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ENIO JOSÉ SERRA DOS SANTOS EDUCAÇÃO GEOGRÁFICA DE JOVENS E ADULTOS TRABALHADORES: concepções, políticas e propostas curriculares Niterói 2008 2 ENIO JOSÉ SERRA DOS SANTOS EDUCAÇÃO GEOGRÁFICA DE JOVENS E ADULTOS TRABALHADORES: concepções, políticas e propostas curriculares Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal Fluminense, como requisito para obtenção do grau de Doutor em Educação. Orientador: Professor Doutor Osmar Fávero Co-orientador: Professora Doutora Tomoko Iyda Paganelli Niterói 2008 3 DEDICATÓRIA À Maria da Gloria Serra. À Juliana Rodrigues Pego. À Vânia Mendonça, in memoriam. Obrigado por tudo. 4 AGRADECIMENTOS Um trabalho como este não pode ser atribuído somente ao esforço individual, indivisível. Somos constituídos de sujeitos múltiplos, produzidos nas redes de relações em que nos embrenhamos e a partir das quais construímos saberes e valores. Por isso agradecemos, para homenagear aqueles e aquelas que participaram das redes por que passamos e que nos deixaram marcas, distintivos que levamos para o sempre. Agradeço à minha mãe, Maria da Gloria Serra, por fazer do esforço de sua vida o meu bem viver. Ao meu orientador Professor Osmar Fávero, pelo incentivo e apoio determinantes para a realização deste trabalho. À Professora Tomoko Iyda Paganelli, pela atenção e carinho. Aos professores com quem tive a honra de aprender durante a longa caminhada do doutorado: Eunice Trein, Sonia Rummert, Lúcia Neves, Cláudia Alves, Giovanni Semeraro, Ruy Moreira. Aos amigos da turma de 2004 com quem tive o prazer de compartilhar as descobertas, reflexões e angústias que um curso de doutorado proporciona: Daniela Motta, Jaqueline Ventura, Inês Bonfim, Marisa Brandão, Mercês Navarro Vasconcelos, Margarida Gomes, Mariana Vilela, Clareth Reis. À Faculdade de Educação da UFRJ, pelo incentivo e compreensão, especialmente à Ana Maria Monteiro, Cláudia Bokel Reis, Carmen Teresa Gabriel, Macia Serra Ferreira, Anita Handfas, Jaílson dos Santos, Monique Andries Nogueira, Carlos Frederico Loureiro. Ao companheiro Emílio Rua, pelo apoio intelectual e emocional, pela compreensão e cumplicidade. 5 Aos amigos de sempre Jacqueline Albino, Lana Fonseca, Márcio Marcolino, Marília Campos, Mário Bertocchi, Mayra Marcolino, Patrícia Salinas, Valéria Medeiros, Virgínia de Oliveira Silva. A todos que, de alguma forma, tiveram papel importante para a elaboração e conclusão deste trabalho, meu muito obrigado. 6 Toda educação que faz jus a esse nome envolve a relação de mutualidade, uma dialética, e nenhum educador que se preze pensa no material a seu dispor como uma turma de passivos recipientes de educação. Mas, na educação liberal de adultos, nenhum mestre provavelmente sobreviverá a uma aula – e nenhuma turma provavelmente continuará no curso com ele – se ele pensar, erradamente, que a turma desempenha um papel passivo. O que é diferente acerca do estudante adulto é a experiência que ele traz para a relação. A experiência modifica, às vezes de maneira sutil e às vezes mais radicalmente, todo o processo educacional; influencia os métodos de ensino, a seleção e o aperfeiçoamento dos mestres e o currículo, podendo até mesmo revelar pontos fracos ou omissões nas disciplinas acadêmicas tradicionais e levar à elaboração de novas áreas de estudo. Edward P. Thompson, Os Românticos. 7 RESUMO SANTOS, Enio José Serra dos. Educação geográfica de jovens e adultos trabalhadores: concepções, políticas e propostas curriculares. Orientador: Osmar Fávero. Niterói-RJ/UFF, 26/09/2008. Tese (Doutorado em Educação), 353 páginas. Campo de Confluência: Diversidade, Desigualdades Sociais e Educação; Linha de Pesquisa: Práticas sociais e educativas de jovens e adultos. O presente trabalho tem como principal objetivo investigar a forma com que a geografia escolar é concebida em diferentes propostas curriculares para o segundo segmento do ensino fundamental da Educação de Jovens e Adultos (EJA). Tal modalidade da educação básica é abordada como uma questão de classe social por ter como público alvo trabalhadores pouco escolarizados para os quais vêm sendo dirigidas políticas de formação escolar que atendem às novas exigências do mercado pautado pela reestruturação produtiva. Tendo, portanto, como eixo central as políticas públicas de EJA, a base empírica da pesquisa se constitui na análise do conteúdo geográfico presente nos materiais didáticos elaborados a partir das propostas curriculares do Programa Nacional de Inclusão de Jovens, o ProJovem, e da Coleção Cadernos de EJA, ambas produzidas no âmbito do governo federal. Considerando as propostas curriculares como processos de recontextualização de saberes e discursos produzidos em outros contextos políticos (universidades, organismos internacionais, movimentos sociais, secretarias de educação etc.), a investigação é conduzida na direção das questões que envolvem a forma com que esses documentos justificam a especificidade do ensino de geografia voltado para a EJA, bem como as matrizes teóricas características do pensamento pedagógico e geográfico que lhes podem ser consideradas como referências. O exame dos materiais didáticos revela uma contradição nas políticas de currículo para a EJA levadas a cabo pelo governo federal, pois enquanto o ProJovem se caracteriza por um currículo prescritivo cujo conteúdo geográfico se mostra pouco denso e mais próximo da vertente humanista fenomenológica, a Coleção Cadernos de EJA tem como base uma proposta curricular que aposta na autonomia docente e na corrente crítica do pensamento geográfico. A análise realizada indica, portanto, o hibridismo que marca boa parte das políticas educacionais do atual governo, bem como propicia reflexões em torno dos princípios e bases que podem contribuir para a construção de um processo de escolarização que tenha como horizonte a emancipação dos trabalhadores brasileiros. Palavras-chave: Educação de Jovens e Adultos; Geografia Escolar; Políticas de Currículo. 8 ABSTRACT SANTOS, Enio José Serra dos. Geography education for youth and adult workers: concepts, policies and curricular proposals. Advisor: Osmar Fávero. Niterói-RJ/UFF, 09/26/2008. Dissertation (PhD in Education), 353 pages. Confluence field: Diversity, Social and Educational inequalities; Research Area: Social and educational practices of young and adult learners. The present dissertation aims at investigating how school geography is conceived in different curricular proposals in Junior-high school for Youth and Adult Education. Such modality of basic education is approached as an issue related to social classes, once its target public is centered around poorlyschooled workers for whom schooling policies have been directed in order to answer new demands from a market driven by productive restructuring. Therefore, the main axis of this research is public policies for Youth and Adult Education; the data for the research is constituted around the analysis geographic content presented in textbooks produced from curricular proposals for the “Programa Nacional de Inclusão de Jovens – ProJovem” (National Program for the Inclusion of Youngsters) and for the Coleção Cadernos de EJA (Collection Youth and Adult Education), both proposals produced by Federal Government policies. Considering these curricular proposals as processes of recontextualization of knowledge and discourses produced in different political contexts (universities, international organizations, social movements, state boards of education, etc), this investigation is conducted towards analyzing issues that involve the way how these documents justify the specificity of the teaching of geography in Youth and Adult Education, as well as different theoretical tenets which characterize pedagogical and geographic thought that would be considered as their own references. The observation of didactic materials reveals a contradiction in curricular policies for Youth and Adult Education produced by the federal government: While “Projovem” is characterized by a prescriptive curriculum, whose geographic content is shallow and closer to a fenomenological humanistic strand, the Coleção Cadernos de EJA, is based on a curricular proposal that considers teaching autonomy and a critical view of geographic thinking. The analysis indicates, thus, hybridism as a central core for a great portion of the educational policies of this present government; it also allows for reflections around principles and basis which can contribute for the construction of a schooling process that aims the emancipation of Brazilian workers. Key-Words: Youth and Adult Education; School Geography; Curricular Policies. 9 RESUMEN SANTOS, Enio José Serra dos. Educación geográfica de jóvenes y adultos trabajadores: conceptos, políticas y propuestas curriculares. Asesor: Osmar Fávero. Niterói-RJ/UFF, 26/09/2008. Tesis (Doctorado en Educación), 353 páginas. Campo de Confluencia: Diversidad, Desigualdad Social y Educacional; Línea de Pesquisa: Prácticas sociales y educacionales de jóvenes y adultos. El presente trabajo tiene como principal objetivo investigar la forma en que la geografia escolar es concebida en diferentes propuestas curriculares para la enseñanza primaria de la Educación de Jóvenes y Adultos (EJA). Tal modalidad de educación básica es abordada como una cuestión de clase social por tener como público alvo trabajadores con bajo nivel de escolaridad para los cuales vienen siendo dirigidas políticas de formación escolar que atienden las nuevas exigencias de mercado pautado por la reesctructuración productiva. Teniendo por lo tanto, como eje central las políticas públicas de EJA, la base empírica de la pesquisa se constituye en el análisis del contenido geográfico presente en los materiales didácticos elaborados a partir de propuestas curriculares del Programa Nacional de Inclusión de Jóvenes, ProJoven, y de la Colección Cuadernos de EJA, ambas producidas en el ámbito del gobierno federal. Considerando las propuestas curriculares como procesos de recontextualización de saberes y discursos producidos en otros contextos políticos (universidades, organismos internacionales, movimientos sociales, secretarias de educación, etc.), la pesquisa es conducida en dirección a los aspectos que envuelven la forma en que esos documentos justifican la especificidad de la enseñanza de geografia dirigida hacia la Educación de Jóvenes y Adultos (EJA), así como también las matrices teóricas características del pensamiento pedagógico y geográfico, a los cuales se les pueden considerar como referencias. La investigación del material didáctico revela uma contradicción en las políticas de currículum para EJA llevadas a cabo por el gobierno federal, pues mientras el ProJoven se caracteriza por um currículum prescriptivo cuyo contenido se muestra poco denso y más próximo a la vertiente humanista fenomenalógica, la Colección Cuadernos EJA tiene como base una propuesta curricular que apuesta en la autonomía del docente y en la corriente crítica del pensamiento geográfico. El análisis realizado indica, por lo tanto, el hibridismo que marca buena parte de las políticas educacionales del actual gobierno, así como también propicia reflexiones en torno de los principios y bases que pueden contribuir para la construcción de un proceso de escolarización que tenga como horizonte la emancipación de los trabajadores brasileños. Palabras clave: Educación de Jóvenes y Adultos; Geografia Escolar; Políticas de Curriculum. 10 LISTA DE SIGLAS CEFET Centros Federais de Educação Tecnológica CIEP Centros de Integrados de Educação Pública CNAEJA Comissão Nacional de Alfabetização e Educação de Jovens e Adultos CNBB Confederação Nacional dos Bispos do Brasil CONSED Conselho Nacional de Secretários de Educação CONFINTEA Conferência Internacional de Educação de Adultos ENCCEJA Exame Nacional de Certificação das Competências da Educação de Jovens e Adultos FASE Federação dos Órgãos de Assistência Social e Educacional FIOCRUZ Fundação Oswaldo Cruz FNDE Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação FUNDEB Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação FUNDEF Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização dos Profissionais da Educação IDH Índice de Desenvolvimento Humano INCRA Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária INEP Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos MEB Movimento de Educação de Base MEC Ministério da Educação MOBRAL Movimento Brasileiro de Alfabetização MST Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra PCN Parâmetros Curriculares Nacionais PNLA Programa Nacional do Livro Didático para Alfabetização de Jovens e Adultos PNLEM Programa Nacional do Livro Didático para o Ensino Médio PNLD Programa Nacional do Livro Didático PUC – RJ Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro SECAD Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade UERJ Universidade do Estado do Rio de Janeiro UNDIME União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação UNE União Nacional dos Estudantes UNESCO Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura 11 SUMÁRIO INTRODUÇÃO: DAS INQUIETAÇÕES E DOS DESAFIOS........................................ 14 1 – EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS TRABALHADORES: DOS FUNDAMENTOS ÀS POLÍTICAS DE CURRÍCULO................................................... 1.1 CONFIGURAÇÃO DO PÚBLICO DA EJA: MAPEANDO O PONTO DE PARTIDA.............................................................................................................................. 1.1.1 O capitalismo da acumulação flexível e o mercado das ilusões........................... 1.1.2 A configuração da classe trabalhadora no atual cenário socioeconômico de acumulação flexível........................................................................................................................ 1.1.3 A EJA como questão de classe................................................................................... 1.2 O CURRÍCULO ESCOLAR NAS POLÍTICAS DE EJA: CONTROLE, INDUÇÃO OU DIRETRIZES CONCEITUAIS?........................................................................... 1.2.1 Questões sobre políticasde currículo........................................................................ 1.2.2 Políticas públicas de EJA e concepções de currículo............................................... 22 24 25 34 45 48 49 61 2 – TERRITÓRIOS DO CONHECIMENTO: POLÍTICAS DE CURRÍCULO DE GEOGRAFIA E EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS............................................ 2.1 O CONHECIMENTO ESCOLAR DE GEOGRAFIA: ENTRE RUPTURAS E CONTINUIDADES............................................................................................................... 2.1.1 Modernidade, ciência e escola: a gênese da geografia escolar no mundo ocidental................................................................................................................................ 2.1.2 Geografia escolar, pensamento geográfico e processos de recontextualização pedagógica............................................................................................................................. 2.2 TRAJETÓRIAS DO CURRÍCULO ESCOLAR DA GEOGRAFIA BRASILEIRA...... 2.2.1 A geografia é minha pátria: a consolidação da orientação moderna na geografia escolar brasileira................................................................................................. 2.2.2 A renovação crítica e o apelo por uma geografia escolar engajada na luta por justiça social.......................................................................................................................... 2.3 ENSINO DE GEOGRAFIA PARA JOVENS E ADULTOS TRABALHADORES: DO DESPREZO À FORMAÇÃO PARA O TRABALHO FLEXÍVEL............................. 2.3.1 O ensino supletivo de geografia e o desprezo à condição de aluno trabalhador... 82 83 84 91 107 108 121 132 136 12 2.3.2 A perspectiva crítica e a geografia do aluno trabalhador....................................... 2.3.3 Quando a educação geográfica contribui para a formação do trabalhador “flexível”................................................................................................................................ 141 147 3 - A GEOGRAFIA A SER ENSINADA NO PROJOVEM............................................ 3.1 ESCOLARIZAÇÃO, EMPREGABILIDADE E EMPODERAMENTO: O PROJOVEM NO CONTEXTO DA POLÍTICA DAS ILUSÕES......................................... 3.1.1 A qualificação para o trabalho e a ilusão da empregabilidade............................... 3.1.2 Ação comunitária, protagonismo juvenil e empoderamento: as bases para o alívio da pobreza.................................................................................................................. 3.1.3 Elevação da escolaridade ou certificação da precariedade?................................... 3.2 O CONHECIMENTO ESCOLAR DE GEOGRAFIA NO PROJOVEM....................... 3.2.1 A cidade como tema para discutir a juventude........................................................ 3.2.2 A abordagem geográfica do mundo do trabalho...................................................... 3.2.3 Juventude, globalização, mapas e comunicação....................................................... 3.2.4 A geografia cidadã do ProJovem............................................................................... 155 156 160 165 170 175 177 184 191 199 4 – A GEOGRAFIA NOS CADERNOS DE EJA: APOIO DIDÁTICO OU REFERÊNCIA NACIONAL?............................................................................................. 4.1 AS RECENTES POLÍTICAS CURRICULARES DE EJA NO ÂMBITO FEDERAL.............................................................................................................................. 4.1.1 O governo Lula e o cenário de permanências e mudanças na EJA........................ 4.1.2 Ações curriculares como políticas de Estado para a EJA: contradições e perspectivas do atual governo............................................................................................. 4.1.3 A proposta curricular dos Cadernos de EJA: flexibilidade e intertextualidade no processo ensino-aprendizagem de jovens e adultos trabalhadores............................ 4.2 O QUE DE GEOGRAFIA TEM NOS CADERNOS DE EJA?...................................... 4.2.1 O caderno Emprego e Trabalho e a procura pela abordagem geográfica.............. 4.2.2 Caderno Globalização e Trabalho: quando a geografia contribui para a criticidade do aluno trabalhador........................................................................................ 4.2.3 Sociedade, natureza e meio ambiente sob a ótica do trabalho................................ 211 213 213 219 226 234 236 244 252 13 4.2.4 Espaço rural e trabalho: uma perspectiva totalizante do campo brasileiro.......... 259 5 – EDUCAÇÃO GEOGRÁFICA DE JOVENS E ADULTOS TRABALHADORES: CONCEPÇÕES, PRINCÍPIOS E BASES......................................................................... 5.1 AS MARCAS DA EJA NA GEOGRAFIA ESCOLAR.................................................. 5.1.1 O mundo do trabalho na perspectiva geográfica..................................................... 5.1.2 O saber da experiência e os conceitos geográficos cotidianos................................. 5.2 OS DILEMAS DA GEOGRAFIA NAS PROPOSTAS CURRICULARES DA EJA.... 5.2.1 Sociedade, natureza e produção do espaço............................................................... 5.2.2 Recortes espaciais, escalas de análise e seleção de conhecimentos escolares na EJA........................................................................................................................................ 5.3 BASES E PRINCÍPIOS DA EDUCAÇÃO GEOGRÁFICA DE TRABALHADORES 5.3.1 As bases: por uma perspectiva ético-política da EJA.............................................. 5.3.2 Os princípios: por uma educação geográfica do aluno trabalhador..................... 270 271 273 280 289 292 300 308 309 312 CONSIDERAÇÕES FINAIS: NOVAS INQUIETAÇÕES, OUTROS DESAFIOS...... 316 REFERÊNCIAS................................................................................................................... 322 ANEXOS............................................................................................................................... 337 14 INTRODUÇÃO: DAS INQUIETAÇÕES E DOS DESAFIOS A Educação de Jovens e Adultos (EJA) vem adquirindo considerável relevância no cenário educacional brasileiro, particularmente após a promulgação da Constituição de 1988. A forma com que a lei maior do país passou a tratar a escolarização de jovens e adultos trabalhadores propiciou significativa mudança em seu caráter, em seu conceito. O direito ao ensino fundamental, obrigatório e gratuito, estendido, a partir de então, àqueles que a ele não tiveram acesso na infância e adolescência vem resgatar uma velha dívida social do Estado brasileiro para com boa parcela da população, que por imposições sociais, na maioria das vezes, deixou de freqüentar os espaços escolares. Além da trajetória marcada pela indiferença do poder público, a EJA não era reconhecida como uma modalidade detentora de especificidades dentro da educação básica.Na legislação prevalecia, até pouco tempo, a concepção de suplência ou o suprimento, a completação do inacabado. Em função disso, os currículos do então ensino supletivo se pautavam na reprodução dos conteúdos do ensino regular, sendo poucas as experiências inovadoras que experimentavam outras formas de organizar os tempos e espaços escolares. Todo esse panorama gerou uma série de inquietações e indagações na prática pedagógica por nós vivenciada no ensino fundamental voltado para alunos jovens e adultos. Tendo atuado como professor de geografia nas redes estadual (1991-1996) e municipal do Rio de Janeiro (1999-2003), e também na rede municipal de Angra dos Reis (1993-2002), durante pelo menos sete anos trabalhamos com o ensino noturno. Essa experiência mesclou a sala de aula e a coordenação do ensino regular noturno em Angra dos Reis (1999-2000), sendo esta última responsável e ponto de partida para a elaboração da dissertação de mestrado que analisou as políticas e práticas que possibilitaram a implementação de uma organização curricular inovadora na Educação de Jovens e Adultos daquele município1. Nessa análise, defendíamos o pressuposto de que o currículo escolar da EJA deveria ser pensado à luz das características e necessidades do público jovem e adulto, composto invariavelmente por trabalhadores para os quais o Estado e a sociedade brasileira contraíram imensa dívida ao não garantir-lhes condições sociais para que pudessem freqüentar os bancos escolares no período da infância ou adolescência. A ação política analisada, embora 1 SANTOS, Enio Serra dos. Repensando o ensino regular noturno como escola pública para trabalhadores: o caminho de Angra dos Reis. 2003. 169 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2003. 15 apresentasse graves contradições e incoerências no processo de implantação e consolidação, se mostrava inovadora porque alterava não somente a base pela qual se selecionavam os conhecimentos a serem desenvolvidos em forma de conteúdos escolares,2 como também transformava a lógica de organização dos tempos disciplinares e reservava um turno para reuniões semanais da equipe de profissionais (professores, pedagogos, diretores etc.) envolvidos no processo pedagógico.3 Tal experiência provocou uma série de indagações acerca dos currículos específicos dos componentes curriculares obrigatórios para o ensino fundamental e sua aplicação na EJA. Constatamos com mais clareza a necessidade de se pensar um currículo próprio para essa modalidade que negasse as referências curriculares historicamente pautadas exclusivamente no trabalho pedagógico desenvolvido no ensino regular diurno, voltado para crianças e adolescentes. Questionávamos, por exemplo, sobre qual geografia, qual história, qual matemática deveriam ser ensinadas/aprendidas por essas pessoas. A reflexão sobre a base conceitual e paradigmática em termos do trabalho pedagógico em geral já havia sido feita, pelo menos no que se refere às possibilidades que se vislumbravam a partir da experiência analisada, porém, nos inquietava a falta de um aprofundamento maior nas especificidades de cada disciplina. Em nosso caso, a geografia escolar era a preocupação: que conhecimentos geográficos deveríamos “colocar no lugar” da geografia ensinada/aprendida pelas crianças nas classes diurnas? Haveria, ou deveria haver, alguma diretriz específica para essa área do conhecimento no que se refere ao trabalho pedagógico com jovens e adultos? Deveríamos pensar apenas em termos de metodologia de trabalho – o como – ou teríamos que problematizar o próprio conhecimento escolar de geografia para essa modalidade? Até que ponto a condição de trabalhadores influenciaria a seleção e a organização desses conhecimentos? Todas estas questões nos fizeram amadurecer a idéia de desenvolver uma pesquisa acadêmica na qual pudéssemos aprofundar as reflexões acerca dos objetivos, conteúdos e métodos da geografia escolar para o processo de escolarização de jovens e adultos trabalhadores. Nesse sentido, propomos investigar como se dá o ensino de geografia em diferentes propostas curriculares para o segundo segmento do ensino fundamental da modalidade EJA. 2 A seleção de conteúdos tinha como base temas geradores extraídos a partir do estudo das características históricas, sociais, econômicas, físicas e ambientais das localidades onde se situavam as escolas. Todo o referencial teórico-metodológico do trabalho educativo era pautado na pedagogia problematizadora de Paulo Freire (1987). 3 O projeto, implementado a partir da adesão inicial de quatro escolas da rede, nos anos 1999 e 2000, previa a distribuição igualitária dos tempos de aula por disciplina. Além disso, uma vez por semana, os professores e a equipe pedagógica se reuniam enquanto os educandos desenvolviam atividades culturais ou relacionadas a alternativas de geração de renda. 16 Partimos da hipótese de que o conhecimento escolar presente em diferentes propostas curriculares evidencia concepções de educação e de sociedade, uma vez que sua construção é fruto de processos de recontextualização de saberes e discursos produzidos em variadas instâncias políticas como universidades, órgãos de pesquisa, organismos internacionais, movimentos sociais, secretarias de educação etc. Tal hipótese nos leva, então, às seguintes questões norteadoras: de que forma esses documentos justificam a especificidade de uma geografia escolar voltada para a EJA na perspectiva do atendimento aos sentidos contemporâneos da escolarização de jovens e adultos trabalhadores? Que matrizes teóricas características do pensamento geográfico podem ser consideradas como referências para tais propostas? Quais as concepções e visões de mundo e de sociedade podem ser aí encontradas? Como a seleção, a organização e o tratamento dos conteúdos geográficos escolares podem contribuir para a veiculação dessas concepções? E ainda, quais contradições e limites, inerentes a qualquer ação política, podem ser desvelados nas propostas curriculares em questão? Optamos por examinar propostas curriculares referentes à educação geográfica de jovens e adultos trabalhadores porque consideramos de aguda importância as formulações, isto é, os processos de constituição de políticas de currículo. Compartilhamos da idéia de que tais iniciativas não chegam às escolas e salas de aula como força executora imediata, pois há de se considerar as práticas curriculares que, na maioria das vezes, insistem em ressignificar, burlar e contrariar as propostas curriculares prescritivas. Os currículos praticados e suas relações com os prescritos oferecem enorme poder de sedução a qualquer pesquisador em educação que possua sensibilidade e curiosidade acadêmica e as pesquisas que a eles se voltam se constituem em importante e instigante campo de análise. No entanto, vemos com certa cautela as investigações do cotidiano escolar que recusam, ou deixam em um plano bastante inferiorizado, a relação entre as práticas e os processos que as engendram. Por esse motivo, e, neste caso específico, pela quase ausência de trabalhos que analisem as políticas curriculares de geografia para a EJA, escolhemos pesquisar as propostas em si e em seus atos fundadores, seus alicerces e as categorias e conceitos que os explicam. Isso porque, concordando com Kramer (1999), consideramos que: Toda proposta [curricular] é situada, traz consigo o lugar de onde fala e a gama de valores que a constitui; traz também as dificuldades que enfrenta, os problemas que precisam ser superados e a direção que a orienta. E essa sua fala é a fala de um desejo, de uma vontade eminentemente política no caso de uma proposta educativa, e semprehumana, vontade que, por ser social e humana, não é nunca uma fala 17 acabada, não aponta “o” lugar, “a” resposta, pois se traz “a” resposta já não é uma pergunta. Aponta, isso sim, um caminho também a construir (p. 169). Assim, partimos para o desafio de desvelar e analisar esses desejos, essas vontades eminentemente políticas presentes nas propostas curriculares. Instiga-nos saber que Educação de Jovens e Adultos é considerada, isto é, para que sujeitos e com que intencionalidades ela é pensada, que concepções de currículo embasam as ações propostas e, nesse contexto, qual o papel do ensino de geografia para a viabilização e consolidação do projeto em questão. Tal objetivo acaba por configurar esta tese como um trabalho de investigação das políticas educacionais para a EJA, cujo recorte empírico é formado pela seleção, organização e tratamento de conteúdos geográficos presentes em propostas curriculares direcionadas para essa modalidade. Sabemos que a definição das políticas educacionais em geral vem recebendo, nas últimas décadas, fortes interferências do ideário neoliberal de globalização, no qual os organismos internacionais vêm desempenhando funções primordiais, como ações de financiamento e fomento a projetos que veiculam seu conjunto de idéias e valores. A EJA, por ter como público alvo trabalhadores pouco escolarizados, é merecedora, nesse contexto, de uma preocupação especial, pois, segundo Maués (2003), tais políticas vêm “implantando o ‘pensamento único’ que visa a uma homogeneização na formação de um trabalhador pronto a atender às exigências do mercado” (p. 9), além de se justificarem “como ações dos governos para realizar ações de ajuste com crescimento e alívio da pobreza, [...] e, com isto, a prioridade para os projetos de educação básica [...] é incentivada na forma de projetos de impacto para reduzir [...] ‘a pobreza’ e o ‘número de pessoas pobres’, não as ‘condições de pobreza’” (MELO, 2004, p. 173). Nesse sentido, a escolha das propostas curriculares a serem analisadas pautou-se na tentativa de verificar as concepções que balizam as políticas de currículo dirigidas para a EJA na atualidade. Mesmo compreendendo que são diversos os atores sociais e implementadores de iniciativas educacionais, optamos por propostas curriculares engendradas pelo governo federal no intuito de desvelar as referências e concepções utilizadas pelo nível mais abrangente de ação política e cujo poder de influência atinge todo o território nacional. Com caráter regulador e indutor, as iniciativas do governo federal, principalmente a partir dos dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso (1995-1998 e 1999-2002), têm se caracterizado, como anunciamos anteriormente, pela influência da hegemônica política neoliberal. O atual governo, por sua vez, a despeito de pequenas diferenças em termos de políticas sociais focais, 18 também não tem alterado a condução da política educacional em uma direção contra- hegemônica, mantendo em muitos aspectos os documentos utilizados como referenciais curriculares e pedagógicos para o trabalho educativo. Nesse sentido, as propostas curriculares de EJA elaboradas no âmbito do governo federal constituem-se em documentos essenciais no que se refere à análise das idéias e concepções indicadas como parâmetros para a EJA de todo o país. Além do documento intitulado Proposta curricular para a Educação de Jovens e Adultos: Segundo Segmento do Ensino Fundamental: 5ª à 8ª série (BRASIL, 2002d, 2002f), há também o projeto e o material didático elaborados para o Exame Nacional de Certificação de Competências de Jovens e Adultos (ENCCEJA) (BRASIL, 2002a, 2002b, 2002c), ação criada ainda no governo Fernando Henrique Cardoso e retomada recentemente pelo governo Lula; o Programa Nacional de Inclusão de Jovens: Educação, Qualificação e Ação Comunitária (ProJovem), implementado pelo atual governo com o objetivo de promover o término do ensino fundamental de jovens entre 18 e 24 anos de idade que já completaram o primeiro segmento deste nível de ensino; e a Coleção Cadernos de EJA, lançada em 2007 com a intenção de servir como apoio didático aos professores da EJA de toda a nação. Em função da quantidade e complexidade que envolve o conjunto dessas propostas, optamos por focalizar a análise nas propostas curriculares e nos materiais didáticos referentes ao ProJovem e à Coleção Cadernos de EJA por se configurarem, entre as quatro ações anunciadas, as que representam as políticas de currículo do atual governo. Assim, com esses objetos de pesquisa e investigação, buscamos captar os sentidos e discursos instituídos no momento atual, potenciais reveladores das questões contemporâneas que envolvem a educação geográfica de jovens e adultos trabalhadores. Também julgamos importante ressaltar que o trabalho investigativo proposto é encarado como parte de um todo, isto é, concordando com Sanfelice (2005), consideramos o objeto de estudo como “relação da parte com o todo, não um todo infinito para o pesquisador, mas um todo tomado tanto quanto necessário para o melhor conhecimento do objeto” (p. 85). Isso porque “queremos saber sobre o movimento do objeto. Aprofundar no seu conhecimento é um caminhar do fenômeno à essência e isso nos leva a infinitas possibilidades. Sem explicitar o movimento e as suas contradições, pouco se faz”, pois “o mundo não pode ser considerado um complexo de coisas acabadas, mas sim um processo de complexos nos quais as coisas e o seus reflexos intelectuais em nossos cérebros, os conceitos, estão em mudanças contínuas e ininterruptas de devir” (ibid., p. 75). Nesse sentido, a identificação e a 19 explicitação dos conceitos centrais ao tema de investigação se tornam ações fundamentais para a pesquisa científica. Se a formulação de conceitos é a chave para a indagação, uma vez que nos possibilita identificar, tornar cognoscível e inteligível essas relações invisíveis que nos permitem compreender o real, reconhecemos, no entanto, que mostrar os conceitos e categorias com os quais trabalhamos significa tomá-los como construtos plenos de historicidade e, por isso mesmo, constituídos de diferentes interpretações. Por isso a necessidade de dizer de que ângulo teórico os observamos, pois sabemos que o “pensamento, de um sujeito pesquisador, sempre será um pensamento situado, terá o seu mirante de onde olha e este lhe dará o seu alcance e o seu limite” (SANFELICE, 2005, p. 85), sendo: [...] somente assim que se torna possível uma coerência científica que desde a escolha do objeto de pesquisa até a produção de um novo conhecimento sobre o mesmo resulta de uma opção política-ideológica, no âmbito de uma visão materialista de mundo em contínuo movimento e onde as contradições antagônicas são as chaves para se compreender as alterações quantitativas e qualitativas da história e da educação (ibid., p. 90). Tomando como base esses pressupostos, identificamos e explicitamos ao longo dos primeiros capítulos os principais conceitos com os quais trabalhamos e que serviram de referência para a investigação desenvolvida. Assim, os conceitos de classe trabalhadora, ou classe-que-vive-do-trabalho, preconizado por Antunes (1999, 2003), recontextualização, desenvolvido por Basil Bernstein (1996), e de políticas de currículo, analisado de acordo com Lopes (2005), constituem-se em referenciais essenciais para o desdobramento da pesquisa. Além disso, as concepções de educação de jovens e adultos e de geografia escolar são também explicitadas com o intuito de deixar claro o mirante a partir do qual olhamos e analisamos o objeto deste estudo. Em termos metodológicos, o trabalho investigativo constitui-se em uma pesquisa documental cujas principais fontes são os materiais didáticos elaborados em consonância com as duaspropostas curriculares selecionadas. O ProJovem, por se configurar em um programa que prevê formação escolar no nível fundamental, desenvolve sua intervenção pedagógica junto aos alunos através de uma coleção didática composta por quatro volumes. Cada volume possui um tema aglutinador das diferentes áreas do conhecimento, sendo o foco de nossa investigação os conteúdos geográficos contemplados na área de ciências humanas. Quanto aos Cadernos de EJA, estes são compostos também por uma coleção didática que contém vinte e seis volumes, treze voltados para os alunos e treze direcionados para o professor. 20 Também temáticos, os volumes dedicados ao professor apresentam sugestões de atividades didáticas para cada disciplina escolar, sendo então o foco principal da análise empreendida neste trabalho as atividades de geografia presentes em quatro dos treze volumes da coleção. O principal procedimento de investigação, portanto, é a análise dos discursos e conteúdos geográficos encontrados nas duas coleções didáticas, tomando-os em sua relação com os objetivos e pressupostos das propostas curriculares nas quais estão inseridos. Em um primeiro momento, cada coleção é alvo de um exame atento sobre a seleção, organização e tratamento do conhecimento escolar de geografia, utilizando-se nesses instantes a contribuição de reflexões relativas a variados temas do conhecimento geográfico e a recontextualização destes para o contexto escolar da EJA. Em momento posterior, as análises empreendidas são sistematizadas de forma a destacar alguns aspectos encontrados nas coleções e que marcam tanto a EJA enquanto modalidade de ensino da educação básica como a geografia escolar e seus dilemas contemporâneos. Enfim, para alcançar as intenções anunciadas, o texto da tese é organizado em cinco capítulos e nas considerações finais. O primeiro capítulo trata, em geral, das políticas educacionais referentes à EJA, com enfoque na formulação de propostas e programas curriculares. Nele explicitamos primeiramente a concepção de EJA com a qual trabalhamos. Para tanto, analisamos as características do capitalismo contemporâneo, o processo de reestruturação produtiva e sua influência nas relações de trabalho e na configuração da classe trabalhadora, além do próprio conceito de classe trabalhadora, que deverá ser revisitado com o intuito de “atualizá-lo” diante do atual cenário socioeconômico. O segundo item deste capítulo aborda o papel do currículo escolar nas políticas educacionais, ou seja, lançamos mão de reflexões acerca do papel regulador e indutor do Estado na elaboração de políticas, propostas curriculares para os sistemas e programas educativos. Além disso, no que se refere às especificidades da EJA e a questão do currículo escolar, discutimos o que vem sendo produzido em termos de propostas curriculares para esta modalidade, considerando projetos de continuidade e de inovação curricular e as diversas acepções atribuídas a este termo. O segundo capítulo tem a geografia escolar como centro da discussão. A partir da perspectiva crítica, é analisada, em um primeiro momento, a relação entre o pensamento geográfico e o ensino de geografia na educação básica tomando-se como fio condutor o conceito de recontextualização pedagógica. Em seguida, algumas características da trajetória histórica do ensino de geografia são consideradas enfatizando-se, nesse contexto, o trato dado aos conhecimentos geográficos selecionados como legítimos para serem desenvolvidos nas escolas brasileiras. O último item aborda questões referentes ao ensino de geografia na EJA 21 em uma perspectiva também histórica, pretendendo trazer à baila algumas reflexões sobre currículos oficiais e experiências concretas de educação geográfica para a modalidade de ensino em foco. O terceiro e o quarto capítulo são reservados para a análise das coleções didáticas selecionadas, privilegiando-se o movimento que vai desde as suas concepções de educação, sociedade, currículo e conhecimento escolar até as políticas e práticas que as engendraram. O conceito de recontextualização é aqui retomado na intenção de se identificar semelhanças e diferenças entre as concepções anunciadas. Também os pressupostos relativos à EJA e à geografia escolar têm destaque ao longo das análises no intuito de se desvelar possibilidades e limites das propostas, sempre tomando como referência o que consideramos como projeto contra-hegemônico de educação e sociedade e a contribuição da educação geográfica para tal intento. O quinto capítulo traz para si o desafio da sistematização das análises realizadas, partindo também para algo que chamamos de princípios e bases da educação geográfica de jovens e adultos trabalhadores. Não se pretende, contudo, desenvolver considerações prescritivas e sim o anúncio de possibilidades que, a partir das análises empreendidas, caminhem na direção de uma geografia escolar mais comprometida com a emancipação dos sujeitos que freqüentam as salas de aula de programas de EJA, trabalhadores a quem têm sido negadas a cidadania plena e a possibilidade de pensar uma sociedade mais justa e igualitária. 22 CAPÍTULO 1 EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS TRABALHADORES: DOS FUNDAMENTOS ÀS POLÍTICAS DE CURRÍCULO Entendemos como fundamentos um conjunto de elementos cujo conhecimento é praticamente obrigatório para que se compreenda a formação e a caracterização de um determinado campo de estudo e/ou de atuação profissional. Trata-se, na verdade, das bases e alicerces a partir dos quais se engendraram os traços principais do campo em questão, desde sua gênese, passando pelo processo que o consolidou enquanto tal até sua configuração atual. No nosso caso, nos referimos à modalidade EJA e dela tomamos como fundamentos a caracterização de seu público; sua trajetória na história da educação brasileira; seu marco legal, através do qual verificamos sua contemporaneidade em termos de concepções e formas de atuar; e as políticas públicas que, em seu processo histórico, fizeram e fazem-na existir e permanecer como campo de luta pelo direito à educação para todos. Cabe ressaltar, de início, que a EJA passa a ser analisada a partir de duas vertentes depois da Declaração de Hamburgo4. Segundo Paiva (2004), a primeira vertente se refere à escolarização de adultos, situada justamente dentro da luta pelo reconhecimento do direito à educação básica a todos, independente da idade. A segunda vertente, ainda de acordo com a autora, diz respeito à educação continuada, baseada no princípio do aprender por toda a vida, “independente da educação formal, incluíndo-se nessa vertente as ações educativas de gênero, de etnia, de profissionalização, questões ambientais etc., assim como a formação continuada de educadores, estes também jovens e adultos em processos de aprendizagem” (ibid., p. 31). Embora reconhecendo a importância do sentido dado à EJA pela segunda perspectiva, esclarecemos que este trabalho diz respeito à escolarização de jovens e adultos, uma vez que seu objeto de investigação e análise se refere às políticas de currículo para a formação escolar de jovens e adultos trabalhadores e às questões que envolvem a instituição de projetos educativos que levam em conta as especificidades desse público. Dessa forma, destacamos a caracterização do público da EJA como fundamento primordial para a sua compreensão enquanto campo de estudo e como modalidade da educação básica. Isso porque somente a partir da especificidade de seu público, podemos 4 A Declaração de Hamburgo é o documento-síntese das discussões travadas na V Conferência Internacional de Educação de Adultos (CONFINTEA),realizada em Hamburgo (Alemanha), em 1997. 23 analisar sua trajetória e perceber a necessidade da constituição de políticas exclusivas que atendam suas características. Além disso, é nesse ponto que se encontram diferentes concepções a partir das quais se pensa e se atua politicamente na EJA. A centralidade dessa análise no sentido ontológico do trabalho5 e na luta de classes é distinta daquela que vê a EJA e seu público como expressões apenas da diversidade cultural e do multiculturalismo. Por isso utilizamos a expressão jovens e adultos trabalhadores, para identificar o referencial sobre o qual nos baseamos e dizer que tratamos, na verdade, da escolarização da classe trabalhadora. Em função disso, dedicamos a primeira parte deste capítulo para apresentar as concepções através das quais analisamos o público da EJA: suas características, sua composição e a forma com que as políticas educacionais vêm atuando no que concerne à escolarização dessas pessoas. Tais políticas são aqui analisadas sob o enfoque das propostas curriculares. Em outras palavras, resgatamos o processo histórico que possibilitou a constituição e a consolidação da EJA como modalidade da educação básica através das políticas de currículo. Isso porque, de acordo com Lopes (2004), “toda política curricular é uma política de constituição do conhecimento escolar, um conhecimento construído para a escola (em ações externas a ela), mas também pela escola (em suas práticas institucionais cotidianas)” (p. 193). E se é assim, se nos interessa examinar a constituição do conhecimento escolar para a EJA em iniciativas externas à escola, o eixo de análise será este conhecimento em sua construção, não nos referindo, portanto, ao momento em que ele é instituído nas ações escolares. Essa opção se dá em função do objeto de estudo desta tese, voltado para a análise da educação geográfica em propostas curriculares da modalidade EJA no ensino fundamental. São, portanto, as políticas de currículo que nos possibilitam o levantamento e o exame das concepções, intencionalidades e ações que têm marcado o ensino/aprendizagem de geografia na EJA, uma vez que tais propostas “veiculam discursos vigentes no país que criam verdades ao oficializarem saberes e legitimarem posturas”. Além disso, como resultado das políticas de currículo, “as orientações curriculares oficiais refletem também um ideário que permeia mais amplamente a sociedade através das suas instituições e das forças sociais que as animam” (BARRETTO, 1998). Assim, este capítulo traz os referenciais teóricos com os quais trabalhamos e os campos com os quais dialogamos, configurando-se então como um panorama da EJA no que 5 “Nesta compreensão, independente da forma histórica que assume, trabalho e relações materiais de produção social da existência são fundantes da especificidade humana à medida que é pelo trabalho que a espécie humana se produz” (FRIGOTTO, 1998). 24 se refere ao seu público e às concepções e políticas curriculares voltadas para o processo de escolarização em seu âmbito. 1.1 CONFIGURAÇÃO DO PÚBLICO DA EJA: MAPEANDO O PONTO DE PARTIDA Quando nos referimos à Educação de Jovens e Adultos como modalidade da educação básica, temos claro que o que a caracteriza e a diferencia da educação escolar de crianças e adolescentes são, obviamente, certas características específicas de seu público. Em geral, reconhecemos que este é detentor de experiências significativas de vida e possuidor de maior inserção no mundo do trabalho. É formado por muitos chefes de família que carregam consigo a responsabilidade, as alegrias e os desafios inerentes a esta condição, além de ser composto por pessoas que trazem um acúmulo de saberes, costumeiramente chamado de senso comum, que os distingue entre si e revela suas diferentes identidades, constituídas a partir de formas diversas de inserção na vida em sociedade. Contudo, junto a estes traços que são próprios da condição de não crianças, os educandos da EJA, principalmente os que freqüentam o sistema público de ensino, trazem a marca da sociedade de classes. Jovens, adultos e idosos cursam esta modalidade de ensino porque, invariavelmente, as condições socioeconômicas nas quais se encontravam na infância e na adolescência não permitiam ou dificultavam, para muitos, o próprio acesso à escola e, para outros, a permanência e a conclusão do processo de escolarização. Ora, essa é uma situação típica da classe trabalhadora, pois para essas pessoas a inclusão prematura no mundo do trabalho é, na maioria das vezes, um imperativo, uma exigência da vida. Para além dos jovens e adultos trabalhadores, sabemos que, atualmente, outro grupo vem caracterizando os cursos de EJA: o considerável número de adolescentes recém-egressos do período diurno. Muitos, repetindo a sina dos jovens, adultos e idosos trabalhadores, recorrem à EJA em função do trabalho precoce. Outros, por serem evadidos, repetentes, renitentes, expulsos ou convidados a se transferirem dos cursos regulares, vão parar em cursos noturnos carregando a sensação de que, não havendo mais lugar para eles onde se encontravam antes, é essa a escola que lhes sobra. No entanto, em todos esses casos está a marca das desigualdades sociais, pois é a classe trabalhadora a mais vulnerável a essas situações. E são os cursos de EJA que a recebem e devem, em função de todas essas características, pensar e construir uma outra escola, a escola pública para adolescentes, jovens e adultos trabalhadores. 25 Em função dessa perspectiva, é imperativo aprofundarmos a configuração do público da EJA analisando e refletindo sobre as características da classe trabalhadora neste início de século. As recentes transformações na esfera produtiva e suas conseqüências para as relações sociais e o mundo do trabalho configuram um quadro extremamente complexo que exige maior reflexão e a atualização do que entendemos por classe trabalhadora hoje. Nesse sentido, reservamos esta seção para a análise das características do capitalismo contemporâneo, marcado pelo processo de reestruturação produtiva e pela expansão do ideário neoliberal e sua influência na atual configuração da classe trabalhadora. 1.2.1 O capitalismo da acumulação flexível e o mercado das ilusões Se há algum consenso entre os analistas, pesquisadores e estudiosos do atual cenário socioeconômico mundial é o fato de o modo de produção capitalista estar, há aproximadamente três décadas, imprimindo um processo de reestruturação em suas bases produtivas. Tais transformações se iniciaram nas unidades de produção e nos escritórios de algumas indústrias e se fizeram acompanhar por um lastro teórico-político – o neoliberalismo –, por uma suposta nova ordenação na relação entre o capital e os Estados nacionais – a globalização – e por um aprofundamento agudo das diferenças econômicas e desigualdades sociais em diversas regiões do planeta – a denominada exclusão social. Para este quadro as interpretações são muitas e variadas: de setores que o defendem e comemoram sua ascensão, passando por grupos que, embora reconheçam seus efeitos danosos, o tomam como inevitável e perene, a segmentos que denunciam suas desastrosas conseqüências para a dignidade humana e para a própria sobrevivência do planeta, e, sem adotar uma visão fatalista, vislumbram possibilidades de continuidade das lutas e da construção de outro tipo de sociedade. Para nós, adotar esta última como a melhor forma de compreensão dos recentes acontecimentos significa compartilhar a idéia de que a história é um processo e um conjunto de possibilidades que dependem da práxis social, isto é, da reflexão e da ação transformadora de homens e mulheres sobre o mundo. Nesse sentido, passamos a analisar o que CelsoFurtado (1998) chama de o novo capitalismo sob o prisma de uma interpretação contra-hegemônica, encarando o atual estágio do capitalismo mundial como fruto de um processo iniciado há, pelo menos, cinco séculos e composto por diversas fases, avanços e crises. Estamos tratando, portanto, como atesta Harvey (2001), de mais um momento de transição no regime de acumulação do capital e no 26 modo de regulamentação social e política a ele associado. Este autor localiza no tempo recente o início e as condições que possibilitaram tal transição. Diz ele: Aceito amplamente a visão de que o longo período de expansão de pós-guerra, que se estendeu de 1945 a 1973, teve como base um conjunto de práticas de controle do trabalho, tecnologias, hábitos de consumo e configurações de poder político- econômico, e de que esse conjunto pode com razão ser chamado de fordista- keynesiano. O colapso desse sistema a partir de 1973 iniciou um período de rápida mudança, de fluidez e de incerteza (2001, p. 119). Alertando para o perigo de se confundir mudanças transitórias e efêmeras com aquelas de caráter mais estrutural e permanente, Harvey vê a passagem do fordismo para o que ele denomina de acumulação flexível do capital como a melhor maneira de caracterizar a história recente. Para o autor, o fordismo se caracterizava, em linhas gerais, por uma completa racionalização do processo de trabalho e pela crença de que era preciso dar renda e tempo de lazer suficientes aos trabalhadores para que pudessem consumir os produtos produzidos em massa e em quantidades cada vez maiores. Nesse sentido, uma nova maneira de viver, de pensar e sentir a vida foi sendo constituída ao longo desse período. Gramsci (2001) já alertava, nos primórdios do fordismo, nos anos 1920 e 1930, que esta forma de acumulação capitalista empregou um enorme esforço para a criação de um novo sujeito, um novo homem, um novo tipo de trabalhador que precisava se adequar às suas características. Para que esse quadro se tornasse viável, era preciso uma base de sustentação política e um projeto de expansão mundial, já que tal forma de acumulação se iniciara nos Estados Unidos e não sobreviveria ou pouco possibilitaria um processo cada vez maior de acumulação e reprodução do capital se não se ampliasse e conquistasse adeptos para além das fronteiras iniciais. Assim, a partir da crise do capital dos anos 1930 e com maior força no período pós- guerra (pós-1945), o fordismo se aliou ao keynesianismo, utilizado como base política, e, em função dos planos de ajuda aos países devastados pela Segunda Guerra Mundial, expandiu-se para outras regiões de capitalismo avançado. Para Harvey (ibid.), no entanto, o que proporcionou a consolidação da expansão do fordismo em termos mundiais foi a articulação do papel dos principais atores do processo de desenvolvimento capitalista: O Estado teve de assumir novos (keynesianos) papéis e construir novos poderes institucionais; o capital corporativo teve de ajustar as velas em certos aspectos para seguir com mais suavidade a trilha da lucratividade segura; e o trabalho organizado teve de assumir novos papéis e funções relativos ao desempenho nos mercados de trabalho e nos processos de produção. O equilíbrio de poder, tenso mas mesmo assim firme, que prevalecia entre o trabalho organizado, o grande capital 27 corporativo e a nação-Estado, e que formou a base de poder da expansão de pós- guerra, não foi alcançado por acaso – resultou de anos de luta (p. 125). Vale lembrar que tal articulação possibilitou a aceitação do poder sindical por parte das grandes corporações monopolistas, que se tornavam cada vez mais transnacionais. Isso se deu porque, em parte, os sindicatos foram sendo acuados e levados a “trocar ganhos reais de salário pela cooperação da disciplinação dos trabalhadores de acordo com o sistema fordista de produção” (ibid., p. 129). Esta situação, porém, valia quase exclusivamente para os países centrais, uma vez que para a classe trabalhadora da periferia do capitalismo mundial o fordismo, em troca de ganhos irrisórios e pouca ascensão em seus padrões de vida, não passou de uma promessa de desenvolvimento e acesso aos bens de consumo de massa. Com a sua expansão, basicamente via corporações transnacionais, o que se viu foram os ganhos se voltarem apenas para as elites nacionais que decidiram colaborar com o capital internacional e a consolidação de uma nova cultura de consumo de base ocidental promovendo a transformação ou mesmo a destruição de muitas culturas locais (ibid.). A partir dos anos 1970, porém, a instalação de uma grave crise estrutural do capital fez com que, de acordo com Antunes (2002), se implementasse um vasto processo de reestruturação com vistas à recuperação do ciclo de reprodução do capital. Neste contexto, a rigidez fordista, que se expressava nos investimentos de capital fixo, nas regulações do mercado e dos contratos de trabalho e nos compromissos sociais dos governos (seguridade social, direitos de pensão, controle fiscal etc.) a partir da adoção do Estado de Bem-Estar Social, passou a ser questionada e responsabilizada pela crise, o que redundou, segundo Harvey (op. cit.), na implantação da acumulação de tipo flexível. Esta crítica ao sistema de acumulação fordista, na verdade, já encontrava eco logo após o fim da Segunda Guerra, quando então nascia o neoliberalismo, um conjunto de idéias que combatia justamente o Estado intervencionista e de bem-estar. Para Anderson (1996), a origem e a expressão maior desse receituário foi a obra O caminho da servidão, de Friedrich Hayek, cujo conteúdo continha “um ataque apaixonado contra qualquer limitação dos mecanismos de mercado por parte do Estado, denunciadas como uma ameaça letal à liberdade, não somente econômica, mas também política” (p. 9). No entanto, o período de ouro do capitalismo mundial que, sob a batuta do fordismo-keynesianismo, comandou crescimentos econômicos sem precedentes, principalmente no núcleo orgânico do capitalismo, impossibilitava o avanço e a aceitação desse ideário. Sua prosperidade só se iniciou exatamente a partir do colapso do fordismo. 28 A chegada da grande crise do modelo econômico do pós-guerra, em 1973, quando todo o mundo capitalista avançado caiu numa longa e profunda recessão, combinando, pela primeira vez, baixas taxas de crescimento com altas taxas de inflação, mudou tudo. A partir daí as idéias neoliberais passaram a ganhar terreno. As raízes da crise, afirmavam Hayek e seus companheiros, estavam localizadas no poder excessivo e nefasto dos sindicatos e, de maneira mais geral, do movimento operário, que havia corroído as bases de acumulação capitalista com suas pressões reivindicativas sobre os salários e com sua pressão parasitária para que o Estado aumentasse cada vez mais os gastos sociais (ANDERSON, 1996, p. 10). Como vemos, Anderson e Harvey coincidem em suas análises no que se refere ao início da ascensão da acumulação flexível e da aceitação das idéias neoliberais. Forma-se, então, um novo modelo de produção que, pouco a pouco, passará a reger a vida social e, assim como o fordismo, passará a formatar um novo sujeito, um novo trabalhador que terá de se adaptar a tempos mais flexíveis, voláteis e fluidos, para utilizar apenas alguns termos que, a partir desse momento, entrariam no vocabulário de um número cada vez maior de idiomas. Considerando que ainda vivemos atualmente esse período de transição, Harvey (2001) afirma que o novo modelo de acumulação: [...] se apóia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo. Caracteriza-se pelo surgimento de setores de produção inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento de serviços financeiros, novosmercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovação comercial, tecnológica e organizacional. A acumulação flexível envolve rápidas mudanças dos padrões do desenvolvimento desigual, tanto entre setores quanto entre regiões geográficas, criando, por exemplo, um vasto movimento no emprego no chamado ‘setor de serviços’, bem como conjuntos industriais completamente novos em regiões até então subdesenvolvidas (p. 140). Além disso, o autor destaca que a acumulação flexível envolve também um novo movimento denominado de “compressão do espaço-tempo”, isto é, o surgimento de processos, possíveis em função da expansão das tecnologias de comunicação e de transporte, que transformam as relações espaço-temporais entre indivíduos e corporações. Tais processos “revolucionam as qualidades objetivas do espaço e do tempo a ponto de nos forçarem a alterar, às vezes radicalmente, o modo como representamos o mundo para nós mesmos”, fazendo com que tenhamos que “aprender a lidar com um avassalador sentido de compressão dos nossos mundos espacial e temporal” (p. 218). Chamamos a atenção, no entanto, para o fato de que tal movimento se dá de forma desigual entre os indivíduos das diferentes regiões do planeta. Isto quer dizer que a compressão espaço-tempo de que nos fala Harvey não é apropriada da mesma maneira por todos, embora se faça cada vez mais presente e inexorável 29 nos processos que engendram e possibilitam a reestruturação produtiva via acumulação flexível. De qualquer modo, acreditamos que seja esse movimento um dos motivos através do qual um outro termo passasse a expressar o processo pelo qual as relações econômicas, sociais, culturais e políticas vêm atravessando no mundo atual: a chamada globalização, considerada por muitos como a nova ordenação espacial da economia mundial. Tal relação com o conceito de compressão espaço-tempo se dá no sentido de que, ao longo da história do capitalismo, as inovações tecnológicas sempre alteraram as condições da espacialidade no intuito de favorecer a reprodução e a acumulação do capital. Em texto recente, Harvey (2004b) explicita melhor essa relação ao dizer que: [...] o que pode ser derivado teoricamente, e que é compatível com o registro histórico-geográfico do capitalismo, é um incessante impulso de redução, se não de eliminação, de barreiras espaciais, associado a impulsos igualmente incessantes de aceleração da taxa de giro do capital. A redução do custo e do tempo do movimento provou ser uma necessidade vital de um modo de produção capitalista. A tendência à ‘globalização’ capitalista tem sido impelida sem remorsos por etapa após etapa de compressão do espaço-tempo (p. 86, grifo nosso). Esta afirmativa revela, portanto, que não há novidade alguma neste processo. Wood (2005), fazendo alusão à constatação de Marx em O manifesto comunista (1848) sobre o caráter cosmopolita que a burguesia deu à produção e ao consumo de todos os países, atesta que “a globalização não é uma nova época, mas um processo de longo prazo; não se trata de um novo tipo de capitalismo, mas da lógica do capitalismo tal como este foi desde o começo” (p. 101). Seguindo esse mesmo raciocínio, ainda Harvey (2004a), em outro trabalho, afirma que se “a palavra ‘globalização’ significa alguma coisa relativa à nossa geografia histórica recente, é bem provável que designe uma nova fase de exatamente esse mesmo processo intrínseco da produção capitalista de espaço” (p. 81). Sobre esta produção de espaço, vale lembrar que processos interativos de troca no espaço redundaram na divisão territorial do trabalho, cuja expressão mundial se dá a partir da divisão internacional do trabalho. Além disso, capitalistas individuais sempre tenderam a empregar seu capital excedente em um outro lugar onde as oportunidades de lucro são maiores, ou seja, a expansão geográfica do capital sempre tentou resolver o problema da sobreacumulação. É o que Harvey (2004b) afirma ao analisar as características do imperialismo, pois, para ele: 30 [...] a questão efetivamente relevante é o que acontece a capitais excedentes gerados em economias regionais subnacionais quando não podem encontrar um emprego lucrativo em nenhuma parte do Estado. Este é, com efeito, o cerne do problema que gera pressões em favor de práticas imperialistas no sistema interestados (p. 92). É a partir de processos moleculares de acumulação do capital, isto é, a partir de economias regionais que tendem a se tornar o interesse e o padrão de toda uma nação, que o capital lança mão dessas práticas imperialistas. Traduzido na expansão de grandes corporações transnacionais, que, como nos lembra Wood (2005), não significam empresas não-nacionais, mas companhias nacionais de alcance transnacional, o imperialismo encontra seu vigor desde tempos fordistas a partir dos países nucleares, com grande destaque para o papel de liderança exercido pelos Estados Unidos. Para Harvey (2004b), todo esse processo vem acarretando “um mundo espaço-temporal entrelaçado de fluxos financeiros de capital excedente com conglomerados de poder político e econômico em pontos nodais chave (Nova York, Londres, Tóquio) que buscam [...] livrar o sistema da sobreacumulação [...]” (p. 112). Tal processo acirra o desenvolvimento desigual característico desse processo de globalização com práticas imperialistas. Assim, para muitos, globalização e imperialismo, ou novo imperialismo, são processos indistinguíveis, são frutos da expansão opressora do capital, principalmente em direção aos países periféricos e semi-periféricos, aprofundando relações seculares de dependência e subserviência econômicas. Jameson (2001), no entanto, ao tentar exprimir o que se entende por globalização, prefere lançar mão de todas as descrições e fazer um inventário de suas ambigüidades, explorando, para isso, cinco níveis distintos desse processo: o tecnológico, o político, o cultural, o econômico e o social. O nível tecnológico diz respeito às novas tecnologias da comunicação e da informática e seus impactos na produção e comercialização de mercadorias. Diante da irreversibilidade desta dimensão da globalização, Jameson indaga ainda assim sobre a inevitabilidade desse processo. Para Santos (2001), autor do termo meio técnico-científico informacional para designar mais uma faceta do período atual, há interpretações ideológicas que sustentam que as novas tecnologias são responsáveis pelo que convencionou-se chamar de aldeia global, o que acarreta a falsa sensação de que a difusão instantânea de notícias realmente informa as pessoas e de que o mundo pudesse estar, para todos, ao alcance das mãos. No nível político, a grande questão que tem se colocado como verdade é o enfraquecimento, ou mesmo o fim, do Estado-nação enquanto organizador e regulador da vida 31 e dos interesses econômicos dos povos. Fazendo alusão ao caráter imperialista da globalização em curso, Jameson (2001) questiona: E ao falar do enfraquecimento do estado-nação não estaremos na verdade descrevendo a subordinação de outros estados-nações ao poderio americano, seja através de consentimento e colaboração, seja através do uso de força bruta e de ameaças econômicas? Por trás desses temores está uma nova versão do que antes se chamava de imperialismo, cujas formas compõem agora uma verdadeira dinastia (p. 18). Ainda sobre o papel do Estado na globalização econômica de acumulação flexível, vários autores (JAMESON, 2001; SANTOS, 2001; WOOD, 2005) identificam a contradição central da (pós) moderna doutrina do livre mercado: o desenvolvimento de um mercado efetivamente livre das “garras” de governos envolve necessariamente enorme intervenção governamental, já que o mercado livre não cresce naturalmente, precisa de legislaçõesespecíficas e de medidas intervencionistas para que o capital obtenha as condições necessárias de reprodução e acumulação flexível. Ou seja, mais um mito – a morte do Estado – compõe o que Santos considera a fábula da globalização, aquela que o capital quer nos fazer crer. Em termos culturais, a globalização também se encontra na esteira do imperialismo, situando-se na propagação, já histórica, da cultura ocidental em direção a todos os cantos do planeta. Jameson (op. cit.), na verdade, situa essa questão na esfera dos temores e receios sobre o grau de mudanças que esta invasão vem imprimindo aos povos e questiona alguns posicionamentos que subestimam tal processo. Considerando que a produção das mercadorias é também um fenômeno cultural, já que “se compram os produtos tanto por sua imagem quanto por seu uso imediato” (p. 22), o autor afirma que as questões culturais tendem a se propagar para as questões econômicas e sociais. Nesse sentido, por exemplo, a propaganda torna-se uma mediação essencial entre a cultura e a economia. Economicamente, os aspectos mais relevantes para Jameson dizem respeito ao papel devastador que as grandes corporações vêm exercendo nos mercados de trabalho nacionais ao transferir parte de suas operações a outros países e continentes à procura de mão-de-obra mais barata. Até agora, diz o autor, “não houve uma globalização comparável do movimento dos trabalhadores para responder a esta situação” (ibid., p. 25). O predomínio e a expansão do capital financeiro é outra característica no plano econômico que marca a globalização, também possível somente em função do uso das novas tecnologias da informação. Como não se trata de investimentos produtivos e sim de especulações financeiras, as transações nesse mercado vêm acarretando cada vez maior 32 dependência dos países que se situam fora do eixo central do capitalismo mundial, uma vez que “transferências instantâneas de capital podem empobrecer regiões inteiras, drenando de um dia para outro o valor acumulado por anos de trabalho nacional” (p. 26). A aproximação do nível cultural ao nível social se dá com a proliferação, a partir da cultura ocidental, da cultura do consumo. Em Jameson a utilização deste termo designa o modo específico de vida gerado pela produção de mercadorias no que ele chama de capitalismo tardio. Tal cultura integra o tecido social como parte da vida cotidiana produzindo individualismos e atomizações da sociedade que corroem os grupos sociais. O lado perverso da globalização em termos sociais é revelado por Santos (2001) ao elencar uma série de adversidades enfrentadas pela maior parte da humanidade atualmente. Desemprego, acirramento das desigualdades sociais, queda de salários, fome, abandono, agravamento de epidemias, desvalorização da educação de qualidade, entre outras atrocidades, se tornaram rotina na vida de milhões de pessoas. Diante desse quadro, o autor acredita que “a perversidade sistêmica que está na raiz dessa evolução negativa da humanidade tem relação com a ação desenfreada aos comportamentos competitivos que atualmente caracterizam as ações hegemônicas” e conclui dizendo que “todas essas mazelas são direta ou indiretamente imputáveis ao presente processo de globalização” (p. 20). Apesar do cenário desumano apontado por essa e por inúmeras outras análises, há de se perguntar de onde vem a força de verdade e de consentimento em relação à globalização neoliberal de acumulação flexível. Harvey (2004a) atribui esse poder atrativo à promoção do termo globalização como uma virtude, sensação causada e divulgada pelo mercado financeiro a partir da “passagem de um sistema global hierarquicamente organizado e largamente controlado pelos Estados Unidos a outro sistema global mais descentralizado, coordenado pelo mercado, sistema que tornou bem mais voláteis as condições financeiras do capitalismo” (p. 89). O autor chega a insinuar que a imprensa financeira foi a responsável pela indução a todos do termo globalização como grande novidade com o intuito de utilizá-la como peça publicitária do ajuste financeiro comemorado pelo capital internacional. Velhos atores em novas formas permitem o consenso e mantêm a hegemonia dos interesses do capital a praticamente toda a sociedade humana. Segundo Santos (op. cit.), a ciência e a técnica a serviço do mercado, os utilitarismos e a exacerbação do eleitoralismo que leva a democracia de mercado ao consumo de eleições, isto é, ao enfraquecimento do debate de idéias e da própria política em si, são alguns dos elementos que fazem com que boa parte da sociedade e dos indivíduos aceite o reino do cálculo econômico e da competitividade. Para 33 o autor, “são, todas essas, condições para a difusão de um pensamento e de uma prática totalitárias” (p. 54). Seguindo a mesma linha de raciocínio de Santos, Ramonet (1998) é enfático: “O Estado não é mais totalitário, mas a economia, na era da globalização, tende cada vez mais para isso”. O autor compara os antigos regimes totalitários – de partido único, que não permitiam nenhuma oposição sistematizada, violadores dos direitos humanos em nome do poder político – a um outro tipo de totalitarismo, ou melhor, ao que ele chama de regimes globalitários, que, “repousando nos dogmas da globalização e do pensamento único, [...] não admitem nenhuma outra política econômica, descuidam dos direitos do cidadão em nome da razão competitiva e entregam aos mercados financeiros a direção total das atividades da sociedade dominada” (p. 60). Portanto, é através da imposição desses dogmas que aqueles que estão a serviço do capital atribuem à globalização a inexorável constituição de indivíduos “globais” cada vez mais competitivos. Para Ramonet (ibid.), essa viscosa doutrina tem conseguido envolver os cidadãos das principais democracias atuais e expandir a política do pensamento único, que nada mais é do que: [...] A tradução, em termos ideológicos com pretensão universal, dos interesses de um conjunto de forças econômicas, especialmente as do capitalismo internacional. [...] Suas principais fontes são as grandes instituições econômicas e monetárias [internacionais] [...] que, por meio de financiamentos, arregimentam a serviço de suas idéias, em todo o planeta, inúmeros centros de pesquisa das universidades, das fundações. Estes, por sua vez, depuram e espalham a boa palavra, que é retomada e reproduzida pelos principais órgãos de informação econômica e, especialmente, pelas “bíblias” dos investidores e dos investidores de bolsas – The Wall Street Journal, The Financial Times, The Economist, Far Eastern Economic Review, a agência Reuter etc. – propriedades, muitas vezes, dos grandes grupos industriais ou financeiros (p. 57). Pode-se dizer, então, que o pensamento único expressa o poder hegemônico que conta, por sua vez, com diversos meios para a sua legitimação perante a sociedade. Além das instituições científicas e imprensa especializada, a idéia de um mercado global cada vez mais competitivo que atinge a tudo e a todos e promete a felicidade fetichizada através do consumo exacerbado é veiculada também pelo Estado e pelos meios de comunicação de massa em geral. O mercado das ilusões, arauto da atual hegemonia capitalista, é, pois, garantido por políticas estatais explícitas e vangloriado a todo o momento pelo discurso midiático incessante e insistente. Isto se dá porque, como afirma Gramsci (2002b, p. 99), hegemonia é direção política, cultural, intelectual e moral e uma de suas características é possuir um centro 34 diretivo sobre os intelectuais que se afirma através de duas direções: uma concepção geral de vida, uma filosofia – o mercado das ilusões comercializado pela grande mídia –; e um programa escolar, um princípio educativo e pedagógico original – a nova pedagogia
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