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FigurasPapeisPerrot (1)

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PERROT, Michelle (org.). História da Vida Privada, 
4: da Revolução Francesa à Primeira Guerra. São 
Paulo: Companhia das Letras, 1991. 
FIGURAS E PAPÉIS 
Michelle Perroí 
A FIGURA DO PAI 
.'Figura de proa da família e da sociedade civil, o pai domina com 
toda a sua estatura a história da vida privada oitocentista. O direito, a 
filosofia, a política, tudo contribui para assentar e justificar sua autorida-
de. De Hegel a Proudhon — do teórico do Estado ao pai do anarquismo 
—, a maioria corrobora seu poderio. E o pai quem dá o sobrenome, isto 
é, quem realmente dá à luz, pois, segundo Kant, "o nascimento jurídico 
é o único nascimento verdadeiro''. Sem rei, os tradicionalistas querem res-
taurar o pai. Mas, sob este aspecto, os revolucionários não ficam atrás, co-
mo tampouco os republicanos — conforme mostrou Françoise Mayeur a 
respeito de Jates Ferry —, que entregam as chaves da cidade apenas ao 
pai dc família. "Um axioma da ciência política é que a autoridade na 
família seja onipotente, para que se tome menos necessária no Estado. 
A esse tespeito, nossas grandes assembléias republicanas se enganaram, 
ao diminuir o poder marital e o poder pateruo", escreve Jules Simon, la-
mentando a retração da disciplina paterna.' Os republicanos deliberam 
sob as vistas de Mariannc, enquanto uma estatuomania delirante espalha 
mulheres por todos os lados: aos pés dos grandes homens ou coroando-
ihes a fronte. Mas essa sobrecarga do imaginário, essa celebração frenética 
da ' 'Musa e Madona" não passam de maneiras de consolidar a dualidade 
entre o espaço público e o privado. 
' 'A diferença que existe no ser dos cônjuges vem pressuposta em seus 
respectivos direitos e deveres", escreve Portalis./Em nome da natureza, o 
Código Civil estabelece a superioridade absoluta do marido no lar e do 
pai na família, e a incapacidade da mulher e da mãe. A mulher casada 
deixa de ser um indivíduo responsável: ela o é bem mais quando solteira 
ou viúva. Essa incapacidade, expressa no artigo 213 {"O marido deve pro-
teção i sua mulher e a mulher obediência ao marido"), é quase total. 
A mulher não pode ser tutora nem membro de um conselho de família: 
\ r . . 
V 
O CÓDIGO DOS 
DIREITOS DO HOMEM 
Na ausência do pai, serviços 
domésticos e brincadeiras infantis. 
(Paul fiathey, sem título. Paris, 
Museu d'Owty.) 
122 0 1 ATORES 
0 senhor, a senhora, o bebê e a filha 
mais velha: no canto do salão, entre 
as corttnas e o piano, a imagem da 
família nuclear típica em sua 
intimidade. "0 amor materno é um 
sentimento mato na mulher. 0 amor 
paterno, no homem, é o resultado t c 
das circunstâncias", escreve G. Droz C 
(Monsieur, m a d a m c et bebe) . ( A l b e r t 'J 
Auguste Fourié, Em família. 
Ull iustration, , 
ela é preterida cm favor de parentes afastados, do sexo masculino. Não 
pode ser testemunha nos tribunais. Sc abandona o domicílio conjugai, 
pode ser reconduzida ao lar pela força pública e obrigada "a cumprir seus 
deveres e a gozar de seus direitos cm plena liberdade')\A adúltera pode 
ser punida com 2 pena de morte, pois ameaça atentar contra o que há 
de mais sagrado na família: a filiação legítima/,Em Gévaudan, as aventu-
ras são toleradas, mas mantém-se uma vigilância cerrada sobre o engravi-
damento: não hã qualquer indulgência para com a mulher culpada de 
um nascimento ilegítima O homem adúltero não ameaça coisa alguma 
e pode contar com uma cumplicidade maliciosa. O Código Civil proíbe 
a investigação da paternidade, ao passo que a moral consuetudinária exi-
gia que o homem que engravidasse uma moça se casasse com ela./' 
;?A mulher não pode dispor de seus bens na comunidade, regime este 
que se amplia constantemente. Guardando uma grande semelhança com 
o menor, a mulher também não pode dispor de seu salário, o que subsiste 
até 1907, quando a lei finalmente lhe conferi liberdade de ação. Nos lares 
de vinhateiros de Audc, no final do século XÍX, todo o salário do casal era 
pago ao marido. A única proteção dos bens da mulher reside no regime 
de dote, que se encontra em franca regressão, ou na separação de bens, 
que supõe um contrato, prática adotada pelos mais abastados, e aliás em 
retrocesso^ O Código, esporadicamente eficaz entre as famílias ricas, deixa 
as mulheres pobres numa situação singularmente desarmada. E ainda hã 
quem vá além da lei. Alexandre Dumas Filho acha que um marido enga-
nado tem pleno direito de fazer justiça com suas próprias mãos. Prou-
dhon enumera seis casos (entre eJes, o despudor, a embriaguez, o roubo 
c a dilapidação) em que "o marido pode matar sua mulher segundo os 
rigores da justiça paterna'' {Iapornocraúe ou les temps modernes[h por-
nocracia ou os tempos modernos], 1875). 
^ /Essa onipotência se estende aos filhos. A sensibilidade ã infância não 
''afetou a autoridade da família nem a do poder paterno. A Revolução Fran-
cesa havia se limitado a pequenas reformas (anulação do poder paterno 
sobre os filhos maiores de idade, eliminação do deserdamento, limitação 
do direito disciplinar...), e o projeto de Robespierre — retirar as crianças 
de sete ou oito anos de seus pais e criá-las coletivamente, na observância 
das novas idéias — jamais chegou a ser discutido,.. 
/Embora a Revolução, segundo Le Play, tenha matado o pai ao lhe 
retirai o direito de testamentar, o Código Civil conserva muitas das con-
cepções antigas. O filho, mesmo maior de idade, deve ser "tomado de 
'um respeito sagrado à visão dos autores de seus dias", e, se "a natureza 
e a lei afrouxam os laços do poder paterno sobre si, a razão vem a reforçar 
ps nós". A autorização dos pais para o casamento antes dos 25 anos de 
idade contínua a ser obrigatória até 1896. 
O pai pode mandar prender os filhos e recorrer às prisões do Estado, 
como se fazia no sistema das ordens regias, a título de "correção pater-
na", o qual mantém uma polícia de família onde o poder público age 
FIGURAS E PAPÉIS 129 
por delegação/Todavia, os artigos 375-382 do Código Civil (livro 1, títu-
lo IX) definem as condições para isso. " O pai que (tem] motivos de des-
contentamento muito graves sobre a conduta de um filho" pode apelar 
ao tribunal do distrito; até os dezesseis anos, a detenção não pode se es-
tender para além de um mês, e dos dezesseis anos até a maioridade pode 
chegar a seis meses. Os procedimentos — e as fianças — são bastante sim-
ples: nenhum pleito por escrito, nenhuma formalidade judicial alem do 
próprio mandado de prisão, onde não constam os motivos. Sc o filho, de-
pois de libertado, "recaí em novos desvios", pode-se solicitar uma nova 
detenção. Para possibilitar o acesso das famílias pobres a essa prática, o 
Estado (em 1841 e novamente em 1885) assume, quando elas não tem 
condições, as despesas de alimentação e manutenção. O detento por cor-
reção paterna se soma ao jovem delinqüente, que teria agido "sem dis-
cernimento" e, quando não e reclamado pela família — peto pai —, aca-
ba eventualmente ficando num reformatório até atingir a maioridade. 
Os loucos, dementes e imbecis, privados de seus direitos de cidada-
nia, podem ser internados a pedido da família, conforme estabelece a lei 
de 1838. O direito do marido sobre a mulher se confirma sob esse aspec-
to, como mostra a história de Ctémence dc Cerillcy, irmã dc Emílie, cuja 
família enfrenta as maiores dificuldades para libertá-la dc um interna-
mento, para o qual tinha sido enviada pelo marido com grande condes-
cendência. A reclusão das mulheres ditas loucas aumenta de maneira ver-
tiginosa no século XIX: dc 9930 em 1845-1849, passam para quase 20 mil 
em 1871 (Yaniclc Ripa). Em 80% dos casos, os solicitantes são homens 
(um terço são maridos, pais ou patrões). É verdade que as mulheres re-
correm ao pedido de reclusão com uma freqüência ainda maior do que 
os homens, num procedimento que opera de modo mais getal como uma 
polícia familiar — voltaremos a esse tema.O fotógrafo demora bastante para 
penetrar no interior do lar, cenário 
autêntico onde ele monta ai posei 
dos personagens. 0 cigarro para 
o pai, livros para as mulheres de 
cabelos curtos, quadro relativamente 
despojado: conforto e modernismo 
do começo do século. (Coleção 
Sirot-Angel.) 
f 
. 0 pai tem duplos poderei. Ele domina totalmente o espaço públi-
co. Apenas ele goza de direitos políticos. A política no século XIX c defi-
nida como domínio exclusivo do homem, a ponto de Guizot recomendar 
que ela fosse retirada dos salões, femininos e mundanos. Certo dia, Gam-
r betta solicitou à condessa Arconari-Visconti, cujo salão recebia os repu-
blicanos do final do século, que excluísse as /nulheres para que se impu-
sesse uma maior seriedade: ela concordoujf 
/Ma5 os poderes do pai também são domésticos. Exercem-se nessa es-
- fera, e seria um erro pensar que o âmbito privado pertence integralmente 
às mulheres, ainda que o papel feminino efetivo no lar aumente de manei-
ra constante. Em primeiro lugar, ele é senhor pelo dinheiro. Nos meios bur-
gueses, ele controla as despesas domésticas entregando à mulher uma de-
terminada soma, muitas vezes bastante apertada/A meiga Caroline Orvil-
le não entende por que seu marido, em plena guerra e separação (1871), 
lhe passe uma repreensão por causa de uma conta da costureira, única des-
pesa que se permite, pois "faz questão de aj&dar arrumada" — é dever 
seu. Assim, mesmo generoso, o pai exerce controle e poder. E o que se vê 
claramente no caso de Victor Hugo, que, preocupado com a unidade da 
"tropa", tenta reter cm Guernesey os membros da família, que anseiam 
cm escapar, cobrando-lhcs o dinheiro que pedem para suas viagens. Essa 
vigilância pesa especialmente sobre a esposa e a filha Adèle, totalmente 
dependentes dele. Hugo se queixa de que não passa dc um "caixeiro" da 
família (Henri Guillemin, L'engloutie [A engolfada], 1985, p. 105). Mas 
como seria dc outra forma? A situação nos meios rurais c bastante seme-
lhante./A penas os meios operários ou populares urbanos escapam parcial-
mente à sujeição financeira frente ao pai: a mulher, dona dc loja ou sim-
plesmente dona de casa, conquistou esse lugar de "ministra das Finanças" 
da família que lhe é tão caro, 
// As decisões fundamentais cabem ao pai. No âmbito econômico, pa-
rece inclusive que seus poderes aumentam. Assim, as burguesas do norte 
da França, estreitamente ligadas à administração dos negócios, trabalhando 
na primeira metade do século como contabilistas e secretárias, e até como 
verdadeiras gerentes — como Mélanie Pollet, ancestral da Redoute —, na 
segunda metade do século fecham-se em suas casas, agora distantes da 
fábrica, já não guardando qualquer relação com ela (cf. Bonnie Smith). 
,í O mesmo vale para as decisões pedagógicas, principalmente no que 
se refere aos filhos, e para as alianças matrimoniais. A mãe de Martin Na-
daud não via grande utilidade em que ele freqüentasse a escola, desejan-
do colocá-lo o mais rápido possível no trabalho agrícola. O pai decidiu 
de outra maneira, mostrando-se sob esse aspecto um homem esclarecido. 
Muitos casamentos são combinados pelos pais, e há mães que, sensíveis 
à voz do coração, tomam o partido de suas filhas debulhadas em lágri-
mas, como nas comédias de Molière. É o c^so de madame Hugo, no dolo-
roso conflito que divide Adèle e Victor^ 
Em numerosos casos, a decisão do pai se funda nos argumentos 
FIGURAS E PAPÉIS 129 
O prestígio dos homem é dado pelas 
calças. Pobre do lar em que a mulher 
as veste! Esse marido, talvez traído, 
lembra sua autoridade à mulher 
prostemada, mas que continua 
visivelmente a pensar na metma 
coisa. Variações decadentes de um 
antiqüíssimo tema do imaginário 
popular. (Paris, Biblioteca das Artes 
Decorativas.) 
da ciência e da razão. Contra as mulheres devotas c obscurantistas, dema-
siado suscetíveis ao sentimento, tentadas pela paixão, espreitadas pela lou-
cura, o pai — o homem — deve sustentar os direitos da inteligência. E 
a esse título que Kant, Comtc e Proudhon reivindicam o primado do pai 
no lan o doméstico é importante demais para ser deixado à natureza fra-
ca das mulheres. 
í E também a esse título que o marido tem o direito de vigiar as visi-
tas, os passeios, as idas e vindas e a correspondência de sua mulher/No 
final do século XIX, acendeu-se toda uma controvérsia sobre o assunto, 
o que mostra a arrancada He um feminismo individualista, compartilha-
do por alguns homens, e ao mesmo tempo seus limites, já que não se 
tomou nenhuma providência que protegesse o direito das mulheres ao 
sigilo de sua correspondência: muito pelo contrário, a maioria dos magis-
trados se pronunciou contra tal direito. Le Temps (março de 1887), tendo 
pedido a opinião de seus leitores a esse respeito, recebeu um grande nú-
mero de respostas e publicou algumas delas. Ferrenhamente favorável ao 
poder do marido, Alexandre Dumas Filho considerava que "um marido 
que tem dúvidas sobre sua mulher e que, para esclarecê-las, hesita em 
abrir as cartas que ela recebe, é um imbecil". Um padre invocava o apoio 
da doutrina eclesiástica; " O marido é o senhor na casa". Pressensé, de 
seu lado, tinha uma posição bem mais matizada, estabelecendo uma opo-
sição entre o direito e o costume, ao passo que Juliette Adam e madame 
de Peyrebrune, com algumas diferenças importantes, assumiam uma po-
sição francamente favorável à liberdade. Para Juliette, a realidade cotidia-
na desmente o Código: a mulher "conquista uma liberdade apesar da 
lei", corresponde-se "com sua mãe, suas irmãs, suas filhas, suas amigas". 
126 OS ATORES 
Madame de Peyrebrune ressalta a lógica da posição dos juristas, "conse-
qüência das leis que restringem a liberdade moral da mulher no casamen-
to". É a Jei, portanto, que deve ser modificada. Em 1897, o substituto 
do procurador-geral do tribunal de apelação de Toulouse, na sessão sole-
ne de reabertura, passou em revista os argumentos de ambos os lados, 
concluindo pela legitimidade dos direitos do marido e pela submissão das 
mulheres, cm sua maioria felizes por serem protegidas contra si mesmas! 
A questão foi igualmente polêmica na jurisprudência: o que fazer com 
o direito de sigilo das cartas confidenciais que não devem ser transmiti-
das a terceiros, de modo que, em caso de morte do destinatário, o reme-
tente pode exigir sua devolução? Mas o marido será um terceiro?* 
A CASA PATERNA -/O pai também domina a casa, mesmo passando muito tempo fora. 
. E l e tem seus aposentos particulares: o fumoir e a sala de bilhar, para on-
' de os homens se retiram para conversar após os jantares sociais; a biblio-
* \ .•• teca, porque os livros (e a bibliofilia) continuam a ser coisa dc homens; 
o escritório, onde os filhos entram apenas nfcmulando.jíSegundo os Gon-
court, Sainte-Beuve só é verdadeiramente ele mesmo quando se encontra' 
em seu refúgio do primeiro andar, longe das gritarias das mulheres, no 
térreo. Mesmo uma mulher que trabalhe não dispõe de um escritório pró-
prio, extensão do público para o privado da casa. Pauline Reclus-
Kergomard, inspetora das escolas matem ais a partir de 1879, organiza seus 
papéis na mesa da sala de jantar, enquanto seu marido Julcs devaneia cm 
seu escritório vazio, para grande escândalo efe seus filhos — t o que nos 
conta Hélènc Sarrazin (Elisêe Redus ou lapassion du monde (Eliscc Re-
clus ou a paixão do mundo], 1985). 
No salão, os papéis e os lugares são divididos: pelo menos Kant os 
define rigorosamente. O salão de Victor Hugo, com o grupo de homens 
de pé no centro e as mulheres sentadas em volta, e um modelo do gêne-
ro./A escolha da decoração é muito mais masculina do que se imagina. 
Por ocasião do casamento, a casa é mobiliada pelo futuro genro e sua so-
. gra, segundo os manuais do conforto doméstico. Mas julcs Ferry "afoga 
• seu irmão de cartas sobre o apartamento desejado"para seu futuro lar 
com Eugénie Risler, com instruções ' 'sobre a instalação, a cor das corti-
nas, dos tapetes'' (Fresnette Pisant-Ferry, ' 'Jules Ferry, 1'homme intime' 
r>' Coíloque Ferry). Ao mesmo tempo, como uni autêntico Pigmalião, ele 
ensina a mulher a se vestir, a se pentear, a realçar sua beleza. Os homens, 
que preparam as mulheres no teatro e na moda, também cuidam delas 
-"O no lar. Se são ricos, não abandonam a casa, mas povoam-na com suas aqui-
sições — eles são grandes colecionadores — e seus fantasmas. O domésti-
co então se apaga diante da criação,/ 
(*) Lafont d c Scntcnac, Dei droits du mari sur la conespondance dí sa femme 
[Direitos d o marido sobre a correspondência dc sua mulher] , tribunal de apelação d e 
Toulouse, sessão solene dc reabertura, 16 dc outubro d e 1897, Toulouse, 18?7, 5! pp. 
FIGURAS E PAPÉIS 129 
A sociabilidade e os passatempos 
masculinos, no século XIX, 
inscrevem-se em espaços separados — 
clubes, cafés, salas de bilhar — onde 
as mulheres respeitáveis só evitam 
acompanhadas. (Ao lado; Café La 
Manille, 1899. Pans, Biblioteca 
Nacional. Embaixo: AmêdêeJulien 
Marcel-Clément, Lc Billatd, 1900 ) 
128 OS ATORES 
I 
Victor Hugo sonhou constantemente com uma casa que seria o cen-
tro de seu mundo c, portanto, do mundo inteiro. O exílio lhe deu a oca-
sião para tanto. É a Hauteville House, em Guctnesey, que cie comprou, 
reformou e decorou à revelia de sua mulher. "Não gosto que sejamos pro-
prietários", escreve ela à irmã. Adèle enxerga claramente a servidão que 
lhe traz esse enraizamento, justamente ela que tanto aprecia as viagens 
c as cidades, e o isolamento que ele acarreta para os filhos, privados do 
indispensável convívio social da juventude. "Admito que, com tua cele-
bridade, tua missão e tua personalidade, tenhas escolhido um rochedo 
em que te enquadras admiravelmente, e entendo que tua família, que 
só é alguma coisa para ti, se sacrifique não apenas à tua honra, mas tam-
bém à tua figura", escreve ela a Victor (1857). "Amo-te, sou tua, submeto-
me a ti. Mas não posso ser uma escrava absoluta. Existem circunstâncias 
cm que a pessoa precisa de sua liberdade./; O pai, patriarca, reina como 
um deus no tabernáculo de sua casa. ç 
> Hugo — esse ' 'doce tirano'', segundo seu filho — é certamente uma 
das figuras paternas mais grandiosas do século. Ele eleva ao sublime to-
dos os traços físicos e morais, de generosidade e despotismo, de dedica-
ção e poderio, acompanhados de todas as ridicuiarias e mesquinharias do 
pai burguês que tem amantes e teme os mexericos; é o egoísmo do pai 
cruei que prefere internar a filha demente numa obscura "casa de saú-
de" a enfrentar o opróbrio ao ' 'nosso nome", o que ocorreria caso as pes-
soas tomassem conhecimento da presença de uma louca na casa. "Sem-
pre pode ocorrer uma desgraça", escreve ele a esse respeito, e Hrnri Ouil-
lemin observa que Hugo até parece desejar que isso aconteça. O poder 
do pai atingido cm sua glória pode chegar ao assassinato. É por isso que, 
para sobreviver, é necessário matar o pai. 
O século XJX conti com muitas figuras de pois triunfimtes e domi-
nadores, e se reconhece neles. A maioria dos criadores transformou suas 
casas em ateliês, e converteu suas esposas, filhas ou irmãs cm secretárias: 
é o caso de Proudhon, Elisée Reclus, Renan ou Marx, outro retrato típico 
de nossa galeria, cuja intimidade é bastante conhecida, principalmente 
graças à correspondência trocada com e por suas filhas. Pai adorado e vi-
i gilante, pai déspota e minucioso nas escolhas profissionais e matrimoniais 
% \ , - das filhas. Eleanor, praticamente obrigada a renunciar à carreira de atriz 
e ao amor de Lissagaray, acaba sendo traída por Aveling, que Marx prefe-
rira por ser socialista. Eleanor, presa a um pai doente que não a compreen-
de, soma-se às fileiras das filhas sacrificadas à glória e à vontade paternas. 
E o pai que, muitas vezes, também lhes abre as portas do mundo. Pois 
o poder paterno é a forma suprema do poder masculino, exercido sobre 
todos e ainda mais sobre os fracos, dominados e protegidos/ 
Essa figura paterna não é apenas católica: é igualmente protes-
tante, judia ou ateia. Não c apenas burguesa: c profundamente popu-
FIGURAS E PAPÉIS 129 
\ V' , 
lar. Proudhon a erigiu em honra. Há nele um constante desejo de pater-
nidade. Desde muito cedo, Proudhon pensou em gerar um filho, "pa-
gando uma indenização cm dinheiro para uma moça que eu seduziria 
para esse fim". Aos 41 anos, ele se casa com uma jovem operária de 27 
anos, "simples, graciosa e ingênua", devotada ao trabalho e a seus deve-
res, "a mais doce e dócil das criaturas". Ele a viu na rua e lhe fez o pedi-
do por carta, uma peça antológica. Proudhon a escolheu para suceder à 
sua mãe: "Se ela tivesse sobrevivido, eu não teria me casado". Mas, "na 
falta de amor, eu alimentava a fantasia do lar e da paternidade (...]. O 
reconhecimento de minha mulher me valeu três meninas louras e cora-
das, amamentadas pela própria mãe e cuja existência ocupa toda a minha 
alma". E continua: 1 'A paternidade preencheu em mim um vazio imen-
so" — ela é "como um desdobramento da existência, uma espécie de 
imortalidade". ^ r ^ 
paternidade, para os proletários, constitui simultaneamente a forma 
mais elementar de sobrevivência, patrimônio e honra. A classe operária 
se apropria da paternidade/virilidade, essa clássica visão da honra mascu-
lina oriunda das sociedades rurais tradicionais, e sobre ela edifica parte ^ 
de sua identidade./ 
••/É por isso que a morte do pai constitui a cena mais grandiosa, mais ^ MORTE DO PAI 
carregada de tensões c significados, dentre todas as cenas da vida privada/ 
E objeto dc relatos e representações. O leito do moribundo já não é o 
leíto das "últimas vontades": estas são regulamentadas por lei. Mesmo 
assim, continua a ser o lugar das despedidas, das transferencias dc poder, 
das grandes reuniões, dos perdões e reconciliações, dos novos rancores de-
rivados da injustiça do desfecho. 
i/h mãe morre discretamente; viúva, sozinha, mais idosa, já presen-1 ^ -
ciou a partida dos filhos, e é raro que detenha a chave dos negócios ou 
das provisões/Em Gévaudan, muitas vezes ela é apenas uma boca a mais, 
que o herdeiro aceita em sua casa com impaciência, deixando-a entre os 
"pequenos". Já o pai, como na fábula, "manda chamar os filhos". Em 
Lítlc, Caroííne Br ame presenciou a morte do velho Louis Brame, o Bon-
Papa, fundador da dinastia. Os irmãos inimigo.'; estavam lá. "Bon-Papa 
beijou todos nós, e depois, chamando meu pai e meu tio Jules, confiou-
lhes seus livros, prestou-lhes contas de seus negócios e recomendou-lhes 
seus empregados. Sua fisionomia tinha não sei quê de altivez" [Journal 
[Diário]). O pai de Proudhon, um tanoeiro pobre, optou por uma morte 
principesca, ao fim dc uma refeição para a qual convidara os parentes e u 
amigos para se despedir ' 'Eu quis morrer entre vocês. Que tragam o café". 
ijh morte do pai, grande fratura econômica e afetiva da vida pri-, 
vada, c o acontecimento que dissolve a família, que permite a existên- , y 
cia das outras famílias e a libertação dos indivíduos. Daí que às vezes ^ 
seja desejada, e daí também o rigor da lei contra o particídio. Crime ^ 
v • 
fíCURAS E PAPÉIS 131 
sacrílego, raramente absolvido, é mais provável que leve ao cadafalso, guar-
dando marcas infamantes por longo tempo.// 
Mas existem muitas outras maneiras de matar o pai, inclusive a pró-
pria neurose pessoal, Para Sartre, a doença de Flaubert é o "assassinato 
do pai" (Lidiol de la famille, t. II, p. 1882 ss.). Achiile-Cléophas, o te-
mido modelo, é quem dispõe de sua vida e encaminha-o pata o direito: 
"Gustave será notário. Será porque já o é, em virtude de uma predesti-
nação que não é senão a vontade de Achiile-Cléophas". "A neurose de 
Flaubert é o próprio pai, esse outro absoluto, esse superegoinstalado ne-
le, que o constituiu em negatividade impotente." A morte do pai liberta 
Flaubert do peso insuportável que ele impunha sobre sua vida. Após o 
enterro, Flaubert se declara curado. ' 'Em mim, isso teve o efeito de uma 
queimadura que-elimina uma verruga [...J. Até que enfim! Ate que en-
fim! Vou trabalhar." 
A morte do pai assombra os romances de folhetim, de estrutura fa-
miliar extremamente marcada na primeira metade do século XIX. E so-
mente com ela que o filho pode aceder à maturidade e à posse da mulher 
(Lise Quéffelec). 
/ No entanto, existem limites ao poder do pai, definidos pelo direito 
ou impostos pelas resistências crescentes que se erguem contra ele. A his-
tória da vida privada okocentista pode ser lida como uma luta dramática 
entre o Pai e os Outros./ 
;/O fim do direito testamentário, que eqüivale a um assassinato do 
pai (Le Play), possibilita e estimula a divisão dos patrimônios e dissolve 
o poder dos patriarcas. Nas regiões de famílias mais numerosas, essa abo-
lição é acolhida como algo destrutivo, e resiste-se a ela contornando o Có-
digo Civil; em outros lugares, é saudada como uma liberação: é o caso 
das regiões do Centro. Em 1907, Emüe Guillaumin denuncia os velhos 
costumes da família numerosa como "uma exploração do pai sobre os 
filhos", que precisam ser erradicados para sempre./Mesmo nas regiões que 
preservam a cultura occitânia, as tensões vão se agudizando ao longo do 
século. 
I'A evolução jurídica no século XIX consiste numa lenta — na verda-
de, lentíssima — corrosão das prerrogativas paternas. De um lado, sob 
a investida das reivindicações similares das mulheres e dos filhos; de ou-
tro lado, em virtude da crescente tutela do Estado, principalmente sobre 
as famílias pobres, alegando negligência paterna. As leis de 1889 sobre 
a prescrição do direito paterno e as leis de 1898 contra os maus-tratos in-
fligidos aos filhos levam a um maior controle, cm nome do interesse da 
criança/Alei de 1912, após uma série de tentativas desde 1878, finalmente 
reconhece o direito de determinação da paternidade, não só nos casos de 
estupro e violação, mas também nos de "sedução dolosa" (provas escri-
tas). Os guardiães da lei — filantropos, legisladores, eclesiásticos — de-
fendem a mãe solteira e a criança abandonada.^' 
Um sentido crescente do indivíduo, 
no século XIX, confere um papel 
mais central à morte, patética e 
privada. Prematura, a morte do pai 
deixa muitas mulheres sozinhas, 
veladom fúnebres, fiéis guardiãs 
dos túmulos. (Página ao lada Jules 
Boquet, Le Deuil. Rouen, Museu de 
Belas Artes. Embaixo: A nosso pai. 
Paris, Biblioteca Nacional.) 
•
 k i 
1)2 OS/VORK 
A inevitável foto de casamento /'O crescente reconhecimento da capacidade das esposas, o direito 
guardará a lembrança de um • dc divórcio (1884) (geralmente pedido por elas), as separações físicas: 
grande dia . Foto de estúdio., , tudo isso constitui um evidente retrocesso do papel paterno. Esse fenô-
(Colcçao Simt Angel.) ; . . . . 
.meno pode ser verificado inclusive nos detalhes da jurisprudência: por 
. ' exemplo, na questão do direito dc visita aos avós maternos dos filhos de 
casais separados, sob a guarda do pai. O pai, até o Segundo Império, não 
1 tem qualquer obrigação a esse respeito; em 1867, uma decisão que for-
mará jurisprudência decide, "no interesse da criança", atender à solicita-
ção dos avós maternos./' 
Mas o direito apenas ratifica, com atraso e timidez, a reivindicação 
surda e constante que se exerce dentro da família e que acaba levando 
à sua transformação. A família democrática e contratual, como Tocque-
ville observara nos Estados Unidos no começo do século, não resulta de 
uma evolução espontânea, ligada aos avanços da modernidade, sendo an-
tes decorrência de um compromisso, o qual, por sua vez, cria novos desejos. 
CASAMENTO E LAR 
O casamento, crisol da família, foi tema de muitos estudos etno-
lógicos e demográficos, que nos dispensam de discorrer prolongada-
mente sobre o tema. Mais adiante, Anne Martin-Fugier irá descrever 
seus ritos, e Alain Corbin mostrará a lenta ascensão do sentimento, a 
FIGURAS S PAPÉIS 133 
X 
exigência afetiva c sexual que transforma o casal moderno, por vezes 
opondo-se de maneira conflitante às estratégias da família. 
., ^Aqui lembraremos apenas alguns traços principais. Em primeiro lu-
* gar, a força normativa do casal heterossexual, que resulta na dupla rejei-
ção do homossexual e do celibatário, esses dois excluídos. A característica 
• do século XIX reside na polarização em torno do casamento, que tende 
, a absorver todas as funções: não só a aliança, mas também o sexo/'"A fa-
mília é quem faz as trocas da sexualidade e da aliança: ela transporta a 
lei e a dimensão jurídica para o dispositivo da sexualidade, e transporta 
a economia do prazer e a intensidade das sensações para o regime da alian-
ça" (M. Foucault). Essa transformação se dá em velocidades variáveis. Aqui, 
a burguesia tem um papel motor: a consciência do corpo é uma forma 
de autoconsciência/por outro lado, a aliança e o desejo nem sempre con-
cordam entre si — longe disso. O drama das famílias, a tragédia dos ca-
sais freqüentemente residem nesses conflitos entre a aliança e o desejo. 
Quanto mais cerradas as estratégias matrimoniais para assegurar a coesão 
familiat, tanto mais canalizam ou sufocam o desejo. Quanto mais forte 
o individualismo, tanto mais ele se insurge contra as escolhas do grupo, 
os casamentos decididos ou arranjados. Sem dúvida, tal é o mecanismo 
do drama romântico e do crime passional/!^ 
'íitois traços demográficos traduzem essas características. De um 
lado.Tjm alto índice dc nupcialidade, relativamente estável (cm torno 
Fundada em 1908 pelo capitão Maire 
para incentivar a baixa natalidade, 
a Liga dos Pais e Mãei de famílias 
Numerosas acolhe os chefes de 
família com um mínimo de quatro 
filhos. Ela atua junto aos poderes 
públicos "para obter leis que dêem 
uma proteção e um auxílio efetivo 
aos que são o futuro do petís". Militar 
consciente das fraquezas nacionais, 
o capitão Maire, como se vi, dava 
pessoalmente o exemplo. {Paris, 
Biblioteca Marguerite-Durand.) 
de 1,6%), com uma inflexão sob o Segundo Império, e principalmente 
no período dc 1875-1900. Esta última inflexão despertou a preocupação 
dos demógrafos, antes acentos à baixa do índice de natalidade: daí as cam-
panhas populacionistas e moralizadoras da época, e as diatribes contra 
os celibatários. No entanto,' o índice de celibato definitivo é baixo: acima 
de cinqüenta anos, não vai muito além dc 10% em média para os ho-
mens, c dc 12% para as mulheres/ 
Segundo traço considerável: a diminuição da idade por ocasião do 
casamento/O casamento tardio, associado à prática de se casar quando 
já se tem uma definição profissional, também constituía o principal mé-
todo anticoncepcional das sociedades trad f cionais /Proudhon comenta que 
seus antepassados se casavam "o mais tarde possível"; hostil às manipu-
lações carnais, ele próprio é favorável a isso. No século XIX, porém, a di-
fusão de um espírito contraceptivo (quando não de métodos ainda extre-
mamente rudimentares) c da pequena propriedade, que permite um es-
tabelecimento profissional mais rápido, vera a favorecer a redução da idade./ 
Os meeiros, os operários e até os burgueses procuram montar um 
lar o mais cedo possível. "No mundo civilizado'diz Taine, as principais 
necessidades do homem são "um ofício e um lar". E também uitfmeio 
de escapar ao domínio dos pais e de levar uma vida independente. Soma-
se a issò-a procura de um companheiro mais jovem e atraente, principal-
mente por parte dai mulheres, que agora rekitam em casar com velhotes/ 
George Sand fica espantada com a diferença de quase quarenta anos en-
tre sua avó e seu avô, Dupin de Francueil, o que lhe valeu essa magnífica 
resposta: "Foia Revolução que inventou a velhice no mundo". Caroline 
Brame, tão meiga, se insurge contra essas práticas; ao assistir ao casamen-
to de uma moça com "um amigo do pai dela, que tem o dobro de sua 
idade", ela comenta: "Isso não me agradaria nada" {Journal, 25„de no-
vembro de 1864). Sentirá atração por um rapaz de sua idade, dezenove 
anos, o que, aliás, é censurado pela família. 
Na verdade, os índices e tendências médias não significam grande 
coisa cm campos que dependem estreitamente das estruturas familiares. 
Os mapas estabelecidos por H. LeBraseE. Toddsão eloqüentes. "O grau 
de precocidade matrimonial é um bom indicador do tipo de controle exer-
cido por um sistema social sobre seus jovens adultos [...]. Uma idade avan-
çada por ocasião do casamento define uma estrutura familiar de tipo au-
toritário. Produz muitos celibatários, que às vezes permanecem durante 
toda a vida nas famílias dos irmãos ou irmãs casadas, como velhas crian-
ças e tios eternos." A idade das mulheres no casamento em 1830 e, em 
menor grau, em 1901 é particularmente elevada na Bretanha, no sul do 
Maciço Central, no País Basco, na Sabóia e na Alsácia. A persistência dc 
práticas malthusianas também coincide com as regiões católicas, sendo 
que a Igreja prefere a "moral restrita" do casamento tardio a todas as 
outras formas de controle da natalidade. 
FIGURAS E PAPÉIS Í.J7 
A. escolha social do cônjuge também constitui o objeto de estraté-
gias que ocupam o centro de atenção das famílias. A homogamia e até 
a endogaiuia são tendências consolidadas cm todos os meios regionais e 
sociais, que também se explicam pelas formas de sociabilidade; a pessoa 
se casa com alguém semelhante a ela, também pelo fato de conhecer e 
conviver principalmente com indivíduos parecidos com ela mesma/Aí se 
opera um processo de reprodução (no sentido de P. Bourdieu) que, mes-
mo sendo .determinista, não deve nos fazer esquecer os jogos dos indiví-
duos que o aceitam ou rejeitam, numa grande variedade de histórias sin-
gulares. 
i/k endogarnia, muito forte nas zonas rurais do Antigo Regime, re-
torna no século XIX devido às migrações. No entanto, as regras familia-
res se cxercem inclusive sobre os migrantes/Os naturais de Auvergne ou 
Limoges que vão temporariamente para Paris, no movimento pendular 
sazonal que imprime seu ritmo à primeira metade do século, dispõem 
de um duplo circuito sexual: o das ligações na cidade c o do casamento 
na vila — é o caso de Martin Nadaud, que, no entanto, ao se casar em 
sua aldeia, consegue unir a atração pessoal (aqui, a sedução pelo olhar 
cumpre seu papel) e a escrupulosa obediência a vontade paterna. 
/As coerções certamente são menores para os homens, os quais dis-
põem fie uma maior mobilidade. E o que ocorre em Vraiville (Eure), es-
tudado por Martine Segalen, 
As cidades, desde o último terço do século XVIII, passam a intensi-
ficar a miscigenação. A proporção dos casamentos realizados fora das quatro 
paredes aumenta de forma constante, como mostram vários estudos de-
mográficos (Caen, Bordeaux, Lyon, Meulan, Paris...). No entanto, os bairros 
logo conseguem reconstituir o espaço do torrão natal//Em Belleville, no 
século XÍX, "é no interior de um espaço muito restrito que os futuros 
esposos se encontram e se casam" (G. Jacquemct). Mas, aqui, o conheci-
mento ocupa o lugar do convívio: os jogos do olhar, das palavras e do de-
sejo rompem com as regras dos costumes. 
/ Á homogamia é altíssima em todo o país. Sendo de praxe nos meios 
burgueses, onde o casamento é ditado pelos interesses das famílias e das ' 
empresas, ela atinge o auge quando se somam diversos fatores de identi-
dade: é o que ocorre entre os industriais protestantes do setor algodoeíro, 1 
era Rouen, onde os sobrenomes se cruzam num verdadeiro bale de pri-
mos consangüíneos/Èm Gévaudan, os casamentos são regidos por princí-
pios muito rigorosos, destinados a manter o equilíbrio dos oustals, com 
ciclos que regulam a circulação dos bens, dos dotes e das mulheres. Os 
"herdeiros" desposam uma "caçula", e sua irmã com dote se casa com 
um herdeiro. 
:';Os meios operários não fogem a essa economia de troca. Vidra-
ceiros, artesãos de fitas e galões e metalúrgicos da região lionesa (cf. Yves 
Lequin, E. Accampo) se casam entre si e perante testemunhas do mes-
mo ofício. O trabalho e a vida privada se imbricam em ' 'endogamias téc-
nicas", onde se opera a sobreposição do ofício, da família e do terri-
DESPOSAR 
O Sf iMKÜÍANTl i 
Casamentos 
d c naturais de Vraiville 
contraídos na comuna 
( e m %): 
II M 
1753-1802 63 86 
1855-1902 4 1 , 9 89 .2 
5 
136 os ATORES 
tório: é o caso dc Saint-Chamond (artesãos dc fitas), Givors (vidracciros), 
Croix-Roussc ou, ainda, do subúrbio de Saint-Antoine (Paris), onde a tra-
dição profissional e até mesmo militante dos marceneiros se transmite de 
pai para filho/ 
Nesses meios de pequena mobilidade, as distinções se expressam 
confetindo-se um sentido extremado às pequenas hierarquias. Vejamos 
Marie, uma jovem luveira de dezenove anos, em Saint-Junien (Haute-
Vienne). Na frente da casa de sua família, mora um primo "afinador", * 
trabalhador especializado no setor de luvas. "Não se esboçou nenhum 
romance", escreve o pesquisador da monografia dessa família. "Marie, 
na hierarquia operária, ocupa um lugar muito inferior ao do primo para 
que se possa pensar em casamento." 
A procura do dote disfarçado persiste no nível individual. As criadas 
ou as operárias sérias são muito valorizadas; com as economias delas, os 
jovens operários pagam suas dívidas ou tentam se estabelecer: é o caso 
de Norbert Truquin, em Lyon. As mulheres são as cadernetas de poupan-
ça dos meios populares. * 
CASAMENTO / Em 1828, Le Journal des Débats divulga um crime passional. Uma 
IMPOSSÍVEL jovem operária dc dezenove anos, filha de alfaiates, cortejada por um co-
lega de trabalho com vinte anos, que a acompanha até sua casa 
"segurando-lhe o braço", conta o fato à sua família: pode se casar com 
. / •• ele? Deliberam, julgam que o rapaz não tem seriedade nem talento sufi-
"" ciente; o pai o considera de "má aparência" c acha que "não tem o ar 
que um alfaiate deve ter''. ' 'Ao que parece, eu julgava amá- lo ' d i z a jo-
vem, "mas, como meus pais não queriam, rcnuncicí." Então vem a recu-
sa e segue-se o assassinato cometido pelo pretendente rejeitado. A força 
do desejo !>e quebra contra o granito do grupo. Muitos processos do sécu-
lo XJX nos contam histórias de amores impossíveis/ 
V / Nos meios pequeno-burgueses, a aliança, elemento decisivo da as-
,. censão, é objeto de cálculos e proibições. A homogamia não é tãointen-
sa: as pessoas procuram sc casar no estrato superior ao delas. Os emprega -
i dos do setor terciário — dos Correios, por exemplo — não gostam de se 
• casar com suas colegas, pois sonham com mulheres de prendas domésti-
cas. Daí o grande número de solteiras entre as empregadas dos Correios, 
porque elas, por sua vez, não se casam cora operários. Ocorre amiúde que 
• as mulheres paguem sua independência com a solidão.. Para os homens 
em ascensão social, o dinheiro conta menos do que a posição, a distinção, 
as qualidades de senhora da casa, e até a beleza. E o que ocorre com Charles 
Bovary, fascinado por Emma, que possui uma sombrinha, tem a pele alva 
e a "bela educação" de uma "senhoritada cidade". Abastado, ele pode 
se permitir uma mulher bonita, que não precisa fazer os serviços domés-
ticos, deixando-os a cargo de uma empregada./' 
0 > O casamento é uma negociação, conduzida pelos parentes (as tias 
r casamenteiras), pelos amigos, pelos próximos (o padre), e todos os seus 
fatores devem ser avaliados. Um fidalgote sem dinheiro de Lozère escreve 
* (*) "Dokur": aquele que afina c adelgaça as peles usadas para fazer luvas, usando 
lâminas cortantes. (N. T.) 
FIGURAS E PAPéfS 137 
à tia, encarregadadc arranjar uma esposa para ele: uma moça com herança 
suficiente para lhe permitir conservar seu castelo e sua casa de Mende; 100 
mil francos bastariam para alguém da mesma posição, mas, "para uma con-
dição inferior à minha, é preciso que seus bens compensem a maior ou me-
nor desproporção de seu nível cm relação ao meu'' (c. 1809, Claverie e La-
maison, p, 139)1 
^ /Mas as estratégias matrimoniais se diversificam e se complexiftcam. 
v O dinheiro assume formas variadas: móveis, imóveis, negócios e ' 'esperan-
^ ,/•-, ças". Outros elementos entram em linha de conta: o nome, a considcra-
ção, a "situação" (as profissões liberais gozam de grande estima), a "das-
se" e a beleza fazem parte dos termos de troca, Um homem idoso e rico 
— tal como um rei — procura uma moça jovem e bela. As aparências, va-
lorizadas pela individualização do corpo, constituem uma arma de sedu-
ção feminina. Com dificuldades financeiras, há quem aceite uma mãe sol-
teira com propriedades, como o personagem-título de Marthe,1 
i, /Finalmente entra em cena a inclinação, objeto de tanta desconfiança AMOR 
.<•'' por parte de Hegel, ou até a paixão, objeto de reprovação das famílias. Na E CASAMENTO 
v segunda metade do século XIX, aumenta cada vez mais o número dc pes-
- •' soas que desejam uma convergência entre a aliança e o amor, o casamento 
^ e a felicidade. Sonho dc Emma Bovary:1 'Se lhe tivesse sido possível depo-
^ sitar sua vida em algum grande coração sólido, então, confundindo-se a vir-
tude com a ternura, as volúpias e o dever [ . . . ] 'São principalmente as mu-
lheres, cujo único horizonte é o casamento, que se inclinam para esse la-
do,fcl aire Démar (Ma loi d'avenir, 1833) reivindica uma transformação 
radica] naeduraçSodas jovenc, que "bem que sc gostaria que não soubes-
sem sequer qual a forma que tem um homem". Ela critica o casamento, 
"prostituição por lei", defende a livre escolha do companheiro, a "neces-
<-' sidade de uma experiência inteiramente física da carne pela carne" e o di-
reíto à inconstância. Aposta impossível em sua época: Claire se suicida, e 
suas companheiras saint-simonianas amenizam seu texto, distorcendo-o para 
o lado da maternidade! / 
Sem avançar tanto, Aurore Dupin, que ainda não c George Sand e 
sim madame Dudevant, numa longa carta a Casimir, explica-se sobre o mal-
entendido que os separa: a divergência nos gostos e prazeres que desgasta 
a relação deles. "Eu vi que tu não gostavas de música e deixei de me inte-
ressar por ela, pois fugias ao som do piano. Tu lias por condescendência, 
e depois de algumas linhas o livro caía de tuas mãos, de tédio e sono (...]. 
Comecei a nutrir um verdadeiro desgosto, ao pensar que jamais poderia 
existir a menor afinidade entre nossos gostos" (15 de novembro de 1825). 
Esse sonho da partilha — fora do casamento — também é alimenta-
do por Charles Baudelaire, suspirando após seu rompimento com Jeanne, 
depois de catorze anos de convivência:' 'Surpreendo-me a pensar quando 
vejo qualquer objeto belo, uma bela paisagem, qualquer coisa agradável: 
por que ela não está comigo, para admirar isso comigo, para comprar isso 
comigo?'' (carta a madame Aupick, 11 de setembro de 1856). 
% porque os homens também querem outra coisa: não mais a sub-
missão passiva, mas a concordância; se não a atividade, pelo menos o amor 
da esposa, e alguns chegam a querer a igualdade na relação. Desde Mi-
chclet, que aconselha que ' 'se crie sua própria mulher", até Julcs lerry, 
firme defensor da divisão sexual dos papéis e das esferas e que se gaba 
de seu casamento com Eugénie Rislcr: "Ela é republicana e filósofa. Ela 
sente todas as coisas como eu e eu me orguiho dc sentir como ela'' (carta 
a jules Simon, 7 de setembro de 1875)/ 
,/Eugène Boileau, cuja correspondência com a noiva foi estudada por 
Caroline Chotard-iiorct, expressa à perfeição esse novo ideal do casal re-
publicano, inteiramente imbuído de estoicismo romano e livre pensamen-
to, que erige sua própria unidade em religião: "Quando ouço repetir à 
minha volta: 'O casamento [...] c a servidão!', eu exclamo: 'Não!~0 casa-
mento é a tranqüilidade, a felicidade; é a liberdade. E por ele, e apenas 
por ele, quc~ó homem (aqui entendo os dois sexos), o homem em seu 
pleno desenvolvimento, pode chegar à verda§eira independência. Pois en-
tãoJele se torna um ser completo, constituindo nessa dualidade a perso-
nalidade humana única'" (carta a Murie, 24 de março de 1873). Aspira-
ção à fusão unificadora de um casal que se basta a si mesmo ("Não mis-
turemos nenhum terceiro à nossa vida íntima, ao nosso pensamento") 
e que converte o marido em "confidente" da mulher: "Recomendo-te 
sempre que tomes por confidente apenas teú amigo, que confies teu co-
ração (mas sem reservas) apenas ao de teu marido, coração que deve for-
mar, que logo formará... e ouso dizer que já forma uma só unidade 
contigo"./ 
A VIDA DO LAR: 
DESFORRA DAS MULHERES? : 
Mesmo num espaço inteiramente dominado, as mulheres encontram 
compensações que favorecem o consentimento: uma relativa proteção, uma 
menor inculpabilidade, o luxo ostensivo das burguesas incumbidas das 
aparências — o que não deixa de ter seus encantos —, e no final das con-
tas uma maior longevidade. Elas também dispõem de possibilidades de 
ação não desprezíveis, tanto mais que.á esfera privada e os papéis femini-
nos conhecem uma constante revalorização no século XIX, aos olhos de 
uma sociedade interessada no utijitarismo, preocupada com os filhos e 
atormentada por suas próprias contradições, já dizia Kant: como resolver 
a afirmação contraditória do direito pessoal — a mulher é uma pessoa 
— e do direito conjugai do senhor, de essência monárquica? Como, se 
não imaginando "um direito pessoal de modalidades reais"? O feminis-
mo, bem como o discurso da "maternidade social" apresentado pela Igreja 
e pelo Estado, se introduziram nessa fenda do direito e dos princípios. 
FICUHÁS E PAPélS 139 
Mas e o cotidiano? 
Mattinc Scgaten, Yvonne Vcrdier, Agncs Fines, entre outros, contri- N A SOCIEDADE 
buíram muito para elucidar os papéis e o lugar das mulheres na socieda- KURAL 
dc rural francesa. Tomando uma enérgica distância das descrições miscra-
bilistas e pouco compreensivas dos viajantes oitocentistas — Abel Hugo, 
por exemplo —, Martine Segalen insiste sobre a complementaridade das 
tarefas num espaço ao qual o trabalho imprime uma continuidade, e até 
uma indistinção, entre o público e o privado. A impressão geral é a de 
um equilíbrio relativamente harmonioso entre os dois sexos, a mulher cui-
dando das despesas e exercendo, com as conversas de quintal, um contra-
poder eficaz. 
Yvonne Vcrdier descreve os principais personagens de Minot, na Bor-
gonha, com seus papéis culturais, enraizados em seus "destinos biológi-
cos": "De seu destino biológico, as mulheres passam imediatamente pa-
ra seu destino social", escreve ela. A ajudante (cm geral lavadeira), a cos-
tureira, a cozinheira têm conhecimentos e poderes imbricados na vida local. 
Não estão dc forma nenhuma encerradas dentro dc casa. 
Agnès Fine, através de relatos de vida, analisa como se tecem, na 
preparação do enxoval, as relações entre mãe e filha e, para além delas, 
entre o masculino e o feminino, ou, dito em outros termos, como o bio-
lógico se inscreve no social por intermédio do simbólico. 
No entanto, essas^escrições, em sua beleza estrutural, apresentam 
um caráter intemporal,;/O ecumenismo da cultura tem a tendência de mas-
carar as tensões e conflitos, que são precisamente os aspectos ressaltados 
por Élisabcth Claverie e Pierre Lamaison. No sistema do oustal, onde a V 
troca dc mulheres obedece com bastante rígor à troca dc bens, as esposas, v 
freqüentemente espancadas, não dispõem sequer da chave da despensa; 
às vezes, têm de roubar para sobreviver; as conivências femininas geral-
mente se desfazem com o casamento e o medo aos homens, ea intolerân-
cia em relação à gravidez ilegítima é muito intensa. As mulheres sozi-
nhas têm um destino particularmente difícil; as viuvas, tidas como se-
xualmente perigosas devido a sua suposta luxúria, por vezes ficam relegadas 
ao exterior da casa, em cabanas, com algumas roupas e subsídios; as jo-
vens, presa sexual dos pastores ou dos proprietários, muitas vezes são vio-
ladas com o sentimento de uma virilidade legítima,' "A violação era vivi-
da apenas como uma variante das condutas habituais na relação homens-
mulhcres [...]. A própria idéia de queixa parece inconcebívcl c informu-
lável. A normalidade sexual engloba o leque de suas conseqüências: a vio-
lência, a frustração, a morte" (op. cit., p. 218). Deve-se considerar esse 
aumento da opressão feminina como resultante de um sistema de paren-
tesco particularmente complexo e que, no entanto, oferece às mulheres 
maiores possibilidades de herdarem do que em outros lugares? O sudeste 
do Maciço Central, aliás, é uma região onde a vingança persiste como ma-
neira de resolver as tensões e sc inscreve destacadamente no mapa dos 
OS ATORES 
FIGURAS E PAPÉIS Í.J7 
crimes sangrentos. O contraste entre as representações também deriva da 
natureza das fontes: de um lado, os provérbios e costumes, dc outro lado, 
dossiês judiciais diretamente inseridos nos conflitos constituem fontes que 
fornecem visões diferentes. 
' Os lares urbanos, aparentemente, têm uma maior simplicidade. Mas, 
aí também, são inúmeras as variantes conforme os meios sociais, sendo 
que o modo de habitação, a distância entre o domicílio e o local de 
trabalho constituem um fator bastante decisivo na autonomia do do-
méstico/Desse ponto de vista, o exemplo das burguesas do Norte, das 
quais Bonnie Smith nos deu um retrato agora clássico, é impressionante. 
Na primeira metade do século XIX, elas participavam na administra-
ção dos negócios, faziam a contabilidade da empresa, preferiam que o 
dinheiro fosse investido na indústria do que na compra de vestidos de 
seda. Na segunda metade do século, apenas as viúvas prosseguem cora 
essa tradição. Por volta dos anos 1850-1860, a maioria das mulheres se 
retira da esfera econômica para se isolar em casa. As modificações do 
hãbitat consolidam esse distanciamento, que marca uma guinada no 
sistema de relações industriais menos paternalistas; os patrões deixam 
de morar no perímetro ou na proximidade de suas fábricas; enrique-
cidos, fogem à fumaça, ao cheiro e à visão da miséria; concentram-se 
nos bairros novos — em Roubaix, bulevar de Paris —, onde se erguem 
villas luxuosas, "castelos'' que, em época de greve, são motivo de escárnio 
BURGUESAS 
SENHORAS DO LAR 
Mulheres burguesas entre filhos 
e criados, à mesa, no jardim. 
Serenidade pacífica de Monet; 
onirismo de M. L McMonnies. 
(Página 20 lado: Clau.de Monet, 
Lc déjeunet, 1868. Frankfurt, 
Stãdelsches Kunstinstitut. Embaixo: 
Mary Louise McMonnies, Visita a um 
parque. Rouen, Museu 
de Belas Artes.) 
dos operários que se reúnem diante deles. As mulheres, agora, adminis-
tram a casa, o grande número de empregados c a família igualmente nu-
merosa, fruto de suas crenças católicas e, ainda mais, das estratégias ma-
trimoniais do setor têxtil do Norte..Elas constroem uma mora! doméstica 
cujos principais eixos foram apontados por B. Smith: a fc contra a razão, 
a caridade contra o capitalismo, a reprodução como autojustificação. E 
através desta função que as burguesas rodeadas de filhos — a taxa media 
de filhos por família, entre 1840 e 1900, passa de cinco para sete — con-
ferem sentido a suas menores ações. Do asseio e da decoração do lar à 
observância quase religiosa de uma moda tirânica — vejam-se as "horas 
do dia" desenhadas por Deveria —, de cada mínimo trabalho feminino 
(pois a dama precisa estar constantemente ocupada) à obsessão pelas con-
tas (esse tormento da senhora do lar que freqüentemente precisa se res-
tringir ao que lhe e dado pelo marido, a quem deve prestar contas): cada 
detalhe adquire sentido numa moral de fundamento mais simbólico do 
que econômico. Funcionando como linguagem ou ritual, ela obedece a 
códigos muito estritos..'Movidas por uma alta consciência de si mesmas, 
essas mulheres do Norte não são passivas nem resignadas; pelo contrário, 
tentam erigir sua visão do mundo em julgamento das coisas, muitas ve-
zes de maneira categórica. Esse "feminismo cristão" (pode-se falar em 
feminismo? Não, se for definido como busq^ da igualdade: o que aqui 
se reivindica e a diferença) se expressa na voz de romancistas como Ma-
thilde Bourdon, autora do best-sellerLi vie réelle [A vida real], Julia Bé-
cour ou Joséphine de Gaulle, que compõem uma espécie de epopéia do-
méstica onde se defrontam o bem e o mal: as mulheres e os homens. Por 
seu gosto destrutivo pelo poder e pelo dinheiro, os homens trazem o caos 
e a morte. Anjos do lar, as loiras heroínas, com suas virtudes, restauram 
a harmonia doméstica. 
^Esse modelo completo de domesticidade, marcado por um angeii-
calismo que só não é inteiramente vitoriano devido ao culto pela Virgem 
Marta, encontra-se em diferentes graus em todas as camadas da burgue-
sia/Ele varia segundo os níveis das fortunas, medidas pela quantidade 
dc criados e pelo status da residência, e conforme as crenças e sistemas 
de valores. A nostalgia aristocrática, tao marcada no faubourg Saint-
Germain, é em outros lugares temperada por um crescente desejo milita-
rista que atravessa a burguesia francesa de uma maneira muito mais abran-
gente do que se imagina. Aqui, insiste-se sobre as funções de repre-
sentação das mulheres "da classe ociosa", cujo luxo, por si só, expres-
sa a concepção do ser-ter dos maridos e perpetua a etiqueta social. 
Lá, ressalta-se a importância da economia doméstica e da senhora do 
lar. Enfim, o filho, sua saúde e educação são invocados como funda-
mento dos deveres e poderes das mulheres. O próprio feminismo se 
apoia sobre a maternidade para fazer suas reivindicações, e essa insis-
FIGURAS E PAPÉIS Í.J7 
tenda sobre a diferença certamente constitui uma especificidade do fe-
minismo francês frente a seu correspondente anglo-saxão, que se concen-
tra mais exclusivamente na igualdade dos direitos individuais. 
Face ao pai esfaifado, a mãe adquire segurança. 
A dona de casa entre as classes populares urbanas é uma persona-
gem maior e majoritária. Majoritária porque consiste na condição da 
maioria das mulheres que vivem maritalmente, casadas ou não, sendo 
o casamento o estado civil mais geral e normativo, principalmente 
quando elas tém filhos. O modo de vida popular, como se disse, supõe 
a mulher "em casa", o que não significa "no lar", pois, devido às 
paupérrimas condições de moradia, o alojamento c mais um local de 
encontro do que uma residência; Polivalente, a dona de casa é investida 
de múltiplas funções. Em primeiro lugar, dar à luz c cuidar das crian-
ças, ainda muito numerosas nas famílias operárias, que são das últi-
mas a limitar o nascimento de filhos. A mulher do artesão e a pequena 
comerciante deixam os filhos com a ama-de-leite, mas as mais pobres 
amamentam pessoalmente os bebês, desnudando o seio como a passa-
geira do vagão de terceira classe de Daumier. A dona de casa leva os 
filhos junto consigo; eles a acompanham tão logo começam a andar, 
vindo a ser figuras familiares nas ruas, reproduzidas a rodo pela icono-
grafia da época ou captadas pelas primeiras fotografias urbanas. Além 
A D O N A DK CASA 
DAS CLASSES POPULARES 
Com o desenvolvimento do asseio, 
a lavagem das roupas do lar passa 
a ser uma grande atividade da mulher, 
dona de casa ou assalariada, e o 
lavadouro se converte num local 
privilegiado de sociabilidade feminina. 
A lavadeira é uma figura popular 
de Paris no século XIX, como 
a lavadeira paga do campo. 
Observador atento do corpo das 
mulheres, Degas sabe traçar seu 
contorno e osgestos do trabalho. 
(Edgar Degas, As lavadciias. 
Stanford, Coleção particular.) 
144 OS ATORES 
"Em casa... na fábrica'\ a máquina 
de costura seria ' 'a grande glória'' 
da mulher {Casto» Bonheur)? 
Intensamente difundida nu contexto 
da indústria de confecções, 
igualmente cobiçada pela burguesa 
e pela operária, ela ê também seu ' J 
grande tormento. ^ ^ 
! 
disso, desde cedo as crianças circulam sozinhas, "moleques" intrépidos 
que se juntam aos bandos de meninos no pátio ou na rua. Mas os "peri-
gos da rua'' passam a preocupar cada vez mais as mães, no duplo rcccio 
pelos acidentes e "más companhias". Progressivamente, o dia e os movi-
mentos da dona de casa vão seguindo o ritmo das atividades dos filhos, 
em especial do horário da escola. 
/^Segunda função:^atender a família, com os "serviços de casa" que 
abrangem as mais variadas coisas; procurar o melhor preço dos alimentos, 
por compra, troca ou até "coleta", tantas são as oportunidades de apro-
veitar os restos de alguma compra por atacado nas grandes cidadeá; pre-
parar as refeições, inclusive a "marmita" do pai quando este trabalha lon-
ge; buscar água, acender o fogo, cuidar da casa e principalmente das rou-
pas de uso pessoal e de cama, mesa e banho, lavadas, reformadas, 
consertadas e remendadas... Tudo isso implica um gasto de tempo consi-
derável, com idas e vindas.. Apenas Le Play, cm seus orçamentos familia-
res, tentou contabilizar esse tempo fluido, ^ pelo menos o gasto na lava-
gem das roupas de cama, mesa e banho, primeira ocupação doméstica 
que, desde o Segundo Império, foi objeto de um esforço dc racionaliza-
ção com a construção de grandes lavadouros mecanizados, aos moldes in-
gleses, 
1 Por fim, a dona de casa se esforça cm trazer para a família uns "tro-
cados", obtidos principalmente com tarefas domésticas: faxinas e lavagens 
de roupa, sistematicamente cumpridas pelaj "lavadeiras por peça" dos 
lavadouros, serviços de recados e entregas (a entregadora dc pão c uma 
figura bastante conhecida), pequenas vendas em bancas ou de porta em 
porra, aproveitando n menor caminho da calçada e a mais ínfima dife-
rença de preçov 
,(Gradualmente, sobretudo no último terço do século XIX, o traba-
lho domiciliar, no âmbito de uma indústria de confecção dividida e ra-
cionalizada, canaliza essa imensa força de trabalho das mulheres erfi casa. 
As primeiras seduções da máquina de costura — ter sua Singer passa a 
ser o sonho de muitas donas de casa — levam-nas a se confinar em casa, ji 
, numa ruptura total com seus hábitos de andar pela cidade/ Os abusos 
do sweating system vem a valorizar a fábrica, que acaba sendo preferível 
por ser menos solitária, mais bem controlada, mais submetida ao olhar 
público. 
"Ministra das Finanças" da família, a dona de casa dispõe dej)ode-
res cujas ambigüidades são ilustradas pela prática do pagamento. E, sem 
dúvida, uma lenta conquista das mulheres, cansadas de esperar o dinhei-
ro dos maridos. Ignoram-se quais foram as etapas desse processo. Nos mea-
dos do século XIX, na França — que, sob esse aspecto, as monografias 
dc Le Play opõem à Inglaterra —, um grande DÚmero de operários entre-
ga seus pagamentos à mulher, não sem conflitos periódicos nos subúr-
bios. Mas, responsáveis pelos pagamentos, as donas de casa também so-
frem as conseqüências disso: se, por um lado, podem orientar o consumo, 
que já vem sendo disputado pelos grandes magazines e pelo tímido des-
pontar da propaganda, por outro lado têm de administrar sobretudo a 
FIGURAS E PAPÉIS Í.J7 
Ofícios femininos: mito e realidade. 
Ao lado: angústia das costureiras 
domiciliares, acordadas numa 
mansarda para terminar uma 
encomenda urgente; modéstia do 
cenário, luxo dos tecidos. Embaixo: 
sensualidade de uma oficina de 
passadeiras de "roupas finas", 
estimuladas pelo belo tecido e pelas 
confidencias das jovens. 
(É meia-noite , Paris, Biblioteca 
Nacional. Mane Petiet, A s 
passadeiras, 1882. Paris, Biblioteca 
Nacional.) 
146 OSAIÜRES 
miséria, em primeiro lugar sacrificando a si mesmas. Deixando a carne 
c o vinho, alimentos masculinos, para o chefe de família, o açúcar para 
as crianças, muito amiúde contentam-se com queijo e café com Jeite; o 
"bife da costureira" é um pedaço de bric. 
Apesar de tudo, essa modesta administração financeira funda um 
certo "matriarcado orçamentário" que, ainda hoje, é muito prezado tan-
to pelas donas de casa quanto pelas operárias. Elas dispõem de muitos 
outros campos de intervenção: os cuidados com o corpo e a alma, como 
diziam no século XIX. Nessa época em que o recurso ao médico, por ser 
muito caro, constitui algo relativamente raro entre o operariado, elas em-
pregam os meios de uma farmacopéia multissecular e as sugestões da no-
va higiene: é o caso da cânfora, aconselhada por Raspail, o ' 'médico dos 
pobres", que se dirige especialmente às mulheres, ciente de seus papéis 
tradicionais. A mulher do carpinteiro dc Paris (monografia de Le Play c 
Ricillon, 185 6) uiiliza-a com freqüência. 
Grandes apreciadoras de folhetins (a alfabetização feminina aumenta 
rapidamente nas cidades oitocentistas, onde muitas mães, graças ao mé-
todo Jacotot, chegam a alfabetizar os próprios filhos), dc músicas e dan-
ças, elas sustentam todo o vigor de um imaginário que os meios dc co-
municação (no caso, os jornais de grande tiragem) tentam domesticar. Cor-
tejadas pela Igreja, por vezes se entregam à religião, apreciando suas festas 
e formas de sociabiJidade, não sem conflitos fom maridos que se preten-
dem mais materialistas. 
h dona de casa popular não tem muitas papas na língua. Muitas 
vezes é uma rebelde, tanto na vida privada quanto na vida pública. E não 
raro paga um alto preço por isso, como alvo principal de violências que 
podem chegar ao crime "passional".^Lindadas na administração da mo-
radia e da alimentação, suas intervenções na cidade vão se tornando rare-
feitas à medida que se tornam mais regulares. E duvidoso que seus pode-
res tenham aumentado com a modernização, visto que a esfera privada 
sofre investidas de todos os lados e os modelos de identidade da classe 
operária são, em larga medida, masculinos. Daí os conflitos, as dificulda-
des de inserção, a reclusão doméstica a que é impelida por todos (vejam-
se os cartazes da CGT sobre a semana inglesa). E às vezes a indiferença 
por esse mundo, político e sindical, que não a compreende. 
PAIS E FILHOS 
Nesse confortável interior inglês, ^ 
repleto de bibelôs e marcado de , "Quando surge o filho, o círculo familiar...' "/O filho, no século XIX, 
exodsmo, as crianças não estão \ , ocupa mais do que nunca o centro da família. E objeto de todos os tipos 
confinadas na James W / d e i n v c s t ; m c n t 0 : a f c t i v 0 ( c ]aro> m a s t a m b é m c c o n ô m l c o > educativo, exis-
ou o charme discreto da burguesia. . • . , ^ , , • m - r i c • i 
(James Tissot O jogo de &f tencial. Como herdeiro, o hlho e o futuro da iamilia, sua imagem sonha-
esconde-escondc. Toronto, Coleção . da e projetada, sua forma de lutar contra o tempo e a morte./, 
Ckristie's.) . Esse investimento, que se expressa na literatura cada vez mais pro-
Vj 
FIGURAS E PAPÉIS Í.J7 
lixa sobre a infância, não visa necessariamente à criança cm sua singulari-
dade JStendhal disse com muita clareza, a respeito de seu pai: "Ele não 
mc amava como indivíduo, mas como filho que devia continuar a faraí-
• tia" (Henry Bmlard). O grupo prevalece sobre o indivíduo, e a noção de 
"interesse da criança" só vem a se desenvolver na França tardiamente. 
Por enquanto, de modo geraJ, essa noção abrange apenas os interesses mais 
altos da coletividade: a criança como "ser social"./ 
. De fato, o filho não pertence apenas aos pais: ele é o futuro da na-
ção e da raça, produtor, reprodutor, cidadão e soldado do amanhã. Entre 
ele e a família, principalmente quando esta é pobre c tida como incapaz,insinuam-se terceiros: filanttopos, médicos, estadistas que pretendem 
protegê-lo, educá-lo, discipliná-lo. As primeiras leis sociais (a de 1841 so-
bre a limitação do tempo-de trabalho nas fábricas) foram promulgadas 
tendo como objeto as crianças/Pouco importa que, a princípio, não te-
nham sido muito eficazes. O aícance simbólico c jurídico dessas leis nem 
por isso se faz menos considerável, visto que marcam a primeira guinada 
de um direito liberal rumo a ura direito social (F. EwaJd). 
Isso significa que a infância é, por excelência, uma daquelas zonas 
limítrofes onde o público e o privado sc tocam e se defrontam, muitas 
vezes de maneira violenta. 
Objeto de disputa de poderes, a infância também é lugar de sabe-
res, que sc desenvolvem sobretudo no último terço do século XtX, com 
o esforço conjunto da medicina, da psicologia e do direito. Esses saberes 
surtem efeitos contraditórios. Produtores dc controle, também geram co-
nhecimentos que convertem nossa infância num mistério insondável. 
Na França, país que apresenta uma prematura restrição dos nasci-
mentos c um precoce conhecimento dos "segredos funestos" (Moheau, 
final do século XVIIí), o filho certamente não é "programado" — os*meios 
não o permitem —, mas já é limitado;' o índtcc de natalidade sofre uma 
redução constante, passando de 3,29% em 1800 para 1,9% cm 1910, e 
o tormento dos demógrafos vem a transformar o nascimento, ato privado, 
em natalidade, assunto de Estado^ Portanto, a existência de um filho, con-
forme os meios e as regiões, é em parte relativamente voluntária. Segun-
do H. Le Brás e E. Todd, a explicação das disparidades reside na vontade 
dos pais atuando dentro das estruturas familiares. Os fatores ideológicos 
habitualmente privilegiados se inserem nesses moldes prévios. Em 1861, 
surgem claramente três centros de baixa natalidade: Normandia, Aquitâ-
nia, Champagne, mas com diferenças internas — a Aquitânia apresenta 
um índice bastante generalizado de um a dois filhos por família; a Nor-
mandia, pelo contrário, mostra comportamentos extremos, com índices 
anormais de casais voluntariamente estéreis (em Orne, por exemplo) e re-
cordistas em fecundidade (nove filhos ou mais depois de 23 anos dc casa-
mento): os autores chegam a falar cm "comportamentos neuróticos"! 
' / O súbito crescimento dos filhos ilegítimos, entendido por Edward 
FIGURAS E PAPÉIS Í.J7 
Shoricr como indicador de uma liberação sexual, confundiu um pouco 
o quadro: Esse aumento, ao que parece, possui significados bastante di-
versos. Nossos autores opõem o Norte e o Leste, onde há uma importante 
proporção de perftlhamento através do matrimônio, ao Sul mediterrâneo, 
ende o homem reconhece a c í Í à i i ^ a e m í - ^ í a mãe. No primeiro 
caso, hã uma maior igualdade entre os sexos e uma maior liberdade das 
mulheres; no segundo, predomina a força coercitiva da linhagem. 
E-nos impossível avançar mais nos meandros da demografia históri-
ca, salvo para lembrar sua complexidade, ao nível tanto da simples cons-
tatação quanto da interpretação.' 'A história secreta da fecundídade'' (H. 
Le Brás) borbulha de teorias, que oscilam entre todos os tipos de deter-
minismos — social, biológico, ideológico (no qual se incluem habitual-
mente os "males" do individualismo que se exprimiria no feminismo ape-
nas como um caso particular exacerbado) — antes de analisar o nascimento 
como fruto da ' 'decisão'' de um casal. 
O leito abriga o que há de mais secreto no sexo e no coração. Não ad-
mira que ele nos escape, quando ao mistério da mais profunda intimida-
de somam-se a opacidade do tempo e o mutismo dos atores e de seus des-
cendentes. Um oceano de silêncio envolve o essencial da vida: a concepção 
de seres que quase sempre ignoram o acaso ou o desejo a que devem seu 
nascimento, sem que se possa traçar uma oposição radical entre ambos. 
A primavera numa casinha de 
periferia í rude para uma família 
quase numerosa, onde o caçula é rei. 
(Coleção Simi-Angel.) 
W OSWORES 
Presença marcante dos homens — o 
mando, o médico — na sala de parto, 
templo privado do nascimento", 
recolhimento à família estrita e ao 
ninho dólar. O parto na clínica só 
se generalizam depois da Segunda 
Guerra Mundial: em 1880, apenas 
os pobres ou bastardos nascem no 
hospital. [VictorLecomte, 
Nascimento. Nantes, Museu 
de Belos Artes.) 
A gravidez deliberada, que apresenta avanços estatísticos inversamente 
proporcionais à diminuição da idade por ocasião do casamento, deriva in-
dubitavelmente da tomada dc consciência da criança e de tudo o que cia 
implica, notadamente no que diz respeito à sua educação. Recebendo 
maiores cuidados e atenções, objeto de mais amor, a criança se toma mais 
rara./Os meios desse engravidamento voluntário permanecem obscuros 
para nós. Alguns conhecem apenas a prática da abstinência; para evitar 
a fecundação, as mulheres "sc abstêm do gozo". O coito interrompido 
deixa a iniciativa ao marido, encarregado de "prestar atenção". Nos meios 
abastados, usam-se preferencialmente os métodos ingleses ou as práticas 
clandestinamente aprendidas nos bordéis, lavagens que implicam o uso 
de água e garantirão o sucesso dos bidês — sucesso tardio, segundo J. P. 
Goubert, e restrito pelo decoro.' Empenhados em ensinar a concepção vo-
luntária aos proletários e âs mulheres — ' 'Mulher, aprende a ser mãe ape-
nas quando quiseres" {1906} —, os neomalthusianos libertários do co-
meço do século esforçam-se em divulgar preservativos e esponjas absor-
bit-, é freqüente, porém, que sua propaganda se depare com a repugnância 
das mulheres, postas frente a exigências impossíveis e talvez chocadas com 
tal intromissão em seus assuntos^Em caso de "desgraça", muitas prefe-
rem, no final das contas, recorrer ao aborto. Praticado por um número 
crescente, sobretudo nas cidades, de mulheres casadas e muitíparas, o abor-
to parece ter sido empregado, na virada doí-século, como uma forma de 
conttacepção. Será o caso de ver aí, como faz A. MacLaren, a expressão 
de um feminismo popular? Quando menos, é a expressão da vontade dc 
mulheres que recusam não só um filho indesejado, como também os hor-
rores do infanticídio. Este, depois de apresentar uma grande freqüência 
na primeira metade do século XIX e sofrer uma forte repressão sob o Se-
gundo Império (com ate mil processos judiciais por ano), passa a. dimi-
nuir, conservando-se como apanágio das moças sem ninguém no mundo, 
criadas rurais ou empregadinhas de lares parisienses acuadas pela vergo-
nha de um nascimento ilegítimo./ 
Isso significa que, a despeito dos avanços da gravidez deliberada no 
século XIX, a escassez dos meios anticoncepcionais abre um enorme es-
paço ao "acidente". "Cairprenhe" e "estar em embaraço" são expres-
sões populares de uma gravidez que não vem necessariamente acompa-
nhada por um grande coro de alegria. Significa ainda a sorte aleatória 
dos filhos indesejados, eliminados, abandonados ou simplesmente acei-
tos como uma fatalidade no seio das famílias. 
/ N o entanto, o desejo de ter filhos também sc exprime com grande in-
tensidade, não somente por razões de linhagem ou de papel, mas ainda por 
vontade pessoal: da pane das mulheres, que se encontram justificadas na ma-
ternidade, e inclusive da parte dos homens. "Uma mulher sem fiihos é uma 
monstruosidade", são as palavras que Balzac põe na boca de Inuise, prota-
gonista.das Mémoires de deuxjeunes Tmriêer.; "somos feitas apenas para ser 
mães"i Dez meses depois de se casar, Caroline Brame-Orville se mostra 
FIGURAS E PAPÉJS ]}] 
desolada em seu diário íntima '' Meu grande pesar é não ter um baby, que 
eu tanto amaria e que me faria aceitar a vida séria que levo'' (1 ? de janeiro 
de 1868). Ela fará de tudo para engravidar: tratamentos médicos, tempo-
rada de cura em Spa, visita ao papa. e e â benção papal que ela finalmente 
atribui, catorze anos depois, o nascimento de umamenina que, por isso, 
receberá o nome de Marie-Pie. Gustave de Beaumont comenta com Toc-
queville a gravidez de sua mulher, que o ocupa tanto a ponto de retardar 
a redação de seu livro, hesitando entre a piedade pelos sofrimentos da es-
posa e o desejo de ser pai: "Há muitos momentos cm que, por considera-
ção pela pobre mãe, eu, se pudesse, mandaria a criança a todos os diabos 
[...]. Nem por isso deixo de considerar como uma felicidade o acontecimento 
que aguardo, e nosso desejo ardente de que partilheis dessa mesma sorte 
é o tema constante de nossas conversas e nossas esperanças'' (10 de juoho 
de 1838). Ao lado, ou junto, de um sentimento materno cm expansão, 
exprime-se um sentimento de paternidade, inclusive por esse baby tão pró-
ximo de um simples feto, que demora a assumir forma humana. 
, Mas o desejo de ter filhos não chega ao ponto de incluir a adoção, 
tão enraizada se mantém a idéia de filiação pelo sangue. Apesar das pri-
meiras instituições esboçadas no Segundo Império, as transformações nesse 
âmbito são muito lentas, principalmente no que se refere à transmissão 
do sobrenome./ 
' O nascimento é um ato rigorosamente privado e feminino, inclusive 
enquanto objeto de relato e de memória, tema incansável das conversas 
entre mulheres. O aposento comum, ou no máximo o quarto do casal, 
é o teatro em que ele se desenrola, do qual estão excluídos os homens, 
à ressalva do médico, que, com a medicaüzação do parto, passa a ser uma 
presença cada vez mais assídua à cabeceira da clientela abastada/Porém, 
por uma questão de diferença nos preços, e também pela tradição^ pelo 
puduf, as pAUtiiao continuam ocupando uma posição dominante, embo-
ta em declínio. Dar a luz no hospital é sinal de pobreza, e principalmen-
te de vergonha e solidão; para lã vão as mães solteiras, que se dirigem 
à cidade para dar à luz, antes de sofrerem um eventual abandono.; No 
Oeste, Sudoeste e Centro, "a rejeição do filho natural leva a mãe ao hos-
pital", como mostram os mapas estabelecidos por H. te Brás e E. Todd 
(p. 168). Só se efetivará uma mudança no entreguerras, e mesmo assim 
tímida, a princípio em Paris e nos meios mais evoluídos, preocupados em 
evitar um índice de natimortos dos mais altos da Europa. Para a mãe e 
o filho, o nascimento continua a ser uma provação muitas vezes dramática. 
O registro no cartório, essa atribuição do sobrenome que, para Kant, 
constitui o verdadeiro nascimento, cabe, por sua vez, ao pai. Ingressando 
na vida, a criança a seguir ingressa na família e na sociedade. 
I Dessa terra de ninguém, desse terreno baldio um tanto assexuado e 
invertebrado da infância, destacam-se gradualmente três figuras — três mo-
mentos — tidas como estratégicas: o adolescente, o menino de oito anos 
e o bebê. O primeiro, na idade crítica da puberdade e da identidade se-
xual, desperta uma maior preocupação e vigilância: voltaremos a isso. O 
segundo, tido no limiar da idade da razão, atrai a atenção dos legislado-
res, médicos e moralistas (Jules Simons, Uouvrier de huit ans [O operário 
dc oito anosj). O bebe, que até os anos 1860-1880 era chamado, à ingle-
sa, de baby, emerge muito mais lentamente dos cueiros do Menino Jesus, 
mesmy tendo as classes dominantes descoberto o seio materno no século 
XVHUSob este aspecto, aliás, o século XIX é paradoxal: o uso de amas-
de-leite atinge o ápice e o abandono dos filhos quebra recordes. No en-
tanto, no final do século surge uma nova ciência: a puericultura. 
-^Apesar dc lenta, nem por isso a tomada de consciência do bebê é 
menos constante. Renée de L'Estoril (Mémoires de deux jeunes mariées), 
mãe prestimosa que sc recusa a enfaixar seu baby (sic) e recorre aos cuida-
dos de uma nurse inglesa, desempenha o papel dc pioneira. No final do 
século XIX, toda boa mãe sc ocupa efetivamente de seu bebê, que agora 
é uma autêntica personagem, cumulada de apelidos carinhosos. Jenny e 
Laura Marx, mães fecundas e, apesar de todos os seus cuidados, enluta-
das, relatam a Karl todos os prodígios dc seus filhotes. E a maioria das 
correspondências burguesas apresenta um certo tora de nursery rhymes. 
Caroline Brame-Orvillc mantém um registro diário do despontar de sua 
pequena Marie, tanto e tão longamente desejada. Berthc Morisot oferece 
a tradução pictórica dessa contemplação do berço. Este, porém, conserva 
uma conotação dc vida orgânica, reservado i intimidade. Flaubert ri às 
gargalhadas ao ver um berço num palco de teatro./Vesmo os pais mais 
atentos não dedicam mais que um olhar distraído a seus bebês/.Gustavc 
de Beaumont passa a se interessar realmente pelo filho quando este co-
meça a andar; iniciação viril: "Agora ele vai à caça comigo, com uma es-
pingarda de madeira". 
Èm todos os meios sociais, a primeira infância é um assunto femini-
no e feminflizado: os menino* e meninas usam camisolões e cabelos com -
pridos até os três ou quatro anos de idade, e muitas vezes até por mais tempo, 
brincando nas saias da mãe ou de uma empregada. O quarto das crianças 
na França é uma invenção tardia; Viollet-lc-Duc projeta um deles para sua 
casa de 1873,' 'pois é preciso prever tudo". 'Os brinquedos das crianças sc 
encontram um pouco por todas as partes — até nos quadros dos pintores 
—, com um gosto especial pela cozinha. Na cidade, o brinquedo se torna 
um objeto de consumo corrente, um produto industrial com seções pró-
prias nos grandes magazines; no campo, é ignorado; nos meios populares, 
são os próprios pais que o fazem, com seus riscos e perigos: o pequeno 
Vingtras-Vallcs iria se lembrar por muito tempo do carrinho que seu pai 
entalhou para ele num pedaço de pinho, e com o qual se machucou: o que 
valeu ao menino uma surra da mãe, castigo ao filho ' 'mimado'' e ao pai 
complacente demais. As bonecas, relativamente assexuadas 00 começo do 
século, ocupam um lugar importante no universo infantil, servindo mais 
como simulacros sujeitos a destruição do que como objetos de carinho, peor-
ge Sand dedicou páginas brilhantes à lembrança de suas bonecas/ 
134 OS ATORES 
Entre dois pontos de um bordado, 
tomar a lição e ensinar a costurar 
roupinhas para a boneca fazem parte 
dos deveres de uma boa mãe, 
empenhada em reproduzir nas filhas 
a sucessão das tarefas e papéis. 
Cômoda de estilo, lâmpada com 
tecido, fotos de família. (Paul 
Thomas, A boa educação, 1896. 
Paris, Biblioteca Nacional.) 
'. Pouquíssimo institucionalizada, a educação em seus primeiros pas-
sos cabe às mães, inclusive a alfabetização pelo método Jacotot, Elas sc 
dedicam a essa tarefa com um empenho proporcional à valorização do 
lugar da criança, daí derivando para elas mesmas uma grande vontade 
dc sc instruir. Aurore Dudevam chega ao feminismo através do amor ma-
terno: "Por muito tempo eu disse a mim mesma que os conhecimentos 
profundos eram inúteis para nosso sexo, que devíamos buscar a virtude 
e não o saber nas letras, que preenchíamos nossa finalidade quando o es-
tudo do bem nos tornava boas e sensíveis, e que, pelo contrário, quando 
da ciência não retirávamoso bem, rornávamo-nos pedantes, ridículas, rendo 
perdido todas as qualidades que nos fazem amadas.{'Continuo a acreditar 
que meu princípio era bom. Mas ,reçeio. tê-lo.seguido de maneira dema-
siado literal. Hoje penso que tenhò um filho, que deverá ser preparado 
com meus cuidados para a educação mais ampla que receberá ao sair da 
infância. Essa primeira educação, devo estar em condições de oferecê-la 
e quero me preparar para isso" (carta a Zoé Leroy, 21 de dezembro dc 
1825). Ela passa a procurar fervorosamente um bom método de leitura. 
í Com a idade, fazem-se sentir as diferenciações sociais e sexuais das 
educações. Os pais entram em cena, pelo menos para os filhos, às vezes 
desempenhando o papel dc preceptores nos meios burgueses, de mestres 
de aprendizagem ou chefes de equipe nas famílias operárias. A aten-
ção que consagram às filhas é menor, exceto

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