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A N T R O P O LO G IA C U LT U R A L P riscila R ezend e Código Logístico 57325 Fundação Biblioteca Nacional ISBN 978-85-387-6428-1 9 788538 764281 Os principais conceitos da área de antropologia, como cultura, processo de humanização, inserção do indivíduo no grupo social, dominados e dominantes, matrizes étnicas formadoras do povo brasileiro, relativismo, intolerância e etnocentrismo são discutidos nesta obra. Por meio da reflexão antropológica, esperamos que você amplie sua consciência de que todos nós, seres humanos, estamos unidos, embora tenhamos maneiras diferentes de viver. Para aprender com o diferente é preciso, antes de tudo, aceitá-lo. Somente assim poderemos vencer a intolerância, fruto do desconhecimento. Antropologia Cultural IESDE BRASIL S/A 2018 Priscila Rezende Todos os direitos reservados. IESDE BRASIL S/A. Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel – Curitiba – PR 0800 708 88 88 – www.iesde.com.br CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ R358a Rezende, Priscila Antropologia cultural / Priscila Rezende. - [2. ed.]. - Curitiba [PR] : IESDE Brasil, 2018. 116 p. : il. Inclui bibliografia ISBN 978-85-387-6428-1 1. Etnologia. 2. Etnologia - Brasil. 3. Antropologia. 4. Etnocentrismo. I. Título. 18-51039 CDD: 305.898 CDU: 39(81) © 2006-2018 – IESDE BRASIL S/A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito da autora e do detentor dos direitos autorais. Capa: IESDE BRASIL S/A. Imagem da capa: brunorbs/iStockphoto. Priscila Rezende Mestre em História Social e especialista em História, Sociedade e Cultura pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Bacharel e licenciada em História pela Universidade Cidade de São Paulo (Unicid). Sumário Apresentação 7 1. Introdução aos estudos antropológicos 9 1.1 Delimitações da antropologia cultural 9 1.2 Trabalho: atividade humana 10 1.3 Cultura: definição 10 2. Principais acepções do termo cultura 15 3. Mito: elemento da cultura 23 3.1 Folclore 24 4. A conquista da América e a questão do outro 29 4.1 A conquista da Cidade do México 32 4.2 A comunicação como arma do dominador 33 5. A conquista da América e as formas de dominação espanhola 37 5.1 Os espanhóis e os signos 37 5.2 A escravidão gerada pelo colonialismo 39 5.3 O indígena como o “alien” (estranho) para os espanhóis 39 5.4 Diego Durán e a cultura asteca 40 5.5 Bernardino de Sahagún 41 5.6 Onde estava o povo civilizado? 42 6. Conquista do Brasil: historiografia e educação 43 6.1 O conflito entre indígenas e portugueses 43 6.2 A conquista e a proteção da “nova terra” 44 6.3 A história dominante nos livros didáticos 46 6.4 O educador e o ensino crítico 49 7. O enfrentamento dos mundos 53 7.1 A chegada do europeu na “Ilha Brasil” 53 7.2 Fontes oficiais 55 7.3 A Carta de Pero Vaz de Caminha 56 8. Composição étnica do Brasil 63 8.1 Os brasilíndios 63 8.2 Os afro-brasileiros: a verdadeira imigração ilegal 65 8.3 Um negócio chamado escravidão 67 9. Os neobrasileiros 71 9.1 Que país é este? 71 9.2 O mito da democracia racial 74 10. Cultura nacional e identidade 79 10.1 A busca da identidade nacional na década de 1920 79 10.2 A configuração da nação 80 10.3 O modernismo e a identidade brasileira 82 11. A intolerância gerada pelo etnocentrismo 89 11.1 Nazismo: um breve relato 89 11.2 A figura de Hitler 93 12. Subculturas 97 12.1 Tribos urbanas 97 Gabarito 105 Referências 113 7 Apresentação Escrevemos este livro para que você, aluno, tenha aces- so aos principais conceitos da área de antropologia, como cultura, processo de humanização, inserção do indivíduo no grupo social, dominados e dominantes, matrizes étnicas formadoras do povo brasileiro, relativismo, intolerância e etnocentrismo. O livro é composto por capítulos baseados em diversos referenciais teóricos das ciências sociais, da história e da educação. A escolha desses teóricos foi proposital, pois não se pode entender a complexidade humana – objeto de estudo da an- tropologia – se não perscrutarmos potencialidades, compor- tamentos e mentalidades dos seres humanos. Assim, todas as áreas de conhecimento precisam unir-se, cada uma dentro do seu limite de investigação, para que seja possível compreen- dermos melhor o grande e enigmático “quebra-cabeça” que somos todos nós. Portanto, podemos afirmar: esta obra é in- terdisciplinar, pois proporciona o diálogo com diversas áreas do conhecimento. Por meio da reflexão antropológica, esperamos que você amplie sua consciência de que todos nós, seres humanos, estamos unidos, embora tenhamos maneiras diferentes de viver. Para aprender com o diferente, é preciso aceitá-lo; somente assim poderemos vencer a intolerância, fruto do desconhecimento. Bons estudos! 1 Introdução aos estudos antropológicos 1.1 Delimitações da antropologia cultural A palavra antropologia deriva do grego άνθρωπος – anthropos (homem/pessoa) e λόγος (logos – razão/pensamento). Sendo assim, ela analisa as características biológicas, culturais e sociais dos seres humanos. Por ser um estudo muito complexo, iremos privilegiar nesta obra o aspecto cultural. Dessa forma, antropologia cultural é o estudo do comportamento humano, das crenças religiosas e dos sistemas simbólicos. Podemos entendê-la ainda como um modo de compreendermos quem somos por intermédio da observação atenta do comportamen- to do outro. Este deixa de ser visto como um indivíduo ameaçador/ assustador, que não tem nada para acrescentar. Esse olhar diferen- ciado possibilita uma mudança muito relevante: o outro passa a ser encarado como alguém com hábitos, costumes e valores diferentes dos nossos e, por esse motivo, pode nos ensinar muitas coisas. Assim, o outro é o alter (diferente), e não o “alien” (estranho). A antropologia cultural analisa a essência humana e o que de- terminados grupos sociais criam historicamente. O ser humano é onto-societário, ou seja, um ser social, portanto aprende com outros indivíduos e por isso utiliza suas inúmeras habilidades e competên- cias, perscruta a própria realidade e tenta explicá-la. Quando descobrimos essa essência coletiva, percebemos, por outro lado, o individualismo exacerbado da sociedade – algo his- toricamente construído –, ou seja, a humanidade não é solitária, 10 Antropologia Cultural precisa do outro para poder sobreviver. Se não fôssemos inseridos em nenhum grupo social desde o nosso nascimento, poderíamos aprender a falar, andar e gesticular? Existe a possibilidade de iniciar- mos o processo de humanização ao estarmos isolados da sociedade? Temos características e hábitos essencialmente humanos porque fomos inseridos em um grupo social e aprendemos a reconhecer de- terminados símbolos, expressar os nossos sentimentos, como chorar e rir etc. 1.2 Trabalho: atividade humana O que distingue os seres humanos dos outros animais é a ca- pacidade de pensar e utilizar a inteligência para satisfazer suas necessidades por meio do trabalho. O trabalho é, na maioria das vezes, entendido como algo penoso, cuja finalidade é ganhar um salário no fim do mês para manter-se. No entanto, essa conceituação (criada pelos economistas do século XIX) não explica a complexidade do termo. Trabalho é toda ação humana sensível ao valor de uso, ou seja, todo ser humano trabalha quando desempenha qualquer ação com alguma finalidade. Nesse sentido, o lazer também é considerado um trabalho, por exemplo: se alguém vai ao parque, já está realizando uma atividade que tem um objetivo – diversão, entretenimento ou descanso. Assim, a ca- pacidade de raciocinar está intrinsecamente ligada à de trabalhar, e são essas potencialidades humanas que nos diferenciam dos outros animais. A humanidade sempre trabalhou, isto é, transformou a na- tureza para atender às necessidades próprias. 1.3 Cultura: definição Definir a palavra cultura não é tarefa fácil, pois entre osantro- pólogos ela assume vários significados. Muitas vezes, ouvimos falar que determinada pessoa tem cultura por ter lido muitos livros ou Introdução aos estudos antropológicos 11 possuir conhecimento apurado na área artística. Também já ouvi- mos falar que cultura se refere a manifestações relacionadas ao fol- clore, como crenças, danças e lendas de determinada região. Além disso, na atualidade, é muito difundida a expressão cultura de massa como referência ao cinema, à televisão e ao rádio. O primeiro intelectual a formular um conceito de cultura foi Edward B. Tylor na obra Cultura primitiva. Para Tylor (1976), o ter- mo engloba todos os acontecimentos relativos à humanidade. Já para Ralph Linton (1965) a cultura “consiste na soma total de ideias, rea- ções emocionais condicionadas a padrões de comportamento habitual que seus membros adquiriram por meio da instrução ou imitação e de que todos, em maior ou menor grau, participam” (LINTON, 1965, p. 17-20). Franz Boas (1964) entende cultura como “a totalidade das reações e atividades mentais e físicas que caracterizam o comporta- mento dos indivíduos que compõem um grupo social” (BOAS, 1964, p. 166). Malinowski (1962) a define como “o todo global consistente de implementos e bens de consumo, de cartas constitucionais para os vários agrupamentos sociais, de ideias e ofícios humanos, de crenças e costumes” (MALINOWSKI, 1962, p. 43). São várias as definições, que variam de acordo com o contexto histórico. Por exemplo, para Tylor (1976), Linton (1965), Boas (1964) e Malinowski (1962), cultura é o conjunto de ideias; já para outros pensadores como Kroeber e Kluckhohn (1952), Beals e Hoijer (1918), ela é abstração do comportamento; para Keesing e Strathern (2016), é comportamento aprendido. Leslie A. White e Beth Dillingham (2009), por sua vez, apresentam uma abordagem diferenciada: cultu- ra deve ser vista não como comportamento, mas em si mesma, fora do organismo social. White, Foster e outros entendem cultura como elementos materiais e não materiais. A definição de Geertz (2008), por sua vez, propõe a cultura como um “mecanismo de controle” do comportamento (MARCONI; PRESSOTTO, 2010). 12 Antropologia Cultural Há diversas concepções do termo cultura e todas a entendem como sendo uma construção do ser humano. O elemento funda- mental das preocupações, nesse caso, foi a constatação da variedade de modos de vida entre povos e nações. No fim do século XV e início do XVI, os europeus começaram a buscar novos mercados, ou seja, lugares onde pudessem explorar as riquezas naturais e levá-las con- sigo. Os portugueses conquistaram o Brasil e tiveram contato com os nativos, assim como os espanhóis com outras áreas da América. Os povos encontrados pelos europeus tinham hábitos, costumes e valores muito diferentes dos que eram aceitos na Europa, então era necessário conhecer as especificidades dessas culturas para explorar os nativos com mais facilidade. Cultura, portanto, é entendida como a variedade de modos de vida, crenças, hábitos, valores e práticas de diversos povos. Assim, o termo também equivale a modo de produção, já que significa o jeito de ser de uma determinada sociedade e o que ela produz. O ser humano é coletivo, precisa do grupo para dar início ao seu processo de humanização, e, por meio do trabalho e da sua capaci- dade de pensar, modifica a natureza para sanar suas necessidades. Além disso, cria códigos de comunicação que são utilizados pelo grupo ao qual pertence. A história nos mostra inúmeras culturas e modos de vida. Ao analisarmos, por exemplo, os rituais dos maias – civilização mesoamericana pré-colombiana que existiu por 3.000 anos –, po- demos perceber que havia entre eles o sacrifício humano. Os es- panhóis criticaram a crença desse povo com base na doutrina da Igreja católica e disseram que tinham por missão ensinar a religião “certa” para os “primitivos”. Para os espanhóis, esses rituais eram selvagens e demoníacos: Colombo age como se entre as duas ações se estabelecesse um certo equilíbrio: os espanhóis dão a religião e tomam o ouro. Porém, além de a troca ser bastante assimétrica, e não necessariamente interessante para a outra parte, as Introdução aos estudos antropológicos 13 implicações desses dois atos se opõem. Propagar a religião significa que os índios são considerados como iguais (dian- te de Deus). E se eles não quiserem entregar suas riquezas? Então será preciso subjugá-los, militar e politicamente, para poder tomá-las à força; em outras palavras, colocá-los, ago- ra do ponto de vista humano, numa posição de desigualda- de (de inferioridade). (TODOROV, 1999, p. 53) Assim, criticamos a cultura do outro com base na afirmação de ser a nossa cultura a correta. Por não querermos compreender o outro – visto como o “alien” (estranho) –, cometemos um precon- ceito, ou seja, julgamos antes de conhecermos algo ou alguém. Essa postura é muito perigosa, pois gera intolerância. Os maias faziam rituais em favor do grupo, ou seja, o sacrifício humano era uma entrega para o bem-estar coletivo, de acordo com as suas crenças. Os espanhóis supervalorizaram a cultura europeia e rejeitaram a dos indígenas. Isso resultou em assassinatos, exploração e crueldades cometidas contra os povos conquistados. Os espanhóis cometeram crueldades inauditas, cortando as mãos, os braços, as pernas, cortando os seios das mulheres, jogando-as em lagos profundos, e golpeando com estoque as crianças, porque não eram tão rápidas quanto as mães. E se os que traziam coleira em torno do pescoço ficassem doentes ou não caminhassem tão rapidamente quanto seus companheiros, cortavam-lhes a cabeça, para não terem de parar e soltá-los. (TODOROV, 1999, p. 169) Esses exemplos expõem o quão nocivo é pensar que a pró- pria cultura de vida (valores, crenças, ideologias e práticas) é única, correta, e que o outro sempre está errado. É o caso, por exemplo, quando nós, ocidentais, julgamos a cultura oriental, principalmente do árabe muçulmano. As mulheres ocidentais criticam a forma como as árabes muçulmanas se vestem – cobertas por uma burca, deixando, muitas vezes, só os olhos à vista. As mulheres árabes muçulmanas, por outro lado, criticam a postura das ocidentais, pois, segundo elas, essas preocupam-se em demasia com a estética e sofrem diante dessa busca desenfreada pelo corpo perfeito, por meio de diversas 14 Antropologia Cultural cirurgias, como lipoaspiração e inserção de próteses mamárias. Isso significa um choque cultural, mas não se pode fazer julgamentos por- que cada grupo social constrói seu jeito de viver de acordo com o que acha certo; assim, devemos apenas compreender as diversidades cul- turais e respeitá-las. Portanto, somente por intermédio da tolerância podemos construir um mundo melhor, no qual todos terão direito de expressar suas verdades. Atividades 1. Existem várias acepções para o termo cultura, conceito bási- co para a antropologia. Mas como podemos definir a antro- pologia cultural? 2. Explique este comentário: “uma aranha executa operações que se assemelham às ma- nipulações do tecelão, e a construção das colmeias pelas abelhas poderia envergonhar, por sua perfeição, a um mes- tre de obras. Mas há algo em que o pior mestre de obras é superior à melhor abelha, e é o fato de que, antes de executar a construção, ele a projeta em seu cérebro” (MARX, 1994, p. 202). 2 Principais acepções do termo cultura O conceito de cultura varia no tempo e no espaço. Muitos a consideram como ideias ou como a abstração do comportamento, até mesmo como comportamento a ser aprendido, ou que ela deve ser vista em si, fora do organismo humano. Outros inserem nesse conceito elementos materiais e não materiais. Essas definições di- vergentes permitem assimilar a cultura por meio de seus diversos nexos constitutivos: A cultura, portanto, pode ser analisada, ao mesmo tem- po, sob vários enfoques: ideias (conhecimento e filosofia); crenças (religiãoe superstição); valores (ideologia e moral); normas (costumes e leis); atitudes (preconceito e respeito ao próximo); padrões de conduta (monogamia, tabu); abstração do comportamento (símbolos e compromissos); instituições (família e sistemas econômicos); técnicas (artes e habilida- des) e artefatos (machado de pedra, telefone). (MARCONI; PRESSOTO, 2010, p. 24) Segundo Leslie A. White e Beth Dillingham (2009), cultura pode ser classificada em intraorgânica (conceitos, crenças, atitudes e emoções); interorgânica (interação social entre os seres humanos) e extraorgânica (objetos materiais, ou seja, localizada fora de orga- nismos humanos). Assim, para os antropólogos, cultura consiste em ideias (con- cepções mentais de coisas abstratas ou concretas (crenças religiosas, míticas e científicas); abstrações (aquilo que se encontra no campo das ideias, da mente – acontecimentos não observáveis, não concre- tos, não sensíveis) e comportamento (modo de viver comum de um determinado grupo humano). 16 Antropologia Cultural A cultura pode ser classificada em material e imaterial. A cultu- ra material é composta de coisas concretas, que foram criadas pelo ser humano com alguma finalidade. Fazem parte dela, por exemplo, vestuários, arcos e flechas, vasos, talheres, alimentos e habitações. Já os elementos não concretos da cultura, como valores, hábitos, crenças, potencialidades, normas e significados, constituem a cul- tura imaterial. A morte é um exemplo de cultura imaterial, pois é um mistério e um ponto de questionamento e inquietação na maioria das cren- ças e superstições. Ela é relatada como algo sobrenatural e temido, representando uma sentença eterna em algumas crenças. Os povos da Antiguidade, assim como os egípcios, acreditavam que, ao morrer, o indivíduo dormiria até o dia do julgamento final. Na mitologia egíp- cia, Anúbis, o deus mais popular e venerado quarenta e cinco séculos antes de Cristo, era filho de Osíris e de Néftis, sua irmã. Segundo a mitologia, Anúbis instituiu um culto aos mortos por meio de ritos fu- nerários e embalsamamento, pois o corpo deveria estar intacto para abrigar a alma, que retornaria no dia do julgamento decisivo. Anúbis estava presente em todas as celebrações funerárias e dirigia todos os detalhes das homenagens prestadas ao falecido. Todos os indivíduos, independentemente da riqueza que possuíam, tinham direito sagra- do a uma morada física, isto é, a um sepulcro, como uma pirâmide real, uma cova simples ou uma mastaba rica. Quem fosse contra essa regra seria amaldiçoado pelas mãos de Anúbis. O bem e o mal são forças antagônicas que decidem o destino das almas. Na mitologia egípcia, o julgamento das almas era feito por Osíris, pai de Anúbis. Ele possuía uma balança de ouro na qual eram pesadas as obras do réu. Vemos a relevância da morte em várias concepções de crenças. Passaram-se muitos séculos para que fosse estabelecida em Roma a religião cristã. Nela também existe um juiz e um guardião das almas. Diante de Deus, São Miguel Arcanjo apresenta as almas pesando mastaba: jazigo em formato de pirâmide ou quadrangular usado pelos egípcios na Antiguidade. Principais acepções do termo cultura 17 em sua balança os atos delas. Se as obras más pesarem mais que as boas, a alma padecerá no inferno, sofrendo eternamente os flagelos impostos pelo senhor do abismo negro – o demônio. Algumas crenças pregam que as almas voltam ao mundo físico, ou ficam vagando, para pagarem pelos males que fizeram. Existem várias concepções a esse respeito e as superstições que englobam o sobrena- tural são tantas que seria impossível relatá-las em sua totalidade. Em Mariana, cidade de Minas Gerais, por exemplo, o sobrenatu- ral faz parte do imaginário dos moradores. As superstições se pro- liferam, como sinal de proteção e aviso aos seres vivos. Entre elas, podemos citar: • Antes de colocar a feijoada no fogo à noite, é preciso adi- cionar sal, pois ele protege o caldeirão das almas que foram assassinadas com arma de fogo. Assim, elas não lavam suas enfermidades no caldeirão nem azedam toda a feijoada. • Para o pai e a mãe não falecerem, o filho não deve pentear os cabelos à noite. • Quando o espelho quebra sem nenhum motivo, uma pessoa da casa morrerá dentro de poucos dias. • Uma pessoa jamais deve olhar seu reflexo nas águas de um rio, pois o diabo vem, rouba sua alma e ela morrerá ali mesmo. • A criança que morre antes de ser amamentada é um serafim1. Entretanto, se ela tiver sido amamentada e depois falecer, comparecerá ao purgatório para vomitar o leite que tomou na Terra. • Quando entra besouro preto em casa, é sinal de morte em breve. 1 É comumente aceito como a primeira posição na hierarquia celestial dos anjos, ou seja, os que estão mais próximos de Deus. A palavra hebraica Saraf significa queimar ou incendiar, talvez uma alusão às tradições bíblicas em que Deus é comparado a um “fogo” ou mesmo “fogo consumidor”. A referência bíblica para serafim está em Isaías (BÍBLIA. Isaías, 2018, 6: 1-2). 18 Antropologia Cultural • Quando a coruja (matintapereira) canta, é sinal que morrerá alguém na mesma noite. • Deve-se lavar os sapatos ao chegar de um cemitério, pois, se levar a terra desse lugar nos sapatos, uma legião de almas irá buscar o descuidado. • Ao colocar na criança o mesmo nome do pai, um dos dois logo morrerá. • Se alguém for chamado pelo nome, fora de casa, sem saber por quem, não deve responder; pois a morte chama e leva quem lhe responde. • Quando morre uma pessoa, deve-se abrir todas as portas da casa para a alma sair. A casa não deve ser fechada antes do sé- timo dia, pois esse é o tempo para se arrebentar as vísceras do defunto. Depois disso, a alma sai de dentro da casa e vai para a morada dos mortos. • Quando uma procissão para em frente a uma casa, é sinal que ali morrerá uma pessoa em breve. • Quando uma pessoa sente um tremor ou um calafrio, é sinal que a morte está ao lado e quer levar a alma para o além. • Quando uma pessoa cobrir o corpo do defunto com terra, tem de pedir a ele que lhe arranje um bom lugar no além. Se ele for para um bom lugar, estará bem quem pede; se for para um mal lugar, azarado é quem pediu. • Quem amanhece com a boca salivosa e amarga é porque co- meu o mingau das almas. • O fantasma se tornará cada vez mais visível para quem tem medo. • As almas de tradição antiga nunca aparecem para a pessoa nua, pois exigem respeito e compostura. • O espelho não reflete a imagem do corpo, mas da alma, que se torna visível. Principais acepções do termo cultura 19 • O diabo fica atrás do espelho. Por isso, não se deve olhá-lo nas horas abertas, ou seja, meio-dia, seis da tarde e meia-noite. Se o indivíduo for descuidado, poderá ter sua alma roubada. Essas são algumas das diversas superstições narradas pelos moradores de Mariana. Esses mineiros têm um profundo respeito em relação à morte. Todos participam dos velórios que ocorrem na cida- de, mesmo se o falecido era apenas conhecido. Uma tradição é que em todos os velórios deve ser servido às pessoas pão com salame e café. Servir refeições nessas ocasiões é uma tradição em Roma, na Grécia e no Egito. Foram os colonizadores portugueses que trouxe- ram esse costume para o Brasil, e poucas regiões ainda conservam-no. Sendo superstições, costumes, tradições e comportamentos con- dicionados pelas crenças, percebemos a relevância da observação dessas práticas a fim de se conhecer as peculiari dades das sociedades. Vamos agora definir alguns conceitos importantes para a antro- pologia cultural. Cultura real (ação e pensamento) A cultura real só pode ser percebida parcialmente. Ela representa o que todos os membros de uma sociedade praticam ou pensam nas suas tarefas cotidianas. A cultura real é subjetiva, por esse motivo os estudiosos não podem ter uma única visão da realidade, pois ela é apresentada de diversas maneiras e varia de acordo com o ponto de vista de cada indivíduo. Culturaideal (filosofia correta em termos teóricos) Representa um conjunto de comportamentos propagados como corretos, perfeitos; no entanto, não são seguidos por todos do grupo social. Endoculturação É a aprendizagem e estabilidade de uma cultura, ou seja, cada indivíduo recebe da sociedade a que pertence as crenças, os modos 20 Antropologia Cultural de vida, o comportamento, os hábitos e valores, o que a permite controlar os atos e as atitudes de seus membros. Aculturação É a fusão de duas culturas diferentes, ou seja, de dois gru- pos que entraram em contato. Quando acontece continuamente, engendra alterações nos padrões de cultura de ambos os grupos. Paulatinamente, essas culturas fundem-se e formam uma sociedade e culturas novas. Subcultura É um meio peculiar de vida de um grupo menor dentro de uma sociedade maior. Por exemplo: a cultura do Nordeste brasileiro; o vodu na Jamaica; os punks e os pertencentes ao emocore. Sincretismo cultural É a fusão de dois elementos culturais análogos (práticas e cren- ças), de culturas diferentes ou não. Por exemplo: a cultura africana que entra em contato com a cristã. Raça A palavra raça foi introduzida há aproximadamente 200 anos nos estudos científicos. No entanto, pouco se sabe sobre a sua ori- gem. Etimologicamente, vem de radix, palavra latina que significa raiz ou tronco. Em vários estudos o termo tem sido empregado para fazer referência a indivíduos que são identificados como pertencen- tes a um determinado grupo e que têm a mesma linhagem ancestral e os mesmos hábitos, ideais, crenças, costumes e tradições. Entretanto, essa palavra tem uma conotação muito mais ampla. Cientificamente, ela significa o que é único biologicamente. Por isso, não existem subdivisões raciais quando falamos em seres humanos, pois, nesse caso, só existe uma raça que nos distingue dos outros animais, ou seja, a raça humana. Principais acepções do termo cultura 21 Etnia A palavra etnia denota um grupo de seres humanos unidos por um fator comum (língua, religião, costumes, valores ou nacionali- dade) e com afinidades culturais e históricas. A ideia de etnia diz respeito ao sentimento de pertença, isto é, a sentir-se pertencente a uma cultura. É um dos conceitos mais importantes para se entender o mundo atual – marcado por diferenças culturais e conflitos gera- dos pela intolerância em relação à diversidade. Relativismo cultural Aponta as particularidades de cada modo de vida. Os indivíduos têm modos de vida específicos adquiridos pela endoculturação. Assim, possuem suas próprias ideologias e costumes. Toda a cultura é considerada como configuração saudável para os indivíduos que a praticam. Todos os povos formu- lam juízos em relação aos modos de vida diferentes dos seus. Por isso, o relativismo cultural não concorda com a ideia de normas e valores absolutos e defende o pressuposto de que as avaliações devem ser sempre relativas à própria cultura onde surgem. (MARCONI; PRESSOTO, 2010, p. 31) A figa, por exemplo, é utilizada por algumas pessoas como um amuleto da sorte. No entanto, para os antigos romanos, ela signifi- cava uma relação sexual. Etnocentrismo É a supervalorização da própria cultura em detrimento das de- mais. O etnocentrismo ainda causa muita intolerância, preconceito e discriminação. Quando julgamos a cultura do outro, entendemos que a nossa se sobressai à dele, sendo que este precisa modificar- -se e seguir os nossos “ideais perfeitos”. O nazismo é um exemplo de etnocentrismo: alguns alemães supervalorizaram o conceito de cultura, afirmando pertencerem a uma “raça pura”. Diante disso, praticaram atrocidades contra aqueles que não faziam parte do 22 Antropologia Cultural mesmo modelo. Inúmeras pessoas, como os judeus, foram assas- sinadas em campos de concentração durante a Segunda Guerra Mundial, vítimas dessa intolerância. Atividades 1. A antropologia cultural opera com várias definições de cultu- ra, todas válidas e complementares. Qual o significado desse termo para Leslie A. White e Beth Dillingham? 2. O que é subcultura? Dê exemplos. 3 Mito: elemento da cultura A humanidade, desde sua origem, tenta explicar situações que ocorrem ao seu redor. Esta é a obsessão dos seres humanos: saber o fundamento da sua existência, como a criação do mundo, a vida e a morte – questões não muito fáceis de serem respondidas. De certo modo, porém, o ser humano inventa maneiras de esclarecer fatos abstratos a fim de ajudar o seu grupo social e fazer com que seus membros aceitem situações ainda sem respostas. Ele utiliza, para tanto, lendas, mitos e contos – que visam a explicar de maneira “mágica” um fato. O mito revela a busca humana de um autoconhecimento, possibilitado por meio da capacidade de se criar e cultivar o que há de comum no seio da humanidade; esse tipo de narrativa não explica fatos de modo analítico e racional, mas visa a entender o sentido genuíno da existência. Em diversos mitos encontram-se feitos heroicos, milagres, castigos, amores e lutas, nos quais são narradas experiências de vida de determinada sociedade, em um recorte temporal específico. Há um acervo de mitologias que implicam no social, criando pa- drões de comportamento da sociedade. Podemos citar, como exem- plo, a mitologia grega, uma das mais afamadas. Ela apresenta deuses poderosos, porém envoltos em imperfeições humanas. Os poetas, ao escreverem os mitos gregos, expuseram que até mesmo os seres aparentemente perfeitos têm limites e desejos como os humanos. Esses mitos são muito aceitos, inclusive na atualidade, pois descrevem essas imperfeições. Falar de seres especiais, mas imper- feitos ressalta a ideia de que falhar é próprio dos “racionalmente 24 Antropologia Cultural pensantes”. Notar isso faz a humanidade sentir-se menos culpada de seus “terríveis” pecados. Todo mito vem carregado de uma essência real de certo grupo. Ao entender sua função principal, podemos partir para os saberes que o invocam, ou seja, crenças, danças e tradições. Enfim, o folclore de determinado grupo social. 3.1 Folclore A palavra folclore foi usada pela primeira vez pelo arqueólogo inglês William John Thoms (1803-1885). Ele solicitou apoio à re- vista The Athenaeun para auxiliá-lo em pesquisas a fim de conhe- cer costumes, crenças e hábitos das diversas regiões da Inglaterra. Sua carta com esse pedido foi publicada em 22 de agosto de 1846, por isso o Dia do Folclore é comemorado nessa data. O termo vem de folk-lore – literalmente povo-conhecimento. Thoms sugeriu essa denominação substituindo as expressões usadas por alguns eru- ditos da época, como antiguidades populares e literatura popular. Atualmente, considera-se relevante o registro de crenças, costumes, hábitos, cerimônias, músicas e superstições não como “antiguidades do povo” (expressão que veicula uma ideia de primitivismo), mas como conhecimentos adquiridos por um grupo social, ou seja, é a sabedoria do povo desprendida de qualquer intenção erudita1. O folclore é o conjunto de mitos, ritos, crenças religiosas, dan- ças, linguagem, música e artesanato, portanto vai muito além da ideia de tradição popular; está associado à vida do povo, à sua dis- posição de criar e recriar algo. Não se refere somente às celebrações populares, mas é o lastro da vida cotidiana de um grupo. É uma criação subjetiva, entretanto sua reprodução tende a ser coletiviza- da. Ele perdura de uma geração para a outra e é reconhecido como 1 As influências e o significado do folclore são abordados nas obras de Almeida (1974), Brandão (1982), Christensen (1934), Fernandes (1989) e Della Mônica (1982). Mito: elemento da cultura 25 tradição, e não modismo. É uma identidade do modo de vida de uma classe produtora da própria cultura. O folclore tem sua representação nas tradições e crenças po- pulares de diversas maneiras. Denomina algo que tenha origem anônima e sem cronologia, sendo divulgado e praticado por muitas pessoas ao longo do tempo, como é o caso dosprovérbios. O Brasil é o berço de um riquíssimo acervo folclórico personifi- cado em crenças, culinária, linguagem, danças e diferenças regionais. Ele é composto de distintas etnias que foram protagonistas da nossa formação: o negro, os ameríndios e o branco europeu. Cada um des- ses grupos carregava diferentes crenças, saberes, tradições, religiões e costumes. Diante desse amálgama de culturas, surge o saber do povo brasileiro. O estudo das diferentes culturas é relevante, pois possibili- ta conhecer as práticas e os costumes específicos da sociedade. Nesse ponto, é importante trazer para a discussão outra área do conhecimento que de alguma forma também tem o ser humano como objeto de estudo. Trata-se da psicologia social, uma ramifi- cação da psicologia que estuda a influência do ambiente social no comportamento dos indivíduos. O ser humano sofre influências dos estímulos sociais e essa área de estudo analisa como grupos sociais, instituições e cultura afetam o comportamento do indivíduo. As crenças influenciam significativamente no comportamento humano. As pessoas inscritas em um grupo social conservam cren- ças semelhantes, relacionando-se e agindo socialmente, trabalhando coletivamente em favor de intenções conectadas a essas crenças. O indivíduo, para ser aceito em um grupo, tende a ser acrítico, isto é, não analisar os fatos racionalmente e legitimar situações, mesmo que sejam irracionais. Se, por acaso, um indivíduo não compartilhar crenças semelhantes às do grupo em que está inserido, os membros integrantes se unirão para persuadi-lo a mudar de opinião e ajustar-se ao coletivo. 26 Antropologia Cultural As pessoas são submetidas às opiniões coletivizadas, dessa forma evitam ser tratadas com desprezo por serem exceção. Chegam ao ponto de praticar persuasão subjetiva para se convencerem de ter visto o que o restante do grupo aparentemente vê. Para esse tipo de persuasão, dá-se o nome de sugestão, ou seja, a influência exercida sobre uma pessoa a fim de ela aceitar uma ideologia, crença e ati- tudes comuns. Entretanto, o indivíduo adota uma crença vigente, contribuindo por meio de métodos carregados de emoção. A crença em superstições também traz influências em ações e no modo de vida das pessoas. Fazer um gesto, usar um objeto para a rea- lização de um desejo, ou até mesmo para evitar desgraças, são situa- ções comuns para qualquer supersticioso. Ao observar essas práticas supersticiosas, conclui-se que não há fundamento científico, pois o uso de um objeto não trará mais ou menos sorte para alguém. Essas superstições, porém, podem trazer resultados positivos. Pessoas inse- guras, por exemplo, ao realizarem uma entrevista de emprego, podem ficar muito nervosas e acabar tendo um desempenho ruim. No entan- to, ao acreditarem no poder do objeto que levam consigo, como uma figa ou um dente de alho, elas sentem-se protegidas e mais seguras. Por isso, não é o pseudopoder do objeto que lhes atribui confiança; essas pessoas inconscientemente trabalham a mente e convencem o psicológico de não haver mais o temor. A falsa confiança, consciente- mente, encontra-se no objeto, mas, na verdade, ela sempre esteve na mente do indivíduo. Conclui-se, então, que as crenças condicionam ações concre- tas que afetam diretamente o modo de vida das pessoas. Assim, as crenças de um determinado grupo social pertencem à cultura Mito: elemento da cultura 27 imaterial e revelam traços psicológicos, históricos e culturais de uma sociedade. Atividades 1. Em diferentes culturas existem mitos que se diferenciam entre si, mas mantêm aspectos em comum. Por que é importante o estudo dos mitos? 2. O folclore é uma criação subjetiva e sua reprodução tende a ser coletivizada. Ele se mantém e é transmitido de uma gera- ção a outra; portanto, também é reconhecido como tradição, e não modismo. Explique o que é folclore. 4 A conquista da América e a questão do outro Tzvetan Todorov (1939-2017), filósofo e linguista búlgaro ra- dicado na França, fez um estudo sobre a conquista da América do ponto de vista do dominado (indígena). O estudo trata da conquista da América no século XVI, ou seja, cem anos após a primeira via- gem de Colombo. Delimita também um local – a região do Caribe e do México (Mesoamérica). A pesquisa explica o confronto de cul- turas entre indígenas e espanhóis. Naquela época, muitas eram as crenças concernentes aos mistérios infindos do mar. No entanto, Colombo lançou-se com o intuito de “descobrir” novas terras e, as- sim, “encontrar ouro para a realeza”. O navegador usou desse álibi para conseguir patrocínio para a viagem, haja vista que seu plano seria impossível sem esses grandes investimentos. A nobreza, no entanto, não investiria em algo que não lhe trou- xesse lucro. A persuasão de Colombo soava bem aos ouvidos da nobreza, suscitando um enaltecimento ambicioso. Dessa maneira, o navegador conseguiu o investimento que esperava para ir à pro- cura de novas terras. Durante as viagens, ele escreveu aos nobres dando a entender que estava muito próximo da descoberta de rique- zas. Esses manuscritos eram dissimulados, pois não reproduziam a verdadeira situação. Enquanto Colombo escrevia dando esperanças à nobreza, ela continuava investindo na aventura. O termo aventura é usado porque, segundo Todorov (1999), para Colombo não era o ouro o importante, e sim a capacidade de conhecer situações da nature- za que poderiam ser instigantes. Acima desse espírito aventureiro, 30 Antropologia Cultural Colombo intitulava-se como um enviado de Deus, portanto a sua suposta missão era propagar a religião católica ao mundo todo. A expansão do cristianismo é muito mais importante para Colombo do que o ouro, e ele se explicou sobre isso, prin- cipalmente numa carta destinada ao papa [...] Portanto, seu objetivo é: “Espero em Nosso Senhor poder propagar seu santo nome e seu evangelho no Universo” (“Carta ao Papa Alexandre VI”, fevereiro de 1502). (TODOROV, 1999, p. 11) O objetivo religioso de Colombo era fazer uma Cruzada1, para que assim pudesse levar o cristianismo ao mundo todo e acabar com as heresias2. A ideia de implementar uma Cruzada já era obsoleta, mas ele a tinha como missão. No entanto, algo mais começava a chamar sua atenção: para ele, na natureza poderiam existir seres diferentes, como ciclopes, homens com cauda e focinho de cachorro. Os escritos de Colombo revelam: ele era mais paciente quando ob- servava a natureza, diferentemente de quando tentava compreender os indígenas. Os manuscritos descrevem minuciosamente tudo o que havia na terra “descoberta”. Mosén Jaume Ferrer, um dos correspondentes de Colombo, es- creveu em 1495 que as regiões muito quentes, com habitantes negros e onde havia muitos papagaios, eram locais de riquezas inexauríveis. Essas terras já tinham nomes naturais, no entanto os conquistadores não se importavam e faziam questão de nomeá-las novamente. Isso também era uma forma de se apossar desses locais. Até os indígenas eram renomeados por Colombo. A primeira atitude, quando entrou em contato com as terras “descobertas”, foi declarar que elas passa- riam a fazer parte do reino da Espanha. 1 As Cruzadas foram expedições organizadas por reis e militares cristãos que pre- tendiam retomar a chamada terra santa – Jerusalém –, ocupada pelos árabes muçul- manos no século XI. 2 Heresia é uma doutrina que se opõe aos dogmas do catolicismo e foi criada durante a Idade Média, quando a Igreja católica começou a sentir-se ameaçada por pessoas que criticavam seus ensinamentos. A conquista da América e a questão do outro 31 Colombo não aceitava a cultura dos povos autóctones, por esse motivo não considerava hábitos, costumes, crenças e língua dos indí- genas. O desprezo era exacerbado, por isso não procurava compreen- dê-los. Podemos perceber que os manuscritos de Colombo falam dos indígenas porque simplesmente faziam parte da paisagem. Suas menções sobre eles aparecem sempre no meio de anotaçõessobre a natureza. A imagem dos indígenas era basicamente física, Colombo descrevia seus belos corpos e rostos. Os indígenas e os espanhóis não se comunicavam verbalmente, porém trocavam objetos entre si. Colombo se divertia com esta si- tuação: os indígenas davam tudo por nada. Isso porque os espanhóis só lhes concediam bugigangas sem valor algum. O sentimento de superioridade fez com que Colombo proibisse essas trocas. No entanto, ele mesmo continuou oferecendo “presentes” para os indígenas e os ensinou a apreciá-los e exigirem sempre mais. Os costumes eram distintos: os indígenas viviam em comunida- de – tudo era de todos – e os espanhóis, por sua vez, vinham de uma sociedade individualista, calcada na acumulação de riquezas. Logo, essas diferenças causaram embates. Para os espanhóis, a conquista da América justificou-se pelos cristãos que vieram para o “Novo Mundo” imbuídos da religião, levando em troca ouro e riquezas. Colombo agiu como se entre as duas ações se estabelecesse um certo equilíbrio: os espanhóis dão a religião e tomam o ouro. Se os indígenas se recusassem a entregá-lo, seriam subjugados militar e politicamente. Essa relação não era nem um pouco equilibrada, mas precursora de grande desigualdade. Encontra-se aí o germe da ideo- logia escravagista. Os primeiros contatos já revelavam o interesse dos espanhóis em escravizar nativos das “terras descobertas”, pois julga- vam serem eles inferiores. Para Colombo, fé e escravidão estavam intrinsecamente ligadas. 32 Antropologia Cultural A história da conquista da América foi marcada pela recusa da alteridade humana. Colombo e seus homens não reconheceram a identidade indígena e se opuseram a tudo o que não pertencesse à cultura espanhola. 4.1 A conquista da Cidade do México Colombo abriu caminhos para outras expedições. A conquista da cidade do México, feita por Hernán Cortez (1485-1547) e sua tripulação, revela ainda mais a intolerância dos espanhóis. A expedição de Cortez em 1519 foi a terceira que chegou à costa mexicana, sendo composta de algumas centenas de homens. Cortez se submeteu à Coroa espanhola e foi em nome do rei da Espanha que decidiu explorar a Cidade do México. Após algum tempo estabele- cido na cidade dos astecas (os mexicas), para consolidar seu poder sobre eles, Cortez prendeu o soberano daquele povo – Montezuma. Começou, então, a dominação pelos meios mais torpes. Montezuma morreu provavelmente apunhalado por seus carcerei- ros espanhóis. Os sucessores do líder asteca travaram uma batalha feroz contra os espanhóis. Mas como os espanhóis, sendo tão poucos, conseguiram do- minar uma população tão numerosa? Cortez usou-se de todos os artifícios para conseguir a vitória. Primeiramente, ele percebeu o descontentamento de muitos povos conquistados pelos astecas que deveriam pagar impostos a eles. Dessa maneira, fomentou lutas in- ternas entre facções rivais e conseguiu o apoio de muitos indígenas, que foram lutar ao lado dos espanhóis contra os mexicas. Os espanhóis dominaram os mexicas e impuseram suas nor- mas. Queimaram livros para apagar a religião estabelecida e des- truíram monumentos. Cortez e seus homens foram incapazes de perceber a importância e riqueza da cultura asteca. Os mexicas foram pressionados para aceitarem a religião e os hábitos europeus tidos como “civilizados”. A conquista da América e a questão do outro 33 Outro fator significativo para a dominação dos astecas foi a uti- lização de armas de fogo, até então desconhecidas pelos indígenas. Além disso, os espanhóis trouxeram consigo uma arma muito mais devastadora: a bacteriológica. A varíola, por exemplo, matou milha- res de indígenas. Além desses fatores que propiciaram a vitória dos espanhóis, há outro muito valioso e eficaz: decodificar a cultura asteca para dominá-la e destruí-la. 4.2 A comunicação como arma do dominador Os indígenas e os espanhóis não falavam a mesma língua. Cortez se preocupava em interpretar o que diziam e faziam em relação aos rituais para que assim pudesse ter domínio maior sobre eles. Os mexicas buscavam a todo momento interpretar as diversas mensagens para obterem respostas, sejam elas do presente ou do futuro. As adivinhações eram praticadas pelos sacerdotes, que eram muito respeitados. Os astecas dispõem de um calendário religioso composto de treze meses com duração de vinte dias, cada um desses dias possui um caráter próprio, propício ou nefasto, que é transmi- tido aos atos realizados nesse dia e, principalmente, às pessoas que nele nasceram. Saber a data do nascimento de alguém é conhecer o seu destino; por isso, assim que nasce uma criança, procura-se o intérprete profissional, que é, ao mesmo tempo, o sacerdote da comunidade. (TODOROV, 1999, p. 76) Dessa maneira, entende-se claramente que os mexicas preserva- vam sua religião e ritos quase inexauríveis. Os sacerdotes decidiam, por meio dos rituais de adivinhação, a sorte do indivíduo. Entretanto, isso não era algo subjetivo, mas sim conectado com toda a coletividade. As obrigações com o gru- po eram mais importantes que a relação entre familiares. Por isso, quando alguém era entregue para ser sacrificado, isso era feito para o bem-estar de todos. 34 Antropologia Cultural Na sociedade asteca, existiam distinções hierárquicas. Montezuma I codificou as leis de sua sociedade já no século XVI e a mais importante delas era a distinção hierárquica feita por vestes e adornos. Todorov (1999) explica: É bastante impressionante ver que quando, no meio do sécu- lo XV, Montezuma I, após ter ganho muitas batalhas, decide codificar as leis de sua sociedade, formula catorze prescri- ções, das quais somente as duas últimas lembram nossas leis (punição do adultério e do roubo), ao passo que dez regula- mentam algo que, a nosso ver, não passa de etiqueta (voltarei às duas outras leis): as insígnias, as roupas, os adornos que al- guém tem ou não o direito de usar, o tipo de casa apropriado para cada camada da população. (TODOROV, 1999, p. 81) Percebe-se que os símbolos eram importantes para Montezuma e, consequentemente, para todos os mexicas. Ele colhia todas as informações necessárias para manter a paz na Cidade do México. Seus informantes lhe relatavam todos os atos dos povos inimigos. No entanto, quando os espanhóis invadiram a região, os informan- tes ficaram atônitos, pois o comportamento dos conquistadores era muito imprevisível, chegando a abalar todo o sistema de co- municação. Em consequência disso, os astecas não conseguiram decodificar essas informações para Montezuma. Os mexicas admiravam a arte do bem-falar, por isso no Estado asteca existiam duas espécies de escola: uma onde se preparavam para o ofício de guerreiros e outra de onde saíam os sacerdotes, os juízes e os dignatários reais que ensinavam aos meninos a retórica. A associação entre o poder e o domínio da língua é claramente mar- cada entre os astecas. A fala privilegiada por eles era a fala ritual. A ausência da escrita é um elemento importante que explica a importância da fala para os mexicas. Os desenhos estilizados e os pictogramas usados pelos astecas não são um grau inferior da escri- ta, pois registram a experiência, e não a linguagem. Os rituais dos astecas ajudaram os espanhóis a identificar a hie- rarquização dessa sociedade e como ela se organizava. Os adornos A conquista da América e a questão do outro 35 e as vestes que usavam para diferenciar as castas de cada indiví- duo orientaram Cortez, que facilmente distinguiu os chefes e guer- reiros, capturando e matando-os para poder dominar sua terra. Portanto, havia uma diferença muito significativa entre a comuni- cação dos espanhóis e a dos astecas, e isso, de certa forma, benefi- ciou os colonizadores. Atividades 1. O contato entre os espanhóis e os povos nativos das Améri- cas foi marcado por muitas dificuldades e conflitos. Os espa- nhóis foram etnocentristas? Por quê? 2. Quais foram os artifícios utilizados por Cortez para dominar osastecas? 3. Explique, de acordo com as informações que você já possui sobre a sociedade asteca, a afirmação: “os mexicas admira- vam a arte do bem-falar”. 5 A conquista da América e as formas de dominação espanhola 5.1 Os espanhóis e os signos Ao conquistarem a Cidade do México, os espanhóis buscaram dominar mais facilmente os astecas. Eles não se importavam com a cultura desse povo, pois afirmavam que ele era selvagem e sem cul- tura. Para o colonizador Hernán Cortez, importava coletar a maior quantidade possível de ouro. Cortez, para conseguir mais ouro, procurava entender os rituais astecas para dominá-los facilmente. Sua expedição começou com a busca de informações. Para isso, necessitou da ajuda de um espanhol que vivia junto com os indígenas, Jerônimo de Aguilar (1489-1531). Ele já havia participado de expedições anteriores à de Cortez e, além da língua espanhola, falava a língua dos maias. A segunda personagem, essencial para que Cortez pudesse co- letar o maior número de informações possível sobre os astecas, foi Malinche (1496-1529) – mulher asteca que tinha sido vendida para os maias. Cortez falava para Aguilar, que traduzia para Malinche, que, por sua vez, dirigia-se para o interlocutor asteca. Malinche aos poucos aprendeu a língua espanhola e ajudou Cortez, ensinando-o tudo sobre seu povo, o que facilitou a conquis- ta. Foi definitivamente graças ao domínio dos signos astecas que Cortez garantiu seu controle sobre essa antiga confederação. A compreensão da cultura asteca não fez com que Cortez simpa- tizasse com ela; pelo contrário, suscitou um desejo de aniquilação. Para ele, os indígenas não tinham direito a nada, e a escravidão era 38 Antropologia Cultural vista como forma de obter grandes lucros. Como os indígenas eram considerados mercadorias, e não sujeitos, deveriam submeter-se espontaneamente ou por meio de força. Assim, muitos nativos fo- ram exterminados de maneiras macabras; por isso, hoje podemos afirmar: houve um genocídio. As causas da diminuição da popula- ção indígena, segundo Tzvetan Todorov (1999, p. 159), são três: 1. Por assassinato direto, durante as guerras ou fora delas: número elevado, mas relativamente pequeno; responsa- bilidade direta. 2. Devido a maus-tratos: número mais elevado; responsa- bilidade (ligeiramente) menos direta. 3. Por doença pelo “choque microbiano”: a maior par- te da população; responsabilidade difusa e indireta. (TODOROV, 1999, p. 159) Os espanhóis submetiam os indígenas aos mais tortuosos mé- todos. Cortavam-lhes as mãos, as pernas, os braços e os seios das mulheres. Eram mutilados e friamente assassinados, para que ficas- sem com medo e levassem os espanhóis até o suposto esconderijo dos tesouros, ou seja, o lugar onde se guardava o ouro e as pedras preciosas. Todorov (1999, p. 170) elucida: “é tudo como se os espa- nhóis encontrassem um prazer intrínseco na crueldade, no fato de exercer poder sobre os outros, na demonstração de sua capacidade de dar a morte”. Para os espanhóis, os indígenas eram inferiores e estavam a meio caminho entre os seres humanos e os animais. Isso justifica a sub- missão que deveriam mostrar diante dos “civilizados”. Se os povos nativos recusassem conceder seus territórios, estariam desobede- cendo a “lei” da Igreja católica, que tinha como objetivo catequizar e destruir o “pagão”, por isso esses povos eram dignos da escravidão. Os indígenas eram vistos como animais selvagens, seres animados, porém sem alma. Essa foi a mesma justificativa usada pelos euro- peus quando escravizaram os povos africanos. A conquista da América e as formas de dominação espanhola 39 5.2 A escravidão gerada pelo colonialismo Os espanhóis sentiam-se superiores também por serem cristãos e terem os sacramentos da Igreja. Eles se autorreconheciam como instrumentos para a salvação dos indígenas por livrá-los da “barbá- rie” e das “heresias”. Frei Bartolomeu de las Casas nasceu em Sevilha, em 1474, e foi um frade dominicano, cronista, teólogo, bispo de Chiapas (no México) e considerado o primeiro sacerdote ordenado na América. Ele “defendeu” os indígenas em nome do cristianismo. No entanto, a libertação dos indígenas não foi cogitada, pois adotava-se a seguin- te teoria: eles não precisavam ser bons cristãos, mas deveriam agir como se fossem, porque ser cristão era sinônimo de ser “civilizado”. Os espanhóis queriam transformar os mexicas tomando como base os moldes europeus. No entanto, nunca perguntaram a esses povos se eles queriam seus modelos, simplesmente os impuseram. Nisso reside a violência cultural. 5.3 O indígena como o “alien” (estranho) para os espanhóis O “descobrir” está relacionado a terras, e não aos homens que nela habitam. Isso explica a razão pela qual os espanhóis não bus- cavam depreender os costumes e as crenças dos nativos; pelo con- trário, os mexicas tinham de compreender a cultura europeia, pois ela era superior. A prova de inferioridade desses povos, de acordo com os espanhóis, eram os sacrifícios executados em alguns rituais astecas. Para os colonizadores, a crença dos indígenas era um culto ao demônio, ou seja, o inimigo de Deus na religião cristã católica. Dessa maneira, os espanhóis incorporaram o papel de “guerreiros” em defesa da fé cristã contra as “heresias” do mundo. Os conquistadores não viam os nativos como realmente eram, mas como eles queriam que fossem, ou seja, seres prontos para 40 Antropologia Cultural abraçar religião, hábitos e costumes europeus. Os espanhóis, padres ou não, nunca quiseram entender os indígenas. O mais importan- te era encontrar riquezas e usar o povo como mercadoria escrava. Assim, poderiam ascender na sociedade europeia. Alguns espanhóis escreveram livros para criticar e abominar as práticas dos mexicas. A intolerância era a base da relação entre esses dois povos, pois os conquistadores não tinham interesse em saber mais a respeito da cultura asteca. 5.4 Diego Durán e a cultura asteca Diego Durán (c. 1537-1588) nasceu na Espanha, mas, diferen- temente de muitos outros personagens marcantes dessa época, foi viver no México quando tinha aproximadamente seis anos de idade. A experiência dele resultou em uma compreensão interna da cultura indígena no século XVI. Durán publicou a Historia de las Indias de Nueva España y Islas de Tierra Firme, também conhecida como Códice de Durán. Essa obra foi redigida entre 1576 e 1581. Como dominicano, Durán viu na convivência e intimidade com a cultura indígena o ponto vital para o cumprimento de seu objetivo, ou seja, propagar a religião cristã. Para conseguir isso, perscrutou minuciosamente as práticas “pagãs” dos astecas, a fim de questio- ná-las e destruí-las. Para Todorov, o que mais irritava Durán era o sincretismo incorporado na religião cristã pelos indígenas. O que mais irrita Durán é que os índios consigam inserir segmentos de sua antiga religião no seio das práticas religio- sas cristãs. O sincretismo é um sacrilégio, e é a este combate específico que se atém a obra de Durán [...]. Durán chega a se perguntar se os que vão à missa na catedral da Cidade do México não o fazem, na verdade, para poder adorar os antigos deuses, já que suas representações na pedra foram usadas para construir o templo cristão: as colunas da cate- dral, nessa época, repousam sobre serpentes emplumadas! (TODOROV, 1999, p. 248-249) A conquista da América e as formas de dominação espanhola 41 Durán abominava o sincretismo religioso, entretanto via seme- lhanças entre a religião cristã e as crenças dos astecas. Segundo ele, hipoteticamente, os indígenas já haviam tido contato com outros pre- gadores cristãos antes dele, ou o demônio os havia persuadido para executarem os ritos católicos em sua honra. Ele não suportava essa dúvida e, em seu livro, aponta que os astecas eram uma das tribos perdidas de Israel. Ao escrever a história do povo asteca, incorporou valores pessoais e relatou os fatos de acordo sua percepção do que deveria serregistrado. A obra, portanto, precisa ser criticamente ana- lisada, pois não representa os valores do povo asteca. 5.5 Bernardino de Sahagún Bernardino de Sahagún (1500-1590) nasceu na Espanha. Quando adolescente, estudou na Universidade de Salamanca e de- pois ingressou na Ordem dos Franciscanos. Em 1529, chegou ao México, onde permaneceu até sua morte. Sahagún aprendeu a lín- gua nahuatl e tornou-se professor de gramática latina no Colégio de Tlatelolco desde a sua fundação, em 1536. Para facilitar a expansão do cristianismo, Sahagún propôs-se a descrever em detalhes a antiga religião dos mexicanos. Ao escre- ver sua obra, desejava preservar a cultura nahuatl. Ele optou pela fidelidade integral, pois reproduziu os discursos que ouviu e acres- centou sua tradução, em vez de substituí-los por ela. Entretanto, Sahagún intervinha com seus valores nos textos do livro, “corrigia” os costumes astecas dizendo serem eles “pagãos” e condenáveis aos olhos de Deus. Sobre a obra de Bernardino de Sahagún, Todorov reconhece: a partir dos discursos dos astecas, Sahagún produziu um livro; ora, o livro é, nesse contexto, uma categoria europeia. E, no entanto, o objetivo inicial é invertido: Sahagún tinha partido da ideia de utilizar o saber dos índios para contri- buir na propagação da cultura dos europeus; e acabou por colocar seu próprio saber a serviço da preservação da cultu- ra indígena. (TODOROV, 1999, p. 288) 42 Antropologia Cultural 5.6 Onde estava o povo civilizado? Todorov (1999) expõe com clareza tanto os prismas europeus quanto as concepções indígenas no processo de conquista espanhola do território americano. O autor demonstra como o etnocentrismo (supervalorização de uma cultura em detrimento da outra) era regra para os europeus e resultou na destruição de muitas culturas locais. Infelizmente, os eurocentristas1 ainda não são capazes de perceber a cultura do restante do mundo, onde se constituíram povos distintos e com diversas especificidades. Atividades 1. Cortez, para conseguir mais ouro, procurava entender os ri- tuais astecas para dominá-los mais facilmente. A expedição teve início com a busca de informações. Explique como ele as conseguiu. 2. Sobre a conquista da América pelos espanhóis, explique a expressão “o tomar leva a destruir” em relação à coloniza- ção asteca. 3. Diego Durán e Bernardino de Sahagún não escreveram obras que expressavam a cultura asteca. Por quê? 1 Aqueles que valorizam a cultura europeia em detrimento das outras culturas. 6 Conquista do Brasil: historiografia e educação 6.1 O conflito entre indígenas e portugueses O povo tupi não teve tempo para criar uma confederação como os astecas nem um império como os incas. Isso porque houve a con- quista da “Ilha Brasil” pelos europeus. Os portugueses chegaram em 1500 e esse fato mudou profundamente a realidade dessas várias tribos indígenas. O conflito entre indígenas e portugueses se deu em vários cam- pos, principalmente no biótico, ecológico e econômico-social. No campo biótico, os portugueses trouxeram várias patologias desco- nhecidas pelos indígenas, como o sarampo, o escorbuto, a gripe e a varíola. Elas causaram grandes epidemias e chegaram a devastar tribos inteiras. Quando notaram a facilidade que os nativos ti- nham para contrair essas doenças, os portugueses começaram a provocá-las, deixando uma peça de roupa de alguém que estava com sarampo, por exemplo, próxima à aldeia; dessa forma, alguém a encontrava e a vestia. Assim, logo se contaminava e transmitia a doença para o restante de sua tribo. No campo ecológico, os portugueses devastaram florestas intei- ras para extrair o pau-brasil (madeira de coloração avermelhada que era utilizada para tingir roupas na Europa e construir naus). Na mentalidade europeia dessa época, havia a crença do Eldorado, ou seja, uma terra exótica feita de ouro e guardada por lindas mulhe- res amazonas. Quando os europeus chegaram ao Brasil, não o en- contraram, e sim uma terra coberta de vegetação e nativos indígenas. 44 Antropologia Cultural No campo econômico-social, o período foi marcado pela mercantilização das relações de produção, articulando os novos mundos ao Velho Mundo europeu como provedores de gêneros exóticos, cativos, de ouro e da exploração e escravização do indí- gena (RIBEIRO, 2000). 6.2 A conquista e a proteção da “nova terra”1 A Coroa portuguesa nem se preocupou com essa conquista no primeiro momento, posto que essa “nova terra” não oferecia ouro e prata. No entanto, outras nações estavam interessadas nesse território, por isso os portugueses começaram a povoá-lo o mais rápido possível. Os primeiros soldados chegaram ao Brasil com o governador-ge- ral Tomé de Souza, em 1548, no intuito de controlar os domínios da Coroa portuguesa. A preocupação em salvaguardar a terra conquis- tada por Portugal da ambição de outras nações europeias fez com que o governador-geral estabelecesse um regimento visando a suprir a escassez de homens para a proteção da “nova terra”. Dessa forma, o regimento de 1548 estipulava o recrutamento entre os moradores, que auxiliariam os soldados. Outra iniciativa tomada pela Coroa portuguesa foi armar a po- pulação das colônias. O “alvará das armas”, em 1569, tornava obri- gatória a posse de armas pelos homens livres que auxiliavam os sol- dados. Na tentativa de organizá-los, foi criado o Regimento Geral das Ordenanças, em 1570. O serviço das ordenanças organizava a população de acordo com o corte social existente. A nobreza era contra o recrutamento, por isso não queria participar das ordenan- ças, mesmo estando em seus escalões mais elevados. 1 A expressão “nova terra” é usada para referir-se, sob perspectiva eurocêntrica, às terras que deram origem ao atual Brasil – o uso das aspas se justifica porque a região encontrada não era uma terra propriamente nova, visto que já existia e era habitada antes da chegada dos europeus. Conquista do Brasil: historiografia e educação 45 No Brasil, com uma hierarquia social que se forjava na presen- ça determinante do escravismo, o corte social proposto pelas orde- nanças era uma oportunidade justamente de afirmação social e de construção dessas diferenças entre os homens livres (PUNTONI, 2004, p. 45). As ordenanças abarcavam muitos indígenas, pois eles eram exí- mios conhecedores da terra e já tinham familiaridade com a arte da guerra. Como a presença do indígena era essencial na força auxiliar de defesa da terra, em 1611 promulgou-se a lei que criou as chamadas Companhias, destinadas ao recrutamento de nativos. O posto de dirigente das Companhias era ocupado por pessoas abastadas, indicadas pelo governador-geral, que deveriam fazer o juramento de fidelidade à Coroa portuguesa. Ao longo desse período, o critério para o preenchimento de car- gos superiores nas ordenanças não era calcado nos conhecimentos especializados ou técnicos. No reinado de Dom Pedro II (1825- -1891), ocorre uma paulatina formação do exército profissional, que sofreu influências de estrangeiros, como de Gastão de Orléans, o Conde d’Eu (1842-1922). Esse momento representou a profissiona- lização e um grande aumento do contingente do exército brasileiro. No entanto, os primórdios da formação do exército brasileiro acontecem na época em que Dom João organizou o seu novo ga- binete2 em terra brasileira, no qual foi designado para a pasta dos Negócios Estrangeiros e da Guerra D. Rodrigo de Souza Coutinho, o Conde de Linhares (1755-1812), que se tornou praticamente o pri- meiro-ministro da Guerra no Brasil. Essa pasta abrangia as atribui- ções referentes aos negócios estrangeiros do reino. No entanto, até a chegada da Corte portuguesa ao Brasil, a administração do exército ficava centrada na metrópole. 2 Negócios do Reino – D. Fernando José de Portugal e Castro (depois Marquês de Aguiar); Negócios Estrangeiros e da Guerra – D. Rodrigo de Souza Coutinho (Conde de Linhares); Negócios da Marinha e Ultramar – D. João Rodrigues de Sá e Menezes(Visconde, depois Conde de Anadia). 46 Antropologia Cultural As tropas brasileiras eram precárias, os soldados faziam exercí- cios somente uma vez por mês e seus pagamentos eram realizados em atraso, além de serem mal remunerados, o que os fazia traba- lhar informalmente em outras ocupações, a fim de sustentar suas famílias. Porém, ainda tinham de dividir os lucros com os oficiais, os quais fechavam os olhos à irregularidade de os soldados serem a tropa do rei e, ao mesmo tempo, sapateiros ou pescadores (LOPES; TORRES; 1947, p. 33). Essa situação era realmente preocupante para D. João, que contava com a possibilidade de uma efetiva defesa por parte das forças armadas em caso de perigo ou risco de inva- são estrangeira, particularmente em decorrência do contexto euro- peu, que vivia um “desequilíbrio”, cuja solução só foi tomada após o Congresso de Viena, em 1815. 6.3 A história dominante nos livros didáticos Anteriormente, os livros didáticos traziam informações reduzi- das e ocultavam diversos fatos. Atualmente, por meio da chamada história renovada, temos acesso às informações, que passaram a ser veiculadas nas escolas e nos livros didáticos após a ditadura militar no Brasil, a qual durou vinte e um anos (1964-1985) e calou muitos intelectuais, obrigando as escolas a ensinarem um conteúdo patrió- tico e positivista. A história era contada destacando os feitos dos chamados “heróis”, como Pedro Álvares Cabral, Princesa Isabel e D. Pedro II, banindo a participação da população na própria história. Essas concepções constituíram-se por muito tempo como “história oficial”. Essa histo- riografia é muito difundida e influencia em nossa leitura da realidade porque se popularizou por meio dos livros didáticos. Na obra O saber histórico em sala de aula, Circe Bittencourt (2002) discute as concepções e caracterização do livro didático, ins- trumento que muito corroborou para a ratificação da presença dos “heróis” na história brasileira. Bittencourt explica: o livro didático Conquista do Brasil: historiografia e educação 47 propaga valores e ideologias de uma cultura. Para ela, “o papel do livro didático na vida escolar pode ser o de instrumento de repro- dução de ideologias e do saber oficial imposto por determinados setores do poder e pelo Estado” (BITTENCOURT, 2002, p. 73). Assim, a história factual é herança desse “nacionalismo oficial” no qual o Estado executa, desde o início, uma política consciente de proteção dos seus interesses. Dessa maneira, os líderes nacionalistas, muitas vezes, projetam sistemas civis, militares, culturais e educa- cionais em nome da nação, difundindo essas ideologias. Etimologicamente, podemos dizer que a palavra ideologia vem do grego idea, que quer dizer aparência, princípio, ideia, ideograma. Marilena Chaui propõe que a ideologia tem como função camu- flar as diferenças entre as classes sociais e proporcionar às pessoas a identidade social, que propõe uma unidade, por padronizar inte- resses particulares que são anunciados como objetivos comuns da nação. Assim, A ideologia é um conjunto lógico, sistemático e coerente de representações (ideias e valores) e de normas ou regras (de conduta) que indicam e prescrevem aos membros da sociedade o que devem pensar e como devem pensar, o que devem valorizar e como devem valorizar, o que devem sen- tir e como devem sentir, o que devem fazer e como devem fazer. Ela é, portanto, um corpo explicativo (representações) e prático (normas, regras, preceitos) de caráter prescritivo, normativo, regulador, cuja função é dar aos membros de uma sociedade dividida em classes uma explicação racional para as diferenças sociais, políticas e culturais, sem jamais atribuir tais diferenças à divisão da sociedade em classes, a partir das divisões na esfera da produção [...] encontrando certos referenciais identificadores de todos e para todos, como a Humanidade, a Liberdade, a Igualdade, a Nação, ou o Estado. (CHAUI, 1981, p. 113-114) Dessa maneira, há vários significados para a ideologia. Em sentido amplo, é uma ciência da formação das ideias; tratado das noções em abstrato; sistema ou conjunto articulado de conceitos, valores, opiniões e crenças que expressam e reforçam as relações 48 Antropologia Cultural que conferem unidade a determinado grupo social (classe, partido político ou seita religiosa), seja qual for o grau de consciência que disso tenham seus portadores. Também pode ser um sistema de ideias dogmaticamente organizado como instrumento de luta polí- tica e um conjunto de ideias próprias de um grupo, de uma época e que traduzem uma situação histórica. A história do Brasil narrada pelos livros didáticos quase sempre ratificou o ideário europeu: os portugueses eram os desbravadores; os “predestinados”, aqueles que vieram pregar a salvação aos povos, os “civilizados’’; o indígena foi representado como um selvagem, omisso e “incivilizado” e o negro3 não passava de uma mercadoria, por isso não tinha sentimentos nem resistia à escravidão, corrobo- rando com a visão do escravizado como um ser estoico4. Ora, nin- guém se identifica com o mais fraco, quer ser “incivilizado” ou omis- so. Esses arquétipos, construídos ao longo de nossa história, fazem com que a nação exclua da sua formação os indígenas e os negros e adote os modelos europeus. O livro didático é um importante veículo portador de um sistema de valores, de uma ideologia, de uma cultura. Várias pesquisas demonstraram como textos e ilustrações de obras didáticas transmitem estereótipos e valores dos grupos dominantes, generalizando temas, como família, criança, etnia, de acordo com os preceitos da sociedade branca bur- guesa. (BITTENCOURT, 2002, p. 72) 3 Somente após a abolição da escravidão no Brasil, em 1888, é que o negro passou a ser visto como elemento componente da formação étnica brasileira. Entretanto, a ideologia racista afirmou que a miscigenação com os negros fez do Brasil um país omisso e estagnado em relação ao progresso. 4 Para saber mais, ver Piratininga Jr. (1991). Essa obra analisa as justificativas preconceituosas para a escravidão do negro. Uma delas ratifica a descendência dos negros com Cam, filho de Noé, que denunciou aos irmãos que o pai, depois de ter se embriagado com vinho, aparecera nu. Noé, ciente do comentário, amaldiçoou-o, de- sejando que ele se tornasse “escravo dos escravos de seus irmãos”. O termo estoico aparece para lembrar essas explicações da escravidão, ou seja, o negro, de acordo com essas justificativas, deveria aceitar a exploração como destino. Conquista do Brasil: historiografia e educação 49 Os livros didáticos serviram como base do nacionalismo ofi- cial, pois eles vêm sendo utilizados na aprendizagem como principal instrumento de trabalho dos educadores e dos educandos desde o século XIX. As ilustrações mais comuns sobre o passado da nação foram reproduzidas, por desenhistas ou por fotógrafos, de qua- dros históricos produzidos no final do século XIX. Dessa galeria de arte que os livros didáticos foram os principais divulgadores, dois quadros têm sido os mais reproduzidos desde o início do século: o 7 de setembro de 1822, de Pedro Américo, e A Primeira Missa no Brasil, de Vitor Meirelles de Lima. (BITTENCOURT, 2002, p. 77) E, como se observa, a história narrada e ilustrada pelos livros didáticos sustenta o caráter heroico e missionário dos europeus. 6.4 O educador e o ensino crítico Atualmente, fala-se muito sobre a educação calcada na crítica (di- ferentemente do ensino propedêutico e tradicional), voltada ao ensi- no humanista, ao lúdico, à motivação, à construção e à criatividade. Por isso, o educador tem de conhecer a proposta pedagógica da escola em que leciona, mas também saber quais são os objetivos da discipli- na que ministra e qual tipo de formação é melhor para os alunos. Ao lutar para não reproduzir o discurso excludente e preconceituoso que a cultura de massa veicula, o educador muitas vezes se frustra, pois percebeque os meios de comunicação são muito mais atraentes para os estudantes que as aulas. Assim, o educador sabe que toda essa cria- ção da mídia serve para iludir, e não alimentar a sabedoria do aluno. Na disciplina de História, por exemplo, ainda é comum o con- teúdo ser extenso e o ensino estar pautado apenas em datas come- morativas e ressaltando nomes de militares, estrategistas e políticos. Ou seja, a história feita por “heróis”. Esse é o legado de uma histo- riografia que privilegiou os grupos dominantes de uma determinada época e excluiu os agentes transformadores (camponeses, indígenas, escravos e mulheres). ensino propedêutico: ensino fragmentado voltado apenas para o vestibular. 50 Antropologia Cultural O papel do educador em sala de aula é, portanto, o de desmitifi- car a ideia de heróis que lutam sempre pela maioria e que os ditos in- divíduos comuns não têm capacidade de realizar grandes mudanças por possuírem uma natureza passiva. O educador precisa esclarecer aos alunos que eles também são agentes da história e podem trans- formar a realidade. Na década de 1960, houve uma inversão de valores na educação, quando o Brasil adotou os padrões mecanicistas dos EUA, ou seja, a fragmentação do conhecimento, a análise hermeneuta e superficial do mundo e a negação da análise das fontes utilizadas pelos educa- dores em sala de aula. A educação fracassou por ser culpada de um estupendo erro cate- górico. Segundo John Dewey (2008), ela confundia os produtos pron- tos e refinados da investigação com o tema bruto e não polido e tentava fazer com que os alunos aprendessem as soluções, em vez de investi- gar problemas e envolverem-se nos questionamentos por si mesmos. Os cientistas, por exemplo, empregam o método científico para a ex- ploração de situações problemáticas e assim também deveriam fazer os alunos, caso quisessem aprender a pensar sozinhos. Ao contrário disso, ainda se pede que estudem os resultados das descobertas feitas pelos cientistas, desprezando o processo e fixando a atenção no produto. Quando os problemas não são explorados em primeiro lugar, nenhum interesse ou motivação é criado, por isso chamamos de educação o que na verdade é uma charada e um simulacro. Dewey (2008) propunha: na sala de aula, deveria acontecer o pensamento independente, imaginativo e rico. O caminho por ele proposto – e nesse ponto alguns de seus seguidores o abandonaram – é que o processo educativo na sala de aula deveria tomar como modelo a investigação científica. Portanto, é necessário construir conhecimento, e não reproduzi- -lo. O educador que visa a formar pessoas críticas precisa analisar de maneira ontológica os conceitos com os educandos e trabalhar por Conquista do Brasil: historiografia e educação 51 meio de tarefas lúdicas, propiciando ao aluno criar e saber lidar com a própria sensibilidade. Essas atividades podem ser dramatizações, música, literatura, viagens imaginárias, danças ou jogos. Além disso, o educador precisa trabalhar com a pesquisa em sala de aula para que os estudantes possam construir o próprio conheci- mento. A ausência dessa atividade é muito grave, pois não possibilita ao aluno fazer a própria análise de determinado objeto de estudo e, assim sendo, ele somente reproduz aquilo que o educador disse em sala de aula, pois não tem as bases para ser um indivíduo crítico. Essas ideias, propagadas por Louis Althusser (1918-1990), ain- da imperam, ou seja, existe a impossibilidade de transformação por intermédio de conceitos trabalhados em sala de aula, já que os educadores são “obrigados” a espalhar o discurso de uma classe mi- noritária e dominante. O preocupante é que muitos deles transfor- mam os educandos em indivíduos passivos e negam a experiência de agirem como agentes transformadores. Atividades 1. O conflito entre indígenas e portugueses aconteceu em vários campos, principalmente no biótico, ecológico e econômico- -social. Explique cada um deles. 2. Quais foram as medidas tomadas pela Coroa portuguesa para a proteção da “nova terra”? 3. A ideologia está presente, mesmo que de maneira não explí- cita, em várias instâncias da vida social, inclusive na escola e nos livros didáticos. Na sua opinião, o livro didático pode distorcer muitos fatos da história do Brasil, principalmente do Brasil Colônia? Justifique sua resposta. 7 O enfrentamento dos mundos 7.1 A chegada do europeu na “Ilha Brasil” Para os indígenas, a chegada do europeu foi algo extremamen- te danoso. Havia uma curiosidade muito grande em torno de quem eram aqueles homens que vieram do mar. Será que eram deuses? Eram pacíficos ou ferozes? Amigos ou inimigos? Na concepção mítica dos indígenas, os europeus podiam ser enviados do deus Sol – Maíra. Assim, provavelmente seriam pessoas generosas. Isso porque, na cul- tura indígena, tudo era de todos, não havia na tribo quem mandava ou explorava seus semelhantes. O indígena não obedecia a ordens porque na tribo todos desem- penhavam funções e todas elas eram importantes. Havia o respeito mútuo e os indivíduos se reconheciam como onto-societários, ou seja, seres coletivos que não vivem apenas para sanar as suas vicis- situdes, mas para atender às necessidades do grupo (ausência do individualismo exacerbado). Esse povo parece pertencer a dimensões diferentes concomitan- temente, ou seja, ao mundo espiritual e ao físico. Para o indígena, as coisas materiais estão concatenadas à esfera espiritual, como se fossem uma extensão dela. Sabe-se que o mito e as crenças são formas fantásticas de explicar a realidade. Então, podemos entender a crença dos indígenas em espíritos da natureza: eles interagem a todo momento e perscrutam os mistérios dela. Por esse motivo, acreditam que no mundo natural há uma força mágica e invisível regendo com perfeição e harmonia o todo. 54 Antropologia Cultural A mitologia indígena é composta pelo deus Sol, espírito das águas, das florestas e dos animais. Há uma interação direta entre o indígena e essas forças. O cacique, homem mais velho da tribo, é considerado sábio e, por esse motivo, representa uma espécie de energúmeno que recebe os ensinamentos dos espíritos. Ele empresta o corpo para esses espíri- tos o utilizarem para a cura, dar conselhos e em rituais. Esse homem é bastante respeitado, no entanto não é o líder da tribo, pois ele não manda em tudo e em todos nem explora seus semelhantes, tem ape- nas a função de sábio e conselheiro. Quando havia algum problema ou conflito entre membros da tribo, o cacique tentava apaziguar ou resolver a situação por in- termédio de seus conselhos. Entretanto, os indígenas muitas vezes ignoravam as palavras do velho e resolviam sozinhos as querelas. Portanto, podemos perceber que não há uma pessoa com maior relevância, mas sim uma verdadeira comunidade onde todos desem- penham sua função em favor do grupo. O europeu era retratado como herói, e o indígena como selva- gem. As ilustrações mostravam os europeus muito bem vestidos, bonitos e limpos descendo de suas naus e os indígenas nus, confusos como crianças assustadas assistindo à cena. Contudo, a historiogra- fia aponta outra visão, diferentemente dessa retratada pelo senso comum. A viagem em naus de Portugal ao Brasil demorava muitos meses e os alimentos eram escassos, por isso não havia comida nem água para todos. Os banhos eram raros e dentro das naus não ha- via um local específico para a higiene pessoal e para as excreções. Assim, os portugueses jogavam ao mar as fezes e a urina. Diante da alimentação precária e da falta de higiene, muitos ho- mens adoeciam antes de chegar à “Ilha Brasil”. A principal doença era o escorbuto, que tem como primeiros sintomas hemorragias nas gengivas, inchaço, dores nas articulações, feridas que não ci- catrizam, causando a desestabilização dos dentes. Essa doença é provocada por carências graves de vitamina C na dieta e, muitas energúmeno: pessoa possuída, possessa. O enfrentamento dos mundos 55 vezes,
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