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15 de abril de 2010 BARBUDOS, SUJOS E FATIGADOS (trecho pág. 118 a 123) Cesar Campiani Maximiano Além do contato direto e constante com o terreno, sugerindo recor- dações de um estado corpóreo miserável, a experiência de combate da FEB durante o inverno ocorreu predominantemente em ambiente natural. Em raras ocasiões, os soldados dos pelotões de fuzileiros tinham a oportunidade de ocupar casas de fazenda de italianos, que nem sempre eram convenientes, visto serem frequentemente visadas pelos observadores alemães, sempre colocados algumas centenas de metros acima da infantaria aliada. Mesmo para um visitante sem conhecimento especí) co de assuntos militares que tenha a oportunidade examinar os antigos campos de batalha da FEB, é � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � A cada 15 - Cesar Campiani Maximiano possível constatar o total domínio exercido pelos alemães sobre os vales adjacentes, por meio de atiradores de elite e observadores de artilharia que dirigiam tiros de precisão. Entretanto, mesmo se abrigando em casas, que pela sua relativa segurança alguns soldados preferiam aos foxholes, não era possível obter grande aumen- to de conforto. Em Verdades e vergonhas da Força Expedicionária Brasileira, Leonercio Soares narrou a situação em que se encontrava seu pelotão dentro de uma residência de italianos. A descrição das condições insalubres da casa ocupada pelo grupo de Soares recorda a crueza de detalhes sobre o estado corpóreo dos soldados, já identi) cada no poema apócrifo: “Os efeitos da promiscuidade e da ausência total de higiene nem sempre se notavam, tão maltratados todos pareciam estar. Banho ninguém tomava há muito tempo. Nem as mãos e os rostos eram lavados. Um dos quartos da arruinada casa, no qual o telhado se apresentava arrebentado, foi transformado em latrina. Aí se abriu uma fossa, junto à parede, para que pudessem todos despejar nela seus excrementos. No correr dos dias, a imundície e o mau cheiro, não havendo como contê-los, evoluíram, inevitavelmente. O fedor desprendia-se tanto dos corpos sujos como das urinas e fezes, com as quais se convivia. Um viver à margem do inferno. Inferno esse, imundo e tenebroso, tanto ou quanto Dante imaginara.”97 Na linha de frente, os o) ciais igualmente compartilhavam as mesmas tribulações de seus comandados, como narrou o Tenente Túlio Campelo de Souza, da 8a Cia. do 6o R.I.: “Quando em ação na linha de frente, lembro-me de ter tomado no má- ximo oito ou nove banhos de setembro de 1944 até março de 1945, banhos em rio, no capacete ou em bacias de rosto dos italianos (...) Aliás, a falta de limpeza torna-se hábito, e a sujeira, depois de um certo tempo, parece não sujar mais.”98 Outro integrante da mesma companhia do 2o Tenente Túlio, o Cabo Sydonio Pedro, depôs de forma cabal sobre a impossibilidade de manter condições básicas de higiene na linha de frente: “Banho não tinha. Não se dormia. A gente aprendeu a cochilar de pé. Ali no Castello, o primeiro ataque ao Castello, nós recuamos, então nós 15 de abril de 2010 ficamos nessa cidadezinha, Bombiana. E eu amarrei a metralhadora num alpendre. E a gente chupava muita uva. Mas tinha uva de lata, sabe uva?” “Eu não sei se a uva tava passada, me deu uma disenteria, Cesar, e eu tô louco pra descer, descer o barro, né, nesse momento veio o alemão balançando o holofote, pisava assim, quebrava os vidros das casas, trec-trec, e eu com eles na mira, né, me deu uma disenteria, eu fui cagar. Caguei nas cueca. Mas caguei mesmo, que olha!” “E não tinha jeito de sair dali. E não tinha jeito de trocar, que não tinha mais roupa, não tinha jeito pra tomar banho, fiquei mais de um mês assim. E a turma: ‘Pô, que mau cheiro!’ Falei: ‘Sou eu! Caguei nas calças’!” “Você pegava depois que secou, você pegava as calças e fazia assim e quebrava, trec-trec. Aí libertamos uma cidade, tinha aquele chafariz, bebedouro de água, né? Ah, tomamos banho lá, pelados, todo mundo pelado. Tinha um barbeiro italiano, pôs uma cadeira lá, aí cortava careca, né, tudo careca, aparecia aqueles pedaços de torrão na cabeça.”99 Além de acostumarem-se às situações de total falta de higiene da vida em buracos, os expedicionários também se habituaram a cenas chocantes e a paisagens macabras, como a descrição do 3o Sargento Leonercio Soares das posições que sua companhia ocupou durante o inverno, escavadas sob o cemitério de Bombiana: “A terra pisada e repisada pelos pés dos soldados tornou-se um lamaçal pastoso e gelado. E fétido, também. Sobretudo ali, naquelas medonhas e encharcadas posições, abertas, em forma de túnel, enrustidas que foram sob o velho cemitério de Bombiana. Ali, naqueles buracos de toupeiras, sentia-se ainda muito frio no decorrer das noites. As mãos gelavam-se ao tocar na terra negra e malcheirosa. Dela, permanentemente emanava-se o odor sepulcral de defuntos centenários, confundindo-se, misturando-se e aderindo ao fedor do feno podre que enchia os galochões — o fedor de chulé, de suor velho e encalacrado — o mau cheiro de toda sorte de sujeira acumulada nos corpos vivos que conviviam com os mortos. Um bafejo forte escapava-se do fundo da terra do velho cemitério — ema- nação pegajosa, grudenta, nauseante, impregnava todas as coisas que ali se encontravam.”100 A presença de cadáveres insepultos era uma constante do front, e fazia- se necessária a rápida adaptação a novas situações que se impunham para A cada 15 - Cesar Campiani Maximiano a sobrevivência, como a ausência de escrúpulos em conviver com restos mortais, de acordo com as memórias de Ferdinando Piske: “Dois pracinhas acabaram topando com uma casamata alemã e logo resolveram ocupá-la. Mas um cheiro dos diabos vinha de lá de dentro. Quando entramos, um espetáculo hediondo se nos deparou: quatro alemães semicarbonizados sentados em torno de uma mesa. Um deles ainda segurando três cartas na mão direita. (...) Depois de enterrarem os três cadáveres carbonizados, instalaram-se na casamata. Era esse o espírito do combatente.”101 No que concerne às operações em efetivo superior ao da companhia de fuzileiros, depois de 12 de dezembro de 1944 a 1ª D.I.E. teve pouco contato com grandes frações de tropa inimiga até meados de fevereiro de 1945. O reduzido número de baixas cons-tatado em combate — comparado, eviden- temente, aos períodos de ofensiva (somente em janeiro a 1ª D.I.E. lamentou 25 mortos em ação, 111 feridos em ação, quatro extraviados, tendo um sido capturado pelo inimigo) — nas ) leiras na defensiva de inverno indica que as ações predominantes foram as patrulhas e golpes de mão, que, apesar de não resultarem em grandes números de baixas, desgastavam os pelotões de fuzileiros, ao mesmo tempo em que serviam para aprimorar a capacidade combativa e o domínio de táticas de infantaria. Em compensação, o número de afetados por doenças aumentou exorbitantemente, devido aos rigores do inverno, causando maus-tratos aos homens praticamente expostos ao tempo, que chegou a extremos de 25 graus negativos e fez com que alguns soldados literalmente congelassem dentro dos foxholes. Os meses de inverno cobraram alta conta em doenças respiratórias, congelamento e exaustão, totalizando, juntamente com as baixas em combate — 5.027 homens retirados da linha entre os meses de dezembro de 1944 e fevereiro do ano seguinte.102 Fora as investidas iniciais contra Castello e as operações no vale do rio Serchio, a FEB esperaria até o plano Encore (a ofensiva de fevereiro de 1945) para se ver novamente envolvida em grandes combates. No conceito dos infantes, eram necessários três meses na linha de frente para que um novato se transformasse em “ve-terano”. Era esse, em média, o tempo que os soldados julgavam adequado para se dominar completamente as malícias da guerra, como, por exemplo, distinguir os diferentestipos de sibilos de granadas e o local mais provável de sua queda, ter o controle dos nervos quando o inimigo se aproximava, acostumar-se com a realidade que 15 de abril de 2010 teriam pela frente e, principalmente, conhecer as artimanhas do inimigo. A transição da condição de novatos para veteranos não foi consolidada apenas com a aquisição de experiência, durante o inverno a divisão brasileira se ocupou em erradicar erros e corrigir problemas causados pela instrução insu) ciente. Elaboraram-se cronogramas de trabalho segundo os quais todas as companhias de fuzileiros executaram exaustivos treinos, que iam desde “a escola do pelotão” até “patrulhas noturnas”. Técnicas de combate foram aprimoradas à medida que a tropa se tornava mais hábil no manejo do armamento. A FEB viu também algumas inovações chegarem até suas ) leiras, como as equipes especiais de patrulheiros. Talvez o mais famoso de todos os grupamentos especiais tenha sido o “Pelotão de Choque” do sargento Max Wolf Filho. Em assaltos às posições inimigas, grupamentos ad hoc eram também constituídos com o armamento extra à disposição dos comandantes de companhia. Mesmo com a dotação extra de submetralhadoras, fuzis auto- máticos e lança-rojões disponíveis nos postos de comando das companhias, a quantidade de armas automáticas conferidas aos pelotões de fuzileiros se- gundo as tabelas de organização era considerada insu) ciente, e em inúmeras situações tanto brasileiros como americanos sentiram-se sobrepujados pelo maior poder de fogo de que dispunha a infantaria alemã. Enquanto o grupo de combate alemão de nove homens continha duas armas automáticas, os grupos de 12 homens como os que a FEB tinha podiam contar apenas com um exemplar do Browning Automatic Ri= e, que os brasileiros chamavam de FM (fuzil-metralhadora, seguindo o padrão francês para a nomenclatura do armamento). Os “pelotões de choque” surgiram entre o Exército Americano nos estágios iniciais da campanha italiana. O mais célebre foi a “Battle Patrol” do 7º Regimento de Infantaria. Essas pequenas unidades eram constituídas de efetivos similares ao do pelotão de quarenta homens, e por vezes dispunham de um número maior de fuzis-metralhadora, submetralhadoras e bazucas. Em ocasiões de ataque e progressões, havia grupamentos com armamento similar que se encarregavam de aniquilar as forti) cações alemãs ultrapassadas pelo grosso da tropa. Nas fases de Monte Castello em diante, a infantaria brasileira aprendeu a integrar os grupamentos especiais nas brechas dos pelotões em escalão de ataque. Esses grupos se encarregavam de aniquilar os núcleos de resistência que o grosso da infantaria ia deixando para trás. Tais alterações na organização básica das divisões de infantaria são exemplo da rápida necessidade de mudanças e adaptações que os próprios combatentes precisavam introduzir, com a ) nalidade de superar as limitações doutrinárias, por natureza rígidas, se considerarmos a rápida evolução dos A cada 15 - Cesar Campiani Maximiano processos de combate. O sistema divisionário americano sofreu uma série de mudanças no decorrer da guerra, que procuravam aumentar o poder ofensivo das unidades e diminuir as funções burocráticas e de serviços não diretamente ligadas aos combates. Empenhada na linha de frente ao lado de divisões americanas, foi necessário que a tropa brasileira se ajustasse às di) culdades do front ao mesmo tempo em que modernizava de fato sua instrução, o que não havia ocorrido nem mesmo com a instrução da Missão Francesa, introduzida no Brasil em 1921. Experiência adquirida e treina-mento constante foram ambos fatores críticos para a melhoria do desempenho da FEB em combate — ao contrário das narrativas folclóricas que no pós-guerra disseminaram sandices como o suposto “medo de faca” dos alemães e a con- quista de posições inimigas à base do golpe de capoeira. Cesar Campiani Maximiano, nasceu em São Paulo em 1971. Começou a pesquisar sobre a participação brasileira na Segunda Guerra Mundial na década de 80, e em 1995 publicou seu primeiro livro, Onde Estão Nossos He- róis. Graduou-se em História pela PUC/SP e é doutor em História pela USP. É autor, ainda, de Irmãos de Armas (Códex, 2005) e @ e Brazilian Expeditionary Force (a sair em 2011 pela Osprey Publishing, Inglaterra). Entre outras revis- tas, escreveu para a National Geographic, Nossa História e Grandes Guerras. Participou da Encyclopedia of the Veteran in America (ABC-CLIO, 2009). Leciona História Contemporânea e História das Relações Internacionais em universidades públicas e privadas. É pesquisador do POLITHICULT ᾢ Núcleo de Estudos de Política, História e Cultura da PUC/SP. Cesar vive em São Paulo com sua esposa Carolina e seus gatos.
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