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Condição indispensável para que se possa ter consciência do que efetivamente se está a fazer ou a aprender quando nas ciências sociais ou noutras ciências se faz investigação ou muito simplesmente se estuda o que uma dada ciência nos diz: Todo o conhecimento, por mais empírico que se afigure, é de facto abstração e construção. Afirmação que contradiz uma das primeiras evidências do senso comum. Conhecer não é sinónimo de reconhecer. Para o senso comum é evidente que conhecemos – e de uma forma extremamente concreta – pessoas, objetos, lugares, as mais diversas coisas. Senso comum chama conhecer ao que é normalmente saber reconhecer; saber identificar. Saber reconhecer concretamente algo ou alguém pressupõe duas condições: 1- a que disponhamos acerca do que sabemos reconhecer, de uma informação que diretamente lhe respeite; 2- por outro que haja alguma forma de relação entre aquilo ou aqueles que reconhecemos e nos próprios (o que se nos apresenta como absolutamente estranho -ou seja como totalmente desprovido de relação connosco- apresenta-se-nos ao mesmo tempo como irreconhecível (desconhecido para o senso comum) e não tem para nós qualquer significado. 1- o conteúdo das informações de que dispomos acerca dos objetos que reconhecemos (pessoas, coisas, acontecimentos) não é constituído por propriedades intrínsecas – ou por cópias fiéis de propriedades intrínsecas – dos próprios objetos. É formado por características e significados que a esses objetos atribuímos, através dos nossos mecanismos de perceção. Estes mecanismos não são passivos, nem puramente sensoriais, como vulgarmente se supõe: não consistem em meros processos de registo no nosso cérebro, de mensagens emitidas pelos objetos e diretamente captadas sem quaisquer interferências, pelos nossos sentidos. A psicologia confirma que perceção não é de todo “imaculada”, pois que os seus mecanismos, em que a inteligência ativamente intervém se traduzem em complexas operações seletivas, esquematizadoras, organizativas e interpretadoras das estimulações que os sentidos recebem dos objetos Através destes mecanismos, os objetos, o mundo, a realidade são apercebidos, não direta e totalmente, mas com configurações e significações que adquirem no interior de um determinado quadro logico de categorias percetivas, a que pode chamar-se um código de leitura do real Os Códigos de Leitura variam consoante as posições que os indivíduos e os grupos ocupam na estrutura social. Assim, mesmo o conhecimento concreto que tenhamos de alguém inclui forçosamente esquematismo e abstração (visível na forma como os situamos em certas categorias abstratas de classificação tais como bonito, feio, estupido, culto, hipócrita, agressivo etc…) 2- Não é possível reconhecer o que se nos apresenta como totalmente desprovido de relação connosco e não pode haver relação significativa entre os agentes sociais ou destes com quaisquer ações, objetos ou situações, sem que os agentes sociais saibam de algum modo reconhecer-se uns aos outros e reconhecer esses objetos, situações e acões (ex. sala de aula; agentes profs; alunos) Estes atos de reconhecimento são, de facto, elementos constitutivos das próprias relações sociais: sem eles a vida social não seria possível. Permitem que estes adquiram, na perceção que deles temos, significados reconhecíveis que, por sua vez, nos tornam possível aperceber, reconhecendo-a, a nossa própria relação social com eles. É recorrendo a essas categorias, mediante as quais o social se nos oferece como familiar que o senso comum e as ideologias produzem acerca dele explicações: são esquemáticas e abstratas, mas simples e de um extremo esquematismo inconsciente onde os fatores explicativos - causas – aparecem em número muito restrito e nbão raramente reconduzidos a um só. No entanto enunciam-se a si mesmas como concretas, como expressão de um conhecimento imediato do real (ignoram mecanismos de perceção) Confundem pois o real com o apercebido, com o aparente. São explicações ilusórias e iludidas, o que aliás não exclui que sejam úteis, que servem fins práticos e conter até conhecimento não ilusório. Mas supõem, de facto, uma ilusão: a da transparência do real, a de que o real se deixa, direta e facilmente, ver e explicar. Conhecimento vulgar opõe-se ao esforço científico de procurar atingir o conhecimento do real que as aparências ocultam: a ciência é, na verdade, sempre ciência do escondido, do que se não deixa ver e explicar imediatamente Porém, tal como o trabalho do senso comum ou da ideologia, também o trabalho científico procede, mas conscientemente, por abstração. Ciência elabora esquemas e mapas de esquemas – compostos por conceitos (categorias), relações entre conceitos, hipóteses, leis, teorias -, os quais servem, por sua vez, como instrumentos para enunciar, acerca de realidades concretas, interpretações que, baseando-se em esquemas, não podem, elas próprias, deixar de ser esquemáticas, ou seja, seletivas, abstratas. Jamais as interpretações científicas se podem dar por descrições/explicações exaustivas, totais, das realidades que interpretam , mas apenas por tentativas de reconstrução conceptual (esquemáticas) de estruturas e processos objetivos do real, da sua génese, das suas determinações, dos seus efeitos. Todo o conhecimento é construído, mas a construção do conhecimento científico implica rutura com as construções do conhecimento vulgar. Conhecimento vulgar também é construído; mas é uma construção que se desconhece como tal A elaboração de construções científicas implica rutura com as construções do conhecimento vulgar. Se a rutura com as categorias, evidencias e explicações vulgares não ocorre, não é de todo possível abrir espaço para novas construções O conhecimento vulgar, enquanto não é recusado como traduzindo direta e fielmente a realidade, continua a impor ao pensamento, não só as suas categorias explícitas, como também as interrogações escondidas, os problemas implícitos, que estão na sua origem. Ora os problemas, as interrogações, as necessidades de resposta a que o conhecimento vulgar responde e corresponde não são os do conhecimento propriamente dito, mas os do reconhecimento e da prática social. Não se trata de apenas pôr em dúvida, para construir a ciência, o que o senso comum ou a ideologia explicitamente afirmam como evidente; Não se trata apenas de ir verificar, por métodos científicos, se as descrições/interpretações que o conhecimento vulgar os oferece do social são corretas ou incorretas, cientificamente válidas ou não. A rutura opera-se efetivamente ao nível das questões - não ao das respostas, das descrições/interpretações – que centralmente se situa. A rutura opera-se enunciando novas interrogações, instaurando novas problemáticas, através das quais o que precisamente fica posto em causa é a forma como, nas operações produtoras do conhecimento vulgar, o real e interrogado. O que de facto se começa a subverter para a ciência se construir são as perguntas e não as respostas do senso comum e da ideologia. Nunes, A Sedas (1981), Sobre o Problema do Conhecimento nas Ciências Sociais: materiais de uma experiência pedagógica, Lisboa: Instituto de Ciências Sociais. Lima, Augusto Mesquitela (1980), Introdução à Sociologia, Lisboa: Editorial Presença
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