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PERROT, Michelle (org.). História da Vida Privada, 4: da Revolução Francesa à Primeira Guerra. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. FIGURAS E PAPÉIS Michelle Perroí A FIGURA DO PAI .'Figura de proa da família e da sociedade civil, o pai domina com toda a sua estatura a história da vida privada oitocentista. O direito, a filosofia, a política, tudo contribui para assentar e justificar sua autorida- de. De Hegel a Proudhon — do teórico do Estado ao pai do anarquismo —, a maioria corrobora seu poderio. E o pai quem dá o sobrenome, isto é, quem realmente dá à luz, pois, segundo Kant, "o nascimento jurídico é o único nascimento verdadeiro''. Sem rei, os tradicionalistas querem res- taurar o pai. Mas, sob este aspecto, os revolucionários não ficam atrás, co- mo tampouco os republicanos — conforme mostrou Françoise Mayeur a respeito de Jates Ferry —, que entregam as chaves da cidade apenas ao pai dc família. "Um axioma da ciência política é que a autoridade na família seja onipotente, para que se tome menos necessária no Estado. A esse tespeito, nossas grandes assembléias republicanas se enganaram, ao diminuir o poder marital e o poder pateruo", escreve Jules Simon, la- mentando a retração da disciplina paterna.' Os republicanos deliberam sob as vistas de Mariannc, enquanto uma estatuomania delirante espalha mulheres por todos os lados: aos pés dos grandes homens ou coroando- ihes a fronte. Mas essa sobrecarga do imaginário, essa celebração frenética da ' 'Musa e Madona" não passam de maneiras de consolidar a dualidade entre o espaço público e o privado. ' 'A diferença que existe no ser dos cônjuges vem pressuposta em seus respectivos direitos e deveres", escreve Portalis./Em nome da natureza, o Código Civil estabelece a superioridade absoluta do marido no lar e do pai na família, e a incapacidade da mulher e da mãe. A mulher casada deixa de ser um indivíduo responsável: ela o é bem mais quando solteira ou viúva. Essa incapacidade, expressa no artigo 213 {"O marido deve pro- teção i sua mulher e a mulher obediência ao marido"), é quase total. A mulher não pode ser tutora nem membro de um conselho de família: \ r . . V O CÓDIGO DOS DIREITOS DO HOMEM Na ausência do pai, serviços domésticos e brincadeiras infantis. (Paul fiathey, sem título. Paris, Museu d'Owty.) 122 0 1 ATORES 0 senhor, a senhora, o bebê e a filha mais velha: no canto do salão, entre as corttnas e o piano, a imagem da família nuclear típica em sua intimidade. "0 amor materno é um sentimento mato na mulher. 0 amor paterno, no homem, é o resultado t c das circunstâncias", escreve G. Droz C (Monsieur, m a d a m c et bebe) . ( A l b e r t 'J Auguste Fourié, Em família. Ull iustration, , ela é preterida cm favor de parentes afastados, do sexo masculino. Não pode ser testemunha nos tribunais. Sc abandona o domicílio conjugai, pode ser reconduzida ao lar pela força pública e obrigada "a cumprir seus deveres e a gozar de seus direitos cm plena liberdade')\A adúltera pode ser punida com 2 pena de morte, pois ameaça atentar contra o que há de mais sagrado na família: a filiação legítima/,Em Gévaudan, as aventu- ras são toleradas, mas mantém-se uma vigilância cerrada sobre o engravi- damento: não hã qualquer indulgência para com a mulher culpada de um nascimento ilegítima O homem adúltero não ameaça coisa alguma e pode contar com uma cumplicidade maliciosa. O Código Civil proíbe a investigação da paternidade, ao passo que a moral consuetudinária exi- gia que o homem que engravidasse uma moça se casasse com ela./' ;?A mulher não pode dispor de seus bens na comunidade, regime este que se amplia constantemente. Guardando uma grande semelhança com o menor, a mulher também não pode dispor de seu salário, o que subsiste até 1907, quando a lei finalmente lhe conferi liberdade de ação. Nos lares de vinhateiros de Audc, no final do século XÍX, todo o salário do casal era pago ao marido. A única proteção dos bens da mulher reside no regime de dote, que se encontra em franca regressão, ou na separação de bens, que supõe um contrato, prática adotada pelos mais abastados, e aliás em retrocesso^ O Código, esporadicamente eficaz entre as famílias ricas, deixa as mulheres pobres numa situação singularmente desarmada. E ainda hã quem vá além da lei. Alexandre Dumas Filho acha que um marido enga- nado tem pleno direito de fazer justiça com suas próprias mãos. Prou- dhon enumera seis casos (entre eJes, o despudor, a embriaguez, o roubo c a dilapidação) em que "o marido pode matar sua mulher segundo os rigores da justiça paterna'' {Iapornocraúe ou les temps modernes[h por- nocracia ou os tempos modernos], 1875). ^ /Essa onipotência se estende aos filhos. A sensibilidade ã infância não ''afetou a autoridade da família nem a do poder paterno. A Revolução Fran- cesa havia se limitado a pequenas reformas (anulação do poder paterno sobre os filhos maiores de idade, eliminação do deserdamento, limitação do direito disciplinar...), e o projeto de Robespierre — retirar as crianças de sete ou oito anos de seus pais e criá-las coletivamente, na observância das novas idéias — jamais chegou a ser discutido,.. /Embora a Revolução, segundo Le Play, tenha matado o pai ao lhe retirai o direito de testamentar, o Código Civil conserva muitas das con- cepções antigas. O filho, mesmo maior de idade, deve ser "tomado de 'um respeito sagrado à visão dos autores de seus dias", e, se "a natureza e a lei afrouxam os laços do poder paterno sobre si, a razão vem a reforçar ps nós". A autorização dos pais para o casamento antes dos 25 anos de idade contínua a ser obrigatória até 1896. O pai pode mandar prender os filhos e recorrer às prisões do Estado, como se fazia no sistema das ordens regias, a título de "correção pater- na", o qual mantém uma polícia de família onde o poder público age FIGURAS E PAPÉIS 129 por delegação/Todavia, os artigos 375-382 do Código Civil (livro 1, títu- lo IX) definem as condições para isso. " O pai que (tem] motivos de des- contentamento muito graves sobre a conduta de um filho" pode apelar ao tribunal do distrito; até os dezesseis anos, a detenção não pode se es- tender para além de um mês, e dos dezesseis anos até a maioridade pode chegar a seis meses. Os procedimentos — e as fianças — são bastante sim- ples: nenhum pleito por escrito, nenhuma formalidade judicial alem do próprio mandado de prisão, onde não constam os motivos. Sc o filho, de- pois de libertado, "recaí em novos desvios", pode-se solicitar uma nova detenção. Para possibilitar o acesso das famílias pobres a essa prática, o Estado (em 1841 e novamente em 1885) assume, quando elas não tem condições, as despesas de alimentação e manutenção. O detento por cor- reção paterna se soma ao jovem delinqüente, que teria agido "sem dis- cernimento" e, quando não e reclamado pela família — peto pai —, aca- ba eventualmente ficando num reformatório até atingir a maioridade. Os loucos, dementes e imbecis, privados de seus direitos de cidada- nia, podem ser internados a pedido da família, conforme estabelece a lei de 1838. O direito do marido sobre a mulher se confirma sob esse aspec- to, como mostra a história de Ctémence dc Cerillcy, irmã dc Emílie, cuja família enfrenta as maiores dificuldades para libertá-la dc um interna- mento, para o qual tinha sido enviada pelo marido com grande condes- cendência. A reclusão das mulheres ditas loucas aumenta de maneira ver- tiginosa no século XIX: dc 9930 em 1845-1849, passam para quase 20 mil em 1871 (Yaniclc Ripa). Em 80% dos casos, os solicitantes são homens (um terço são maridos, pais ou patrões). É verdade que as mulheres re- correm ao pedido de reclusão com uma freqüência ainda maior do que os homens, num procedimento que opera de modo mais getal como uma polícia familiar — voltaremos a esse tema.O fotógrafo demora bastante para penetrar no interior do lar, cenário autêntico onde ele monta ai posei dos personagens. 0 cigarro para o pai, livros para as mulheres de cabelos curtos, quadro relativamente despojado: conforto e modernismo do começo do século. (Coleção Sirot-Angel.) f . 0 pai tem duplos poderei. Ele domina totalmente o espaço públi- co. Apenas ele goza de direitos políticos. A política no século XIX c defi- nida como domínio exclusivo do homem, a ponto de Guizot recomendar que ela fosse retirada dos salões, femininos e mundanos. Certo dia, Gam- r betta solicitou à condessa Arconari-Visconti, cujo salão recebia os repu- blicanos do final do século, que excluísse as /nulheres para que se impu- sesse uma maior seriedade: ela concordoujf /Ma5 os poderes do pai também são domésticos. Exercem-se nessa es- - fera, e seria um erro pensar que o âmbito privado pertence integralmente às mulheres, ainda que o papel feminino efetivo no lar aumente de manei- ra constante. Em primeiro lugar, ele é senhor pelo dinheiro. Nos meios bur- gueses, ele controla as despesas domésticas entregando à mulher uma de- terminada soma, muitas vezes bastante apertada/A meiga Caroline Orvil- le não entende por que seu marido, em plena guerra e separação (1871), lhe passe uma repreensão por causa de uma conta da costureira, única des- pesa que se permite, pois "faz questão de aj&dar arrumada" — é dever seu. Assim, mesmo generoso, o pai exerce controle e poder. E o que se vê claramente no caso de Victor Hugo, que, preocupado com a unidade da "tropa", tenta reter cm Guernesey os membros da família, que anseiam cm escapar, cobrando-lhcs o dinheiro que pedem para suas viagens. Essa vigilância pesa especialmente sobre a esposa e a filha Adèle, totalmente dependentes dele. Hugo se queixa de que não passa dc um "caixeiro" da família (Henri Guillemin, L'engloutie [A engolfada], 1985, p. 105). Mas como seria dc outra forma? A situação nos meios rurais c bastante seme- lhante./A penas os meios operários ou populares urbanos escapam parcial- mente à sujeição financeira frente ao pai: a mulher, dona dc loja ou sim- plesmente dona de casa, conquistou esse lugar de "ministra das Finanças" da família que lhe é tão caro, // As decisões fundamentais cabem ao pai. No âmbito econômico, pa- rece inclusive que seus poderes aumentam. Assim, as burguesas do norte da França, estreitamente ligadas à administração dos negócios, trabalhando na primeira metade do século como contabilistas e secretárias, e até como verdadeiras gerentes — como Mélanie Pollet, ancestral da Redoute —, na segunda metade do século fecham-se em suas casas, agora distantes da fábrica, já não guardando qualquer relação com ela (cf. Bonnie Smith). ,í O mesmo vale para as decisões pedagógicas, principalmente no que se refere aos filhos, e para as alianças matrimoniais. A mãe de Martin Na- daud não via grande utilidade em que ele freqüentasse a escola, desejan- do colocá-lo o mais rápido possível no trabalho agrícola. O pai decidiu de outra maneira, mostrando-se sob esse aspecto um homem esclarecido. Muitos casamentos são combinados pelos pais, e há mães que, sensíveis à voz do coração, tomam o partido de suas filhas debulhadas em lágri- mas, como nas comédias de Molière. É o c^so de madame Hugo, no dolo- roso conflito que divide Adèle e Victor^ Em numerosos casos, a decisão do pai se funda nos argumentos FIGURAS E PAPÉIS 129 O prestígio dos homem é dado pelas calças. Pobre do lar em que a mulher as veste! Esse marido, talvez traído, lembra sua autoridade à mulher prostemada, mas que continua visivelmente a pensar na metma coisa. Variações decadentes de um antiqüíssimo tema do imaginário popular. (Paris, Biblioteca das Artes Decorativas.) da ciência e da razão. Contra as mulheres devotas c obscurantistas, dema- siado suscetíveis ao sentimento, tentadas pela paixão, espreitadas pela lou- cura, o pai — o homem — deve sustentar os direitos da inteligência. E a esse título que Kant, Comtc e Proudhon reivindicam o primado do pai no lan o doméstico é importante demais para ser deixado à natureza fra- ca das mulheres. í E também a esse título que o marido tem o direito de vigiar as visi- tas, os passeios, as idas e vindas e a correspondência de sua mulher/No final do século XIX, acendeu-se toda uma controvérsia sobre o assunto, o que mostra a arrancada He um feminismo individualista, compartilha- do por alguns homens, e ao mesmo tempo seus limites, já que não se tomou nenhuma providência que protegesse o direito das mulheres ao sigilo de sua correspondência: muito pelo contrário, a maioria dos magis- trados se pronunciou contra tal direito. Le Temps (março de 1887), tendo pedido a opinião de seus leitores a esse respeito, recebeu um grande nú- mero de respostas e publicou algumas delas. Ferrenhamente favorável ao poder do marido, Alexandre Dumas Filho considerava que "um marido que tem dúvidas sobre sua mulher e que, para esclarecê-las, hesita em abrir as cartas que ela recebe, é um imbecil". Um padre invocava o apoio da doutrina eclesiástica; " O marido é o senhor na casa". Pressensé, de seu lado, tinha uma posição bem mais matizada, estabelecendo uma opo- sição entre o direito e o costume, ao passo que Juliette Adam e madame de Peyrebrune, com algumas diferenças importantes, assumiam uma po- sição francamente favorável à liberdade. Para Juliette, a realidade cotidia- na desmente o Código: a mulher "conquista uma liberdade apesar da lei", corresponde-se "com sua mãe, suas irmãs, suas filhas, suas amigas". 126 OS ATORES Madame de Peyrebrune ressalta a lógica da posição dos juristas, "conse- qüência das leis que restringem a liberdade moral da mulher no casamen- to". É a Jei, portanto, que deve ser modificada. Em 1897, o substituto do procurador-geral do tribunal de apelação de Toulouse, na sessão sole- ne de reabertura, passou em revista os argumentos de ambos os lados, concluindo pela legitimidade dos direitos do marido e pela submissão das mulheres, cm sua maioria felizes por serem protegidas contra si mesmas! A questão foi igualmente polêmica na jurisprudência: o que fazer com o direito de sigilo das cartas confidenciais que não devem ser transmiti- das a terceiros, de modo que, em caso de morte do destinatário, o reme- tente pode exigir sua devolução? Mas o marido será um terceiro?* A CASA PATERNA -/O pai também domina a casa, mesmo passando muito tempo fora. . E l e tem seus aposentos particulares: o fumoir e a sala de bilhar, para on- ' de os homens se retiram para conversar após os jantares sociais; a biblio- * \ .•• teca, porque os livros (e a bibliofilia) continuam a ser coisa dc homens; o escritório, onde os filhos entram apenas nfcmulando.jíSegundo os Gon- court, Sainte-Beuve só é verdadeiramente ele mesmo quando se encontra' em seu refúgio do primeiro andar, longe das gritarias das mulheres, no térreo. Mesmo uma mulher que trabalhe não dispõe de um escritório pró- prio, extensão do público para o privado da casa. Pauline Reclus- Kergomard, inspetora das escolas matem ais a partir de 1879, organiza seus papéis na mesa da sala de jantar, enquanto seu marido Julcs devaneia cm seu escritório vazio, para grande escândalo efe seus filhos — t o que nos conta Hélènc Sarrazin (Elisêe Redus ou lapassion du monde (Eliscc Re- clus ou a paixão do mundo], 1985). No salão, os papéis e os lugares são divididos: pelo menos Kant os define rigorosamente. O salão de Victor Hugo, com o grupo de homens de pé no centro e as mulheres sentadas em volta, e um modelo do gêne- ro./A escolha da decoração é muito mais masculina do que se imagina. Por ocasião do casamento, a casa é mobiliada pelo futuro genro e sua so- . gra, segundo os manuais do conforto doméstico. Mas julcs Ferry "afoga • seu irmão de cartas sobre o apartamento desejado"para seu futuro lar com Eugénie Risler, com instruções ' 'sobre a instalação, a cor das corti- nas, dos tapetes'' (Fresnette Pisant-Ferry, ' 'Jules Ferry, 1'homme intime' r>' Coíloque Ferry). Ao mesmo tempo, como uni autêntico Pigmalião, ele ensina a mulher a se vestir, a se pentear, a realçar sua beleza. Os homens, que preparam as mulheres no teatro e na moda, também cuidam delas -"O no lar. Se são ricos, não abandonam a casa, mas povoam-na com suas aqui- sições — eles são grandes colecionadores — e seus fantasmas. O domésti- co então se apaga diante da criação,/ (*) Lafont d c Scntcnac, Dei droits du mari sur la conespondance dí sa femme [Direitos d o marido sobre a correspondência dc sua mulher] , tribunal de apelação d e Toulouse, sessão solene dc reabertura, 16 dc outubro d e 1897, Toulouse, 18?7, 5! pp. FIGURAS E PAPÉIS 129 A sociabilidade e os passatempos masculinos, no século XIX, inscrevem-se em espaços separados — clubes, cafés, salas de bilhar — onde as mulheres respeitáveis só evitam acompanhadas. (Ao lado; Café La Manille, 1899. Pans, Biblioteca Nacional. Embaixo: AmêdêeJulien Marcel-Clément, Lc Billatd, 1900 ) 128 OS ATORES I Victor Hugo sonhou constantemente com uma casa que seria o cen- tro de seu mundo c, portanto, do mundo inteiro. O exílio lhe deu a oca- sião para tanto. É a Hauteville House, em Guctnesey, que cie comprou, reformou e decorou à revelia de sua mulher. "Não gosto que sejamos pro- prietários", escreve ela à irmã. Adèle enxerga claramente a servidão que lhe traz esse enraizamento, justamente ela que tanto aprecia as viagens c as cidades, e o isolamento que ele acarreta para os filhos, privados do indispensável convívio social da juventude. "Admito que, com tua cele- bridade, tua missão e tua personalidade, tenhas escolhido um rochedo em que te enquadras admiravelmente, e entendo que tua família, que só é alguma coisa para ti, se sacrifique não apenas à tua honra, mas tam- bém à tua figura", escreve ela a Victor (1857). "Amo-te, sou tua, submeto- me a ti. Mas não posso ser uma escrava absoluta. Existem circunstâncias cm que a pessoa precisa de sua liberdade./; O pai, patriarca, reina como um deus no tabernáculo de sua casa. ç > Hugo — esse ' 'doce tirano'', segundo seu filho — é certamente uma das figuras paternas mais grandiosas do século. Ele eleva ao sublime to- dos os traços físicos e morais, de generosidade e despotismo, de dedica- ção e poderio, acompanhados de todas as ridicuiarias e mesquinharias do pai burguês que tem amantes e teme os mexericos; é o egoísmo do pai cruei que prefere internar a filha demente numa obscura "casa de saú- de" a enfrentar o opróbrio ao ' 'nosso nome", o que ocorreria caso as pes- soas tomassem conhecimento da presença de uma louca na casa. "Sem- pre pode ocorrer uma desgraça", escreve ele a esse respeito, e Hrnri Ouil- lemin observa que Hugo até parece desejar que isso aconteça. O poder do pai atingido cm sua glória pode chegar ao assassinato. É por isso que, para sobreviver, é necessário matar o pai. O século XJX conti com muitas figuras de pois triunfimtes e domi- nadores, e se reconhece neles. A maioria dos criadores transformou suas casas em ateliês, e converteu suas esposas, filhas ou irmãs cm secretárias: é o caso de Proudhon, Elisée Reclus, Renan ou Marx, outro retrato típico de nossa galeria, cuja intimidade é bastante conhecida, principalmente graças à correspondência trocada com e por suas filhas. Pai adorado e vi- i gilante, pai déspota e minucioso nas escolhas profissionais e matrimoniais % \ , - das filhas. Eleanor, praticamente obrigada a renunciar à carreira de atriz e ao amor de Lissagaray, acaba sendo traída por Aveling, que Marx prefe- rira por ser socialista. Eleanor, presa a um pai doente que não a compreen- de, soma-se às fileiras das filhas sacrificadas à glória e à vontade paternas. E o pai que, muitas vezes, também lhes abre as portas do mundo. Pois o poder paterno é a forma suprema do poder masculino, exercido sobre todos e ainda mais sobre os fracos, dominados e protegidos/ Essa figura paterna não é apenas católica: é igualmente protes- tante, judia ou ateia. Não c apenas burguesa: c profundamente popu- FIGURAS E PAPÉIS 129 \ V' , lar. Proudhon a erigiu em honra. Há nele um constante desejo de pater- nidade. Desde muito cedo, Proudhon pensou em gerar um filho, "pa- gando uma indenização cm dinheiro para uma moça que eu seduziria para esse fim". Aos 41 anos, ele se casa com uma jovem operária de 27 anos, "simples, graciosa e ingênua", devotada ao trabalho e a seus deve- res, "a mais doce e dócil das criaturas". Ele a viu na rua e lhe fez o pedi- do por carta, uma peça antológica. Proudhon a escolheu para suceder à sua mãe: "Se ela tivesse sobrevivido, eu não teria me casado". Mas, "na falta de amor, eu alimentava a fantasia do lar e da paternidade (...]. O reconhecimento de minha mulher me valeu três meninas louras e cora- das, amamentadas pela própria mãe e cuja existência ocupa toda a minha alma". E continua: 1 'A paternidade preencheu em mim um vazio imen- so" — ela é "como um desdobramento da existência, uma espécie de imortalidade". ^ r ^ paternidade, para os proletários, constitui simultaneamente a forma mais elementar de sobrevivência, patrimônio e honra. A classe operária se apropria da paternidade/virilidade, essa clássica visão da honra mascu- lina oriunda das sociedades rurais tradicionais, e sobre ela edifica parte ^ de sua identidade./ ••/É por isso que a morte do pai constitui a cena mais grandiosa, mais ^ MORTE DO PAI carregada de tensões c significados, dentre todas as cenas da vida privada/ E objeto dc relatos e representações. O leito do moribundo já não é o leíto das "últimas vontades": estas são regulamentadas por lei. Mesmo assim, continua a ser o lugar das despedidas, das transferencias dc poder, das grandes reuniões, dos perdões e reconciliações, dos novos rancores de- rivados da injustiça do desfecho. i/h mãe morre discretamente; viúva, sozinha, mais idosa, já presen-1 ^ - ciou a partida dos filhos, e é raro que detenha a chave dos negócios ou das provisões/Em Gévaudan, muitas vezes ela é apenas uma boca a mais, que o herdeiro aceita em sua casa com impaciência, deixando-a entre os "pequenos". Já o pai, como na fábula, "manda chamar os filhos". Em Lítlc, Caroííne Br ame presenciou a morte do velho Louis Brame, o Bon- Papa, fundador da dinastia. Os irmãos inimigo.'; estavam lá. "Bon-Papa beijou todos nós, e depois, chamando meu pai e meu tio Jules, confiou- lhes seus livros, prestou-lhes contas de seus negócios e recomendou-lhes seus empregados. Sua fisionomia tinha não sei quê de altivez" [Journal [Diário]). O pai de Proudhon, um tanoeiro pobre, optou por uma morte principesca, ao fim dc uma refeição para a qual convidara os parentes e u amigos para se despedir ' 'Eu quis morrer entre vocês. Que tragam o café". ijh morte do pai, grande fratura econômica e afetiva da vida pri-, vada, c o acontecimento que dissolve a família, que permite a existên- , y cia das outras famílias e a libertação dos indivíduos. Daí que às vezes ^ seja desejada, e daí também o rigor da lei contra o particídio. Crime ^ v • fíCURAS E PAPÉIS 131 sacrílego, raramente absolvido, é mais provável que leve ao cadafalso, guar- dando marcas infamantes por longo tempo.// Mas existem muitas outras maneiras de matar o pai, inclusive a pró- pria neurose pessoal, Para Sartre, a doença de Flaubert é o "assassinato do pai" (Lidiol de la famille, t. II, p. 1882 ss.). Achiile-Cléophas, o te- mido modelo, é quem dispõe de sua vida e encaminha-o pata o direito: "Gustave será notário. Será porque já o é, em virtude de uma predesti- nação que não é senão a vontade de Achiile-Cléophas". "A neurose de Flaubert é o próprio pai, esse outro absoluto, esse superegoinstalado ne- le, que o constituiu em negatividade impotente." A morte do pai liberta Flaubert do peso insuportável que ele impunha sobre sua vida. Após o enterro, Flaubert se declara curado. ' 'Em mim, isso teve o efeito de uma queimadura que-elimina uma verruga [...J. Até que enfim! Ate que en- fim! Vou trabalhar." A morte do pai assombra os romances de folhetim, de estrutura fa- miliar extremamente marcada na primeira metade do século XIX. E so- mente com ela que o filho pode aceder à maturidade e à posse da mulher (Lise Quéffelec). / No entanto, existem limites ao poder do pai, definidos pelo direito ou impostos pelas resistências crescentes que se erguem contra ele. A his- tória da vida privada okocentista pode ser lida como uma luta dramática entre o Pai e os Outros./ ;/O fim do direito testamentário, que eqüivale a um assassinato do pai (Le Play), possibilita e estimula a divisão dos patrimônios e dissolve o poder dos patriarcas. Nas regiões de famílias mais numerosas, essa abo- lição é acolhida como algo destrutivo, e resiste-se a ela contornando o Có- digo Civil; em outros lugares, é saudada como uma liberação: é o caso das regiões do Centro. Em 1907, Emüe Guillaumin denuncia os velhos costumes da família numerosa como "uma exploração do pai sobre os filhos", que precisam ser erradicados para sempre./Mesmo nas regiões que preservam a cultura occitânia, as tensões vão se agudizando ao longo do século. I'A evolução jurídica no século XIX consiste numa lenta — na verda- de, lentíssima — corrosão das prerrogativas paternas. De um lado, sob a investida das reivindicações similares das mulheres e dos filhos; de ou- tro lado, em virtude da crescente tutela do Estado, principalmente sobre as famílias pobres, alegando negligência paterna. As leis de 1889 sobre a prescrição do direito paterno e as leis de 1898 contra os maus-tratos in- fligidos aos filhos levam a um maior controle, cm nome do interesse da criança/Alei de 1912, após uma série de tentativas desde 1878, finalmente reconhece o direito de determinação da paternidade, não só nos casos de estupro e violação, mas também nos de "sedução dolosa" (provas escri- tas). Os guardiães da lei — filantropos, legisladores, eclesiásticos — de- fendem a mãe solteira e a criança abandonada.^' Um sentido crescente do indivíduo, no século XIX, confere um papel mais central à morte, patética e privada. Prematura, a morte do pai deixa muitas mulheres sozinhas, veladom fúnebres, fiéis guardiãs dos túmulos. (Página ao lada Jules Boquet, Le Deuil. Rouen, Museu de Belas Artes. Embaixo: A nosso pai. Paris, Biblioteca Nacional.) • k i 1)2 OS/VORK A inevitável foto de casamento /'O crescente reconhecimento da capacidade das esposas, o direito guardará a lembrança de um • dc divórcio (1884) (geralmente pedido por elas), as separações físicas: grande dia . Foto de estúdio., , tudo isso constitui um evidente retrocesso do papel paterno. Esse fenô- (Colcçao Simt Angel.) ; . . . . .meno pode ser verificado inclusive nos detalhes da jurisprudência: por . ' exemplo, na questão do direito dc visita aos avós maternos dos filhos de casais separados, sob a guarda do pai. O pai, até o Segundo Império, não 1 tem qualquer obrigação a esse respeito; em 1867, uma decisão que for- mará jurisprudência decide, "no interesse da criança", atender à solicita- ção dos avós maternos./' Mas o direito apenas ratifica, com atraso e timidez, a reivindicação surda e constante que se exerce dentro da família e que acaba levando à sua transformação. A família democrática e contratual, como Tocque- ville observara nos Estados Unidos no começo do século, não resulta de uma evolução espontânea, ligada aos avanços da modernidade, sendo an- tes decorrência de um compromisso, o qual, por sua vez, cria novos desejos. CASAMENTO E LAR O casamento, crisol da família, foi tema de muitos estudos etno- lógicos e demográficos, que nos dispensam de discorrer prolongada- mente sobre o tema. Mais adiante, Anne Martin-Fugier irá descrever seus ritos, e Alain Corbin mostrará a lenta ascensão do sentimento, a FIGURAS S PAPÉIS 133 X exigência afetiva c sexual que transforma o casal moderno, por vezes opondo-se de maneira conflitante às estratégias da família. ., ^Aqui lembraremos apenas alguns traços principais. Em primeiro lu- * gar, a força normativa do casal heterossexual, que resulta na dupla rejei- ção do homossexual e do celibatário, esses dois excluídos. A característica • do século XIX reside na polarização em torno do casamento, que tende , a absorver todas as funções: não só a aliança, mas também o sexo/'"A fa- mília é quem faz as trocas da sexualidade e da aliança: ela transporta a lei e a dimensão jurídica para o dispositivo da sexualidade, e transporta a economia do prazer e a intensidade das sensações para o regime da alian- ça" (M. Foucault). Essa transformação se dá em velocidades variáveis. Aqui, a burguesia tem um papel motor: a consciência do corpo é uma forma de autoconsciência/por outro lado, a aliança e o desejo nem sempre con- cordam entre si — longe disso. O drama das famílias, a tragédia dos ca- sais freqüentemente residem nesses conflitos entre a aliança e o desejo. Quanto mais cerradas as estratégias matrimoniais para assegurar a coesão familiat, tanto mais canalizam ou sufocam o desejo. Quanto mais forte o individualismo, tanto mais ele se insurge contra as escolhas do grupo, os casamentos decididos ou arranjados. Sem dúvida, tal é o mecanismo do drama romântico e do crime passional/!^ 'íitois traços demográficos traduzem essas características. De um lado.Tjm alto índice dc nupcialidade, relativamente estável (cm torno Fundada em 1908 pelo capitão Maire para incentivar a baixa natalidade, a Liga dos Pais e Mãei de famílias Numerosas acolhe os chefes de família com um mínimo de quatro filhos. Ela atua junto aos poderes públicos "para obter leis que dêem uma proteção e um auxílio efetivo aos que são o futuro do petís". Militar consciente das fraquezas nacionais, o capitão Maire, como se vi, dava pessoalmente o exemplo. {Paris, Biblioteca Marguerite-Durand.) de 1,6%), com uma inflexão sob o Segundo Império, e principalmente no período dc 1875-1900. Esta última inflexão despertou a preocupação dos demógrafos, antes acentos à baixa do índice de natalidade: daí as cam- panhas populacionistas e moralizadoras da época, e as diatribes contra os celibatários. No entanto,' o índice de celibato definitivo é baixo: acima de cinqüenta anos, não vai muito além dc 10% em média para os ho- mens, c dc 12% para as mulheres/ Segundo traço considerável: a diminuição da idade por ocasião do casamento/O casamento tardio, associado à prática de se casar quando já se tem uma definição profissional, também constituía o principal mé- todo anticoncepcional das sociedades trad f cionais /Proudhon comenta que seus antepassados se casavam "o mais tarde possível"; hostil às manipu- lações carnais, ele próprio é favorável a isso. No século XIX, porém, a di- fusão de um espírito contraceptivo (quando não de métodos ainda extre- mamente rudimentares) c da pequena propriedade, que permite um es- tabelecimento profissional mais rápido, vera a favorecer a redução da idade./ Os meeiros, os operários e até os burgueses procuram montar um lar o mais cedo possível. "No mundo civilizado'diz Taine, as principais necessidades do homem são "um ofício e um lar". E também uitfmeio de escapar ao domínio dos pais e de levar uma vida independente. Soma- se a issò-a procura de um companheiro mais jovem e atraente, principal- mente por parte dai mulheres, que agora rekitam em casar com velhotes/ George Sand fica espantada com a diferença de quase quarenta anos en- tre sua avó e seu avô, Dupin de Francueil, o que lhe valeu essa magnífica resposta: "Foia Revolução que inventou a velhice no mundo". Caroline Brame, tão meiga, se insurge contra essas práticas; ao assistir ao casamen- to de uma moça com "um amigo do pai dela, que tem o dobro de sua idade", ela comenta: "Isso não me agradaria nada" {Journal, 25„de no- vembro de 1864). Sentirá atração por um rapaz de sua idade, dezenove anos, o que, aliás, é censurado pela família. Na verdade, os índices e tendências médias não significam grande coisa cm campos que dependem estreitamente das estruturas familiares. Os mapas estabelecidos por H. LeBraseE. Toddsão eloqüentes. "O grau de precocidade matrimonial é um bom indicador do tipo de controle exer- cido por um sistema social sobre seus jovens adultos [...]. Uma idade avan- çada por ocasião do casamento define uma estrutura familiar de tipo au- toritário. Produz muitos celibatários, que às vezes permanecem durante toda a vida nas famílias dos irmãos ou irmãs casadas, como velhas crian- ças e tios eternos." A idade das mulheres no casamento em 1830 e, em menor grau, em 1901 é particularmente elevada na Bretanha, no sul do Maciço Central, no País Basco, na Sabóia e na Alsácia. A persistência dc práticas malthusianas também coincide com as regiões católicas, sendo que a Igreja prefere a "moral restrita" do casamento tardio a todas as outras formas de controle da natalidade. FIGURAS E PAPÉIS Í.J7 A. escolha social do cônjuge também constitui o objeto de estraté- gias que ocupam o centro de atenção das famílias. A homogamia e até a endogaiuia são tendências consolidadas cm todos os meios regionais e sociais, que também se explicam pelas formas de sociabilidade; a pessoa se casa com alguém semelhante a ela, também pelo fato de conhecer e conviver principalmente com indivíduos parecidos com ela mesma/Aí se opera um processo de reprodução (no sentido de P. Bourdieu) que, mes- mo sendo .determinista, não deve nos fazer esquecer os jogos dos indiví- duos que o aceitam ou rejeitam, numa grande variedade de histórias sin- gulares. i/k endogarnia, muito forte nas zonas rurais do Antigo Regime, re- torna no século XIX devido às migrações. No entanto, as regras familia- res se cxercem inclusive sobre os migrantes/Os naturais de Auvergne ou Limoges que vão temporariamente para Paris, no movimento pendular sazonal que imprime seu ritmo à primeira metade do século, dispõem de um duplo circuito sexual: o das ligações na cidade c o do casamento na vila — é o caso de Martin Nadaud, que, no entanto, ao se casar em sua aldeia, consegue unir a atração pessoal (aqui, a sedução pelo olhar cumpre seu papel) e a escrupulosa obediência a vontade paterna. /As coerções certamente são menores para os homens, os quais dis- põem fie uma maior mobilidade. E o que ocorre em Vraiville (Eure), es- tudado por Martine Segalen, As cidades, desde o último terço do século XVIII, passam a intensi- ficar a miscigenação. A proporção dos casamentos realizados fora das quatro paredes aumenta de forma constante, como mostram vários estudos de- mográficos (Caen, Bordeaux, Lyon, Meulan, Paris...). No entanto, os bairros logo conseguem reconstituir o espaço do torrão natal//Em Belleville, no século XÍX, "é no interior de um espaço muito restrito que os futuros esposos se encontram e se casam" (G. Jacquemct). Mas, aqui, o conheci- mento ocupa o lugar do convívio: os jogos do olhar, das palavras e do de- sejo rompem com as regras dos costumes. / Á homogamia é altíssima em todo o país. Sendo de praxe nos meios burgueses, onde o casamento é ditado pelos interesses das famílias e das ' empresas, ela atinge o auge quando se somam diversos fatores de identi- dade: é o que ocorre entre os industriais protestantes do setor algodoeíro, 1 era Rouen, onde os sobrenomes se cruzam num verdadeiro bale de pri- mos consangüíneos/Èm Gévaudan, os casamentos são regidos por princí- pios muito rigorosos, destinados a manter o equilíbrio dos oustals, com ciclos que regulam a circulação dos bens, dos dotes e das mulheres. Os "herdeiros" desposam uma "caçula", e sua irmã com dote se casa com um herdeiro. :';Os meios operários não fogem a essa economia de troca. Vidra- ceiros, artesãos de fitas e galões e metalúrgicos da região lionesa (cf. Yves Lequin, E. Accampo) se casam entre si e perante testemunhas do mes- mo ofício. O trabalho e a vida privada se imbricam em ' 'endogamias téc- nicas", onde se opera a sobreposição do ofício, da família e do terri- DESPOSAR O Sf iMKÜÍANTl i Casamentos d c naturais de Vraiville contraídos na comuna ( e m %): II M 1753-1802 63 86 1855-1902 4 1 , 9 89 .2 5 136 os ATORES tório: é o caso dc Saint-Chamond (artesãos dc fitas), Givors (vidracciros), Croix-Roussc ou, ainda, do subúrbio de Saint-Antoine (Paris), onde a tra- dição profissional e até mesmo militante dos marceneiros se transmite de pai para filho/ Nesses meios de pequena mobilidade, as distinções se expressam confetindo-se um sentido extremado às pequenas hierarquias. Vejamos Marie, uma jovem luveira de dezenove anos, em Saint-Junien (Haute- Vienne). Na frente da casa de sua família, mora um primo "afinador", * trabalhador especializado no setor de luvas. "Não se esboçou nenhum romance", escreve o pesquisador da monografia dessa família. "Marie, na hierarquia operária, ocupa um lugar muito inferior ao do primo para que se possa pensar em casamento." A procura do dote disfarçado persiste no nível individual. As criadas ou as operárias sérias são muito valorizadas; com as economias delas, os jovens operários pagam suas dívidas ou tentam se estabelecer: é o caso de Norbert Truquin, em Lyon. As mulheres são as cadernetas de poupan- ça dos meios populares. * CASAMENTO / Em 1828, Le Journal des Débats divulga um crime passional. Uma IMPOSSÍVEL jovem operária dc dezenove anos, filha de alfaiates, cortejada por um co- lega de trabalho com vinte anos, que a acompanha até sua casa "segurando-lhe o braço", conta o fato à sua família: pode se casar com . / •• ele? Deliberam, julgam que o rapaz não tem seriedade nem talento sufi- "" ciente; o pai o considera de "má aparência" c acha que "não tem o ar que um alfaiate deve ter''. ' 'Ao que parece, eu julgava amá- lo ' d i z a jo- vem, "mas, como meus pais não queriam, rcnuncicí." Então vem a recu- sa e segue-se o assassinato cometido pelo pretendente rejeitado. A força do desejo !>e quebra contra o granito do grupo. Muitos processos do sécu- lo XJX nos contam histórias de amores impossíveis/ V / Nos meios pequeno-burgueses, a aliança, elemento decisivo da as- ,. censão, é objeto de cálculos e proibições. A homogamia não é tãointen- sa: as pessoas procuram sc casar no estrato superior ao delas. Os emprega - i dos do setor terciário — dos Correios, por exemplo — não gostam de se • casar com suas colegas, pois sonham com mulheres de prendas domésti- cas. Daí o grande número de solteiras entre as empregadas dos Correios, porque elas, por sua vez, não se casam cora operários. Ocorre amiúde que • as mulheres paguem sua independência com a solidão.. Para os homens em ascensão social, o dinheiro conta menos do que a posição, a distinção, as qualidades de senhora da casa, e até a beleza. E o que ocorre com Charles Bovary, fascinado por Emma, que possui uma sombrinha, tem a pele alva e a "bela educação" de uma "senhoritada cidade". Abastado, ele pode se permitir uma mulher bonita, que não precisa fazer os serviços domés- ticos, deixando-os a cargo de uma empregada./' 0 > O casamento é uma negociação, conduzida pelos parentes (as tias r casamenteiras), pelos amigos, pelos próximos (o padre), e todos os seus fatores devem ser avaliados. Um fidalgote sem dinheiro de Lozère escreve * (*) "Dokur": aquele que afina c adelgaça as peles usadas para fazer luvas, usando lâminas cortantes. (N. T.) FIGURAS E PAPéfS 137 à tia, encarregadadc arranjar uma esposa para ele: uma moça com herança suficiente para lhe permitir conservar seu castelo e sua casa de Mende; 100 mil francos bastariam para alguém da mesma posição, mas, "para uma con- dição inferior à minha, é preciso que seus bens compensem a maior ou me- nor desproporção de seu nível cm relação ao meu'' (c. 1809, Claverie e La- maison, p, 139)1 ^ /Mas as estratégias matrimoniais se diversificam e se complexiftcam. v O dinheiro assume formas variadas: móveis, imóveis, negócios e ' 'esperan- ^ ,/•-, ças". Outros elementos entram em linha de conta: o nome, a considcra- ção, a "situação" (as profissões liberais gozam de grande estima), a "das- se" e a beleza fazem parte dos termos de troca, Um homem idoso e rico — tal como um rei — procura uma moça jovem e bela. As aparências, va- lorizadas pela individualização do corpo, constituem uma arma de sedu- ção feminina. Com dificuldades financeiras, há quem aceite uma mãe sol- teira com propriedades, como o personagem-título de Marthe,1 i, /Finalmente entra em cena a inclinação, objeto de tanta desconfiança AMOR .<•'' por parte de Hegel, ou até a paixão, objeto de reprovação das famílias. Na E CASAMENTO v segunda metade do século XIX, aumenta cada vez mais o número dc pes- - •' soas que desejam uma convergência entre a aliança e o amor, o casamento ^ e a felicidade. Sonho dc Emma Bovary:1 'Se lhe tivesse sido possível depo- ^ sitar sua vida em algum grande coração sólido, então, confundindo-se a vir- tude com a ternura, as volúpias e o dever [ . . . ] 'São principalmente as mu- lheres, cujo único horizonte é o casamento, que se inclinam para esse la- do,fcl aire Démar (Ma loi d'avenir, 1833) reivindica uma transformação radica] naeduraçSodas jovenc, que "bem que sc gostaria que não soubes- sem sequer qual a forma que tem um homem". Ela critica o casamento, "prostituição por lei", defende a livre escolha do companheiro, a "neces- <-' sidade de uma experiência inteiramente física da carne pela carne" e o di- reíto à inconstância. Aposta impossível em sua época: Claire se suicida, e suas companheiras saint-simonianas amenizam seu texto, distorcendo-o para o lado da maternidade! / Sem avançar tanto, Aurore Dupin, que ainda não c George Sand e sim madame Dudevant, numa longa carta a Casimir, explica-se sobre o mal- entendido que os separa: a divergência nos gostos e prazeres que desgasta a relação deles. "Eu vi que tu não gostavas de música e deixei de me inte- ressar por ela, pois fugias ao som do piano. Tu lias por condescendência, e depois de algumas linhas o livro caía de tuas mãos, de tédio e sono (...]. Comecei a nutrir um verdadeiro desgosto, ao pensar que jamais poderia existir a menor afinidade entre nossos gostos" (15 de novembro de 1825). Esse sonho da partilha — fora do casamento — também é alimenta- do por Charles Baudelaire, suspirando após seu rompimento com Jeanne, depois de catorze anos de convivência:' 'Surpreendo-me a pensar quando vejo qualquer objeto belo, uma bela paisagem, qualquer coisa agradável: por que ela não está comigo, para admirar isso comigo, para comprar isso comigo?'' (carta a madame Aupick, 11 de setembro de 1856). % porque os homens também querem outra coisa: não mais a sub- missão passiva, mas a concordância; se não a atividade, pelo menos o amor da esposa, e alguns chegam a querer a igualdade na relação. Desde Mi- chclet, que aconselha que ' 'se crie sua própria mulher", até Julcs lerry, firme defensor da divisão sexual dos papéis e das esferas e que se gaba de seu casamento com Eugénie Rislcr: "Ela é republicana e filósofa. Ela sente todas as coisas como eu e eu me orguiho dc sentir como ela'' (carta a jules Simon, 7 de setembro de 1875)/ ,/Eugène Boileau, cuja correspondência com a noiva foi estudada por Caroline Chotard-iiorct, expressa à perfeição esse novo ideal do casal re- publicano, inteiramente imbuído de estoicismo romano e livre pensamen- to, que erige sua própria unidade em religião: "Quando ouço repetir à minha volta: 'O casamento [...] c a servidão!', eu exclamo: 'Não!~0 casa- mento é a tranqüilidade, a felicidade; é a liberdade. E por ele, e apenas por ele, quc~ó homem (aqui entendo os dois sexos), o homem em seu pleno desenvolvimento, pode chegar à verda§eira independência. Pois en- tãoJele se torna um ser completo, constituindo nessa dualidade a perso- nalidade humana única'" (carta a Murie, 24 de março de 1873). Aspira- ção à fusão unificadora de um casal que se basta a si mesmo ("Não mis- turemos nenhum terceiro à nossa vida íntima, ao nosso pensamento") e que converte o marido em "confidente" da mulher: "Recomendo-te sempre que tomes por confidente apenas teú amigo, que confies teu co- ração (mas sem reservas) apenas ao de teu marido, coração que deve for- mar, que logo formará... e ouso dizer que já forma uma só unidade contigo"./ A VIDA DO LAR: DESFORRA DAS MULHERES? : Mesmo num espaço inteiramente dominado, as mulheres encontram compensações que favorecem o consentimento: uma relativa proteção, uma menor inculpabilidade, o luxo ostensivo das burguesas incumbidas das aparências — o que não deixa de ter seus encantos —, e no final das con- tas uma maior longevidade. Elas também dispõem de possibilidades de ação não desprezíveis, tanto mais que.á esfera privada e os papéis femini- nos conhecem uma constante revalorização no século XIX, aos olhos de uma sociedade interessada no utijitarismo, preocupada com os filhos e atormentada por suas próprias contradições, já dizia Kant: como resolver a afirmação contraditória do direito pessoal — a mulher é uma pessoa — e do direito conjugai do senhor, de essência monárquica? Como, se não imaginando "um direito pessoal de modalidades reais"? O feminis- mo, bem como o discurso da "maternidade social" apresentado pela Igreja e pelo Estado, se introduziram nessa fenda do direito e dos princípios. FICUHÁS E PAPélS 139 Mas e o cotidiano? Mattinc Scgaten, Yvonne Vcrdier, Agncs Fines, entre outros, contri- N A SOCIEDADE buíram muito para elucidar os papéis e o lugar das mulheres na socieda- KURAL dc rural francesa. Tomando uma enérgica distância das descrições miscra- bilistas e pouco compreensivas dos viajantes oitocentistas — Abel Hugo, por exemplo —, Martine Segalen insiste sobre a complementaridade das tarefas num espaço ao qual o trabalho imprime uma continuidade, e até uma indistinção, entre o público e o privado. A impressão geral é a de um equilíbrio relativamente harmonioso entre os dois sexos, a mulher cui- dando das despesas e exercendo, com as conversas de quintal, um contra- poder eficaz. Yvonne Vcrdier descreve os principais personagens de Minot, na Bor- gonha, com seus papéis culturais, enraizados em seus "destinos biológi- cos": "De seu destino biológico, as mulheres passam imediatamente pa- ra seu destino social", escreve ela. A ajudante (cm geral lavadeira), a cos- tureira, a cozinheira têm conhecimentos e poderes imbricados na vida local. Não estão dc forma nenhuma encerradas dentro dc casa. Agnès Fine, através de relatos de vida, analisa como se tecem, na preparação do enxoval, as relações entre mãe e filha e, para além delas, entre o masculino e o feminino, ou, dito em outros termos, como o bio- lógico se inscreve no social por intermédio do simbólico. No entanto, essas^escrições, em sua beleza estrutural, apresentam um caráter intemporal,;/O ecumenismo da cultura tem a tendência de mas- carar as tensões e conflitos, que são precisamente os aspectos ressaltados por Élisabcth Claverie e Pierre Lamaison. No sistema do oustal, onde a V troca dc mulheres obedece com bastante rígor à troca dc bens, as esposas, v freqüentemente espancadas, não dispõem sequer da chave da despensa; às vezes, têm de roubar para sobreviver; as conivências femininas geral- mente se desfazem com o casamento e o medo aos homens, ea intolerân- cia em relação à gravidez ilegítima é muito intensa. As mulheres sozi- nhas têm um destino particularmente difícil; as viuvas, tidas como se- xualmente perigosas devido a sua suposta luxúria, por vezes ficam relegadas ao exterior da casa, em cabanas, com algumas roupas e subsídios; as jo- vens, presa sexual dos pastores ou dos proprietários, muitas vezes são vio- ladas com o sentimento de uma virilidade legítima,' "A violação era vivi- da apenas como uma variante das condutas habituais na relação homens- mulhcres [...]. A própria idéia de queixa parece inconcebívcl c informu- lável. A normalidade sexual engloba o leque de suas conseqüências: a vio- lência, a frustração, a morte" (op. cit., p. 218). Deve-se considerar esse aumento da opressão feminina como resultante de um sistema de paren- tesco particularmente complexo e que, no entanto, oferece às mulheres maiores possibilidades de herdarem do que em outros lugares? O sudeste do Maciço Central, aliás, é uma região onde a vingança persiste como ma- neira de resolver as tensões e sc inscreve destacadamente no mapa dos OS ATORES FIGURAS E PAPÉIS Í.J7 crimes sangrentos. O contraste entre as representações também deriva da natureza das fontes: de um lado, os provérbios e costumes, dc outro lado, dossiês judiciais diretamente inseridos nos conflitos constituem fontes que fornecem visões diferentes. ' Os lares urbanos, aparentemente, têm uma maior simplicidade. Mas, aí também, são inúmeras as variantes conforme os meios sociais, sendo que o modo de habitação, a distância entre o domicílio e o local de trabalho constituem um fator bastante decisivo na autonomia do do- méstico/Desse ponto de vista, o exemplo das burguesas do Norte, das quais Bonnie Smith nos deu um retrato agora clássico, é impressionante. Na primeira metade do século XIX, elas participavam na administra- ção dos negócios, faziam a contabilidade da empresa, preferiam que o dinheiro fosse investido na indústria do que na compra de vestidos de seda. Na segunda metade do século, apenas as viúvas prosseguem cora essa tradição. Por volta dos anos 1850-1860, a maioria das mulheres se retira da esfera econômica para se isolar em casa. As modificações do hãbitat consolidam esse distanciamento, que marca uma guinada no sistema de relações industriais menos paternalistas; os patrões deixam de morar no perímetro ou na proximidade de suas fábricas; enrique- cidos, fogem à fumaça, ao cheiro e à visão da miséria; concentram-se nos bairros novos — em Roubaix, bulevar de Paris —, onde se erguem villas luxuosas, "castelos'' que, em época de greve, são motivo de escárnio BURGUESAS SENHORAS DO LAR Mulheres burguesas entre filhos e criados, à mesa, no jardim. Serenidade pacífica de Monet; onirismo de M. L McMonnies. (Página 20 lado: Clau.de Monet, Lc déjeunet, 1868. Frankfurt, Stãdelsches Kunstinstitut. Embaixo: Mary Louise McMonnies, Visita a um parque. Rouen, Museu de Belas Artes.) dos operários que se reúnem diante deles. As mulheres, agora, adminis- tram a casa, o grande número de empregados c a família igualmente nu- merosa, fruto de suas crenças católicas e, ainda mais, das estratégias ma- trimoniais do setor têxtil do Norte..Elas constroem uma mora! doméstica cujos principais eixos foram apontados por B. Smith: a fc contra a razão, a caridade contra o capitalismo, a reprodução como autojustificação. E através desta função que as burguesas rodeadas de filhos — a taxa media de filhos por família, entre 1840 e 1900, passa de cinco para sete — con- ferem sentido a suas menores ações. Do asseio e da decoração do lar à observância quase religiosa de uma moda tirânica — vejam-se as "horas do dia" desenhadas por Deveria —, de cada mínimo trabalho feminino (pois a dama precisa estar constantemente ocupada) à obsessão pelas con- tas (esse tormento da senhora do lar que freqüentemente precisa se res- tringir ao que lhe e dado pelo marido, a quem deve prestar contas): cada detalhe adquire sentido numa moral de fundamento mais simbólico do que econômico. Funcionando como linguagem ou ritual, ela obedece a códigos muito estritos..'Movidas por uma alta consciência de si mesmas, essas mulheres do Norte não são passivas nem resignadas; pelo contrário, tentam erigir sua visão do mundo em julgamento das coisas, muitas ve- zes de maneira categórica. Esse "feminismo cristão" (pode-se falar em feminismo? Não, se for definido como busq^ da igualdade: o que aqui se reivindica e a diferença) se expressa na voz de romancistas como Ma- thilde Bourdon, autora do best-sellerLi vie réelle [A vida real], Julia Bé- cour ou Joséphine de Gaulle, que compõem uma espécie de epopéia do- méstica onde se defrontam o bem e o mal: as mulheres e os homens. Por seu gosto destrutivo pelo poder e pelo dinheiro, os homens trazem o caos e a morte. Anjos do lar, as loiras heroínas, com suas virtudes, restauram a harmonia doméstica. ^Esse modelo completo de domesticidade, marcado por um angeii- calismo que só não é inteiramente vitoriano devido ao culto pela Virgem Marta, encontra-se em diferentes graus em todas as camadas da burgue- sia/Ele varia segundo os níveis das fortunas, medidas pela quantidade dc criados e pelo status da residência, e conforme as crenças e sistemas de valores. A nostalgia aristocrática, tao marcada no faubourg Saint- Germain, é em outros lugares temperada por um crescente desejo milita- rista que atravessa a burguesia francesa de uma maneira muito mais abran- gente do que se imagina. Aqui, insiste-se sobre as funções de repre- sentação das mulheres "da classe ociosa", cujo luxo, por si só, expres- sa a concepção do ser-ter dos maridos e perpetua a etiqueta social. Lá, ressalta-se a importância da economia doméstica e da senhora do lar. Enfim, o filho, sua saúde e educação são invocados como funda- mento dos deveres e poderes das mulheres. O próprio feminismo se apoia sobre a maternidade para fazer suas reivindicações, e essa insis- FIGURAS E PAPÉIS Í.J7 tenda sobre a diferença certamente constitui uma especificidade do fe- minismo francês frente a seu correspondente anglo-saxão, que se concen- tra mais exclusivamente na igualdade dos direitos individuais. Face ao pai esfaifado, a mãe adquire segurança. A dona de casa entre as classes populares urbanas é uma persona- gem maior e majoritária. Majoritária porque consiste na condição da maioria das mulheres que vivem maritalmente, casadas ou não, sendo o casamento o estado civil mais geral e normativo, principalmente quando elas tém filhos. O modo de vida popular, como se disse, supõe a mulher "em casa", o que não significa "no lar", pois, devido às paupérrimas condições de moradia, o alojamento c mais um local de encontro do que uma residência; Polivalente, a dona de casa é investida de múltiplas funções. Em primeiro lugar, dar à luz c cuidar das crian- ças, ainda muito numerosas nas famílias operárias, que são das últi- mas a limitar o nascimento de filhos. A mulher do artesão e a pequena comerciante deixam os filhos com a ama-de-leite, mas as mais pobres amamentam pessoalmente os bebês, desnudando o seio como a passa- geira do vagão de terceira classe de Daumier. A dona de casa leva os filhos junto consigo; eles a acompanham tão logo começam a andar, vindo a ser figuras familiares nas ruas, reproduzidas a rodo pela icono- grafia da época ou captadas pelas primeiras fotografias urbanas. Além A D O N A DK CASA DAS CLASSES POPULARES Com o desenvolvimento do asseio, a lavagem das roupas do lar passa a ser uma grande atividade da mulher, dona de casa ou assalariada, e o lavadouro se converte num local privilegiado de sociabilidade feminina. A lavadeira é uma figura popular de Paris no século XIX, como a lavadeira paga do campo. Observador atento do corpo das mulheres, Degas sabe traçar seu contorno e osgestos do trabalho. (Edgar Degas, As lavadciias. Stanford, Coleção particular.) 144 OS ATORES "Em casa... na fábrica'\ a máquina de costura seria ' 'a grande glória'' da mulher {Casto» Bonheur)? Intensamente difundida nu contexto da indústria de confecções, igualmente cobiçada pela burguesa e pela operária, ela ê também seu ' J grande tormento. ^ ^ ! disso, desde cedo as crianças circulam sozinhas, "moleques" intrépidos que se juntam aos bandos de meninos no pátio ou na rua. Mas os "peri- gos da rua'' passam a preocupar cada vez mais as mães, no duplo rcccio pelos acidentes e "más companhias". Progressivamente, o dia e os movi- mentos da dona de casa vão seguindo o ritmo das atividades dos filhos, em especial do horário da escola. /^Segunda função:^atender a família, com os "serviços de casa" que abrangem as mais variadas coisas; procurar o melhor preço dos alimentos, por compra, troca ou até "coleta", tantas são as oportunidades de apro- veitar os restos de alguma compra por atacado nas grandes cidadeá; pre- parar as refeições, inclusive a "marmita" do pai quando este trabalha lon- ge; buscar água, acender o fogo, cuidar da casa e principalmente das rou- pas de uso pessoal e de cama, mesa e banho, lavadas, reformadas, consertadas e remendadas... Tudo isso implica um gasto de tempo consi- derável, com idas e vindas.. Apenas Le Play, cm seus orçamentos familia- res, tentou contabilizar esse tempo fluido, ^ pelo menos o gasto na lava- gem das roupas de cama, mesa e banho, primeira ocupação doméstica que, desde o Segundo Império, foi objeto de um esforço dc racionaliza- ção com a construção de grandes lavadouros mecanizados, aos moldes in- gleses, 1 Por fim, a dona de casa se esforça cm trazer para a família uns "tro- cados", obtidos principalmente com tarefas domésticas: faxinas e lavagens de roupa, sistematicamente cumpridas pelaj "lavadeiras por peça" dos lavadouros, serviços de recados e entregas (a entregadora dc pão c uma figura bastante conhecida), pequenas vendas em bancas ou de porta em porra, aproveitando n menor caminho da calçada e a mais ínfima dife- rença de preçov ,(Gradualmente, sobretudo no último terço do século XIX, o traba- lho domiciliar, no âmbito de uma indústria de confecção dividida e ra- cionalizada, canaliza essa imensa força de trabalho das mulheres erfi casa. As primeiras seduções da máquina de costura — ter sua Singer passa a ser o sonho de muitas donas de casa — levam-nas a se confinar em casa, ji , numa ruptura total com seus hábitos de andar pela cidade/ Os abusos do sweating system vem a valorizar a fábrica, que acaba sendo preferível por ser menos solitária, mais bem controlada, mais submetida ao olhar público. "Ministra das Finanças" da família, a dona de casa dispõe dej)ode- res cujas ambigüidades são ilustradas pela prática do pagamento. E, sem dúvida, uma lenta conquista das mulheres, cansadas de esperar o dinhei- ro dos maridos. Ignoram-se quais foram as etapas desse processo. Nos mea- dos do século XIX, na França — que, sob esse aspecto, as monografias dc Le Play opõem à Inglaterra —, um grande DÚmero de operários entre- ga seus pagamentos à mulher, não sem conflitos periódicos nos subúr- bios. Mas, responsáveis pelos pagamentos, as donas de casa também so- frem as conseqüências disso: se, por um lado, podem orientar o consumo, que já vem sendo disputado pelos grandes magazines e pelo tímido des- pontar da propaganda, por outro lado têm de administrar sobretudo a FIGURAS E PAPÉIS Í.J7 Ofícios femininos: mito e realidade. Ao lado: angústia das costureiras domiciliares, acordadas numa mansarda para terminar uma encomenda urgente; modéstia do cenário, luxo dos tecidos. Embaixo: sensualidade de uma oficina de passadeiras de "roupas finas", estimuladas pelo belo tecido e pelas confidencias das jovens. (É meia-noite , Paris, Biblioteca Nacional. Mane Petiet, A s passadeiras, 1882. Paris, Biblioteca Nacional.) 146 OSAIÜRES miséria, em primeiro lugar sacrificando a si mesmas. Deixando a carne c o vinho, alimentos masculinos, para o chefe de família, o açúcar para as crianças, muito amiúde contentam-se com queijo e café com Jeite; o "bife da costureira" é um pedaço de bric. Apesar de tudo, essa modesta administração financeira funda um certo "matriarcado orçamentário" que, ainda hoje, é muito prezado tan- to pelas donas de casa quanto pelas operárias. Elas dispõem de muitos outros campos de intervenção: os cuidados com o corpo e a alma, como diziam no século XIX. Nessa época em que o recurso ao médico, por ser muito caro, constitui algo relativamente raro entre o operariado, elas em- pregam os meios de uma farmacopéia multissecular e as sugestões da no- va higiene: é o caso da cânfora, aconselhada por Raspail, o ' 'médico dos pobres", que se dirige especialmente às mulheres, ciente de seus papéis tradicionais. A mulher do carpinteiro dc Paris (monografia de Le Play c Ricillon, 185 6) uiiliza-a com freqüência. Grandes apreciadoras de folhetins (a alfabetização feminina aumenta rapidamente nas cidades oitocentistas, onde muitas mães, graças ao mé- todo Jacotot, chegam a alfabetizar os próprios filhos), dc músicas e dan- ças, elas sustentam todo o vigor de um imaginário que os meios dc co- municação (no caso, os jornais de grande tiragem) tentam domesticar. Cor- tejadas pela Igreja, por vezes se entregam à religião, apreciando suas festas e formas de sociabiJidade, não sem conflitos fom maridos que se preten- dem mais materialistas. h dona de casa popular não tem muitas papas na língua. Muitas vezes é uma rebelde, tanto na vida privada quanto na vida pública. E não raro paga um alto preço por isso, como alvo principal de violências que podem chegar ao crime "passional".^Lindadas na administração da mo- radia e da alimentação, suas intervenções na cidade vão se tornando rare- feitas à medida que se tornam mais regulares. E duvidoso que seus pode- res tenham aumentado com a modernização, visto que a esfera privada sofre investidas de todos os lados e os modelos de identidade da classe operária são, em larga medida, masculinos. Daí os conflitos, as dificulda- des de inserção, a reclusão doméstica a que é impelida por todos (vejam- se os cartazes da CGT sobre a semana inglesa). E às vezes a indiferença por esse mundo, político e sindical, que não a compreende. PAIS E FILHOS Nesse confortável interior inglês, ^ repleto de bibelôs e marcado de , "Quando surge o filho, o círculo familiar...' "/O filho, no século XIX, exodsmo, as crianças não estão \ , ocupa mais do que nunca o centro da família. E objeto de todos os tipos confinadas na James W / d e i n v c s t ; m c n t 0 : a f c t i v 0 ( c ]aro> m a s t a m b é m c c o n ô m l c o > educativo, exis- ou o charme discreto da burguesia. . • . , ^ , , • m - r i c • i (James Tissot O jogo de &f tencial. Como herdeiro, o hlho e o futuro da iamilia, sua imagem sonha- esconde-escondc. Toronto, Coleção . da e projetada, sua forma de lutar contra o tempo e a morte./, Ckristie's.) . Esse investimento, que se expressa na literatura cada vez mais pro- Vj FIGURAS E PAPÉIS Í.J7 lixa sobre a infância, não visa necessariamente à criança cm sua singulari- dade JStendhal disse com muita clareza, a respeito de seu pai: "Ele não mc amava como indivíduo, mas como filho que devia continuar a faraí- • tia" (Henry Bmlard). O grupo prevalece sobre o indivíduo, e a noção de "interesse da criança" só vem a se desenvolver na França tardiamente. Por enquanto, de modo geraJ, essa noção abrange apenas os interesses mais altos da coletividade: a criança como "ser social"./ . De fato, o filho não pertence apenas aos pais: ele é o futuro da na- ção e da raça, produtor, reprodutor, cidadão e soldado do amanhã. Entre ele e a família, principalmente quando esta é pobre c tida como incapaz,insinuam-se terceiros: filanttopos, médicos, estadistas que pretendem protegê-lo, educá-lo, discipliná-lo. As primeiras leis sociais (a de 1841 so- bre a limitação do tempo-de trabalho nas fábricas) foram promulgadas tendo como objeto as crianças/Pouco importa que, a princípio, não te- nham sido muito eficazes. O aícance simbólico c jurídico dessas leis nem por isso se faz menos considerável, visto que marcam a primeira guinada de um direito liberal rumo a ura direito social (F. EwaJd). Isso significa que a infância é, por excelência, uma daquelas zonas limítrofes onde o público e o privado sc tocam e se defrontam, muitas vezes de maneira violenta. Objeto de disputa de poderes, a infância também é lugar de sabe- res, que sc desenvolvem sobretudo no último terço do século XtX, com o esforço conjunto da medicina, da psicologia e do direito. Esses saberes surtem efeitos contraditórios. Produtores dc controle, também geram co- nhecimentos que convertem nossa infância num mistério insondável. Na França, país que apresenta uma prematura restrição dos nasci- mentos c um precoce conhecimento dos "segredos funestos" (Moheau, final do século XVIIí), o filho certamente não é "programado" — os*meios não o permitem —, mas já é limitado;' o índtcc de natalidade sofre uma redução constante, passando de 3,29% em 1800 para 1,9% cm 1910, e o tormento dos demógrafos vem a transformar o nascimento, ato privado, em natalidade, assunto de Estado^ Portanto, a existência de um filho, con- forme os meios e as regiões, é em parte relativamente voluntária. Segun- do H. Le Brás e E. Todd, a explicação das disparidades reside na vontade dos pais atuando dentro das estruturas familiares. Os fatores ideológicos habitualmente privilegiados se inserem nesses moldes prévios. Em 1861, surgem claramente três centros de baixa natalidade: Normandia, Aquitâ- nia, Champagne, mas com diferenças internas — a Aquitânia apresenta um índice bastante generalizado de um a dois filhos por família; a Nor- mandia, pelo contrário, mostra comportamentos extremos, com índices anormais de casais voluntariamente estéreis (em Orne, por exemplo) e re- cordistas em fecundidade (nove filhos ou mais depois de 23 anos dc casa- mento): os autores chegam a falar cm "comportamentos neuróticos"! ' / O súbito crescimento dos filhos ilegítimos, entendido por Edward FIGURAS E PAPÉIS Í.J7 Shoricr como indicador de uma liberação sexual, confundiu um pouco o quadro: Esse aumento, ao que parece, possui significados bastante di- versos. Nossos autores opõem o Norte e o Leste, onde há uma importante proporção de perftlhamento através do matrimônio, ao Sul mediterrâneo, ende o homem reconhece a c í Í à i i ^ a e m í - ^ í a mãe. No primeiro caso, hã uma maior igualdade entre os sexos e uma maior liberdade das mulheres; no segundo, predomina a força coercitiva da linhagem. E-nos impossível avançar mais nos meandros da demografia históri- ca, salvo para lembrar sua complexidade, ao nível tanto da simples cons- tatação quanto da interpretação.' 'A história secreta da fecundídade'' (H. Le Brás) borbulha de teorias, que oscilam entre todos os tipos de deter- minismos — social, biológico, ideológico (no qual se incluem habitual- mente os "males" do individualismo que se exprimiria no feminismo ape- nas como um caso particular exacerbado) — antes de analisar o nascimento como fruto da ' 'decisão'' de um casal. O leito abriga o que há de mais secreto no sexo e no coração. Não ad- mira que ele nos escape, quando ao mistério da mais profunda intimida- de somam-se a opacidade do tempo e o mutismo dos atores e de seus des- cendentes. Um oceano de silêncio envolve o essencial da vida: a concepção de seres que quase sempre ignoram o acaso ou o desejo a que devem seu nascimento, sem que se possa traçar uma oposição radical entre ambos. A primavera numa casinha de periferia í rude para uma família quase numerosa, onde o caçula é rei. (Coleção Simi-Angel.) W OSWORES Presença marcante dos homens — o mando, o médico — na sala de parto, templo privado do nascimento", recolhimento à família estrita e ao ninho dólar. O parto na clínica só se generalizam depois da Segunda Guerra Mundial: em 1880, apenas os pobres ou bastardos nascem no hospital. [VictorLecomte, Nascimento. Nantes, Museu de Belos Artes.) A gravidez deliberada, que apresenta avanços estatísticos inversamente proporcionais à diminuição da idade por ocasião do casamento, deriva in- dubitavelmente da tomada dc consciência da criança e de tudo o que cia implica, notadamente no que diz respeito à sua educação. Recebendo maiores cuidados e atenções, objeto de mais amor, a criança se toma mais rara./Os meios desse engravidamento voluntário permanecem obscuros para nós. Alguns conhecem apenas a prática da abstinência; para evitar a fecundação, as mulheres "sc abstêm do gozo". O coito interrompido deixa a iniciativa ao marido, encarregado de "prestar atenção". Nos meios abastados, usam-se preferencialmente os métodos ingleses ou as práticas clandestinamente aprendidas nos bordéis, lavagens que implicam o uso de água e garantirão o sucesso dos bidês — sucesso tardio, segundo J. P. Goubert, e restrito pelo decoro.' Empenhados em ensinar a concepção vo- luntária aos proletários e âs mulheres — ' 'Mulher, aprende a ser mãe ape- nas quando quiseres" {1906} —, os neomalthusianos libertários do co- meço do século esforçam-se em divulgar preservativos e esponjas absor- bit-, é freqüente, porém, que sua propaganda se depare com a repugnância das mulheres, postas frente a exigências impossíveis e talvez chocadas com tal intromissão em seus assuntos^Em caso de "desgraça", muitas prefe- rem, no final das contas, recorrer ao aborto. Praticado por um número crescente, sobretudo nas cidades, de mulheres casadas e muitíparas, o abor- to parece ter sido empregado, na virada doí-século, como uma forma de conttacepção. Será o caso de ver aí, como faz A. MacLaren, a expressão de um feminismo popular? Quando menos, é a expressão da vontade dc mulheres que recusam não só um filho indesejado, como também os hor- rores do infanticídio. Este, depois de apresentar uma grande freqüência na primeira metade do século XIX e sofrer uma forte repressão sob o Se- gundo Império (com ate mil processos judiciais por ano), passa a. dimi- nuir, conservando-se como apanágio das moças sem ninguém no mundo, criadas rurais ou empregadinhas de lares parisienses acuadas pela vergo- nha de um nascimento ilegítimo./ Isso significa que, a despeito dos avanços da gravidez deliberada no século XIX, a escassez dos meios anticoncepcionais abre um enorme es- paço ao "acidente". "Cairprenhe" e "estar em embaraço" são expres- sões populares de uma gravidez que não vem necessariamente acompa- nhada por um grande coro de alegria. Significa ainda a sorte aleatória dos filhos indesejados, eliminados, abandonados ou simplesmente acei- tos como uma fatalidade no seio das famílias. / N o entanto, o desejo de ter filhos também sc exprime com grande in- tensidade, não somente por razões de linhagem ou de papel, mas ainda por vontade pessoal: da pane das mulheres, que se encontram justificadas na ma- ternidade, e inclusive da parte dos homens. "Uma mulher sem fiihos é uma monstruosidade", são as palavras que Balzac põe na boca de Inuise, prota- gonista.das Mémoires de deuxjeunes Tmriêer.; "somos feitas apenas para ser mães"i Dez meses depois de se casar, Caroline Brame-Orville se mostra FIGURAS E PAPÉJS ]}] desolada em seu diário íntima '' Meu grande pesar é não ter um baby, que eu tanto amaria e que me faria aceitar a vida séria que levo'' (1 ? de janeiro de 1868). Ela fará de tudo para engravidar: tratamentos médicos, tempo- rada de cura em Spa, visita ao papa. e e â benção papal que ela finalmente atribui, catorze anos depois, o nascimento de umamenina que, por isso, receberá o nome de Marie-Pie. Gustave de Beaumont comenta com Toc- queville a gravidez de sua mulher, que o ocupa tanto a ponto de retardar a redação de seu livro, hesitando entre a piedade pelos sofrimentos da es- posa e o desejo de ser pai: "Há muitos momentos cm que, por considera- ção pela pobre mãe, eu, se pudesse, mandaria a criança a todos os diabos [...]. Nem por isso deixo de considerar como uma felicidade o acontecimento que aguardo, e nosso desejo ardente de que partilheis dessa mesma sorte é o tema constante de nossas conversas e nossas esperanças'' (10 de juoho de 1838). Ao lado, ou junto, de um sentimento materno cm expansão, exprime-se um sentimento de paternidade, inclusive por esse baby tão pró- ximo de um simples feto, que demora a assumir forma humana. , Mas o desejo de ter filhos não chega ao ponto de incluir a adoção, tão enraizada se mantém a idéia de filiação pelo sangue. Apesar das pri- meiras instituições esboçadas no Segundo Império, as transformações nesse âmbito são muito lentas, principalmente no que se refere à transmissão do sobrenome./ ' O nascimento é um ato rigorosamente privado e feminino, inclusive enquanto objeto de relato e de memória, tema incansável das conversas entre mulheres. O aposento comum, ou no máximo o quarto do casal, é o teatro em que ele se desenrola, do qual estão excluídos os homens, à ressalva do médico, que, com a medicaüzação do parto, passa a ser uma presença cada vez mais assídua à cabeceira da clientela abastada/Porém, por uma questão de diferença nos preços, e também pela tradição^ pelo puduf, as pAUtiiao continuam ocupando uma posição dominante, embo- ta em declínio. Dar a luz no hospital é sinal de pobreza, e principalmen- te de vergonha e solidão; para lã vão as mães solteiras, que se dirigem à cidade para dar à luz, antes de sofrerem um eventual abandono.; No Oeste, Sudoeste e Centro, "a rejeição do filho natural leva a mãe ao hos- pital", como mostram os mapas estabelecidos por H. te Brás e E. Todd (p. 168). Só se efetivará uma mudança no entreguerras, e mesmo assim tímida, a princípio em Paris e nos meios mais evoluídos, preocupados em evitar um índice de natimortos dos mais altos da Europa. Para a mãe e o filho, o nascimento continua a ser uma provação muitas vezes dramática. O registro no cartório, essa atribuição do sobrenome que, para Kant, constitui o verdadeiro nascimento, cabe, por sua vez, ao pai. Ingressando na vida, a criança a seguir ingressa na família e na sociedade. I Dessa terra de ninguém, desse terreno baldio um tanto assexuado e invertebrado da infância, destacam-se gradualmente três figuras — três mo- mentos — tidas como estratégicas: o adolescente, o menino de oito anos e o bebê. O primeiro, na idade crítica da puberdade e da identidade se- xual, desperta uma maior preocupação e vigilância: voltaremos a isso. O segundo, tido no limiar da idade da razão, atrai a atenção dos legislado- res, médicos e moralistas (Jules Simons, Uouvrier de huit ans [O operário dc oito anosj). O bebe, que até os anos 1860-1880 era chamado, à ingle- sa, de baby, emerge muito mais lentamente dos cueiros do Menino Jesus, mesmy tendo as classes dominantes descoberto o seio materno no século XVHUSob este aspecto, aliás, o século XIX é paradoxal: o uso de amas- de-leite atinge o ápice e o abandono dos filhos quebra recordes. No en- tanto, no final do século surge uma nova ciência: a puericultura. -^Apesar dc lenta, nem por isso a tomada de consciência do bebê é menos constante. Renée de L'Estoril (Mémoires de deux jeunes mariées), mãe prestimosa que sc recusa a enfaixar seu baby (sic) e recorre aos cuida- dos de uma nurse inglesa, desempenha o papel dc pioneira. No final do século XIX, toda boa mãe sc ocupa efetivamente de seu bebê, que agora é uma autêntica personagem, cumulada de apelidos carinhosos. Jenny e Laura Marx, mães fecundas e, apesar de todos os seus cuidados, enluta- das, relatam a Karl todos os prodígios dc seus filhotes. E a maioria das correspondências burguesas apresenta um certo tora de nursery rhymes. Caroline Brame-Orvillc mantém um registro diário do despontar de sua pequena Marie, tanto e tão longamente desejada. Berthc Morisot oferece a tradução pictórica dessa contemplação do berço. Este, porém, conserva uma conotação dc vida orgânica, reservado i intimidade. Flaubert ri às gargalhadas ao ver um berço num palco de teatro./Vesmo os pais mais atentos não dedicam mais que um olhar distraído a seus bebês/.Gustavc de Beaumont passa a se interessar realmente pelo filho quando este co- meça a andar; iniciação viril: "Agora ele vai à caça comigo, com uma es- pingarda de madeira". Èm todos os meios sociais, a primeira infância é um assunto femini- no e feminflizado: os menino* e meninas usam camisolões e cabelos com - pridos até os três ou quatro anos de idade, e muitas vezes até por mais tempo, brincando nas saias da mãe ou de uma empregada. O quarto das crianças na França é uma invenção tardia; Viollet-lc-Duc projeta um deles para sua casa de 1873,' 'pois é preciso prever tudo". 'Os brinquedos das crianças sc encontram um pouco por todas as partes — até nos quadros dos pintores —, com um gosto especial pela cozinha. Na cidade, o brinquedo se torna um objeto de consumo corrente, um produto industrial com seções pró- prias nos grandes magazines; no campo, é ignorado; nos meios populares, são os próprios pais que o fazem, com seus riscos e perigos: o pequeno Vingtras-Vallcs iria se lembrar por muito tempo do carrinho que seu pai entalhou para ele num pedaço de pinho, e com o qual se machucou: o que valeu ao menino uma surra da mãe, castigo ao filho ' 'mimado'' e ao pai complacente demais. As bonecas, relativamente assexuadas 00 começo do século, ocupam um lugar importante no universo infantil, servindo mais como simulacros sujeitos a destruição do que como objetos de carinho, peor- ge Sand dedicou páginas brilhantes à lembrança de suas bonecas/ 134 OS ATORES Entre dois pontos de um bordado, tomar a lição e ensinar a costurar roupinhas para a boneca fazem parte dos deveres de uma boa mãe, empenhada em reproduzir nas filhas a sucessão das tarefas e papéis. Cômoda de estilo, lâmpada com tecido, fotos de família. (Paul Thomas, A boa educação, 1896. Paris, Biblioteca Nacional.) '. Pouquíssimo institucionalizada, a educação em seus primeiros pas- sos cabe às mães, inclusive a alfabetização pelo método Jacotot, Elas sc dedicam a essa tarefa com um empenho proporcional à valorização do lugar da criança, daí derivando para elas mesmas uma grande vontade dc sc instruir. Aurore Dudevam chega ao feminismo através do amor ma- terno: "Por muito tempo eu disse a mim mesma que os conhecimentos profundos eram inúteis para nosso sexo, que devíamos buscar a virtude e não o saber nas letras, que preenchíamos nossa finalidade quando o es- tudo do bem nos tornava boas e sensíveis, e que, pelo contrário, quando da ciência não retirávamoso bem, rornávamo-nos pedantes, ridículas, rendo perdido todas as qualidades que nos fazem amadas.{'Continuo a acreditar que meu princípio era bom. Mas ,reçeio. tê-lo.seguido de maneira dema- siado literal. Hoje penso que tenhò um filho, que deverá ser preparado com meus cuidados para a educação mais ampla que receberá ao sair da infância. Essa primeira educação, devo estar em condições de oferecê-la e quero me preparar para isso" (carta a Zoé Leroy, 21 de dezembro dc 1825). Ela passa a procurar fervorosamente um bom método de leitura. í Com a idade, fazem-se sentir as diferenciações sociais e sexuais das educações. Os pais entram em cena, pelo menos para os filhos, às vezes desempenhando o papel dc preceptores nos meios burgueses, de mestres de aprendizagem ou chefes de equipe nas famílias operárias. A aten- ção que consagram às filhas é menor, exceto
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