quanto a série 
americana The Wire não 
pretendem mostrar a 
realidade como uma 
totalidade passível de 
ser compreendida por 
uma teoria 
2

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