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13. Foucalt, M. Ciencia e Saber

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MI(;HEL FOUCAULT
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A Arqueologia
do Saber
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LUIZ FELIPE BAETA NEVES
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FORENSE-UNIVERSlTAIuA
Rio de Janeiro
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dlscUl'~;i'"'' i;!(cifMflt"IHC \llversa Sdl.) 0.1 .Iormado:> 5eguad..:; }~I", i:)P<-.... ;1J,••~,~ ,,,,d~P'''U:
outra posl~ao, nao fllJuram nos mcsmos cDcadcameotos; C.ua posltlvldadl! nova nAo
l!: uma transfom1a<;.§o da! an~list5 dt Ricardo; n:lo ~ uma nOVI1 ('conomla polltka:
~ um dlscurso cufa lostaura,lo teve lugar ("m vlrtude'dn dtrh:.,,:5o de certos con-
ceHo, tconOmlcos. mas quC". em compens;lc;Jo. define :t:! condl<;Ot>s n"~ qunt! 5t
("xerce 0 dlscurso dos C'cOrJomlst;u c pode. pols. vn!ef como tcoria r (rWeR dOt
ccoDomJa poJltlca.
A arqt.lcologla deS3rtlcula a slncronl" do.'i cort!"s, co"mo trri<:l dt!ftUo • unldl1dt'
nbstrata da mudanc;o e do aconttc!mcnto. A ~fkXn ndo ~ ntrn SUD unldadc de baS(',
nem ,Seu horiz.ontc, nem U1J objcto; !\(" (;11.;, .IObre d ..,. ~ M'mpt"C' II prop63lto de
pr<'\t!c<ls dlscursivas dttrrmln"das I: como fl:'.<;tllr ... do de SUi'll an~ll.~s. A fpocA
c!<\s... lca, qu~ fol frt'qfientemC'ntt' mC'ncfonad<1 n.,~ anAll.!('s arquC'ol6glcas. n30 f uma
flgur3 tcmpor;:tl que lm~ !lua unidiide C' !lUl'I form" va:la s fodos os dlscuTSOs; f-
a nome que sc pede' d<tr a um t'milranh;:tdo de conUnuldade, t delcontlnuldad~s.
de modlfk;u;&s In!rrnas b~ positlvidades. de forma~6c'.s di~cL!rslvOls que BpartCem
C' dC'sapat'("c('m. DOl mtsma form". " rlll'fur" nl'o ~. para a l!!'qu('ologla, 0 ponto
d~ apoio de suas nnA!i.sel, 0 limite' 4U(' d" mostr;'! de longe. scm poder detC'rmJn;\-Jo
nem d"r-Ih(' umn ('~~clficJd ..d(': n fuptura ~ 0 nome dildo it.': tr:Jnsforma~Ocs que
u fd('~m ~o regime 9l."'rnJ de uma ou vArla~ Corma,~s dlscurslva!. Asslm, a Rt!~
\'olu~ao France$i\ - lli qut' fol em torno dt"la que ~e cenfrnram at~ aqul tocfas 8S
nm\IlM! arquco16glc.;\s _ nlo rt'prt'~enta 0 p:tpcl de' urn ncont("clmenfo t'Xterior aos
dlscursos. cujo delta de dlvl,,'o. para prns.umo~ como Be dC've. terla de lIer
rr-eneontrndo c.m todos os di5cursos; clil funcion:. como um ~onJunto complexo.
llrUcuh~do. dt"lCntfvrl.. de t~n...fortm'll'i&s l.Jlie drixor:lm Intactas um Cf'rto mlmero
de posltivldad('!. Cixantm. parll outra~. rt"gras que· ninda s:io as no""s e, Igual ...
mente. tSfnbdt'('f'ram po~ltivid<'ld(':,: quI." ;1(;'lhaln d\.' :':(' d('~f<\Z('r ou K desfaztrn alnda
soh no!.~, othos.
6
CI~NCIA E SABER
Uma dellmlta~ao sllenclosa se Impos a todas as amillses p~­
eedentes, sem que se tenha apresentado seu principlo, sem
mesmo que seu desenho tenha sldo preelsado. Todos os exem-
ploS evoc~dos pertenelam, sem exee~ao, a urn domlnlo multo
restrito. Estamos longe de ter, nao digo Inventarlado, mas son-
dado' a !mensa dominic do dlseurso: par que ter abandonado
slstematleamente os textos "llterarlos", "filos6!leos" ou "polltl-
cos"? Sera que, nessas regl6es, as forma~5es d1scurslvas e as
sistemas de posltlvidade nlio tern lugar? Se nos restringimos
apenas a ordem das c1enelas, por que nlio ter falado da mate-
maUea, flslea ou qulmlea? Por que ter apelado para tantas
dlselplinas duvldosas, informes nlnda e destlnadas, talvez, a per-
maneeer sempre abalxo do Iimlnr da c1~nti!icldade? Em uma
pnIavra, qual e a relacao entre arqucologla e anll.lIse das
clenelas?
,
,
a) Positlvidades. disclplhlas, oCrlcias
t _ . . ; ...
Prlmdra questao: sera que a arqueologia, sob termca um
pouco blzarros como "forma<;ao dlscurslva" c ..postUvid1l.~e"..:nlio
cJcscreve slmplesmente pscudoclcnclas (como a pstcoparologla) .. -"·
c1enelns em estndo pre-hlst6rleo (como a h1st6r1a natural):-ou
c1encins Intelramente Impregnadns de ldeologla (como a Moo-' '."
....... . ..-,. ... ......
mla polltlea)? Ela nlio e a analise prlvilcgl8da do que~•.
neeenl, scmpre quase-elcntrfleo? Se chamamos'''dlselpllnas",-a .
conJunlos de rnllnclndos qlll' lomnm l'mpreslado de modclos
::.-s ..~
.... ~,." ,.
200
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clentllicos sua organizaGao, que tendem a cocrencia e Ii. demons-
trat!vidade, que sao recebidos, institucionalizados, transm!tldos
e As vezes ensinados como clencias, nao se poderla dizer que
aarqueologla descreve dlsciplinas que nao sao efetlvamentc
cienclas, enquanto que a epistemologia descreverla clencias que
~e formaram a partir (ou a despeito) das disciplinas existentes?
Podemos responder negatlvamente a tals questOes, A arqueo-
10gla nao descreve d!sc!plinas. Estas, no maximo, em seu desdo-
bramento manifesto, podem servlr de lsca para a deserl~iio das
pos!tlvidades; mas nao the flxam os llmltes: nao Ihe impocm
recortes deflnltlvos: niio se eneontram inalteradas no flm da
analise; nao se pode estabelecer relaGao b!unlvoca entre as d!s-
clplinas Instltuldas e as formaGoes discurs!vas.
Eis urn exemplo de tai distorGao. A questiio central da His-
toire de !a folie era 0 aparecimento, no inlcio do seculo XIX,
de uma d!sclplina pslqulatrlca. Esta nilo tlnha nem 0 mesmo
conteudo, nem a mesma organizaGao interna, nem 0 mesmo
Ingar na medicIna, nem a mesma funGilo pratlca, nem 0 mesmo
modo de utlllzaGao que 0 tradlclonal capitulo das "doenGas da
cabeGa" ou das "doenGas nervosas" que se encontravam nos tra-
tados de medlclna do seculo XVIII. Ora, Interrogando-se a nova
d.:sclplina, descobrlram-se duas coisas: 0 que a tornou posslvel
na epoca em que apareceu, 0 que determlnou essa grande mu-
danGa na economla dos conceltos, das analises e das demonstra-
Goes, foi todo urn jogo de relaGOes entre a hospitalizaGiio, a
InternaGao, as cond!Gocs e os procedlmentos da exclusiio social:
as regras da jurisprudimcla, as normas do trabalho industrial e
na moral burguesa, em resumo, todo urn conjunto quc caracte-
rlza, para essa pratica dlscursiva, a formaGRo de seus enuncia-
dos; mas essa pratlca nilo se manlfesta somente em uma dlscl-
plina de status e pretensuo clentiflcos; cncontramo-la 19ual-,
mente empregada em textos jurldlcos, em exprcssoes, litcrar!as,
em renexOes fIlos6ficas, em decisOes de ordem politlca, em pro:
p6sltos cotidianos, em opini6es. A formaG!io dlscurs!va cuja exls-
tencl!\ a d!sc!pllna pslquh'llrlca permlte dcmarcar nno the C
cocxlensiva; ao conlrario, cIa a excede amplamentc e a cerca de
tudos os lados. Mas ha mals: recuando no tempo e procurando
202
o que pade precedeI' nos seeulos XVII e XVIII a instauraGao da
psiqulatria, percebeu-se quc nao havia nenhuma disciplina ante-
rior: 0 que era dito das manias, deUrios, melancolias, doenGQS
nervosll.'l, pelos medicos da epoca classlca nao constltula de
modo algum uma dlsclplina autbnoma, mll.'l, no maximo, uma
rubrica na an{U!se das febres, das altera~oes dos humores ou
dll.'l arec~6cs do cerebro. Entretanto, apesar da ausencia de q~al­
quer disclplina instltulda, uma pratlca dlscursiva com sua regu-
larldade e conslstCnela era empregada. Essa pratica discurslva,
eertamente, era empregada na medlclna, mas, de igual modo, nos
regulame.ntos admlnlstratlvos, textos Iiterarlos ou flIos6flcos, ca-
suistic.., teorlas ou projetos de trabalho obrlgat6rlo ou de assis-
H!ncla aospobres. Temos, entao, na epoca classica, uma formaGiio
d:scurslva e un:a posltlvldade perfeltamente acessiveis a ,descri-
<;ao, As quais nao corresponde nenhuma dlscipl!na deflnlda que ,
!W passa camparar a pslqulatrla.
Mll.'l se e verdade que ll.'l.posltlvidades nao sao simples du-
plos dll.'l dlsclpllnas lnstltuldas, nno sao elas ° esboGo de ciencill.'l
futuras? Sob ° nome de forma~ao dlscursiva nao se designa a
proje<,;iio retrospectlva dll.'l clencill.'l sobre seu pr6prlo passado,a sombra que lanGllm sobre aquilo que as precedeu e que parece ,
t~las, aMim, traGado antecipadamente? 0 que se descreveu, par
exemplo, como analise dll.'l rlquezll.'l ou gramatica geral, empres-
tando-lhes uma autonomla talvez bern artificial, nao serla, slm-
plesmente, a economia politlca em cstado incoativo, ou. uma
fll.'le anterior a instauraGno de uma clencla, enflm rlgorosa, da
linguag~? POl' urn movimento retr6~o, cuja legltlmldade
serla,~ dtivlda, dlflcil de ser estabelec1da, a arqueolo~'DiiO'
tenta ieagrupar, cm uma pratlca discursiva Independente, todoS
os elementos hetcrogeneos e dispersos cuja cumpllcldade sc rove-
lara necessaria para a lnst~urnGiio de uma clencla? '. n,,~.;
.""A!nda aqul, n rcsposta,deve ser negntlvn. 0 que fol anal.liS.J
do sob 0 nome de hist6rla ,natural niio encert'll, em uma flg,ll-u
tinlca, tudo 0 que nos scculos,xvrr c xvm podcrla Valci.~~~i
o es~o de umn cl~ncln ,da, vida e flgurar em, sua ,gencaJogia. .
~ .0 ••• ,. ••• • _. _ ._~ .....",.. _... ,..
legltlma. A ~sitlvldnde lWllm ,revt:Jadll..db. oonta, na vc~.et~ds:••
urn certo numero de enunclados referentes ll.s semelhan,.as.e AS ' .
. " . ;' ..... ~ ..... :t.;;. •
dlferen<;as entre os seres, sua estrutura vlsivei, seus caractel'es
especlflcos e generlcos, sua classlfica<;ao possivel, as descontinul-
dades que os ~param e as transi<;iies que os unem; mas ela
delxa de lado multa$ outras ani\.J.lses, que datam, no entanto,
da mesma epoca e que tra<;am, tambem, as flguras ancestrais
da blologla: analise do movlmento reflexo (que tera tanta 1m·
portAncla para a constitul<;ao de uma anatoma-fislologia do sis·
tema nervoso), teorla dos gennens (que parece anteclpar·se aos
problemas da evolu<;ao e da genetica), explica<;iio do cresclmento
animal ou vegetal (que sera uma das malores questOes da fisla-
logla dos organlsmos em geral). Alem dlsso, longe de se ante-
cipar a uma blologla futura, a hlst6rla natural - discurso taxlo-
nOmlco Jigado a teorla dos slgnos e ao proje~ de uma clenc!a
da ordem - excluia, por sua solidcz e autonomla, a constitul<;ao
de uma clencla unltarla da vida. Da mcsma forma, a fonna<;ao
dlscurslva descrlta como grnmntica gcral nao da conta de tudo
que pOde ser dlto na epoca classlea, sobre a llnguagem, e cuja
heran<;a ou repudio, desenvolvlmento ou eritlca deverlam ser
encontrados. m.a1s tarde, na filologla: ela delxa de lado os meto-
dos da exegese blbllca e a fllosona da llnguagem fonnuJada por
Vlco ou Herder. As forma<;oes d1scurslvas nao sao, polS, as
el~clas' futuras no momento em que,' ainda inconsclentes de 81
mesmas, Be constituem em Burdina: nao estao, na verdade, em
em estado de subordlna<;iio teleol6glca em rela<;iio a ortog€mese
das cl~nc!as.
,,'. neve-se d!zer, entiio, que nao pode haver clencla onde ha
posltiVidades, e que estas, onde podemoB descobrl-1as, sempre
exclu'em as clenclas? Deve-se Bupor que, ao Inves de estarcm
pm uma rela<;iio cronol6g\ca face As cienclas, se cncontram em
uma sltua<;ao de altematlva? Que elas sao, de algum modo, a
!igura positlva de uma certa falha eplstemol6glca. Mas poderia-
mos,ttambem nesse caso, fomecer urn contra-exemplo. A medi·
clriii.'·cUnlca .segummente nao e urn" ciench':' nao' 56; porque
nail reSponde aos criterios formals e nuo atlnge 0 nivel de rigor
que Be'pode espcrar da fisica, da qulmica ou mesmo da Hslolo-
gla; ''iniis, tambCm, porque comparta urn acumulo, 'apcnasorgn-
Itizado, de obscrva~6es empfrlcas, de tentatlvas e de resultados
204
, '
bru!.os, de receil-as, de prescri~6es tnapeuticas. de reguiamenta-
(~6es institucionals. Entrctanto, csta lllio-cicncia nao exclui a
c!l~ncia: duru11te 0 secuJo XIX, ela estabeleccu rcla~6es defini.
cias entre cicnclas pcrleltamcnte constituidas como a llsiologia,
l\ qulmlca Oll a mlerobiologia; all?m dlsso. deu lugar a dlscursos
como 0 da anat.omla patol6gica, a que scria. scm dllvlda. pre-
sun<;iio dar 0 titulo de falsa clencla.
Niio Be pade, enllio, identlficar as forma~iies dlscursivas nem
,",S cl(melas, nem as disciplinas pouco cientillcas, nem as flguras
que delineiam de longe as clcncias que vlrao, e nem. flnalmente,
a formas que excluem, logo de inlcio, qualquer clentllicidade.
o que foi felto. entao, da rela~iio entre as posltlvidades e as
cfenclas?
b) 0 saber
As posltivldades nao caracterlzam formas de conhecimento
- quer sejam condi<;6es a priori e necessarias ou formas de ra·
c.;onalldade que puderam, por sua vez. ser empregadas pela his-
t6rla. Mas elas niio deflnem, tampollCO, 0 estado dos conheci-
mentos em urn dado momento do tempo: niio estabelecem 0
balan<;o do que, desde aquele momento, pOde ser demonstrado
e assumlr status de aqulsi<;ao definltiva; 0 balan~o do que, em
compensa9ao, era aceito sem prova nem demonstra9ao sunden-
!E:. ou do que era admltido pela cren<;a eomum ou rcquerldo pela
for<;a da Imaglna<;ao. Anallsar posltlvldades e mostrar segundo
. . \'.que regras uma pratiea'dlscurslva pode lormar grupos de obje-
'tos, conjuntos de 'enuncln~oes, jogos de conccltos. serle.s de esco-
Ihas tc6r'1cas. Os elementos asslrri fonnados nao constituem uma
clcncla, com umn estruturn de Idealldade deflnlda; seu sistema
de rela~6es e. certamente, menos estrita; mas nao sao. tampouco.
.conheclmentos aeumulados uns ao lado d03 outros.. vlnd03 de
(experiencins,ide tradl<;6es ou de descobertas hcterogeneaseJlga-
·dos somez'ltc·pela 1dcnUdade do suJetto que os dctem. ElI'S silo
.' "I base n pnrtlr'da:qual Be constroem proposlc;6es coercntes (ou
f:niio); se:'dcscnvOlv:emd~scrl~ocs mnls au mepos.exntas,:se~e[e­
~ ltuim verlllcn~&:os.,sc' dcsdobrnm toorins. Formam 0 anteccdcnte
"In. qlle se re"darn c runclonan' como um conhecimento 011
205
,
II
II
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i
uma i!usao, uma verdade admitida ou um erro denunclado, uma
aqulsl<;iio deflnitiva ou urn obstaeulo superado, Ve-se bern que
6Sse anteeedente nao pode, ser analisado eomo urn dado, uma
('xperieneia vlvlda - ainda inteiramente engajada no Imaglna-
rio ou na pereepc;iio -- que a humanidade, no curse de sua histO·
ria, terla tldo que retomar na forma de sua racionalldadc, ou
Clue eada lndlvlduo deverla atravessar por eonta propria, se
qulsesse reeneontrar as signifleac;ocs ideals que ai estao Intro-
ctuzldas ou ocultas. Nao se trata de urn pre-conhccimCllto ou
de urn estaglo arcalco no movimento que val do conhecimento
lrnedlato fl apodltleldade; trata-se dos elementos que devem ter
sldo formados por uma pratica diseurs!va, para que, eventual-
mente, se eonstitulsse urn discurso cicntifico, cspeciflcado nao
s6 por sua forma e Seu rigor, mas tambern 'pelos obJetos de
que se ocupa, os tlpos de enunciac;iio que poe em jogo, os con-
ceitos que manipula e as estrategias que utiliza, Asslm, a clencla
nao se relaciona com 0 que devia ser vivldo, ou deve s~lo, para
que seja fundada a Intenc;ao de idealidade que lhe e pr6pria;
mas slm com 0 que devia ser dito - ou deve se-Io - para que
possa haver um dlscurso que, se for 0 caso, responda a criterlo'S
~xperlmentals ou formais de clentlficldade,
A esse conJunto de elementos, formados de manelra regular
por uma pratlca dlseurslva e Indisp~nsavels a constltulc;ao de
uma ehlncla, aoesar de nao se destinarern neeessariamente a Ihe
dar lugar, pode-se chamar sabcr. Urn saber e aquilo de que pode-
mos falar,em uma pratlea dlseurslva que se encontra asslm espe-
cWeada: 0 domlnio const!tuldo pelos diferentes obJetos que Irao
adqulrlr ou nao urn status cientifieo (a saber da pslqulatria,
no seculo XIX, nao e a soma do que se aereditava fosse .verda-
delro; e 0 conjunto das condutas, das slngularidades, dos des-
vios :dc que sc pode falar no diseurso psiqul,ltrieo); urn saber
c;tamllCm, 0 espac;o em que 0 sujcilo pode. tomar posic;ao para
'falar'dos objelos de que sc ocupn em seu dl5eurso (neste sen·
tido, 0 saber dn medieina clinlea C 0 conjunlo das funC;6cs de
, '
'observac;iio, Interrogac;iio, declfrnc;iio, reglstro, decisao, que podem'ser cxereldas pelo sujelto do dlscurso medico); urn saber e tam·
"bNh'o cnmpo de coordena~llo e de sllbordlna~'l0 dos cnunclados
"i06 ~t
!
em que os conceitos apareeem, se deflnem, se aplleam e se
transformam (neste nlvel, 0 saber da HIst6ria natural no seculo
XVIII, nao e a soma do que fol dito, mas slm 0 cO~lunto dos
modos e das posi~oes segundo os quais se pode Integrar ao jli.
dlto qualquer enunelado novo); flnalmente, urn saber se define
por possibilidades de utlllzac;iio e de aproprla~iio oferecldas pelo
diseurso (asslm, 0 saber da eeonomla polltlca, na epoea classlca,
nao e a tese das dlferentes teses sustentadas, m'as 0 conJunto
de seus pontos de artleUla<;ao com outros dlscursos ou outras
pratlcas que nOO sOO dlscursivas), Ha saberes que sao Indepen-
dentes das clenclas (que nao sao nem seu esbo~o hlstOrlco, nem
o avesso vlvldo); mas nao ha saber sem uma pratlca dlscurslva-t
deflnlda, e -teda pratlca diseurslva pode deflnlr-se pelosabet:{
que ela forma. , •
Ao lnves de percorrer 0 elxo conscienela-conheclmento-cUm-
cia (que nao pode ser Ilberado do Index da subJetlvldade). a
nrqueoJogla percorre 0 elxo pratlca dlscurslva-saber-cl~ncla.En-
quanto a hist6ria das idelas, encontra 0 ponto de equlllbrlo de
sua an9.lise no elemento do conhecimento (encontrando-se.
assim, coaglda a reencontrar Ii. lnterroga~ao transcendental). a,
1\rqueologla encontra 0 ponto de equIlIbrio de sua analise no
saber -:- Isto e, em urn domlnlo em que 0 sujelto e necessaria-
mente sltuado e dependente, sem que jamais possa ser conside-
Iado titular (seJa como atlvidade transcendental, seJa como
consel€mcla emplrlca),
Compreende-se, nessas eondi~oes, que seJa necessarlo' dlstln-
gulr eom culdado os dominios rientificos c os territ6rfos arqueo-
Millcos: seu r('Corte e scus prlnclplos de organlzac;ao ;sao com-
pletamente dlfercntes, S6 perlencem a urn dominic de clentlfl-
cidade as proposlC;Ocs que obedeeem a certns Icls de consi.ru~iio;
nflrmac;Ocs qut' tlvessem 0 mesmo scntldo, que' dtSsessem II.
mesma colsa, que fossem tao 'verdadeii-iui qua'nto°'elas.:·riiiiS' que
mio se prendessem n mesmll sisternatlcldade, serlam eXclufdas
dc..~se dominlo: 0 que Le Reve de d'Alembcrt (liz a respeito
dodevlr dl..~ especies pod~: traduzir ccrw.~,c,?n~eil;<:),\rJllcer:tasr
hlpoteses cien Ilflcns da cpoen: L'SO podc atf m6mo Iinteclpar
lima vel'dade [ulura; isso nao perlence ao dOlrilnlo de'deniiflcl-
. . ' 'I. :. ;,
I
'>
'.
, 2()~
" ., Umavez eonstltui'da, lini'o."dbricla'haorel.oma"iI: S(:u"bfgo,
cnos encadenmen1.05' que Ihe' sao'pr6prios;: tudo"que foma'V1i1n
• " . ." • " -, '" ' '" l' Ipratlca dlscurslva em quc npnrecln:' naodlsslpn tampouco '-
,
,
?Oll
para remete-Io a pre-hlst6rla dos erros, dos preconeeltos ou da
lmaglna~iio - 0 saber que a cerca. A anatom1a patol6glca nao
reduzlu nem reconduzlu il.s normas da clentlflcldade a posltlvl-
dade da medlclna cllnica. 0 saber niio e 0 canteiro eplstemol6-
glco que desapareeeria na clencla que 0 reallza, A cl~ncla (au
o que passa por tal) locallza-Be em urn campo de saber e nele
tern urn papel, que varia conforme as dlferentes fonna~s dlg-
curslvas e que se modlflea de acordo com suas niutac;0e8. Aquilo
que, na epoca clAsslca, era conslderado como conhecimento me-
dico das doenc;as da mente ocupava, no saber da loucura, urn
lugar multo lImltado: niio era mals ,que urna de suas super-
ficies de afloramento entre multas outras (jurlsprud~cla, ca-
suIstlca, regulamentac;iio pollclal, ete.); em compensae;,iio, as
anAllses pslcopatol6glcas do seculo XIX, que tambem passavam
por conhecimento clentlflco das doenc;as mentals, desempenha-
ram urn papel multo dlferente e bern mals lmportante no saber
da loucura (papel de modelo e de lnstAnc1a de declsio). Do
mesmo modo, 0 d1scurso clentlflco (ou supostamente cienUflco)
niio garante a mesma func;iio no saber econdm1co do seculo xvn
e no do seculo XIX. Eneontra-se urns rela~ especlfica entre
cl~cla e saber em toda fonnac;iio,d1scurslva; a analise arqueo-
16gica, ao Inves de deflnlr entre eles uma relac;iio de e:relusii.o
ou de st:btra~ao (buscando a parte do saber ,que se furta e
reslste alnda a. clencla, e a parte da cl~cla que a1nda esta com-
prometlda pela v1zlnhanc;a e Influenc1a do saber), deve mostrar,
posltlvamente. como uma clencla se .lnscreve e funclona no ele-
. mcnto do saber.
:€ scm dtivlda af, nesse espa~o de nc;ao, que sc estabelecem
<: Be especl!lcam as rclac;Ocs dn Idcologla com as clfulcln.s. A
In!lucncla da Ideologln 50brc 0 discul1lO cIcntlfico co funcloDll-
, mento Idco16glco dns clcnclas mi.o sc arUculam no myel de SUll
'estrutura Ideal (mesmo que nele p= tmduzlr-se de uma for-
:'ma mnls ou menos vls!vel); nem no nfveI'do'sua uU11mc;iio tkc-
nica em urna soclednde (se bern quc csta possa."a! entrar' em
-\'fgor), nem no nlvel dn conscl~ncla des suJelt.Ds que a cons-
:Jrocm; artlculnm-sc onde n clcncla 5e'd~~sbbre'o saber. 'Sc
. a,questiio da Idcoiogia pede scrpro!xista i d~cia, e na Ined.tda
em que esta, scm se Identlficar com 0 saber, mas scm apaga-Io ou
,
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;." ". ··}f'
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I , "
c) Saber e Ideo/cilia ",','
dade da Hlst6rla natural, mas, em compensa~iio,a seu tcrrit6rio
arqueol6glco, se, pelo menos, se puder descobrir em a~iio as
mesmas regras de formac;iio encontradas em I,lneu, Buffon,
Daubenton au Jussieu. Os tcrrlt6rlos arqueol6g1cos podem atra-
vessar textos "lIterarlos" ou "!1los6flcos", bern como tcxtos clen-
U!lcos. 0 saber nao esta contldo somente em dcmonstra~Ocs;
pode estar tambem em flcc;6es, renex6es, narratlvas, regulamen-
tos Instltuclonals, decls6es polltlcas. 0 terrlt6rlo arqueol6glco
da HIst6r1a natural compreende a Palingenesie phllosophlque ou
o r;;1!/amed, apesar de niio responderem, em grande parte, il.s
normas clentfflcas que eram admltldas na epoca, e alnda menos,
seguramente, as que serlam exlgldas mals tarde. 0 terrlt6r1o
arqueo16g1co da Oramatlea geral compreende tanto os devanelos
de Fabre d'Ollvet (que jamals receberam stat1l3 clentlflco e se
Inscrevem antes no reglstro do pensamento mlstlco) quanto a
anll.llse das proposlc;6es atrlbutlvas (que era entiio acelta com
a luz da evld~ela e na qual a gramatlca geratlva pode reeD-
nhecer, hoJe, sua verdade preflgurada).
A pratlca d1seurslva mio coincide com a elaborac;iio clentf-
flea a que pode dar lugar; 0 saber que ela forma nao e nem 0
es~o enrugado, nem 0 sUbproduto cotldiano de urna clencla
constltulda. As cI~elas - poueo Imports, no momento, a dUe-
ren~a entre os dlscursos que tern presunc;iio ou stat1l3, de clen-
tifleldade e os que apresentam realmente seus crlterlos formals
- aparecem no elemento de uma formac;ii.o dlseurslva, tendo
o saber como fundo. Isso abre duas series de problemas: que
local e papel pode ter uma r,egliio de clentlficidade noterrlt6rlo
arqueol6glco em que se dellnela? segundo que ordens eque pro-
ccssos se da a emergencla de u";a reglao de clentlfieldadc cm
urna formac;ii.o <Lscurslva detCrmlnada? Esses sao problemas que
nao saberlamos, aqul e agora, responder: tratemos; scimcnte"
de Indlcar em que dlrec;iio, tUlvcz, pode'rlam ser' anallsados:,'
: " " 1 .! .... ':..' :. ! l.:' 'I'
ii
I
,
I
i
I
..
, .
exclui-lo, nele se locnliza, estrutura algnns de seus objetos, slste-
matlza algumas de suas enuncln~6es, formallza alguns de seus
coneeltos e de su!\s estratCglas; c nn medlda em que, por. urn
lado. esta elabora~ao escandc 0 saber, 0 modifiea, 0 redlstrlbul,
e por outro, 0 conflrma e 0 deixa valer; c nn medlda em que a
cl~ncla encontra seu lugar em uma regularldade dlscurslva e,
p<Jr !sso,se desdobra e funclona em todo um campo dc prfltieas
dlscurslvas ou nao. Em resumo, a questiio da Idcologla proposta
a. cMncla nao e a questao das sltua~Ocs ou das pratlcas que ela
rl?fietede um modo mals ou menos consclente; nao e, tampouco,
a questao de sua utlllza~ao eventual ou de todos os empregossbuslvos que se possa dela fazer; e a questao de sua existencla
como pratlca dlscurslva e de seu funclonamento entre outras
pratlcas.
Pede-Be dizer a grosso modo, e passando por elma de qual-
quer medlac;iio e especlflcldade, que a economla polltlca tem urn
papel na socledade capitalists, que ela serve aos Interesses da
classe burguesa, que fol felta por ela e para ela, que carrega.
enflm, 0 estlgma dc suas orlgens ate em seus coneeltos e em sua
arqultetura 16g1ca; mas qualquer descrlc;ao mals preclsa das
relac;6es entre a estrutura epistemol6glca da economla e sua
fun~iio Ideo16glca devera passar pela anli.llse da forma~ao dlseur-
siva que !he deu lugar e do conjunto dos objetos, coneeltos e
escolhas te6rlcas que t1veram de ser elaborados e slstematlzados.
Deveremos mostrar, entao, como a pmtlea dlscurslva que deu
lugar a tal posltlvldade funclonou entre outras pratlcas que
podlam ser de ordem dlscursiva, mas tambCm de ordem poUtlea
au econOmlca.
Isso perrnlte anteclpar urn eerto numero de proposi~Ocs:
1. A Idtologla n.1o cxdul n cl~ntlf!cld"dt. Poucos dtJ<unos dCr3m tanto
lugar A Ideologla"QUAnto 0 d1scurso cHn!co ou 0 d." cronomla poIItiCA: nAo f: um..
nullo, .mIldC'D~. f1IUt\ npoctar ('rro. contT1ldi~1\o. aU3~ncla de objf"tlvtdftdc no con-
funt~jdc,R'us cn~c.1Ad~ . ", I "
, .2. , ru cOtltradl~(ks. tu ~\"un..'U. as fnlh.u. ICOriCilS podl"'m uslnal3r o.,funtlo-
Dam~to,Id~16glco 'de'U'm.a. cltnclA (ou d~ um dlJcur!K) (om prtttrulo 'l(nOlle"');
"pOd~m"""~rmltfr deh:'~In:tr ·(.~'Quc ponto dQ ('dlflcio t"S~ funclot\.1mtnl~' MI~~. ·r..iM
, .' "n.AllIe 'de tal fundonJllm~nfO ckvc ~r felt" no nlvt! da pos1t1vld,,~ (' dA' 'n:lnc;Oot~
entre bJ'regrns da fl)rmPlC;~o c as esfruhm\"l d.l ckcUhddack. p," :1.1 l ; '~"
, .
3. Corrlglndo--se. ntlflcaodo stus CTrw.. condcnaando .uas fonnalJ%a~6ea. um
dlscurso ~o enul" fo~sament(' sua rch'c;40 corry a Ideologill. 0 papd cia Ideologla
n~o dlmlnul A mC'd!da que cresce 0 ngor e que st: dLMlpa a falsldade.
i. Estudar 0' funclonamento tdcoJ6glco de um" d~ndlt pAm fnt~..Jo "parteer
C' para modlflc~~Io nAo t revtJar os preMuposfOS Iifos6f!c~ que ,pod'em babltA-Io;
nlio e ~fomJllr 80s fundamcnfos que a torn.aram pos..'fvel e que a kglUmam: ~
coloc1\~la novam~ntc em qUl~sr~o ("orno fonnac;:io dlscurslva; t utudar nlo 8.1 COQ.
tTadl~Ot-s formal.! de 'uas proposll,'&s. milS 0 alstema de forma,lo de tellS obJetos.
tlpos de enundac;'o. concclto! C (,3colh:u te6rlcas. 2 retoma·Ja COUlO prAtlca entre
c.utras prfsUcas.
d) Os diferentes limiares e sua cronol.ogia
A prop6slto de uma forma~iio dlscurslya, pode-se descrever
c.lvcrsas emergenclas dlstlntas. 0 momento a partir do ,qual
uma pratlca discurslva Be Indlvlduallza e assume sua autono-
mia, 0 momento, por consegulnte, em que Be encontra em a~iio
urn (mico e mesmo sistema de forma~ao dos enunclados, ou
alnda 0 momento em que esse sistema Be transforrna, podera.
ser chamado Umiar de positivicUuie: Quando no jogo de :urns. for-
mac;iio dlscursiva urn conjunto de enunclados se dellnela, pre-
tende fazer valer (mesmo sem consegul-Io) normas de verlfica-
~iio-e de coerencla e 0 fato de que exerce, em rela~o ao saber,
uma fun~iio domlnante (modelo, crltica ou verlflca~iio).diremos
que a forrna~iio dlscursiva transp6e urn Umiar de epistemol.ogi-
z(lftio. Quando a flgura eplstemol6glca, asslm dellneada, obedece
a urn certo nfunero de crlterlos formals, quando seus -enuncia-
dos nao respondem somente a regras arqueol6g1cas de formac;iio,
.mas, alem d!sso, a certas leis de construc;iio das proposlc;Oes.
diremos que ela transpOs um limiar de cientlficidade. Enflm,
quando esse dlscurso clentlflco, por sua Vel, puder deflnlr os
axlomas que the sao necessArlos. os elementos que usa, as estru-
,turas proposlelonals que the sao legltlmas e as trnnsformac;Oc.~
Jque acelta, quando puder asslm dcsenvolver, a. partir de sl
•mesmo, 0 edlflclo formal que eonstltul, dlremos que transpOs
o limiar da formalizar;fio.
rf· A repartll;iio dcsscs dlferentes llmlarea no tempo, sua suces-
: siio, sua defMaRem. sua eventual co·lncldllncln. n manclrs. pcla
'qual Be podem comandar ou Impllcar uns 80s outros e as con-
211
I
•
213 :.
instltulda, nas disclpllnas bJo16glcas, pelo evoluclonls "
modlfteou a positlvldade blol6glca que fora deflnlda ria°6P=
de Cuvler. No easo da economia, os romplmentos sao particular-
mente numerosos. Pode-se reconhecer no seculo XVII u llmi
de posltlvldade: ele coincide, aproxl~adamente, eo~ amprAtl::
e a teoria do mercantillsmo; mas sua eplstemologiza<;ao s6 se
produzirls. urn pouco mals tarde, no !1m do seculo, ou no infclo
110 seculo segulnte, com Locke e Cantlllon. No entanto, 0 seenlo
XIX asslnala, ao mesmo tempo, com RIcardo, urn novo tipo de
posltlvldade, uma nova fonna de eplstemologlzac;ao, que cour~ot
e Jevons por sua vez modlficariam, justamente na epoca e.m que
Marx, a partir da Economla politlca. farla aparecer um'a pm-
tiea dlscurslvs. Intelramente nova.
Se s6 se reeonhecer na clencla 0 acurnulo linear das ver-
dades ou a ortog~nese da razao, se nela s6 se reconhecer mna
l!ratlca dlscursiva que tern seus nivels, seus lim.lares, suas rup-
turas diversas, s6 se podera descrever uma tinica divlsao hist6-
~ rica cujo modelo nao se delxa de reconduzir, ao Iongo dos tem-
pos, para urna forma de saber, nao lmporta qUal: a dlvlsao entre
o que nao e alnda c1entifico e 0 que 0 e definit1vamente. Toda
a densldade das separa90es, toda a dispersiio das rupturas, toda
a defasagem de seus efeltos e 0 jogo de 'sua Interdependencla
acham-se reduzldos ao ato mon6tono de urna funda91io que c'
preclso sernpre repetir.
S6 exlste, sem duvlda, urna clencla para a quaI nilo se pede
dlstlngulr esses dlferentes llmlares nero descrevcr entre eles
semelhante conjunto de defasa gens: a maternAtica, tinlca pta_
tlea dlscurslva. que trMspOs de urna 56 vez 0 limJar da poslt.!-
vldade, 0 de eplsternologlza91io, 0 da elenUflcldadc e oda for-
mallzacao. A pr6prla possibllldnde de sua e~cla lmpllcava
que fosse conslderado,logo de Inlelo, aquila que, em todoS.os
(lU,troscasos, pennanece disperso ao longo da his'.6r1a: sua ~~
~vldade ';primelra devla consUluir uma pn'l.tIca diacun1V&.jll.
fonnal17.adn (me=o que outras fonnallzac;Ocs dcvc!h'!MD '--CIn
'*;gtiJda, scroperndas). Dai 0 fllto de scr BUa,insta~lJIO
; meamo >tempo tAo enlgmil.tica (tao ponco a.oossfVel 'a' anAIUc) '.IS
tltO"fechada na forma do comec;o nbsolulo) e tao 'YB1orlznda~(jll.
.........
,
, .
. -
"
di90es nas quais alternadamente se instauram, constltuem para
a arqueologla um de seus dominlos malores de explora<;ao. Sua
cronologia, na verdade, nao e nem regular, nem homog~nea.
Nao e com 0 mesmo rltmo e ao mesmo tempo que todas as
forma<;Oes discursivas os transpOem, escandindo, assim, a hlst6-
ria dos conheclmentos humanos em dlferentes periodos: ns.
epoca em que m ultas positlvldades transpuseram 0 limiar da
formaliza9ao, muitas outras alnda nao tlnham atlngldo 0 da
c1entlfieldade ou mesmo da eplstemologlza9ao. Alem disso, cada
forma91io dlscursiva nao passa, sucesslvamente, pelos dUerentes
limiares como pelos estaglos naturals de uma matura9ao blol6-
glca em que a unka varlavel serla 0 tempo de laWncla ou a
Clura<;ao dos intervalos, Trata-se. de fato, de-aconteclmentos cuja
dlspersao nao e evolutlva: sua ordem singular e urn dos carae-
teres de eada forma<;ao discurslva. Eis alguns exemplos de tals
diferen9as,
Em eerlos easos, 0 Hmlar de posltlvldade e transposto muito
antes do da epistemologlza<;ao: asslm, a psleopatologla, como t
dlseurso de pretensiio clentiflca, epistemologizou no tnielo do
seeulo XIX, com Pinel, Helnroth e Esqulrol, uma pratlea dls-
cursiva que lhe preexistla amplamente e que adqulrlra, ha
multo tempo, sua autonomia e seu sistema de regularidade. Mas
pode acontecer tambem que esscs dois Umiares e~tejam eonfun-
didos no tempo e que a Instaura<;ao de uma posltlvldade seja,
aomeSmo tempo, a emerg~ncla de uma figura epistemoI6g1ca.
As vezes, os Umiares de dentlrlcldade estao ligados a passagem
deuma posltlvidade a outra; as vezes, sao difercntes dlsso; asslm,
a passagem da HIst6rla natural (com a clentlflcidade que lhe
erapr6prla) a biologla (como clencla nao da classiflcS,9iio dos
seres, mas das correla<;6cs especlficas entre os diferentes orgs.-
'.'nlsmos) s6 se efetuou ns. epoca de Cuvler com a transforms.<;iio'
;-d()'funla ;pOsitividade em outra; em compensa<;iio, a', medicina
<experimental de Claude Bernard, depols a mlcrobiologia de Pas-
teur, modilicarnm 0 tlpo de cientlflcids.de requerldo peln Mato-
'-irila,:e:fisiologla patol6glcas, scm qU() a fonna<;ao discurslva do.
\...)~. -" ~ .
,r.medlcina' cHnics,. tal como {ora c.qtabelecida nn cpocn,· tlvcSsc
..,.)sld0'JlO8ta:fora de cena. Da mcsma forma, a nova elentllicidll.de
oue vale concomitantemente, como origem e como famd'armm-
- ,
to); dal 0 fato de se ter vlsto, no prlmeiro. gesto do prlmeiro
matematico, a constitui,ao de uma idealidade que se desenrolou
a.o longo dahist6r1a e que s6 foi questionada para SCI' repeotida
e purlficada; dal 0 fato de se examlnar 0 come,o da matematica
menos como urn aconteclmento hist6rlco do que a titulo de prin-
clplo de hlstorlcidade; dal, enfim, 0 fato de se relaclonar, no
caso de todas as outras clencias, a descrl,ao de sua genese his-
t6rica, de suas tentativas e de seus fracassos, de sua tardia
abertura com 0 modele mcta-hist6rlco de uma geometrla que,
emerge sUblta e deflnltlvamente das praticas trlvlals da agrl-
mensura. Mas ao ·tomar 0 estabelecimento do dlscurso matema-
tico como prot6tipo do nascimento e do devil' de todas as outras
clenclas, corre-se 0 risco de homogenelzar todas as formas sln-
gulares de hlstorlcldade, reconduzlr a Instllncia de um linlco
corte todos os Umlares dlferentes que uma pratlca dlscursiva
pede transP9r, e reproduzlr, Indeflnldamente, em todos os mo-
mentos,. a problematica da origem: aSsim se achariam renova-
dos os dlreitos da anaJlse hlst6rlco-transcendental. A matema-
tica foi seguramente modele para a malorla dos discursos
cientificos em seu esfor,o de alcan9Rr 0 rigor formal e a de-
monstratividade; mas, para 0 historlador que interroga 0 devil'
efetlvo das clenelas, ela e urn mau exemplo - um exemplo que
nao se poderla, de forma alguma, generalizar.
•. "" e) "O's "diierentes tipos de hist6ria das cioCncias
"':".' ' .• :, " "1·· .
. :. Os IInlltipios Umiares que pUderam ser demarcados perml-
temtOrInail distintas de anBllse hlst6rlca. Dc inielo, no nivel
da formaliza,ao: e essahlst6r1a que a matematlca nao doua
de'conta'r sobre sl mesma, no'processo de sua pr6prla elabora-
~ao: 0 'que ela'fol 'em"um'dado momento (seu dominio, seus
riietodosi os"objetos';quef6eflne,a Unguagem 'que:emprega):.ja-
IDaiS 'e 'Ian,ado· no campo exterior' da' niio-cientl!lcidade,' mas
se'encontra contlnuamente rcdefinido (alnda que a titulo de
reglao1calda em ;desuso OU atlnglda provlso~lamente ,pela esterl·
ildade); no edlflcl0 ,formal. que const.ltul;"essc .passado ,se revela
~mo caso particular, modelo ingenuo, esboco parcial e Insun-
,~ I
214
clentemcnte generalizado, de uma l.eol'la mais abstrata, mals
FOderosa ou de mals alto nlvel; a matematlca retranscreve seu
percurso hist6rlco real, no vocabulario das vlzlnhan<;as, das de-
pendencias, das subordlna,5es, das formaliza..6es progresslvas,
das generalldades que se enredam. Para essa hlst6rla da mate.
matlca (a que ela constltui e a que conta a prop6slto ce sl
mesma), a algebra de Dlofanto nao e uma experlencla que
permanece em suspenso; e urn case particular da a1lSebra tal
como 0 conhecemos desde Abel e Galois; 0 metodo grego das
cxaust6es nao fol urn Impasse de que fol preclso desvlar; e um
modelo Ingenue do calculo Integral. Acontece que cada perlpecia
hlst6rlca tern seu nlvel e sua locallza~ formals. Trata-se de
uma analise reeQrrenci~,que s6 pode ser felta no interior de uma
clencla constltulda. uma vez transposto seu lImlar de forma-
, .
lIza~ao. I
:e diferente a analise hist6rlca que se sltua no Umlar da
clentlncldad~ e que se Interroga sobre a manelra pela qUal ele
p6de ser transposto a partir de figuras eplsternol6g1cas d1versas.
Trata-se de sBber, POI' exemplo, como,um concelto - carregado
nlnda de metatoras ou de conteudos imaglnArlos - se purificou
e p6de assumir statm e fun~ii.o de concelto clentiflco; de saber
como uma reglao de experlencia. ja demarcada. ja parcialmente
artlculada, mas ainda atravessada pol' utlllza~ pratlcas 1me·
diatas ou valoriza,6es efetlvas, p6de constltuir-se em um doml-
nlo clentlflco; de saber, de modo mals gera1., como uma clencia
~eestabeleceu aclma e contra urn nlve! pre-clentifico que, ao
rnesmo tempo, a preparava 0. resistla a seu avan\;O. e como
p6de transpor 05 obstll.culos e as lImita¢es que a1nda so. !he
opunham. G. Bachelard e G. Cangullhem apresentaram os mo-
Gelos desta hlst6rla. Ela nilo tern necessldade, como a anaJlsc
recorrenclal. de se sltunr no proprio interior de. clenc;1a.,. de'
Ic'coiocar lodos os seus epis6dlos no edificlO. pol' .e.!!1,~~~~,l):
\ e;~~i1iJ.~~J}~suii' .t0t'rnaUza~ao.no, ,v~aliu1Ari~ r~ro.:~r~~~:~~Je.~
0y,~\I;,,(mpO, ~Hfls, cIa 0 poderla. jll quem~.~o.q~,~..-e:t~clD:
se libertou' e'tudo que teve de nbandonar para allnglr ,oUmlar
\") J .1 l;' .' , , .. :11 .... ,......ll ....... "
,J' .k '" ,.1,.,,:,. • ·... t, "'"·r~.~-7·~'.t:
?.... ·;er. 'iKit,,"; 'il'A~!iin\o, ..~. Mamn•...., s M.t~Uqu~~, '!t' Hemiu
()u'la communIcation. Michel &-rrc~. p. 781. ,J •. ::. '_'~;.' .':~:~~,.~,~:.,r: .
215
,
,
"
"
I,
da clentlf!cJdade. Por 15;;'0 mcsmo, ess(J desCl'i,aO toma por norma
a clencla constltuida; a hlst6rla que cia conta enecessariamente
escandlda pela oposl,iio verdade e erro, radonal e lrraclonaI,
obst8.culo e fecundldade, pureza e Impureza, clentlfico e nao-
-clentiflco, Tiata~se de uma hist6ria epiBtemo/6gica das cllmclas,
o tercelro tlpo de analise hlst6rlca e a que toma como
ponto de ataque 0 Ilrnlar de eplstcmologlza,ao - 0 ponto de
cllvagem entre as forma,Oes dlscurslvas deflnidas por sua posl-
tlvldade e fIguras eplstemol6glcas que nao sao todas, !or,osa-
,mente, cll\ncias (e que, de resto, talvez jamals cheguem a se-Io),
Nesse nivel, a clenUflcldade nao l>erve como norma: 0 que se
tenta revelar, na histDria arqueo/6gica, sao as pratlcas dlscur-
slvas na medlda em que dao lugnr a urn saber, e em que esse
saber assume 0 status e 0 papel de cll\ncla. Empreender nesse
nlvel uma hlst6rla das cll\nclns nao e descrever forma,ocs dis-
curslvas sem consldcrar estruturas cplstemol6gicas; e mostrar
Ycomo a lnstaura,ao de uma ciencIn, e eventualmente sua pas-
sl\gem a formallza9iio, pode ter encontrado sua posslbllIdad: ~
sua lncldl\ncla em uma forma,ao dlscurslva e nas modiflca,oes
J£e sua posltlvldade. Trata-se, pols, para tal anallse, de tra,ar
o perfil da h1st6rla das clenclas a partir de uma descrl,iio das
praticas d1scurslvas; de deflnir como, segundo que regularldilde
c gra,as a que modiflca,ocs, ela pOde dar lugar aos processos
de epistemologlza,iio, atlnglr as nonnas da cientlflcIdade e, tal-
vcz, chegar ao IImInr da formaliza,ao. Procurnr 0 nivel da pra-
tlea dlscurslvana densldade hlst6rlca das clenclas nao sIgniflca
querer reconduzl-Ia a 'um nivel profundo e orlglnarlo, aosolo
da eiPerlenc1a ViVida'(a. terra, :que,s~'apresenta, Irregular e reta~
lllada,' an'terlor a"quiUquer'gcoirietrin~ao ceu que clntlla atraves
do esquadrlnhamc~to,~e ,qu~quer:a:stronomla); quer-se, sim,
fazer apai'ecer entre posltlvldades~,saber, fIguras eplstemol6gl-
cas e clenClas' tOdo"'o" Jogo' das 'd.!feren,as, das rela,Oes, dos
desvlo:S; da.S.d~iwg~ri'i:~da;jrnd~pcnd~nclas, das a'utOnomlas:
e"a 'man'etTa'pela 'iiuaiSeartl~ulnm '~ntre sl suns hlstorlcldades.
A an8.l1se das !orma~~~'dlscurslvns, das positivIdadcs e do
saber,. em suns rcla,ocs com"as fIgures eplstemol6g1case ns
cll\nclas, e 0 que se chamou, para dlstlngul-la das outras tormas
216
posslvels de hJst6rla das cll\nclns, a anal.Jse da eplsteme. Suspel-
taremos, ta!vez, que a epi8teme seja alga como u.ma v1s!o do
mundo, uma tatla de hJst6rla comum a todoa os conheclmenws
e que imperia a cada um as memnas normas e 05 mesmos pes_
tulados, urn estAglo geral da razio, uma certa estruturn de
pensamenw a que nlio saberlam escapar 011 homena de uma
~poca - grande leglsla9ii.o escrlta, det1n1tivamente, por mao
anOnlma. Por epi8teme entende-se, na verdade, 0 conjunw d!i8
rela,Oes que podem unlr, em uma dada ~poea, as pratlcas dis-
'curalvas que dao lugar a tlguras eplBtemol6g1cas, a cl~nclas,
eventualmente a sistemas !ormallzados; 0 modo segundo 0 quaI,
em cada uma dessas !ormal;Oe! dlscur.sivns, lie sltuam e lie rea-
llzam as passagens a eplstemologlza~, a\ clcnt!llc1dS.de, a\ tor-
mallza,iio; a repartl9iio desses Ilrnlares que podem colnc1dk, Ber ,
subord).nadOS UDB aos outros, ou estarem detasados no tempo;
l\8 rela,Oes laterals que podem exlstlr entre flguras eplstemo-
16g1eas ou clenclas, na medida em que lie prendam a praticas
dlscurs!vas vlzlnhas mas dlstlntas. A epi.steme niio 6 uma torma
de conhecimento, ou um tlpo de rac10nalldade que, atravessando
as cl~nc1as mals d!versas, manlfestarla a unJdade soberana de
um aujelto, de um esplrito ou de uma ~poca; 6 0 conJunto das ,
rela9iies que podem ser deseobertas, para ums. epoca dada, entre
as c1~nclas, quando estas slio anaIlsadns no mve! das regulB.rlda-
des dlscurslvas.
A descrl9ii.o c;1a epi.steme apresenta, portanto, d1vetl!lO!1 ca-
racteres essenclals: abre um campo lnesgatAve! e nAo pode nunca
ser fechada; niio tem por f1nalldade reconstItn:Ir 0 sistema de
postulados a que obedecem todos os conhedmentos de uma 6poca.,
mas 8im percorrer um campo In<letlnldo de rel~ A16m c1LIrao,
a epi.steme nilo e uma flgura im6vel que, mrg:tda urn dla, IJerla
convocada a apagar-se bruscamente: e urn OODJunW Indeflnlde-
mente m6vel de escansocs, defasagens, colndd!Dclas, que Ie eata·
belecem e Be desfazem. A eplsteme, a1nda, como oonJunto de
rela~6es entre cll\nclas, f1gums eplstemol6g1eu, poII!Uv!~ e
praticas dlscurslvas, permlte comprne..,der 0 Joio c1a.a coa~ e
das llmlta~ocs que, em urn momento determlna"o,:;le~~poem
80 dlscurso; mas essa llm1ta,80 nio 6 aqueta que; negatln., op(5e
ao conhecimento a IgnorAncla, ao racloc1n1o a 1mag1na~, il.
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experi~ncie. j{; e.eumulada a fldellda<ie as apareneias, e as inCer(m-
cias e As deduC;5es 0 devllfielo; a eptsteme nao e 0 que.Be pode
saber em uma epoca., tendo em conte. lnsuflcimeias tecnlcas,
Mbltos mente.ls,ou llmites colocados pele. tre.dlc;iio; caqullo
que, na positivide.de das pratlcas dlscurslvas, tome. poaslvel a
el<ls~ncla das flguras epistemo16glcas .e das ci~nelas. Finalmen-
te, v~se que e. onalise dS: eptsteme nao c uma ma.nelra de rew-
roar a questiio critlca ("sendo apresente.do algo como uma. clm-
cia, qual c seu dlreito ou sua legltimldade?"); c uma interrogac;iio'
que s6 acolhe 0 dado da ci~neia a flm de se perguntar 0 que
e, para essa ci~ncla. 0 fato de ser conheclda. No enigma do dis-
curso c1entWco, 0 queela pl5e em logo nao c 0 seu dlrelto de
ser uma clmcla, c 0 fato de que ele extste. E 0 ponto onde se
separa de todas as fUosoflas do conhecimento 6 que ela niio
relaclona te.l fato a tnstAncla de urna doaC;iio origlnArla que
fundaria, em urn sujelto transcendental, 0 fato e 0 d1re1to; mas
sim aos processos de urna prA.tlca hlst6rica. .
f) OutrCl$ arqueologiCl$
Uma quest§.o pennanece em suspenso: seria passlvel conce-
ber uma. anAlise arqueol6g1ca queflzesse aparecer a regularl-
dade de um saber, mas que nlio Be propusesse a analls6.-lo ne.
dlrec;ao das flguras eplstemoI6g1Clll1. e das clmclas? A orlentac;iio
voltada para a eptsteme c a UnIca .que pode abrlr-se a arqueo-
logia? Deve ser eate. _ e excluslva.mente - uma certa. ma.nelra
de Interrogar a h1st6r1a das cimclas? Em outraa palavras, llml-
tando-se, ate 0 momento, a regiiio dos dlscursos cient1f1cos, a
arqueologla" tem obedecldo a uma necessldade que nao poderls.
superar _ ou tem esboc;ado, em urn exemplo particular, formas
de an6.1lse que podem tar uma extensli.o lntelramente dlferente?
No momento, avancel multo pouco para responder deflnltl-
va.mente a esse. pergunta. Mas Imagino de bam grado - aguar-
dando alnda numerosas experimcias que serla preclso empre-
ender e muitas tentativas - arqueologlas que se deaenvolveriam
em dlrec;5es direrentes. Conslderemos, por exemplo, uma dcscrl-
C;iio arqueol6g!ca da "sexuallde.de". Vejo bern, de agora em
dlante, como Be poderla orienta-Ill. no senUdo da epl.!teme:
218
mosk,damos de que manelra, no seculo XL"C, se formaram
flguras eplstemol6gleas como a blologla ou a psicologla da sexua-
lldade; e por qUal rupture. se lnste.urou, com Freud, urn dlscurso
de tlpo cientWco. Mas percebo, tarnbcm, urna outra posslbUlda-
de de an6.llse: ao lnves de estudar 0 comportamento sexual dos
llomens em urns. dada cpoce. (procurando sua lei em urna estru-
tura social, em um lneonsclente coletlvo, ou em uma carta atl-
tude moral), ao inves de descrever 0 que os homellll pudessem
pensar da sexualidade (que lnterpre~ rellg108a lhe davam,
que valorlzac;ao ou que reprovac;iio fazlam recaIr sobre eIa, que
confiltos de opiniiio ou de moral ela podia suscltar), pergunta-
rla.mos se, nessas condutas, ass1m como neasas represente.~es,
tOda urna prA.tlca discursive. niio se encontra lnserlda' se a
. ,
sexualldade, fora de qualquer orien~panl um dlscurso cien-
tlflco, nao c um conjunto de obletos de que se pode falBJ: (ou
de que c prolbido falar), urn campo de enuncla~1Ies Posstvels
(quer se trate de express5es l1ricas ou de prescrl~ jurld1cas).
urn conjunto de conceitos (que podem, scm dl1v1da, ser apresen"
tados sob e. forma elementar de no<;l5es ou de temas). um 199o
de escolhas (que pade aparecer na coerMcla das condutas ou em
sistemas de prescriC;iio). Tal arqueologia, Be fosse bern suced1da
em sua tarefa, mostraria como as proiblc;l5es, as exclus5es, os
llmltes, as valor!zaJ;5es, as llberdades, as transgress<ies de. sexua-
lidade, todas as suas manlfeste.c;5es, verbals ou niio, eatiio llgadas
1\ urna.pratlca discursiva determinada. Ela farla aparecer. niio
certamente como verdade Ultima da sexualldade, mas como uma.
das dlmens6es segundo as quals pede ser descrlts., uma certa
"rnanelra de falar"; e essa ma.nelra de falar mos~ como
ela esta -lnserlda, nlio em dlscursos c1entlflcos, mas em um als-
lema de prolbl~6cs e de valorcs. Tal anA.!!.... serta felts., ass1m,
niio n11. dlrec;li.o de epl.stcme, mas no sentldo do que Be poderla
chamar cUea.
Els 0 exemplo, entretanto, do uma outra orien~ po$-
alvei. Para anallsar urn que.dro, pode-se recon.stltWr 0 dJ.scurl!o
Istente do pintor; pode-oo querer reencontrar 0 munndrlo de
suas lntenc;Ocl quo nAo sli.o, em Ultima anAl""'. transcrltas em
palavras, mas em linhas, lIuperflcleA 0 corea; podwe tentar des-
219
"'
tacar a fllosofla impIfcita que, supostamente, forma sua visao do.
mundo. :€ possiveI, 19u~Imente, lnterrogar a c!llhcla, ou pelo
menos as oplnlOes da epoca, e procurar reconhecer 0 que 0 pintar
Ihes .tamou emprestado. A analise arqueoI6gfca terta urn outro
Hm:' pesquisaria Be 0 espa~o, a dlst!ncla, a profundldade, a cor,
a luz, as propor~Oes, os volumes. os contamo!. nao foram, na
epoca conslderada, nomeados, enunclados, conceltuaIlzados em
uma pratlca dlscurslva; e se 0 saber resuItante dessa pratlca
discurslva nao fol, talvez, Inserido em teorias e especuIa~Oes,
em formas de enslno e em receltas, mas tambem em processos,
~m tecnlcas e quase no proprio gesta do pintar. Nilo Be trataria
de mostrar que a plntura e ut'na certa manelra de slgnlflcar ou
de "dlzer", que terla a particuIaridade de dispensar palavras.
Seria preclso mostrar que, em pelo menos urnade suas dimen-
sOes, ela e uma pratlca discurslva que tama corpo em tecnlcas
e em efeltas. Asslm descrlta, a plntura nlio e uma simples vlsao
que Be deverla, em segulda, transcrever na materlaIldade do
e~pa~. Nilo e mais um gesta nu cujas slgnlflc~Oes mudas e
Indeflnldamente vazlas deveriam ser Uberadas por Interpreta<;oes
ulterlores. :l!: Intelramente atravessada - Independentemente
dos. conheclmentoS clentlflcos e dos temas fUos6!1cos - pela
posltlvidade de um saber. .
Parece-me que se poderla fazer, tambem, uma analise do
mesmo tlpo a prop6slta do saber politico. Tentarlamos ver se
o comportarnenta poUtico de urna socledade, de urn grupo ou
de uma classe, nao e atravessado por urna pratlca discurslva
determlnada e descrltlvel. Essa posltlvidade rlio colncldlrla,
evldenternente, nem com as teorias poUtlcas da epoca, nem com
as determlna~Oes CC01l6mlcas: da poUtlca, ela deflnlrla 0 que
pode tamar-se objeta de enuncla~iio, as formas que tal enun-
c!a~iio pode tomar, os conceltas que al se encontram ernprega-
dos e as escolhas estrategicas que at se operam. Em lugar de
nnalls&.-lo - 0 que e sernpre posslvel - na~ da eplstemc
c que pode dar lugar, anaIlsarlamos esse saber na dlre<;iio dos
comportamentos, das lutas, dos confiltos, das declsOes e das
tlItlcas. Farlamos aparecer, WlSim, urn saber politico que nlio e
da ordern de uma teorlza~iio secundarla da pratlca e que niio
220
e, tampouco, uma apllca~iio da teorla. Ja que c regularmente
formado por uma pratlca dlscurslva que se desenrola entre
outras pratlcas e se artlcula com elas, eIe nlio constltui uma
expressiio que "refietlria", de manelra mats ou menos adequada,
um certo nUmero de "dados objetlvos" ou de pratlcas reals.
Insereve-se, logo de Infclo, no campo das dlferentes pratlcal!
em que encontra, ao mesmo tempo, sus. especlflca~, suas
fun~Oes e a rede de suas dependetlclas. Be tal descrl~o fosse
passivel, venamos que niio haveria necessldade de passar pela
InstAncla de uma conscletlcla Individual au coletlva para com-
preender 0 lugar de artlcuIa~o entre Ulna pratlca e uma teoria
polftlcas; niio haveria necessldade. de procurar saber em que
medida essa conscletlcla pode, de Urn lado, exprlmlr condi~Oes
mudas, de outro, mostrar-se sensivel a verdades te6ricas;· nao
terfamos de colocar 0 problema pslcol6g1co de uma tamada de
conscletlc1a; terlamos de anaIisar a form~ e as transforma-
~Oes de urn saber. A questiio, por exemplo, nio seria determlnar
a ptUtfr de que momento aparece uma consclencla revoluclo- .
Dll-ria, nem que papeis respectivos puderam desempenhar as
eondl~ econ6mleas e 0 trabalho de elucida~ te6rica DR
gl!nese desaa conscletlcla; niio se trataria de retra~ a blografla
geral e exemplar do homemrevoluc1onArio, ou· de encontrar
o enralzamenta de seu projeta; mas de mostrar como se for-
maram uma pratica d1scurslva e urn saber revoIuclonArio que
estlio envolvidos em eomportamentos e estrateglas, que dao
lugar a urna teor1a da socledade e que operam a Interferetlcla
e a mutua transforma~ de una e outrol.
Pede-se responder, agora, a pergunta que se propunha btl.
pouco: a arqueologla 56 se ocupa das clblc1a.s e nunea passa
do uma anB.llse dos dlscursos clentfficos? E responder duas
vezes nlio. 0 que a arqueologla tenta descrevcr IUio 6 a cll!ncla
em sua estrutura especlfiea, mas 0 dom1nlo, bem d.l!erente, do
,abef'. Alam dlsso, Be ela se ocupa do saber em sua rela~o com
u figural! ep1stemol6g!caa e as cletlclas, pode, do mesmo modo,
Interrogar 0 aaber em uma~ d1ferente e dcscrcv!-lo em
urn outro fe1xe de rela~ A orlen~ para a epf.steme fol a
Unica explorada ate aquI. A razio dlsso 6 que, por urn gradlente
221
,
,
.araeterlza, sem duvlda, nossas cultures, as iorma¢es dis-
curslvas nao param de se eplstemologizar. Fot interrogando as
cicnclas,. suo. hlst6rla, sua estranha unldade, sua dispersiio e
suas rupturas, que 0 domlnlo das poslUvldades pMe aparecer;
foi no IntersUdo dos dlscursos ~entl!leos que 8C pMe apreen·
der 0 Jogo das !orma~s dlscurslvas. Nao e aurpreendente, em
tals condl~Oes, que a regiao mala fccunda, a ma1s aherta 1
descrl~lio arqueo16glca, tenha sldo a "era clAss1ca" que, do Re-
r.asclmento ao &kulo XIX, desenvolveu a eptstemol~ de
tantas posltivldades; nao ~ aurpreendente, tampouco, que as
tormo.~Oes dlscurslvas e as regularldadea elpecJOcal do aher
re tenham dellneado justamente onde 01 nlvell l1a c1enUfic1·
dade e da !ormallza~ao foram os ma1s dlficell de aerem atln·
gldos, Mas esse ~ apenu 0 ponto preferenc1a1 l1a abordagem;
nlio c um domlnlo obrigat6r1o para a arqueologla.
222
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V
CONCLUSAO
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