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Euro, etno e outros centrismos
A História ocidental é bastante etnocêntrica. Revisá-la é uma forma de enxergar o que
negamos e restituir o lugar da alteridade
Urpi Montoya Uriarte
1/12/2012
A tela "Descoberda do Missisipi" (1847), de William Powell, que está no Capitólio dos EUA, narra um
acontecimento da história americana com uma perspectiva etnocêntrica.
Uns fumam, outros bebem álcool, alguns ingerem infusões. Ao longo da História, diversos povos do mundo
inventaram meios variados para atingir o que no Ocidente se convencionou chamar de “estados alterados de
consciência”. Eles são geralmente vistos como normais pela sociedade que os provoca: os indianos têm
consumido tradicionalmente a folha da cannabis sem considerá-la uma droga, assim como os habitantes da
região andina plantaram e consumiram durante milhares de anos a folha da coca sem que esses atos fossem
tratados como ilegais.
No noroeste peruano, foram encontrados resíduos de folha de coca mastigada, datados em mais de 8.000
anos. Esse consumo se reveste de diversos sentidos para o homem andino – energético, terapêutico, religioso,
identitário. Mas, de repente, o costume milenar se transforma: de “legal” passa a ser “ilegal”. E o
etnocentrismo é um importante elemento dessa transformação.
Em 1950, preocupadas com o crescimento, nos países ocidentais, do consumo de cocaína – um dos
componentes químicos presentes naquela planta –, as Nações Unidas formaram a chamada “Comissão da Folha
da Coca”, que tinha como meta a elaboração de um informe sobre a produção e o consumo de coca nos países
andinos. Esse informe criou um consenso com relação à nocividade da folha da coca, e o ato de mastigá-la
passou a ser enxergado como um vício indígena que precisava ser extinto. Afinal, provocava “alterações
psíquicas”, “introspecção”, “prostração moral”, “escassa capacidade de atenção”, e, portanto, “grande
prejuízo econômico”. O documento serviu de sustentação para a Convenção Única de Estupefacientes,
assinada em 1961, que normatizou, entre os países assinantes, a erradicação do cultivo da coca e do hábito de
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mastigação num prazo de 25 anos.
O etnocentrismo daquela Comissão se manifestou num pequeno detalhe: a população que fazia uso da planta
havia milênios sequer foi consultada. Todos os supostos efeitos da coca sobre o corpo e a mente foram
avaliados a partir de uma série de prejulgamentos e especulações dos membros da Comissão, todos educados
numa cultura alheia aos andinos e distante deles. Sempre que nos deparamos com costumes diferentes e os
interpretamos a partir da nossa própria cultura, estamos cometendo um ato etnocêntrico.
O gravíssimo problema do etnocentrismo é que ele não nos permite enxergar a lógica, as razões ou as
motivações daquele que é diferente de nós, simplesmente porque não admitimos conceder-lhe a palavra,
achando que bastam a nossa opinião, impressão ou julgamento. Um exemplo claro é o surgimento do nome
Yucatán para designar a península do México, no século XVI. Os conquistadores perguntaram aos nativos, em
língua espanhola, como se chamava aquele lugar em que tinham acabado de desembarcar. Os nativos, em sua
própria língua, responderam algo que os espanhóis entenderam por “Yucatán”. E assim batizaram o local. Na
verdade, o que os nativos disseram foi: “Não te entendo”. Para os colonizadores, qualquer resposta serviria,
e, graças àquela incompreensão básica, o nome erroneamente dado por eles é até hoje um monumento ao
etnocentrismo: “Não te entendo”.
Para o etnocentrismo, tudo o que é diferente se torna inferior, feio, ridículo, injusto, cruel, selvagem ou
irracional. Ao julgar as distinções de forma negativa, o etnocêntrico passa a querer modificar os costumes ou
crenças diferentes, em nome da superioridade dos seus próprios costumes ou crenças. Dito de outra forma:
ser etnocêntrico é acreditar que só existe uma verdade (a nossa) e uma beleza (a nossa), assim como também
só existem a nossa justiça e a nossa racionalidade. Em O que é etnocentrismo, o antropólogo Everardo Rocha
escreve: “Etnocentrismo é uma visão do mundo onde o nosso próprio grupo é tomado como centro de tudo e
todos os outros são pensados e sentidos através dos nossos valores, nossos modelos, nossas definições do que é
a existência”.
Todos os povos do mundo tendem a ser etnocêntricos. Os cheyenes (índios das planícies norte-americanas) se
autodenominavam “os entes humanos”; os akuáwas, grupo tupi do sul do Pará, consideram-se “os homens”; os
navajos, grupo indígena norte-americano, também se intitulavam “o povo”; osxavantes acreditam que seu
território tribal está situado bem no centro do mundo, tanto quanto os incas dos Andes peruanos achavam que
sua capital, Q’osqo (ou Cuzco, como foi pronunciada a palavra pelos conquistadores espanhóis), era o
“umbigo do mundo”.
Por que tendemos ao etnocentrismo? Na medida em que todos os indivíduos são educados em uma cultura, e
que toda cultura distingue o bem do mal, o feio do bonito, o certo do errado, é natural sermos etnocêntricos
quando deparamos com outros povos. Mas há diversos graus de etnocentrismo. Alguns povos simplesmente
menosprezam quem é diferente e dele quer se afastar. Outros, além de menosprezar, acham que têm o dever
de transformá-lo, e chamam isso de “civilizar” ou “evangelizar”. E há aqueles que vão ainda mais longe:
menosprezam e não acreditam que seja possível transformar quem é diferente. Ele deve ser eliminado.
Durante a Idade Média – após a queda do Império Romano e com o fechamento do Mediterrâneo pela expansão
islâmica nos territórios que o margeiam –, a Europa se encerrou em si mesma, trazendo como resultado uma
nova forma de conceber o Outro. Sem possibilidades de conhecer esse Outro, os europeus passam a
imaginá-lo, mas sempre de forma deturpada, “anormal”. Surgem, assim, as imagens dos povos de gigantes,
pigmeus, amazonas, canibais, entre outros.
Com a expansão das navegações nos séculos XV e XVI, os europeus acabaram se defrontando com um
continente até então desconhecido para eles: a América. Pensando inicialmente que tinham desembarcado
nas Índias, chamaram os nativos de “índios”. E mesmo tendo percebido logo que não estavam nas Índias, isso
não os impediu de continuar chamando os que aqui moravam com esse nome imposto e equivocado, “índios”.
Quanto etnocentrismo por trás de denominações generalizantes que uns acham que podem impor aos outros!
Tupis, Chibchas, Cheyenes, Astecas, Incas, Mapuches, Maias, Dakotas, Sioux, Inuits e tantos milhares de
outros povos foram todos colocados numa única categoria porque não interessava ao europeu conhecer suas
particularidades ou singularidades. Conhecer o Outro não estava entre as prioridades do europeu
conquistador. Ver e tratar alguém como inferior autorizou os europeus a nomear (mudando os nomes que os
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povos davam a si mesmos), excluir, conquistar, dominar, matar, sempre em nome de sua suposta superioridade
cultural e religiosa.
Ao não se permitirem perguntar, escutar e dialogar, os etnocêntricos se veem privados de aprender sobre os
povos diferentes, e, assim, aprender sobre si mesmos. Ao ver no Outro apenas um “índio”, os europeus dos
séculos XVI e XVII não acharam necessário perguntar, por exemplo, o que era aquela série de canais
subterrâneos, para que servia, como funcionava. Simplesmente deixaram o assunto pra lá – porque era “coisa
de índio” –, enquanto se enchiam de pó, terra e lama durante séculos. Hoje, sabemos que esses canais foram
construídos pelos incas com uma altíssima tecnologia hidráulica, para irrigar locais onde agora há apenas
desertos (a estreita franja litorânea do Peru atual). Lamentavelmente, não temos mais a quem perguntar
comoé que eles conseguiam juntar água (e de onde) para fazê-la passar por esses canais. O etnocentrismo
passado alimenta nossa ignorância no presente.
Urpi Montoya Uriarteé professora de Antropologia da Universidade Federal da Bahia e autora de Entre
fronteras: convivencia multicultural, Lima, siglo XX. Sur/Concytec, 2002).
Saiba Mais - Bibliografia
CASTRO, Eduardo Viveiros de. A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo:
Cosac & Naify, 2002.
ROCHA, Everardo. O que é etnocentrismo. São Paulo: Brasiliense, 1984.
THEODORO, Janice. América barroca. Temas e variações. São Paulo: Edusp/Nova Fronteira, 1992.
TODOROV, Tzvetan. A conquista da América. A questão do Outro. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
Filmes
“Amissão”, de Roland Joffé, 1986.
“1492– AConquistadoParaíso”, de Ridley Scott, 1992.
“Xingu”, de Cao Hamburger, 2012.
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