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Ano I – vol. I – n º. 6 – setembro de 2001 – Salvador – BA – Brasil OS VÍCIOS DO ATO ADMINISTRATIVO E SUA INVALIDAÇÃO NAS LEIS DE PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO Profa.Lucéia Martins Soares Mestranda em Direito Administrativo da PUC/SP. Superintendente da Sociedade Brasileira de Direito Público. Associada de Sundfeld Advogados S/C. I - Introdução O estudo do Direito Administrativo é uma ciência recente. Embora não possua uma teoria geral tão extensa e tão profunda quanto a que dispõe sobre o Direito Privado, pode-se dizer que nas últimas décadas a ciência do Direito Administrativo vem se firmando por meio de construções teóricas sólidas e relevantes. Uma das primeiras a ser ressaltada, e que marcou o fim do Estado Polícia, foi a idéia de ato administrativo, isto é, a noção de que entre a lei e a operação material da Administração deve existir uma declaração prévia de vontade, submetida a uma forma determinada, afirmando que um caso individual encontra-se subsumido a uma regra de direito e que a Administração fará valer a norma sobre ele.1 Referida noção se traduziu, sem dúvida, num importante marco para o controle da atividade administrativa. 1 Para um aprofundamento histórico sobre o surgimento da noção de ato administrativo e suas conseqüências vide Michel Stassinopoulos, L’origine et la signification de l’acte administratif dans l’état de droit, em Traité des Actes Administratifs, Paris, Librairie Générale de Droit et de Jurisprudence, 1973, pp. 22-24. 2 Com o passar dos tempos, e sobretudo com as transformações do papel do Estado, os doutrinadores se aperceberam que não basta controlar a atividade final da Administração, mas sobretudo a forma pela qual aquele resultado é alcançado. Em outras palavras: a tão só regularidade do ato administrativo final seria condição necessária mas não suficiente de sua validade, já que neste conceito estaria também contida a necessidade de atendimento a determinados requisitos procedimentais anteriores. É neste sentido que a doutrina conseguiu chegar a um denominador comum para o conceito de procedimento, segundo a qual este consiste numa “sucessão itinerária e encadeada de atos administrativos que tendem, todos, a um resultado final e conclusivo”.2 Embora um ou outro autor agregue ao conceito outros elementos3, todos concordam em que o procedimento conduz, como objetivo final, à enunciação de um ato administrativo. A importância destes dois institutos (ato e procedimento administrativo) é nítida. Permitem um maior controle da atividade administrativa, assegurando, em contrapartida, os direitos dos administrados frente às prerrogativas públicas. E não é só em relação aos administrados que se verificam seus benefícios. Por meio deles a Administração Pública se protege de seus próprios agentes, perquirindo de forma mais transparente a efetivação do interesse público, que é seu interesse primário. Em excelente trabalho acerca da importância do procedimento administrativo, Carlos Ari Sundfeld bem sintetizou o papel do ato e do procedimento na Administração Pública: “A vontade da Administração é a vontade da lei concretizada. Mas ocorre que, entre a lei e o ato administrativo existe um longo percurso. Aquela não se transforma automaticamente neste: um trâmite lógico e real se interpõe. É justamente este concretizar-se que precisamos conhecer, regular e controlar. Para essa missão, o estudo do ato administrativo parece impotente, porque este é uma categoria estática, pouco ampla para captar uma realidade dinâmica, feita de puro movimento. Façamo- nos entender: não se nega a possibilidade de controle do desempenho das funções legislativa, judicial e administrativa examinando-se o conteúdo da lei, da sentença e do ato administrativo. A lei pode violar um direito assegurado e ser, por isso, fulminada. A sentença que erradamente interpreta a lei será revisada na instância superior. O ato administrativo sem motivo legal sujeita-se à posterior invalidação. Enfim, o exame a posteriori das três espécies de normas, enquanto categorias, fornece alguma fiscalização do exercício do 2 Celso Antônio Bandeira de Mello, Curso de Direito Administrativo, 11.ª ed., São Paulo, Malheiros, 1999, p. 348. 3 Interessante ressaltar o trabalho de Mônica Martins Toscano sobre o tema, no qual sustenta ser o procedimento o “conjunto de atos e fatos jurídicos que, observando uma sucessão ordenada e conservando sua individualidade, encaminham-se à produção de determinado ato administrativo, com vistas sempre à satisfação do interesse público.”. Salienta, ao justificar o conceito, que não só os atos da Administração constituem o procedimento, como também os produzidos pelos particulares e os fatos jurídicos. Isto porque um dos seus objetivos principais é o de possibilitar a participação do administrado na formação da vontade administrativa. (O ato administrativo e seus requisitos procedimentais, Revista Trimestral de Direito Público v. 18, São Paulo, Malheiros, 1997, pp. 211-212). 3 poder. Não obstante, a sentença se liga a um processo judicial, a lei a um processo legislativo e é desta soma que advém o controle completo. A noção de processo é que permite captar e submeter a controle o dinamismo do desempenho dessas funções. A criação da lei e da sentença depende de um processo regulado e é ele que permite a interferência do indivíduo no estágio de criação, anterior ao surgimento da norma. Nossa hipótese de trabalho é que o procedimento administrativo cumpre igual papel em relação ao ato da Administração.”4 Embora a doutrina brasileira, em uma singela parte, venha apontando para a importância do procedimento administrativo, o Brasil não dispunha, até dezembro de 1998, de uma lei específica sobre o tema, seja no âmbito federal ou estadual. Toda a atividade pública, até então, baseou-se principalmente nas lições doutrinárias acerca do assunto. Apenas alguns temas importantes eram tratados por leis procedimentais específicas, tais como: desapropriação, licitação, servidores. Por esta razão, talvez, farta é a construção teórica que regulamenta o agir da Administração, especificando, inclusive, os princípios do procedimento administrativo. Para exemplificar, vale citar o trabalho monográfico de Mônica Martins Toscano, que elencou, como princípios a regular o procedimento administrativo, os seguintes: princípio da legalidade, princípio do devido processo legal, princípio do contraditório e ampla defesa, direito de ser notificado, direito de acesso aos autos, direito de ser ouvido, direito de produzir provas, direito de recorrer, princípio da motivação, princípio da publicidade, princípio da impessoalidade, princípio da oficialidade, princípio da verdade material, princípio do informalismo e princípio da gratuidade.5-6 Todo este delineamento teórico, repita-se, não adveio de uma legislação específica, mas sobretudo da interpretação dos princípios contidos na Constituição Federal de 1988. Por esta razão, revelou-se de grande importância a edição recente, no Brasil, de duas leis que regulamentam o procedimento administrativo, uma de âmbito federal e outra de aplicação no Estado de São Paulo. 4 A importância do procedimento administrativo, Revista de Direito Público n.º 84, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1987, pp. 65-66. 5 O ato administrativo e seus requisitos procedimentais, pp.216 e ss. 6 Sobre este tema v. também Dinorá Adelaide Musetti Grotti, Devido processo legal e o procedimento administrativo, Revista Trimestral de Direito Público n.º 18, São Paulo, Malheiros,1997, pp. 34 e ss. e Carmen Lúcia Antunes Rocha, Princípios constitucionais do processo administrativo no direito brasileiro, Revista Trimestral de Direito Público n.º 17, São Paulo, Malheiros, 1997, pp. 5 e ss. No direito positivo o tema também já foi tratado. Assim é que a Constituição do Estado de São Paulo faz expressa menção aos requisitos do procedimento administrativo: “Art. 4.º - Nos procedimentos administrativos, qualquer que seja o objeto, observar-se- ão, entre outros requisitos de validade, a igualdade entre os administrados e o devido processo legal, especialmente quanto à exigência da publicidade, do contraditório, da ampla defesa e do despacho ou decisão motivados.”. 4 As duas legislações são bastante distintas tanto na sua forma, quanto no seu conteúdo. Apesar de ambas demonstrarem a nítida preocupação de verem assegurados, pelo menos no âmbito normativo, os direitos dos administrados e enfatizados os princípios constitucionais da Administração Pública, a forma pela qual buscaram atingir este fim é inegavelmente destoante. Os meios colocados à disposição do administrado também não são semelhantes. Como já mencionado acima, só a análise da formação da vontade administrativa e de seu resultado final permite um controle presumidamente completo da Administração. O exame desses dois elementos possibilita constatar a regularidade administrativa em seu papel dinâmico e estático. Por isso, considerando-se o surgimento de duas legislações que versam sobre o procedimento administrativo no Brasil, importa no momento averiguar qual o tratamento que estes diplomas legais conferiram ao ato administrativo. Vale ressaltar que, também em relação ao ato, a doutrina brasileira fornece um arsenal de tratados, livros, artigos e monografias. No entanto, intenta-se no presente trabalho debruçar-se sobre o direito positivo, a fim de perquirir qual o regime jurídico dos atos administrativos nos textos legais. A construção doutrinária sobre o tema, por óbvio, não será descartada, eis que se revelará em importante paradigma de comparação e críticas. Numa primeira parte, este trabalho irá se deter apenas nos aspectos dos vícios do ato administrativo. Considerando-se a preocupação inicial em demonstrar o papel do ato e do procedimento como vias assecuratórias dos direitos dos administrados, o exame do ato nas citadas leis se voltará nesta primeira parte para a análise dos requisitos de validade do ato. É que só a partir disto se torna possível a análise da legalidade do ato administrativo, e bem assim do seu controle.7 Em outras palavras: procura-se demonstrar quais elementos foram eleitos pela norma, cuja ausência ela tomou como fato relevante a ensejar a invalidação do ato administrativo. Na segunda parte, em conseqüência, será analisado o tratamento dado pelas duas legislações à 7 André Gonçalves Pereira acentuou a importância do estudo dos elementos do ato administrativo em interessante passagem: “Assim a competência, a forma, etc. são elementos componentes do acto — se eles faltam não há um acto administrativo, ou não há um acto administrativo válido — e é possível individualizar mentalmente cada um destes elementos, fazendo o que FRAGOLA chamou ‘anatomia do acto’.”. E complementa em seguida: “Aliás, o escopo prático do estudo dos elementos do acto administrativo é o de permitir a descrição dos vícios do acto, isto é, a ‘anatomia’ é um ponto de passagem indispensável para a ‘patologia’ do acto.”. (Erro e ilegalidade do ato administrativo, Lisboa, Ática, 1962, p. 106). Outra, porém, é a concepção de Afonso Rodrigues Queiró, para quem a divisão do ato administrativo em elementos não traz qualquer benefício para o exame do ato: “E já vimos que estes fatos, a competência e os fins ou atribuições da administração são essencialmente uma e a mesma coisa. São formas ou modos de ser duma mesma realidade, ou dum mesmo conceito jurídico que se costuma dividir e subdividir, quase se diria para obscurecer obstinadamente os problemas do direito administrativo. E diga-se entre parênteses que é por isso que se pode constatar hoje que toda a clássica teoria da estrutura do ato administrativo, que distingue nestas fases ou momentos diversos, tal como foi elaborada pela doutrina sobretudo francesa em face da jurisprudência do Conselho do Estado, está em crise.”. (A teoria do “desvio de poder” em direito administrativo, Revista de Direito Administrativo vol. VI, Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 1946, p. 54). 5 invalidação do ato administrativo justamente para efetivar aquele controle. Examinadas as situações que tornam o ato viciado, passar-se-á a analisar como as duas legislações previram sua fulminação ou mesmo sua conservação no sistema jurídico. Em relação à primeira parte do trabalho vale lembrar que, na medida em que a teoria do ato administrativo representa um importante meio de contenção do autoritarismo estatal, a doutrina, tanto estrangeira quanto nacional, se debruçou de forma extensiva sobre o assunto, porém não alcançou uma uniformidade. Não existe uma opinião uníssona acerca de quais sejam os elementos do ato administrativo garantidores de sua validade, tampouco de seus específicos conteúdos. É por esta razão que alguns doutrinadores denominam causa o que para outros convém chamar de motivo; uns chamam de objeto o que para outros representa o conteúdo; alguns enumeram a competência e outros a chamam de sujeito; há quem ainda enumere entre os elementos do ato, ao contrário de muitos, a vontade.8 Pode-se afirmar, entretanto, que a doutrina geralmente se refere a cinco elementos do ato administrativo, embora nem sempre com o mesmo tratamento terminológico: sujeito, forma, objeto, motivo e finalidade.9 Em síntese, sujeito é o autor do ato; forma o revestimento externo do ato; objeto o conteúdo do ato, sua disposição jurídica; motivo a situação de fato que determina ou autoriza a realização do ato administrativo; e finalidade o objetivo de interesse público que deve atingir.10 Esta divergência doutrinária, porém, não trará empecilhos à proposta deste trabalho, pelo contrário. Com os equívocos e contradições nela existentes será possível examinar em que medida as legislações foram precisas e coerentes na escolha daqueles elementos como garantidores de validade, bem como na fixação da sanção quando constatada sua ausência. Ademais, a partir da análise das duas leis de procedimento administrativo recentemente editadas, será possível também analisar em que medida a construção doutrinária influenciou, negativa ou positivamente, a elaboração legislativa. E mais: considerando-se a abrangência daquela construção teórica, a partir dela nos será permitido analisar se as respectivas 8 André Gonçalves Pereira é um dos autores que rechaçam categoricamente a vontade como elemento do ato administrativo. (Ob. cit., p. 106). 9 Dentre os autores que adotam esta classificação pode-se mencionar Hely Lopes Meirelles, Direito Administrativo Brasileiro, São Paulo, Malheiros, 21.ª edição, 1996, pp. 134- 137. 10 Totalmente diversa é a classificação feita por Celso Antônio Bandeira de Mello. Este jurista identifica no ato apenas dois elementos, quais sejam o conteúdo e a forma. Os outros componentes, por não serem realidades intrínsecas do ato, constituiriam o que denominou de pressupostos do ato, os quais, por sua vez, distinguir-se-iam em pressupostos de existência e pressupostos de validade. Os pressupostos de existência seriam o objeto e a pertinência do ato ao exercício da função administrativa. Os pressupostos de validade seriam o sujeito, os pressupostos objetivos (motivo e requisitos procedimentais), finalidade,causa e formalização. A vontade, para este autor, não seria nem elemento, nem pressuposto do ato. (Curso de Direito Administrativo, pp. 276-277). 6 legislações viabilizam ou não um efetivo e completo controle da atividade administrativa. II - Os vícios do ato nas leis de procedimento 1. A lei paulista de procedimento administrativo 1.1. Panorama geral A Lei de procedimento administrativo do Estado de São Paulo data de 30 de dezembro de 1998. Percebe-se de sua leitura que esta lei teve grande preocupação em trazer soluções para grandes problemas costumeiros da Administração Pública. Não se contentou apenas em elencar os princípios da Administração Pública em seu art. 4.º (agregando expressamente os princípios da razoabilidade, finalidade, interesse público e motivação dos atos aos já mencionados na Constituição Federal em seu art. 37, caput) ou os princípios do próprio procedimento administrativo.11 Tratou de tentar viabilizar o real acesso do administrado, tanto na formação do ato, quanto na sua impugnação. Assim é que colocou à sua disposição vários instrumentos e formas de participação e, principalmente, de elaboração de defesa e produção de provas. E não é só, buscou também regular minuciosamente todas as fases e prazos do procedimento administrativo para que os administrados deixem de ficar à mercê da Administração em suas não muito céleres prestações (no Brasil, infelizmente, todos estamos acostumados a acreditar que qualquer procedimento administrativo não tem data, nem ano certo para terminar).12 11 Diz seu art. 22: “Nos procedimentos administrativos observar-se-ão, entre outros requisitos de validade, a igualdade entre os administrados e o devido processo legal, especialmente quanto à exigência de publicidade, do contraditório, da ampla defesa e, quando for o caso, do despacho ou decisão motivados. § 1.º Para atendimento dos princípios previstos neste artigo, serão assegurados às partes o direito de emitir manifestação, de oferecer provas e acompanhar sua produção, de obter vista e de recorrer. § 2.º Somente poderão ser recusadas, mediante decisão fundamentada, as provas propostas pelos interessados quando sejam ilícitas, impertinentes, desnecessárias ou protelatórias.”. 12 Fundamental assinalar que a lei paulista deu expresso tratamento ao que a doutrina, em uma grande parte, convencionou chamar de silêncio administrativo. Infelizmente, não nos causa mais estranheza constatar um comportamento omissivo da Administração quando tem o dever de se pronunciar. A discussão doutrinária acerca do tema gira principalmente em torno dos efeitos que adviriam deste silêncio, sempre com o fim de tentar evitar qualquer lesão a um direito do administrado. Por isso se faz relevante ressaltar que a lei paulista, em seu art. 33, conferiu efeitos à inação. Diz o artigo: “O prazo máximo para decisão de requerimentos de qualquer espécie apresentados à Administração será de 120 (cento e vinte) dias, se outro não for legalmente estabelecido. § 1.º Ultrapassado o prazo sem decisão, o interessado poderá considerar rejeitado o requerimento na esfera administrativa, salvo previsão legal ou regulamentar em contrário. 7 Ademais, estabeleceu procedimentos administrativos especiais em temas relevantes, como por exemplo, a possibilidade agora instituída de o administrado requerer à própria Administração o ressarcimento por danos causados por agente público. Muitas das garantias lá previstas, caso venham a ser efetivamente aplicadas, representarão um marco importante na evolução do agir da Administração. Mais uma das inovações absolutamente pragmáticas e que garantirá a agilidade do procedimento no âmbito estadual é a regra introduzida com o art. 18, que prescreve um prazo também para aqueles atos da Administração que não dependem de procedimento administrativo prévio para sua produção. Diz este artigo: “Art. 18. Será de 60 (sessenta) dias, se outra não for a determinação legal, o prazo máximo para a prática de atos administrativos isolados, que não exijam procedimento para sua prolação, ou para adoção, pela autoridade pública, de outras providências necessárias à aplicação de lei ou decisão administrativa. Parágrafo único. O prazo fluirá a partir do momento em que, à vista das circunstâncias, tornar-se logicamente possível a produção do ato ou a adoção da medida, permitida prorrogação, quando cabível, mediante proposta justificada.”. Várias foram as novidades previstas pela lei, mas passa-se agora a analisar detalhadamente o Título III de seu texto, o qual se dedica à regulação do ato administrativo. 1.2. Elementos do ato na lei paulista A lei em exame não nos deu expressamente seu conceito de ato administrativo. Não esclareceu se se trata de uma manifestação ou declaração de vontade, nem mesmo o que está incluído neste conceito. Disse logo em seu art. 7.º que “A Administração não iniciará qualquer atuação material relacionada com a esfera jurídica dos particulares sem a prévia expedição do ato administrativo que lhe sirva de fundamento, salvo na hipótese de expressa previsão legal.”. Em várias passagens, no entanto, fornece elementos que nos § 2.º Quando a complexidade da questão envolvida não permitir o atendimento do prazo previsto neste artigo, a autoridade cientificará o interessado das providências até então tomadas, sem prejuízo do disposto no parágrafo anterior.”. § 3.º O disposto no § 1.º deste artigo não desonera a autoridade do dever de apreciar o requerimento. Também o art. 50 conferiu efeitos à inação administrativa: “Art. 50. Ultrapassado, sem decisão, o prazo de 120 (cento e vinte) dias contado do protocolo do recurso que tramite sem efeito suspensivo, o recorrente poderá considerá-lo rejeitado na esfera administrativa. § 1.º No caso do pedido de reconsideração previsto no artigo 42, o prazo para a decisão será de 90 (noventa) dias. § 2.º O disposto neste artigo não desonera a autoridade do dever de apreciar o recurso.”. 8 permite afirmar o que restou positivado como tal, isto é, o que está contido no conceito de ato administrativo. Da leitura dos artigos 14 e 15 pode-se concluir que a lei tratou como ato administrativo os atos de conteúdo normativo, os de caráter geral, bem como os regulamentos. Não se trata de uma enumeração taxativa, eis que a lei não teve por objetivo sequer elencá-los. Menciona-se aqueles atos, porém, eis que a doutrina já travou grandes debates acerca da classificação dos regulamentos e dos atos normativos, pois sustentam alguns autores que estes não disporiam da característica da concretude, inerente aos atos administrativos. A lei dá a entender que este problema não se põe no âmbito estadual. No mais, parece que a lei paulista acolheu conceito desenvolvido pela doutrina no sentido de que o ato administrativo é uma declaração jurídica que produz efeitos de direito, eis que de sua sistematização nota-se que se preocupou em dar regulamentação apenas àqueles atos que viriam a atingir a esfera de direitos dos administrados.13 A lei sequer previu a possibilidade de impugnação daqueles atos desprovidos desta característica.14 Em relação aos elementos do ato, no entanto, a lei paulista foi expressa. Em seu art. 8.º e 9.º elencou expressamente aqueles componentes do ato que, uma vez ausentes, darão ensejo à sua invalidação, conseqüência esta também prevista no caso de violação dos pressupostos legais e regulamentares de sua edição ou dos princípios da Administração (art. 8.º, caput). a)Competência O primeiro elemento está contido no inciso I do art. 8.º. Diz este artigo que o ato administrativo é inválido nos casos de: “I – incompetência da pessoa jurídica, órgão ou agente de que emane;...” Trata-se do elemento tido por alguns autores como o principal, ou mesmo o único. Para a emissão de qualquer ato administrativo se faz necessário, por óbvio, examinar a capacidade, as atribuições e a competência do agente ou órgão emissor. Ademais, deve-se averiguar se, no caso concreto e no momento de expedição do ato, o agente não se encontrava afastado do cargo ou mesmo impedido para a prática do mesmo. A competência advém diretamente da lei, a qual dá seus contornos a fim de evitar a produção de atos fora dos limites dispostos ao agente. Porque proveniente da lei, tem-se que a competência é intransferível e improrrogável, a não ser que a lei disponha expressamente sobre a possibilidade de delegação e avocação. É o caso da lei paulista, que o faz em seu art. 19 e 20. Dizem estes artigos: “Art. 19. Salvo vedação legal, as autoridades superiores poderão 13 Previu o art. 21: “Os atos da Administração serão precedidos do procedimento adequado à sua validade e à proteção dos direitos e interesses dos particulares.”. 14 Diz o artigo 41: “São irrecorríveis, na esfera administrativa, os atos de mero expediente ou preparatórios de decisões.”. 9 delegar a seus subordinados a prática de atos de sua competência ou avocar os de competência destes.” e “Art. 20. São indelegáveis, entre outras hipóteses decorrentes de normas específicas: I – a competência para a edição de atos normativos que regulem direitos e deveres dos administrados; II – as atribuições inerentes ao caráter político da autoridade; III – as atribuições recebidas por delegação, salvo autorização expressa e na forma por ela determinada; IV – a totalidade da competência do órgão; V – as competências essenciais do órgão, que justifiquem sua existência. Parágrafo único. O órgão colegiado não pode delegar suas funções, mas apenas a execução material de suas deliberações.”. Da leitura destes dois artigos nota-se que a lei paulista tentou proibir a delegação daqueles atos substanciais à própria natureza (existência) do órgão ou inerentes à função de determinados agentes. Procurou-se novamente aqui evitar que comportamentos habituais da Administração pudessem prejudicar ou violar direitos assegurados aos administrados. Em relação a este elemento não se visualiza qualquer choque com as construções doutrinárias, as quais, com esta ou outra terminologia (alguns chamam este componente do ato de sujeito) são unânimes em sustentar a existência de vício no ato administrativo quando ausente a competência e, por esta razão, defenderem a invalidação do ato neste caso. b) Forma Prevê também o art. 8.º da lei paulista que o ato será inválido no caso de: “II – omissão de formalidades ou procedimentos essenciais;...” A lei nomeou de formalidades o que muitos, na doutrina, chamam genericamente de forma. Há autores, porém, que diferenciam expressamente os dois termos, por entenderem que a formalidade é uma específica maneira exigida por lei de apresentação do ato. A forma, por sua vez, significaria a exteriorização do ato, o qual poderá receber uma maneira própria de exteriorização, caso a lei assim o preveja.15 Importante mencionar, no momento, que a lei paulista indicou uma série de formalidades, cuja inobservância levará à invalidade do ato. São alguns exemplos de exigência legal específica de exteriorização do ato: “Art. 13. Os atos administrativos produzidos por escrito indicarão a data e o local de sua edição, e conterão a identificação nominal, funcional e a assinatura da autoridade responsável. Art. 14. Os atos de conteúdo normativo e os de caráter geral serão numerados em séries específicas, seguidamente, sem renovação anual. Art. 15. Os regulamentos serão editados por decreto, observadas as 15 É esta a opinião de Celso Antônio Bandeira de Mello com a pequena ressalva de que opta em falar em formalização e não em formalidade, pois esta última palavra poderia passar a impressão de que se trata de um componente de menos importância. Vale ressaltar ainda que este autor trata a formalização não como elemento do ato, mas sim como seu pressuposto de validade. Curso de Direito Administrativo, pp. 291-292. 10 seguintes regras: I – nenhum regulamento poderá ser editado sem base em lei, nem prever infrações, sanções, deveres ou condicionamentos de direitos nela não estabelecidos;... III – nenhum decreto regulamentar será editado sem exposição de motivos que demonstre o fundamento legal de sua edição, a finalidade das medidas adotadas e a extensão de seus efeitos;...”. Vale ressaltar que o art. 12 da lei especificou também qual a forma de exteriorização dos atos de cada agente da Administração Estadual. Por exemplo, diz ela que serão da competência privativa do Governador do Estado, o decreto; da competência privativa dos Secretários de Estado, do Procurador- Geral do Estado e dos Reitores das Universidades, a resolução; dos órgãos colegiados, a deliberação; de competência comum a todas as autoridades, até o nível de Diretor de Serviço e a diversas outras autoridades (policiais, dirigentes das entidades descentralizadas), a portaria; e, a todas as autoridades ou agentes da Administração, os demais atos administrativos, tais como ofícios, ordens de serviço, instruções e outros. Também a ausência de alguns procedimentos essenciais exigidos pela lei poderão levar à invalidação do ato. A lei neste ponto se referiu àqueles conjuntos de providências (e não um único ato), sem os quais a emissão do ato final será viciada. É o caso, por exemplo, da exigência feita nos incisos II e IV do art. 15. O primeiro exige, para a edição dos decretos, o referendo do Secretário de Estado ou do Procurador Geral do Estado, e o segundo determina a submissão de todas as minutas de regulamento à apreciação prévia do órgão jurídico competente antes da apreciação do Governador do Estado. É também o caso previsto no capítulo pertinente aos recursos, no inciso IV do art. 47, segundo o qual “havendo outros interessados representados nos autos, serão estes intimados, com prazo comum de 15 (quinze) dias, para oferecimento de contra-razões;”. Porque formalidade essencial do ato administrativo, faz-se necessário comentar separadamente o tema da publicidade dos atos. A lei paulista, além de elencá-la como princípio em seu art. 4.º, regulamentou-a como formalidade importante do ato. Disse em seu art. 16 que “os atos administrativos, inclusive os de caráter geral, entrarão em vigor na data de sua publicação, salvo disposição expressa em contrário.”. E complementou esta disposição para indicar a forma de publicação exigida: “Art. 17. Salvo norma expressa em contrário, a publicidade dos atos administrativos consistirá em sua publicação no Diário Oficial do Estado, ou, quando for o caso, na citação, notificação ou intimação do interessado.”. E, mais adiante, no art. 34, expressamente definiu as regras a serem seguidas para a citação, intimação e notificação, feita pessoalmente ou por carta com aviso de recebimento. A obrigatoriedade de publicação no Diário Oficial, por ser essencial, foi diversas vezes repetida ao longo do texto normativo16. A publicação dos atos da Administração tem estreita ligação com a garantia dos direitos dos administrados, eis que é próprio da essência do 16 Como exemplo, pode-se citar os artigos 34, parágrafo único; 35, parágrafo único; 47, parágrafo único e 63, VII.11 procedimento administrativo permitir a participação do administrado tanto na formação do ato, quanto em sua impugnação. Seria um sem sentido imaginar que o administrado conseguiria dele participar sem estar ciente dos passos da Administração, sobretudo ao se constatar, na prática, que os agentes costumam tratar os assuntos da Administração como se fossem segredo, inacessíveis a qualquer administrado.17 Neste sentido, foi importante a inserção na lei paulista do art. 27, que prevê que “durante a instrução, os autos do procedimento administrativo permanecerão na repartição competente.” e do artigo 36 que diz que “ao advogado é assegurado o direito de retirar os autos da repartição, mediante recibo, durante o prazo para manifestação de seu constituinte, salvo na hipótese de prazo comum.”.18 Por fim, embora seja tema da segunda parte deste trabalho, indaga-se se a violação a todas as formalidades exigidas por lei levam, necessariamente, à invalidação dos atos. Como se viu acima, a lei paulista previu expressamente como causa de invalidade do ato “a omissão de formalidades ou procedimentos essenciais”. 17 Vale mencionar que a publicidade dos atos é a regra. Quando a lei previu forma de restringi-la, fê-lo excepcionalmente. É o caso do art. 64: “Art. 64. O procedimento sancionatório será sigiloso até decisão final, salvo em relação ao acusado, seu procurador ou terceiro que demonstre legítimo interesse. Parágrafo único. Incidirá em infração disciplinar grave o servidor que, por qualquer forma, divulgar irregularmente informações relativas à acusação, ao acusado ou ao procedimento.”. 18 Neste sentido também é importante ressaltar as novidades dos artigos 28, 29 e 35. “Art. 28. Quando a matéria do processo envolver assunto de interesse geral, o órgão competente poderá, mediante despacho motivado, autorizar consulta pública para manifestação de terceiros, antes da decisão do pedido, se não houver prejuízo para a parte interessada. § 1.º A abertura da consulta pública será objeto de divulgação pelos meios oficiais, a fim de que os autos possam ser examinados pelos interessados, fixando-se prazo para oferecimento de alegações escritas. § 2.º O comparecimento à consulta pública não confere, por si, a condição de interessado no processo, mas constitui o direito de obter da Administração resposta fundamentada.” “Art. 29. Antes da tomada de decisão, a juízo da autoridade, diante da relevância da questão, poderá ser realizada audiência pública para debates sobre a matéria do processo.” “Art. 35. Durante a instrução, será concedida vista dos autos ao interessado, mediante simples solicitação, sempre que não prejudicar o curso do procedimento. Parágrafo único. A concessão de vista será obrigatória, no prazo para manifestação do interessado ou para apresentação de recursos, mediante publicação no Diário Oficial do Estado.” Embora sejam previsões legais lógicas se se considerar que o procedimento administrativo tem por objetivo principal ser o instrumento de proteção dos administrados, as novidades trazidas no texto legal do Estado de São Paulo causam impressão por tratarem articuladamente dos obstáculos reais impostos pelos agentes administrativos ao acesso dos cidadãos aos procedimentos em trâmite perante a Administração Pública. 12 Embora todas as previsões nesse sentido sejam extremamente importantes, não se pode negar que uma irregularidade consistente, por exemplo, no engano do agente em veicular uma norma por “portaria”, quando deveria sê-lo por “ofício”, não tem a mesma repercussão para o administrado quanto a hipótese de o agente deixar de submeter à apreciação do órgão jurídico competente uma minuta de regulamento. Daí porque alguns autores e jurisprudência19 sustentam que alguns atos não mereceriam a invalidação em específicos casos de vício de formalização. Neste sentido, diz Celso Antônio Bandeira de Mello que “a indicação legal de que o ato deve ser expressado por ‘portaria’ ou por algum outro modelo instrumental de enunciação do ato não interfere para nada com as garantias do administrado ou com a segurança e certeza em relação ao conteúdo do ato. Assim, a função única e específica da formalização prevista, em hipóteses tais, é apenas a de ‘uniformizar’, ou seja, ‘padronizar’ o instrumento de veiculação dos distintos atos administrativos. Cumpre, portanto, um objetivo meramente organizatório interno, sem qualquer relevo externo. Trata-se, em rigor, de uma simples metodização das ‘fórmulas’ de veiculação dos atos. Daí que a violação destas normas de mera ‘padronização’ acarretará apenas sanção para o agente faltoso que descumpriu o dever normativo de atender a uma ‘uniformização’ útil para a boa organização das formalidades de rotina de atuação do aparelho administrativo, mas nenhuma interferência terá quanto à validade do ato.” (grifos no original).20 Como se verá posteriormente, a ausência de prejuízo do ato viciado será fator importante para a preservação do ato e, portanto, para o afastamento da invalidação. c) Objeto Previu também a lei paulista ser inválido o ato administrativo que revele a: “III – impropriedade do objeto;...”. Mas o que vem a ser objeto do ato administrativo? Não é uniforme a posição doutrinária acerca de seu conceito. Há autores que entendem ser o objeto “a própria prescrição ou injunção que o acto contém, e portanto necessariamente uma declaração de vontade ou de conhecimento.”.21 Para 19 “Mandado de Segurança. — Em direito público, só se declara nulidade de ato ou de processo quando da inobservância de formalidade legal resulta prejuízo. — No caso, a preterição de formalidade legal, se existente, não acarretou prejuízo ao impetrante, pois a conclusão incriminadora do inquérito se baseou decisivamente em elementos de prova outros, a respeito dos quais não se pode alegar cerceamento de defesa por preterição de formalidade legal. Mandado de Segurança indeferido." (Supremo Tribunal Federal. MS nº. 22050-3/MT. Julgado em 04 de maio de 1995, publicado no D.J. em 15/09/95 — ementário Nº. 1800-02 — Relator - Ministro Moreira Alves. Votação unânime.) 20 Ob. cit., p. 292. 21 André Gonçalves Pereira, Erro eIlegalidade do Ato Administrativo, p. 99. 13 outros, contudo, objeto e conteúdo não são a mesma coisa.22 É o exemplo de Zanobini, para quem objeto “é a coisa ou a prestação acerca da qual o conteúdo dispõe.”.23 Independente da classificação que se faça ou da nomenclatura que se adote, importante é se deter sobre o termo usado na lei, qual seja: impropriedade. O que é impróprio é, na linguagem comum, inconveniente, incoerente, incorreto. No entanto, não é assim que esta palavra deve ser interpretada no mundo jurídico. É que para a Administração Pública vige o princípio da estrita legalidade, segundo o qual está obrigada a fazer o que encontra-se expressamente previsto na norma, ao contrário dos particulares, que estão autorizados a fazer o que não esteja nela proibido. Por esta razão, não basta o administrador agir sem violar a lei, necessário também é que sua atividade se apresente como estrito cumprimento dela. Assim será também em função do objeto. O termo “impróprio” faz mais sentido naqueles atos ditos discricionários. Embora nestes casos o contorno do ato administrativo não venha inteiro desenhado na norma, não é qualquer objeto selecionado pelo agente que vai satisfazer a finalidade do ato. Neste sentido, o objeto deverá ser “próprio” a corresponder às exigências da situação fática (relação de pertinência entre o motivo do ato e seu objeto), bem como da finalidade do ato. d) Motivo A lei paulista foi expressatambém quanto à invalidação em razão da ausência de motivo. Diz a lei que será inválido o ato administrativo no caso em que houver: “IV – inexistência ou impropriedade do motivo de fato ou de direito;...”. Motivo do ato administrativo é a situação fática que está na base do ato e que permite ou exige sua prática. Não se pode confundi-lo com a finalidade do ato, embora seja uma constante. Faz parte do mundo empírico e, assim como dito acima, deve ter uma relação de pertinência com o objeto. Quando o motivo vier previsto na lei o agente não terá qualquer grau de liberdade, isto é, ocorrida no mundo empírico a situação descrita na norma, o agente deve praticar o ato (deverá haver uma exata subsunção do fato à lei). É o caso, por exemplo, do inciso II do art. 78. Este artigo trata do procedimento para obtenção de informações pessoais, prescrevendo que qualquer pessoa terá direito ao acesso dos registros que a Administração possua em relação a 22 Lucia Valle Figueiredo e Celso Antônio Bandeira de Mello consideram ser elemento do ato o conteúdo, diferenciando-o do objeto. Para aquela autora o objeto nem faz parte da composição do ato, para Celso Antônio, no entanto, o objeto é pressuposto de sua existência. (Lucia Valle Figueiredo, Curso de Direito Administrativo, São Paulo, Malheiros, 3.ª edição, 1998, p. 154. Celso Antônio Bandeira de Mello, Curso de Direito Administrativo, pp. 278-279). 23 Em citação de André Gonçalves Pereira, ob. cit., p. 100. 14 ela. Feito o pedido, e existentes informações nas fichas e registros administrativos, a Administração deverá fornecê-las no prazo máximo de 10 dias. Dado o motivo (situação fática) a Administração deverá agir. No entanto, o motivo pode não estar previsto na lei e, neste caso, o agente terá liberdade para escolher a situação de fato mediante a qual irá agir. No entanto, nesta situação, bem como naquela acima mencionada, a validade do ato vai depender da verdadeira existência da situação fática declarada pelo agente. Se o motivo exposto pelo agente for inexistente, inválido será o ato (teoria dos motivos determinantes).24 Outro problema existente neste tema é quanto aos motivos previstos na lei, mas que não comportam uma objetividade clara. Neste caso o agente deverá valorar o caso concreto para declará-lo subsumido à norma. É o caso, por exemplo, do art. 29, segundo o qual o agente, considerando relevante uma questão, poderá realizar audiência pública para debates sobre a matéria do processo. Ainda assim neste caso, há que se ressaltar que o agente não é absolutamente livre, eis que é possível, dentro dos padrões de cultura e costumes da sociedade, definir o que vem a ser uma questão relevante. O conceito não fica, desta forma, ao estrito discernimento subjetivo do administrador. É certo, do exposto, que a ausência do motivo, a sua não correspondência com a norma, ou mesmo a sua impertinência com o objeto levarão à invalidade do ato25, daí a lei paulista falar sobre a “inexistência ou impropriedade do motivo”. e) Finalidade Elencou como fator determinante da invalidade do ato administrativo a prática do ato pelo agente que tem como finalidade a satisfação de um outro interesse que não o pertinente à natureza do próprio ato. Disse a lei paulista haver invalidade do ato no caso de: “V – desvio de poder;...”. A finalidade é o “bem jurídico objetivado pelo ato. Vale dizer, é o resultado previsto legalmente como o correspondente à tipologia do ato 24 Explica Maria Sylvia Zanella Di Pietro que segundo esta teoria a “validade do ato se vincula aos motivos indicados como seu fundamento, de tal modo que, se inexistentes ou falsos, implicam a sua nulidade. Por outras palavras, quando a Administração motiva o ato, mesmo que a lei não exija a motivação, ele só será válido se os motivos forem verdadeiros.”. (Direito Administrativo, São Paulo, Atlas, 10.ª edição, 1998, p. 175). 25 Interessante mencionar que Antônio Carlos de Araújo Cintra identifica três modalidades de vícios dos motivos do ato administrativo. A primeira é a inexistência atual de norma jurídica que lastreie a sua prática; a segunda é a inexistência do fato que ensejaria a sua emanação; e a terceira é a inadequação entre os motivos de fato e os motivos de direito, o que ocorre quando os fatos verificados não se subsumem na hipótese normativa. (Motivo e motivação do ato administrativo, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1979, pp. 150-152). 15 administrativo, consistindo no alcance dos objetivos por ele comportados. Em outras palavras: é o objetivo inerente à categoria do ato.”.26 O ato administrativo é típico (estrita legalidade) e já vem desenhado pela norma como sendo o único viável a atingir determinado resultado. Assim é que não é permitido à Administração usar de um ato para atingir um resultado que é próprio de outro. É o clássico exemplo da vedação imposta ao agente administrativo de remover um funcionário com a finalidade de puni-lo, quando tinha competência também para suspendê-lo. Também não é permitido ao agente público buscar atingir com seu ato uma finalidade que não seja inerente ao interesse público. Nestes dois casos, ausência de interesse público e incompatibilidade entre finalidade do ato e finalidade da competência, se diz que o ato foi praticado com desvio de poder, o que ensejará sua invalidade. A lei paulista inovou neste sentido ao prever expressamente a invalidade do ato uma vez constatado o desvio de poder. Este conceito é fruto da construção doutrinária e jurisprudencial e raras são as legislações brasileiras que tenham caminhado tão longe nesta previsão normativa.27 f) Motivação A lei 10.177 também prescreveu, como hipótese de invalidação do ato, a violação ao requisito da motivação. Diz o art. 8.º da lei que será inválido o ato no caso de: “VI – falta ou insuficiência de motivação;...”. A motivação “é o ato de administração que, como requisito procedimental necessário à validade de qualquer ato administrativo, serve à revelação dos pressupostos de fato ou de direito que autorizaram ou exigiram a atuação administrativa, bem assim de sua finalidade e causa.”.28 É a motivação o principal elemento de controle dos atos administrativos. Por meio dela deve o 26 Celso Antônio Bandeira de Mello, Ato administrativo e direitos dos administrados, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1981, p. 78. 27 A lei 4.717, de 29 de junho de 1965, que regula a ação popular previu o desvio de finalidade como um dos fatores a gerarem a anulação do ato lesivo ao patrimônio público. Diz seu art. 2.º: “São nulos os atos lesivos ao patrimônio das entidades mencionadas no artigo anterior, nos casos de: a) incompetência; b) vício de forma; c) ilegalidade do objeto; d) inexistência dos motivos; e) desvio de finalidade.” 28 Carlos Ari Sundfeld, Motivação do ato administrativo como garantia dos administrados, Revista de Direito Público n.º 75, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1985, p. 118. 16 administrador justificar a emissão do ato, não bastando para tanto a simples remissão ao texto legal. Duas são as justificativas apresentadas pela doutrina para sua existência: uma é a que se refere à motivação como necessidade de controle (análise da legalidade do ato); a outra a que se refere à motivação como um direito do administrado inerente ao Estado Democrático de Direito (direito de qualquer cidadão saber as razões que levaram a Administração à prática de um ato, já que os agentes não são “donos” da coisa pública). A lei paulista, neste ponto, inovou ao exigirexpressamente o que já vinha sendo enumerado pela doutrina como requisitos da motivação. Defende a doutrina que esta deve enunciar não só a regra de direito habilitante, como também o motivo (situação fática sobre a qual o agente se baseou para emitir o ato) e a “relação de pertinência lógica entre os fatos ocorridos e o ato praticado”.29 A lei foi expressa: “Art. 9.º A motivação indicará as razões que justifiquem a edição do ato, especialmente a regra de competência, os fundamentos de fato e de direito e a finalidade objetivada. Parágrafo único. A motivação do ato no procedimento administrativo poderá consistir na remissão a pareceres ou manifestações nele proferidos.”. A previsão expressa mencionada na lei 10.177 não deixa margem à discussão existente na doutrina acerca da obrigatoriedade da motivação. Alguns autores entendem que a motivação só seria obrigatória quando exigida por lei. Outros entendem que a obrigatoriedade da motivação dependeria da natureza do ato30 e, finalmente, alguns autores entendem que a motivação deve sempre ser exposta pelo administrador. Elencada como um dos fatores ensejadores de vício do ato administrativo, não se pode negar que a lei paulista elegeu a motivação como formalidade obrigatória em todo ato administrativo, independente de sua natureza. E esta imposição pode ser notada também no decorrer de todo o texto legal, pois foi diversas vezes repetida e enfatizada. Tome-se como exemplo, dentre outros, os dos artigos 55, VI, 58, VI, 63, IV e VII.31 29 Celso Antônio Bandeira de Mello, Curso de Direito Administrativo, p. 283. 30 Sobre o tema v. Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, Princípios Gerais de Direito Administrativo, vol. I., São Paulo, Forense, 2.ª edição, 1979, pp. 525 e ss. 31 “Art. 55. A tramitação dos requerimentos de que trata esta Seção observará as seguintes regras: (...) VI – terminada a instrução, a autoridade decidirá, em despacho motivado, nos 20 (vinte) dias subseqüentes;” “Art. 58. O procedimento para invalidação provocada observará as seguintes regras: (...) VI – a autoridade, ouvindo o órgão jurídico, decidirá em 20 (vinte) dias, por despacho motivado, do qual serão intimadas as partes;” “Art. 63. O procedimento sancionatório observará, salvo legislação específica, as seguintes regras: (...) IV – caso haja requerimento para produção de provas, a autoridade apreciará sua pertinência, em despacho motivado; (...) VII – a decisão, devidamente motivada, será proferida no prazo máximo de 20 (vinte) dias, notificando-se o interessado por publicação no Diário Oficial do Estado;” 17 Essa postura só vem a possibilitar um maior controle da atividade administrativa por parte dos administrados. Principalmente no que se refere aos atos discricionários, nos quais o controle só vai ser acessível por meio da motivação. Neste ponto, brilhantes são as lições de Antonio Carlos de Araújo Cintra que enfatiza a possibilidade de controle, também jurisdicional, do ato discricionário.32 Na verdade, a motivação constitui uma das técnicas mais eficientes de controle dos poderes do Estado, razão pela qual a exigência contida na lei 10.177 só vem a proporcionar aos administrados a garantia, pelo menos jurídica, de que o administrador não poderá se esquivar de prestá-la. Ademais, vale ressaltar que esta exigência já estava contida no texto constitucional nos artigos 5.º, XXXIII e XXXIV, “b” e artigo 93, X. g) Causa Talvez neste item se encontre a maior novidade da lei 10.177. Diz o parágrafo único do artigo 8.º: “Parágrafo único. Nos atos discricionários, será razão de invalidade a falta de correlação lógica entre o motivo e o conteúdo do ato, tendo em vista sua finalidade.”. A disposição legal se refere à causa do ato administrativo. Trata-se de um dos componentes sobre o qual a doutrina é menos uniforme, não só quanto à nomenclatura, mas também quanto ao conteúdo. Diversas são as teorias que sobre a causa trataram, valendo mencionar apenas a existência de uma corrente subjetiva, a qual, em síntese, compara a causa aos motivos, e a corrente objetiva, a qual a aproxima dos pressupostos objetivos.33 Um dos principais doutrinadores que expuseram a respeito é André Gonçalves Pereira, autor português que define a causa como sendo “a relação 32 Porque fundamentais, faz-se necessário trazer a contexto as palavras do autor. Ao sustentar que a teoria da motivação não pode ser elaborada a reboque da teoria dos motivos, diz que enquanto “esta se prende, exclusivamente, aos aspectos vinculados do ato administrativo, a teoria da motivação assume relevância peculiar e inconfundível quando se refere aos elementos discricionários do ato administrativo. Porque se diz, freqüentemente, e com razão, que a discricionariedade administrativa não se confunde com arbitrariedade. Mas essa afirmativa não passaria de fútil manifestação de um desejo se, na realidade, o exercício do poder discricionário ficar inteiramente incontrolável ou sujeito apenas a um controle por indícios, decorrentes da própria ação administrativa, considerada por fora, sem a justificativa do administrador. Mais relevante se nos afigura, pois, a motivação do ato discricionário, para ensejar o controle dos critérios adotados pelo administrador na opção por uma ou outra das alternativas que lhe permite a lei. Aqui não falamos apenas no controle jurisdicional, mas em controle em sua acepção mais ampla, incluindo o político, em seu sentido restrito, e o da própria opinião pública, dado que o povo é o maior interessado no correto andamento da atividade administrativa. Mas certamente pensamos também no controle jurisdicional da discricionariedade administrativa. Ao nosso ordenamento jurídico não repugna esse controle.”. (Motivo e Motivação do Ato Administrativo, pp. 189-190). 33 Para uma melhor noção das diversas correntes doutrinárias que versam sobre a causa v. André Gonçalves Pereira, Erro e Ilegalidade do Ato Administrativo, pp. 110 e ss. 18 de adequação entre os pressupostos do ato e o seu objeto.”.34 A partir deste conceito, pode se dizer que é por meio da causa que se examina se o agente praticou um ato que guarda pertinência com os motivos (situação fática) que se encontra na sua base. Caso esta pertinência não exista, o ato deverá ser invalidado. Mas afirmar que a causa é apenas a relação de adequação entre o motivo e o conteúdo é pouco, se se considerar principalmente os atos discricionários. Celso Antônio Bandeira de Mello inseriu no conceito de causa o elemento finalidade, dizendo consistir aquela a “correlação lógica entre o pressuposto (motivo) e o conteúdo do ato em função da finalidade tipológica do ato.”.35 José Roberto Pimenta Oliveira, em trabalho monográfico sobre o tema, expôs objetivamente a importância da finalidade para o conceito da causa. Diz ele que “a finalidade serve de primeiro e imediato parâmetro para qualificar a congruência entre o antecedente (realidade fática ensejadora da produção) e o conseqüente no ato administrativo (a prescrição jurídica produzida), porquanto diretamente recolhida na regra de competência. Em relação ao conjunto de pressupostos legais (subjetivo, objetivo, teleológico, formalístico e procedimental), somente o finalístico está apto para exercer, imediatamente, esse critério de adequabilidade.”.36 A lei 10.177 elegeu a causa um dos fatores que, uma vez violado, provocará a invalidade do ato administrativo. Parece ter também acolhido a opinião doutrinária acima exposta ao fazer remissão expressa à finalidade no parágrafo único do art. 8.º. Mas ressalta que isto se dará apenas nos atos discricionários. Fê-lo, talvez, por ser notório que nosatos vinculados a norma legal já elenca qual o resultado da pertinência lógica existente entre o motivo legal e a conseqüência jurídica. Embora possa ser motivo de crítica por alguns autores, eis que também no ato vinculado se faz necessário averiguar essa pertinência lógica no caso concreto, a lei dele não tratou. Com efeito, é nos atos discricionários que a causa se revela importantíssima. Por meio dela, obrigatoriamente exposta na motivação, será possível exercer algum tipo de controle dos atos em que foi deixado ao agente alguma margem de liberdade na escolha dos motivos que legitimarão a prática do ato administrativo.37 34 Erro e Ilegalidade do Ato Administrativo, p. 122. 35 Curso de Direito Administrativo, pp. 289-290. 36 O Pressuposto Lógico do Ato Administrativo, Revista Trimestral de Direito Público n.º 19, São Paulo, Malheiros, 1997, p. 95. 37 Necessário trazer novamente a contexto as lições de José Roberto Pimenta Oliveira que, ao sustentar também a necessidade de exame da causa no ato vinculado, preleciona: “Se assim se passa na atividade vinculada, em que o exercício da competência requer uma apreciação objetiva, com maior razão o pressuposto lógico deve merecer profunda averiguação na atividade discricionária, que reclama uma apreciação subjetiva, por parte da Administração, da melhor maneira de atender à finalidade cogente que justifica a outorga legal da competência. Juntamente com o exame dos motivos (materialidade e qualificação jurídica) e da 19 Não se pode deixar de comentar que a lei paulista buscou contornar de forma exaustiva a regulação da produção válida do ato administrativo. Com a inserção de componentes como a causa acima mencionada, buscou-se conter ao máximo o exercício desarrazoado do poder, exigindo-se expresssamente, talvez pela primeira vez em um texto legal, o máximo de transparência na produção do ato. 2. A lei federal de procedimento administrativo 2.1. Panorama geral A lei federal que instituiu as regras para o procedimento administrativo no âmbito federal data de 29 de janeiro de 1999. Lê-se de seu art. 1.º que tem por objeto disciplinar as “normas básicas sobre o processo administrativo no âmbito da Administração Federal direta e indireta, visando, em especial, à proteção dos direitos dos administrados e ao melhor cumprimento dos fins da Administração”. Também nesta lei há previsão expressa dos princípios que devem reger a Administração Pública, quais sejam: legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência. A lei federal 9.784/99 usa uma nomenclatura distinta da lei estadual. Aquela lei fala em processo administrativo, e não em procedimento. Concordamos, no entanto, com a opinião de Carlos Ari Sundfeld, a qual acolhe a noção de procedimento e rechaça a de processo. Para sustentar tal posição aquele autor demonstra serem três os fatores essenciais de diferenciação da função administrativa e jurisdicional, quais sejam: a definitividade das decisões jurisdicionais em oposição à revisibilidade dos atos administrativos; a independência dos membros do Judiciário em oposição à hierarquia administrativa; e, por fim, a forma de iniciativa da atividade, que na administrativa pode ser provocada ou de ofício e na judicial é sempre provocada. Por esta razão, completa aquele autor, haveria vários perigos em se falar em processo administrativo. O primeiro deles, e fruto de uma formação processual muito forte, seria o de restringir a expressão “processo”, para usá-la apenas nos casos em que se constataria a existência de “partes” e controvérsia, o que reduziria o procedimento somente aos casos de procedimento disciplinar e tributário; o segundo perigo seria o de supor que os atos emitidos pela Administração, provenientes de procedimento administrativo, gozariam de garantias semelhantes à do processo judicial, como a da finalidade (ausência de desvio de poder), a averiguação da relação de causalidade, de compatibilidade lógico-jurídica entre as circunstâncias que deflagraram a produção do ato e o seu conteúdo (provimento jurídico), em face do critério ora defendido, constitui uma das limitações da discrição administrativa.”. Ob. cit., p. 99. 20 definitividade de suas decisões; e terceiro, o fato de que “também o Judiciário, quando administra, realiza procedimento administrativo”.38 Independente das nomenclaturas utilizadas, deve-se ressaltar que, embora de forma muito mais superficial, na verdade muito aquém do esperado, esta lei federal também demonstrou uma preocupação em proporcionar a participação do administrado na atividade da Administração. E isto foi garantido por meio do procedimento administrativo, para que o administrado, repita-se, possa participar não só do controle do ato acabado, mas também de sua formação. Formalmente, portanto, a lei federal introduziu normas aptas a garantir o acesso de qualquer cidadão ao procedimento administrativo. Dedicou, por exemplo, um capítulo apenas para descrever os direitos dos administrados, no qual se nota que cada um dos incisos do único artigo que o compõe é uma reação direta aos abusos habitualmente cometidos pela Administração. Diz seu art. 3.º: “ O administrado tem os seguintes direitos perante a Administração, sem prejuízo de outros que lhe sejam assegurados: I – ser tratado com respeito pelas autoridades e servidores, que deverão facilitar o exercício de seus direitos e o cumprimento de suas obrigações; II – ter ciência da tramitação dos processos administrativos em que tenha a condição de interessado, ter vista dos autos, obter cópias de documentos neles contidos e conhecer as decisões proferidas; III – formular alegações e apresentar documentos antes da decisão, os quais serão objeto de consideração pelo órgão competente; IV – fazer-se assistir, facultativamente, por advogado, salvo quando obrigatória a representação, por força de lei.”. A lei federal, no entanto, demonstra uma preocupação muito maior em descrever o rito, garantindo burocraticamente a sua realização. Não se está querendo afirmar que as previsões da lei federal sejam dispensáveis, pelo contrário. É imprescindível a previsão da competência, da forma, tempo e lugar dos atos do processo, da comunicação dos atos, etc. Mas estas previsões não se devem ater somente ao seu aspecto formal, senão também pelo seu aspecto substancial, com vistas a efetivamente garantir aos administrados a defesa de seus direitos individuais. Prova desta descompatibilização está, por exemplo, nas previsões concernentes ao prazo. É notório que um dos maiores problemas a atingir os administrados é o da lentidão no agir da Administração. Na maior parte das vezes, o administrado desiste ou sequer utiliza das vias administrativas, eis que não existe um prazo para a Administração apresentar suas decisões ou mesmo dar andamento ao procedimento. Ora, a lei federal previu um longo capítulo para disciplinar a instrução do “processo” administrativo, mas em todo momento que se referiu à atividade administrativa não lhe impôs prazos para dar andamento ao procedimento. Ao administrado, ao contrário, ou o prazo restou determinado ou ficou à disposição da Administração determiná-lo.39 38 A importândia do procedimento administrativo, p. 73. 39 São alguns exemplos os seguintes artigos: 21 No capítulo referente ao tempo do processo há um singelo artigo prescrevendo umprazo de 5 dias para a realização dos atos da Administração ou do administrado, quando não houver expressa disposição legislativa específica (art. 24). Vê-se que a lei concedeu um único prazo para uma generalidade de atos possíveis de serem realizados durante o procedimento. Para a efetivação de alguns o prazo previsto será suficiente, mas para outros, de natureza mais complexa, sua realização dentro do prazo de 5 dias será praticamente impossível. Embora o parágrafo único deste artigo preveja a possibilidade de dilatação deste prazo até o dobro, mediante comprovada justificação, vê-se que se trata de um prazo irrazoável, o qual dificilmente será sempre cumprido. Repita-se: é impossível prescrever um único prazo para atos de natureza completamente distintas. No capítulo expressamente entitulado “DOS PRAZOS” a lei também não fez qualquer menção ao espaço temporal dentro do qual a Administração teria o dever de agir nas diversas fases do procedimento. Naquele capítulo a lei se ateve apenas a descrever as regras relativas à contagem do prazo, que se assemelham com as do processo judicial (artigos 66 e 67). À Administração restou uma única previsão impositiva, qual seja: a de que tem a obrigação de decidir. E apenas neste ponto lhe foi dado um prazo específico. Prescrevem seu artigos 48 e 49, inserido no capítulo entitulado “DO DEVER DE DECIDIR”: “Art. 48. A Administração tem o dever de explicitamente emitir decisão nos processos administrativos e sobre solicitações ou reclamações, em matéria de sua competência.” e “Art. 49. Concluída a instrução de processo administrativo, a Administração tem o prazo de até trinta dias para decidir, salvo prorrogação por igual período expressamente motivada.” Ora, é notório que os procedimentos administrativos são lentos não só porque seu ato final não é produzido de maneira célere, mas muito mais por razões de andamento mesmo do processo (um ofício demora anos para ser confeccionado e cumprido, a remessa de um processo para um outro setor, dentro do próprio órgão e às vezes desnecessariamente, leva dias, etc.) “Art. 39. Quando for necessária a prestação de informações ou a apresentação de provas pelos interessados ou terceiros, serão expedidas intimações para esse fim, mencionando-se data, prazo, forma e condições de atendimento. Parágrafo único. Não sendo atendida a intimação, poderá o órgão competente, se entender relevante a matéria, surpir de ofício a omissão, não se eximindo de proferir a decisão.” “Art. 40. Quando dados, atuações ou documentos solicitados ao interessado forem necessários à apreciação de pedido formulado, o não atendimento no prazo fixado pela Administração para a respectiva apresentação implicará arquivamento do processo.” “Art. 44. Encerrada a instrução, o interessado terá o direito de manifestar-se no prazo máximo de dez dias, salvo se outro prazo for legalmente fixado.” “Art. 47. O órgão de instrução que não for competente para emitir a decisão final elaborará relatório indicando o pedido inicial, o conteúdo das fases do procedimento e formulará proposta de decisão, objetivamente justificada, encaminhando o processo à autoriddade competente.” 22 Outros exemplos poderiam ser citados para demonstrar o descompasso da lei federal. Com efeito, não se previu também prazos para os atos da Administração que não provenham de procedimento40; não se protegeu o administrado daquelas hipóteses denominadas de “silêncio administrativo”41, em que a Administração não se manifesta quando tinha o dever de fazê-lo; embora tenha dito no art. 46 ser direito do administrado o acesso aos autos, não previu formas a garanti-lo. Também em relação aos atos administrativos, tema deste trabalho, a lei federal não foi explícita ao deles tratar. Passemos à sua análise. 2.2. Elementos do ato na lei federal A lei federal 9.784/99 não estabeleceu expressamente um regime dos atos administrativos. Não há, no corpo do texto legal, uma disciplina concreta daqueles atos, como o fez a lei do Estado de São Paulo. Dispôs, é certo, em um capítulo composto de três artigos, o regime de anulação, revogação e convalidação dos atos, mas ao fazê-lo não descreveu os vícios que ensejariam aquelas conseqüências jurídicas. Com efeito, os artigos 53, 54 e 55, os quais serão melhor analisados na segunda parte deste trabalho, não mencionam expressamente os elementos do ato, cuja ausência levaria à invalidação do mesmo. Vê-se apenas que a lei garantiu a invalidação para os casos de ilegalidade, prevendo, inclusive, o prazo para sua declaração quando dele decorrerem efeitos favoráveis aos destinatários. No entanto, não prescreveu expressamente os vícios que levam àquela ilegalidade. Insiste-se neste ponto pois, como dito anteriormente, a decomposição do ato administrativo permite identificar, com maior nitidez, suas irregularidades. 40 A lei paulista fez esta ressalva expressamente: “Art. 18. Será de 60 (sessenta) dias, se outra não for a determinação legal, o prazo máximo para a prática de atos administrativos isolados, que não exijam procedimento para sua prolação, ou para a adoção, pela autoridade pública, de outras providências necessárias à aplicação de lei ou decisão administrativa.” 41 Na verdade, a lei só previu as hipóteses dos parágrafos do artigo 42, mas não para poupar o administrado dos prejuízos que possa vir a sofrer com a inação administrativa. Diz o artigo: “Art. 42. Quando deva ser obrigatoriamente ouvido um órgão consultivo, o parecer deverá ser emitido no prazo máximo de quinze dias, salvo norma especial ou comprovada necessidade de maior prazo. § 1.º Se um parecer obrigatório e vinculante deixar de ser emitido no prazo fixado, o processo não terá seguimento até a respectiva apresentação, responsabilizando-se quem der causa ao atraso. § 2.º Se um parecer obrigatório e não vinculante deixar de ser emitido no prazo fixado, o processo poderá ter prosseguimento e ser decidido com sua dispensa, sem prejuízo da responsabilidade de quem se omitiu no atendimento.” 23 Assim, ao prever genericamente a invalidade do ato quando este for eivado de vício de legalidade, a lei nada trouxe de novo a fim de assegurar aquele controle pelo administrado. Que o ato deve ser legal, a própria Constituição Federal já o diz. Na verdade, a lei federal deixou passar uma grande oportunidade de traçar os contornos dos vícios do ato administrativo, o que poderia, repita-se, fornecer mais subsídios à exigência da transparência na atividade administrativa. No entanto, ainda que de maneira esparsa e fluida, é possível encontrar no decorrer do texto legal alguns enunciados prescritivos, nos quais alguns dos elementos do ato são mencionados. Embora não venham previstos como razão de invalidação do ato administrativo, a competência, a forma e a motivação foram tratadas. a) Competência A competência recebeu tratamento em um capítulo próprio, mas não é só nele que se pode encontrar enunciados a seu respeito. Na verdade, a primeira menção feita a este componente aparece no inciso II do parágrafo único do art. 2.º, o qual esboça os critérios42 a serem observados no procedimento administrativo. O inciso II diz respeito ao critério de “atendimento a fins de interesse geral, vedada a renúncia total ou parcial de poderes ou competências, salvo autorização em lei;”. Também no capítulo VII o tema foi tratado para descrever as situações em que há obstáculos para o exercício daquela competência, bem como regulamenta o dever da autoridade de comunicar seu impedimento e a formapela qual o administrado poderá argüir a suspeição da autoridade. Mas é nos artigos 11 a 17 que a competência é especificamente tratada. Logo no art. 11 repete-se a previsão legal, contida no inciso II acima transcrito, segundo a qual a competência é irrenunciável, “salvo os casos de delegação e avocação legalmente admitidas.”. Prevê ainda o art. 12 a possibilidade de delegação de competência a outros órgãos ou titulares em razão de “circunstâncias de índole técnica, social, econômica, jurídica ou territorial.”. E no art. 13 está previsto expressamente o que não pode ser objeto de delegação: a edição de atos de caráter normativo, a decisão de recursos administrativos e as matérias de competência exclusiva do órgão ou autoridade. Os demais artigos se voltam a delinear a forma pela qual a delegação deve ser feita. 42 No caput do art. 2.º a lei 9.784 fala expressamente em princípios quando elenca os relativos à Administração Pública. Contudo, quando dispõe acerca do procedimento administrativo em seu parágrafo único diz tratar-se de critérios. Dentre estes estão previstos o da atuação segundo padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé; o da adoção de formas simples, suficientes para propiciar adequado grau de certeza, segurança e respeito aos direitos dos administrados; o da proibição de cobrança de despesas processuais, ressalvadas as previstas em lei; e o da interpretação da norma administrativa da forma que melhor garanta o atendimento do fim público a que se dirige, vedada aplicação retroativa de nova interpretação. 24 b) Forma A exteriorização do ato administrativo na esfera federal foi prevista no capítulo VIII. Diz seu art. 22: “Art. 22. Os atos do processo administrativo não dependem de forma determinada senão quando a lei expressamente a exigir. § 1.º Os atos do processo devem ser produzidos por escrito, em vernáculo, com a data e o local de sua realização e assinatura da autoridade responsável. § 2.º Salvo imposição legal, o reconhecimento de firma somente será exigido quando houver dúvida de autenticidade. § 3.º A autenticação de documentos exigidos em cópia poderá ser feita pelo órgão administrativo. § 4.º O processo deverá ter suas páginas numeradas seqüencialmente e rubricadas.”. Nos artigos subseqüentes são descritos quando (dia e hora) e onde aqueles atos podem ser realizados. Mas é no capítulo seguinte que a lei disciplina a comunicação dos atos, disciplinando que “o órgão competente perante o qual tramita o processo administrativo determinará a intimação do interessado para ciência de decisão ou a efetivação de diligências.” (art. 26). O caput do art. 26 parece restringir a participação do administrado no procedimento administrativo por acentuar as duas hipóteses em que ele deve receber intimação, quais sejam: ciência de decisão ou efetivação de diligências. Felizmente, porém, a lei faz uma significativa ressalva no art. 28, contido no mesmo capítulo, para garantir aquela participação sempre que o administrado sofra restrição no exercício de um direito seu. Diz o art. 28: “ Devem ser objeto de intimação os atos do processo que resultem para o interessado em imposição de deveres, ônus, sanções ou restrição ao exercício de direitos e atividades e os atos de outra natureza, de seu interesse.”. Vale ressaltar, por fim, que a lei federal, assim como a estadual, previu expressamente uma garantia significativa ao administrado, a do acesso ao processo. No art. 46 a lei dispõe sobre o direito do administrado à vista do processo, a obter certidões ou cópias reprográficas dos dados e documentos que o integram. Faz também a ressalva de que não terá acesso ao que for protegido por sigilo ou pelo direito à privacidade, à honra e à imagem. Como estes conceitos não vêm definidos na lei, é de se esperar que não venham a se tornar empecilhos ao administrado, sempre que algum agente, ilegalmente, queira dificultar seu acesso aos autos. c) Motivação Já foi mencionado anteriormente que a motivação constitui uma das formas mais importantes de controle da atividade administrativa. É nela que vêm identificados, no caso concreto, o motivo, o motivo legal, a causa, a finalidade. Daí porque sua enunciação se faz importante em todos os atos administrativos. Também acerca da motivação a lei federal dedicou um capítulo. No entanto, o único artigo que o compõe não estabelece a necessidade da exposição da motivação em todos os atos, pelo contrário. Enumera as 25 situações em que esta motivação vai ser exigida: “Art. 50. Os atos administrativos deverão ser motivados, com indicação dos fatos e dos fundamentos jurídicos, quando: I – neguem, limitem ou afetem direitos ou interesses; II – imponham ou agravem deveres, encargos ou sanções; III – decidam processos administrativos de concurso ou seleção pública; IV – dispensem ou declarem a inexigibilidade de processo licitatório; V – decidam recursos administrativos; VI – decorram de reexame de ofício; VII – deixem de aplicar jurisprudência firmada sobre a questão ou discrepem de pareceres, laudos, propostas e relatórios oficiais; VIII – importem anulação, revogação, suspensão ou convalidação de ato administrativo.”. Embora estejam elencadas neste artigo situações de extrema importância, nas quais os direitos dos administrados podem vir a ser restringidos de forma significativa, não se pode dizer que a necessidade de motivar os atos administrativos se restrinja a estas situações. Este artigo deve ser interpretado de forma extensiva, principalmente se se considerar que no caput do art. 2.º desta lei o princípio da motivação foi expressamente arrolado. A lei também faz remissão à motivação de forma específica em outras hipóteses nela previstas. É o caso, para citar alguns exemplos, do parágrafo único do art. 5.º que veda à Administração a recusa imotivada de documentos43; do art. 47, que determina que o órgão de instrução, ao elaborar proposta de decisão à autoridade competente deve fazê-la de forma objetivamente justificada; é também, e principalmente, o caso do art. 49, que determina à Administração o dever de decidir o processo, finda a instrução, de forma expressamente motivada.44 d) Motivo Embora seja elemento essencial do ato administrativo, eis que já definido anteriormente como a situação fática que está na base do ato e que pode influenciar a invalidação do ato (teoria dos motivos determinantes), o motivo não veio disciplinado claramente na legislação federal. O único dispositivo que a ele faz menção não impõe sua observação, senão o elenca como um dos “princípios” do procedimento administrativo. Diz o inciso VII do parágrafo único do art. 2.º que um dos critérios a serem observados nos processos administrativos é a “indicação dos pressupostos de fato e de direito que determinarem a decisão.”. 43 Interessante notar que a lei paulista proibiu, em qualquer hipótese, a recusa por parte da Administração de protocar qualquer petição, sob pena de responsabilidade do agente (art. 24). 44 Também fazem menção expressa à motivação os artigos 31, 38, § 2.º e 45. 26 e) Finalidade A finalidade, ou ausência dela, também não recebeu um tratamento específico da lei. Foi tratada, da mesma forma que o motivo, apenas como princípio no parágrafo único do art. 2.º da lei que diz: “Parágrafo único. Nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de: (...) II – atendimento a fins de interesse geral, vedada a renúncia total ou parcial de poderes ou competências, salvo autorização em lei; (...) IV – adequação entre meios e fins, vedada a imposição de obrigações, restrições
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