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No cainho de Macondo Ed. Março.17

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CAROS AMIGOS – ED. MARÇO/17
Jornalista e tradutor Eric Nepomuceno conta como foi traduzir Cem Anos de Solidao e da amizade com Gabo, nos 50 anos da obra
No caminho de Macondo
por Aray Nabuco e Fania Rodrigues
HÁ 50 anos nascia um dos maiores clássicos da literatura latino-americana. O livro Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez, Prêmio Nobel de Literatura de 1982, marcou uma época, revelou a América Latina ao mundo e criou uma legião de leitores. Com 50 milhões de exemplares vendidos, é a segunda obra mais lida da língua espanhola, atrás apenas de Dom Quixote, de Miguel de Cervantes. Publicado em maio de 1967, na Argentina com modestos 10 mil exemplares, Cem Anos de Solidão foi traduzido a 35 idiomas. No Brasil, foi traduzido duas vezes. A primeira em 1968 e a última em 2007, quando a obra completou 40 anos. Para comemorar essas cinco décadas de Cem Anos de Solidão a revista Caros Amigos entrevistou o tradutor e escritor brasileiro Eric Nepomuceno, amigo de Gabriel García, e que assina a tradução da edição de 2007, que já incluía as correções no original feitas pelo próprio autor.
Aray Nabuco – Durante a tradução de Cem Anos…, você tirava dúvidas com o Gabriel García Márquez?
Eu tinha com ele um acordo de não o consultar. Fiz uma consulta uma única vez, quando traduzi Doze Contos Peregrinos. Porque haviam palavras de duplo sentido, com alternativas de tradução que cabiam perfeitamente bem, mas só que alterariam a atmosfera do conto. Ele poderia ser triste ou mais irônico, com mais humor. Naquele tempo a alta tecnologia era o fax. Estamos falando de 1991. Mandei um fax a ele dizendo: “em tal página era isso ou aquilo?”. Eram umas cinco ou seis observações. Ele respondeu de maneira invariável: “Vete al diccionario. Vete al diccionario. Vete al diccionario” (em português, “veja no dicionário”). Consegui fazer uma xérox do fax e escrevi abaixo: “Gabo, vete a la mierda”, (em português, “vai à merda”). E mandei o fax. Ele guardou o meu. O dele o tempo consumiu. Então a gente tinha esse pacto. Ele dizia: “não me consulte de jeito nenhum”.
Aray Nabuco – Depois desse fax ele deu alguma orientação ou você teve se virar?
Tive que virar. Um tempo depois encontrei com ele na Espanha. Sabia que iria encontrá-lo e levei a edição do livro traduzido, publicado pela editora Record – aliás, ganhei o Prêmio Jabuti com esse livro. Disse: “Está aqui e ganhei um prêmio”. Dias depois perguntei: “Você passou os olhos?” Ele disse: “Não entendo nada de português”. Falei: “Eu queria saber se ficou bom”. E ele respondeu: “Não te deram o prêmio?”
Aray Nabuco – O trabalho do tradutor nem sempre pode ser palavra a palavra, às vezes exige buscar uma similar ou interpretar a ideia. Quais foram suas opções?
Não sou tradutor profissional, nunca fui. Comecei a traduzir muito jovem, quando tinha 24 anos. Fui embora do Brasil, me instalei em Buenos Aires e comecei a conhecer amigos escritores. Era um tempo que não havia internet, mas havia no Brasil muitas coleções de contos e revistas literárias. Comecei a traduzir os textos de meus amigos de lá, para que meus amigos de cá lessem e soubessem o que estava sendo feito. Costumo dizer que comecei a traduzir por afeto. É assim que continuo trabalhando até hoje. Só traduzo amigos, pessoas do meu universo ou livros que eventualmente são instigantes para mim. Virgílio Piñera, grande dramaturgo cubano, nunca conheci e traduzi um livro lindo dele. Muitas vezes recuso traduzir autores que respeito, mas que se estivessem no Rio não iria levar para jantar.
Aray Nabuco – O Mario Vargas Llosa, por exemplo?
Tenho uma relação cordial com ele, a gente não se vê há muitos anos. Gosto muito da obra inicial dele, mas realmente não o convidaria para jantar de jeito nenhum. Aliás me ofereceram traduzir livros dele. Delicadamente disse que aceitava a partir de 2022. Isso faz uns dez anos.
Fania Rodrigues – Então, o que te guia num trabalho de tradução?
Em primeiro lugar é a questão do afeto e pertencer ao mesmo universo. Em segundo lugar acho que a tradução é um triângulo amoroso onde todo mundo tem que ser leal. Tenho que ser leal ao idioma do autor, leal ao meu idioma e tenho que, sobretudo, ser leal ao texto. Acho que o melhor elogio que um tradutor pode receber é: “Nem parece tradução”.
Se alguém me faz elogios dizendo que encontrei saídas legais, então é porque não fiz direito. O bom elogio para mim é esse: “Nem parece tradução”. Tenho que escrever no meu idioma o que o autor escreveu no dele. Rompo todas as regras de tradução. Por exemplo, não leio antes o livro. Agora estou traduzindo um amigo meu, colombiano, William Ospina, que no Brasil ninguém sabe quem é, mas trata-se de uma figura muito relevante. Leio o livro conforme vou traduzindo. Vou dormir com aquela ansiedade, sem saber não o que vou traduzir, mas o que vou escrever no dia seguinte. Não consulto autores. O único autor que consultei a minha vida inteira, nos 18 livros dele, foi o Eduardo Galeano. Primeiro, o Galeano falava muito bem português. Segundo, porque eu morria de medo dele. Não era só meu amigo, era meu irmão mais velho. Se você ler livros do Eduardo em português vai notar que, em alguns casos, a distância do original é muito grande. Mas, tudo em comum acordo com ele.
Fania Rodrigues – Como foi seu primeiro contato com o Cem Anos de Solidão?
Fui um leitor tardio porque tenho alergia a best-seller. Me lembro de um aniversário meu em que ganhei seis exemplares de O Nome da Rosa (Umberto Eco). Dei cinco. Tem um que está aqui em casa e que não li. Eu tinha lido vários livros do García Márquez, entre eles Relato de um Náufrago, que é uma faculdade de jornalismo e não apenas uma aula. Tinha lido uma obra insuperável dele, que é Ninguém Escreve ao Coronel. Também O Outono do Patriarca. Daí fui ler Cem Anos de Solidão e reli algumas vezes. Em 2005, eu estava no México e a gente foi almoçar na casa dele. Disse a ele: “Vou começar a traduzir Cem Anos de Solidão”. Ele falou: “Depois me comenta porque não lembro nada do livro”. Dois anos depois retornei à casa dele para um daqueles almoços mexicanos, começa às duas horas da tarde e termina às sete horas da noite. E disse a ele que tinha descoberto coisas incríveis no livro. Uma carga poética que tinha me passado batido nas primeiras leituras. Outra coisa foi a carga erótica que tem esse livro que é uma coisa incrível e que corre o risco de passar despercebida.
Fania Rodrigues – A presença e a importância das amantes e prostitutas permeiam toda a obra, assim como em outros livros dele.
Ao longo de tudo. Há uma escala que começa com o machista. Acima dele está o macho muy macho. Acima dele está o macho latino-americano. Acima dele está o macho mexicano. Acima ainda está o macho cubano.E o topo, o Himalaia do machismo é o macho caribenho. Então, para o García Márquez escrever essa quantidade de amantes era absolutamente normal, faz parte desse universo, numa determinada época, em um determinado contexto geográfico e social. Lembro que há muitos anos, uns 40 anos atrás, em Cuba, um dos atrativos do Fidel, além da integridade, do pensamento revolucionário, era a quantidade de amantes que ele tinha. O García Márquez disse muitas vezes que não tinha toda essa imaginação que diziam e que ele, na verdade, era bom repórter. Esses componentes de observação, de pintura de um quadro, estão todos presentes na obra dele. Então, é normal que todas essas amantes estejam presentes. O pai dele, dom Gabriel Eligio García, que conheci bastante, tinha vários filhos fora do casamento e que dona Luisa Santiaga Márquez recebia em casa. Isso que ela era uma mulher de uma severidade, de um rigor incomparável. Para entender isso vamos ao Cazuza: “Faz parte do meu show”.
Fania Rodrigues – Como vocês se conheceram?
Conheci o García Márquez pelo telefone, em 1974, eu morava em Buenos Aires. Era janeiro ou fevereiro e o verão em Buenos Aires só é bom no tango do Piazzolla. Lembro que era de tardinha, eu estava dentro de uma banheira de água fria. Tocou o telefone e minha mulherdisse que era uma ligação de Barcelona (Espanha). Atendi e era o García Márquez. Ele tinha escrito uma série de textos sobre o fim da democracia chilena e o objetivo disso, além da denúncia, era vender e arrecadar dinheiro para a resistência civil política no Chile. 
Tinham escolhido um jovem autor para ir ao Chile e fazer entrevistas clandestinas com dirigentes da resistência política. O escolhido tinha sido o Eduardo Galeano. Os chilenos recusaram porque ele era muito conhecido, por questões de segurança. Era uma coisa altamente arriscada. O Galeano, sem me dizer nada, sugeriu meu nome. Eu era um escritor bastante conhecido, mas no meu prédio. Então não tinha essa preocupação com a segurança.E o García Márquez queria saber quem eu era.
Fania Rodrigues – Nessa época você trabalhava como jornalista?
Sim. Ele tinha lido uma ou duas coisas minhas na revista Crisis, que o Galeano dirigia, mas queria saber quem eu era. Me lembro que nesse dia que ele ligou fez um interrogatório. Perguntou o que fazia, se era jornalista, repórter, o que eu já tinha feito de matéria, como eu tinha virado correspondente em Roma, quantos anos tinha, se eu conhecia o Darcy Ribeiro. Eram perguntas assim, completamente desconectadas. Faltou perguntar que número de sapato que calçava. Depois de uns 20 minutos de chamada ele perguntou: “Quem está chamando, você ou eu?”. Disse: “Eu não tenho dinheiro para ligar para Barcelona e falar 20 minutos”. Ele disse: “Pois é, não sei se eu tenho, mas vamos continuar falando”. Aí ele me aprovou. Fiz as matérias, foram publicadas na revista Crisis, no jornal La Opinión e vendidas a um sem fim de jornais do mundo. Depois a gente manteve contato, ele de vez em quando ligava. Depois me mudei para Madri, após o golpe na Argentina (1976). Na época, em Madri, eu tinha muito contato com o Cortázar e o Cortázar encontrou com ele, falou de mim, que eu era um garoto, essas coisas. Em 1978 fui para Cuba escrever meu livro sobre a ilha (Anotações Sobre uma Revolução), soube que ele estava em Havana e fui até o hotel conhecê-lo pessoalmente e conheci. Um ano depois, saí da Espanha e fui para o México. No final de 1979, a gente se encontrou por acaso em uma livraria. No México eu era muito amigo do Rulfo. Toda quarta--feira, era igual missa de domingo para minha vó Ermelinda, era meu encontro com o Rulfo. O Gabo entrou na livraria e veio falar com o Rulfo, por quem ele tinha reverência. Para ele, Rulfo era uma espécie de Malu Mader, aquela coisa perfeita e inatingível. Daí ele disse: “Por quê você nunca foi almoçar lá em casa?”. Eu não tinha essa intimidade com ele, nem de longe. Mas foi a partir daí que a gente grudou e não se desgrudou mais, até o fim. A última vez que estive com ele foi dois meses antes dele morrer, já estava muito mal, já não reconhecia. Sou muito amigo, até hoje, da Mercedes (viúva de García Márquez), a gente se telefona. Estive no México em novembro, estive com ela umas duas ou três vezes. Foi uma amizade muito intensa. A morte dele para mim foi uma coisa muito violenta.
Fania Rodrigues – Você falou da carga poética de Cem Anos de Solidão. Eu diria também é um livro que nos deixa em estado de encantamento. Na sua opinião, como García Márquez chegou a esse resultado?
Não me pergunte isso que não sei responder. Como ele chegou a isso sendo quem ele foi, tendo vivido o que ele viveu? Para mim é muito difícil o que eu escrevo, que dirá os outros. Vou citar uma frase de meu amigo chileno Antonio Skármeta, autor de O Carteiro e o Poeta, que uma vez fizeram a ele uma pergunta meio complicadinha, assim como essa. Ele respondeu o seguinte: “Não sou ornitólogo, eu sou pássaro”. Me pergunte o que eu vi, não como voei.
Aray Nabuco – Há quem coloque o Cem Anos de Solidão como a maior obra da literatura da língua hispânica, atrás apenas de Dom Quixote, de Cervantes. Você concorda com isso? 
Não gosto muito desse tipo de competição. Por exemplo, acho que uma obra que mudou muito mais a literatura hispano-americana, mais que Cem Anos de Solidão, foi Pedro Páramo, do Rulfo. Aliás, o García Márquez também achava isso. Uma vez perguntei a ele, quando terminou de escrever O Amor nos Tempos do Cólera. Nessa época ele fazia comigo, o que tinha feito com outros amigos em Cem Anos de Solidão. Umas três vezes por semana a gente jantava e ele me contava o que tinha escrito. Quando o livro saiu não tinha nada daquilo. Não sei se ele testava as histórias comigo ou me enganava. Lembro que ele me convidou ir a Cartagena da Índia, enquanto ele escrevia, e me levou para passear pelo cenário do livro, mostrou a casa da Firmina Daza e a hora que ela aparecia na janela. Lembro que a gente ficou sentado na praça, olhando a janela, esperando ela aparecer. Quando deu 2h30 da tarde ele disse: “Hoje ela não virá, vamos almoçar”. Ele vivia o livro. E quando perguntei o que ele achava sobre o Cem Anos de Solidão, ele disso: “Olha, é um livro que vai ficar. Agora, daqui a cem anos, eles vão falar é de O Amor nos Tempos do Cólera, mas para mim, o meu livro insuperável é Ninguém Escreve ao Coronel”. Ou seja, ele mesmo não sabia. O que, sim, é verdade, é que Cem Anos de Solidão é o livro mais vendido do idioma espanhol, depois do Dom Quixote. Porém, a consagração que o Gabo mais gostava é que na biblioteca pública de Nova Iorque o Cem Anos de Solidão estava entre os cinco livros mais roubados, ao lado de Moby Dick (do escritor Herman Melville) e outros. Isso para ele era a glória máxima. “Sou um dos cinco mais roubados”, ele achava isso o máximo.
Aray Nabuco – Qual a importância do livro para você, então?
Sem dúvida é um marco na literatura hispânica do século 20, mas dizer que é o maior não sei. É o livro que revelou a América Latina para o mundo. Se for ver como se deu aquilo que se chamou de o “boom da literatura latino-americana” é um pouco parecido com o que aconteceu aqui no Brasil com uma geração da Música Popular Brasileira. Em curto espaço de tempo estourouraram luminosamente Chico Buarque, Edu Lobo, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Dori Caymmi, era um fenômeno. Antes tinha Baden Powell, Tom Jobim, claro, mas de repente veio um conjunto. Então, eu traçaria esse paralelo. De escritores latinos tinha Rulfo (México), Juan Carlos Onetti (Uruguai), Miguel Ángel Asturias (Guatemala), Pablo Neruda (Chile), Jorge Luis Borges (Argentina). Mas de repente, em um espaço de dois ou três anos surgiram Carlos Fuentes (México), Júlio Cortázar (Argentina), Gabriel García Márquez, Mário Vargas Llosa (Peru) e outros. Esse quarteto que conformou o núcleo do boom.
 Em 1973 surgiu um livro chamado Rayuela ou O Jogo da Amarelinha, que um ano atrás tinha aparecido La Ciudad y los Perros, que dois anos depois foi lançado La Región más Transparente e A morte de Artemio Cruz. São fenômenos que não vão se repetir. Pode ter tido, depois, compositores importantes no Brasil como Alceu Valença, João Bosco etc. Como tivemos escritores mais que interessantes na América hispânica, no Brasil também, desde logo. Mas, um conjunto concomitante que tenha produzido tanta maravilha e tanto peso, ao mesmo tempo, isso não vai se repetir. E desse conjunto de livros, entre 1962 e 1967, aí sim não tenho a menor dúvida que o mais importante foi Cem Anos de Solidão. Isso que a gente está o comparando com obras absolutas, com o glacê do bolo.
Aray Nabuco – Gostaria de fazer uma provocação. Se você tivesse que escolher, hoje, morar em Brasília ou em Macondo qual você escolheria?
Isso não é provocação. Isso é resposta óbvia, porque Brasília é o lado horroroso de Macondo. Brasília é Macondo naquela febre do esquecimento. Todo mundo esquecia tudo. Em Brasília hoje todo mundo esquece quem é Michel Temer, Renan Calheiros, esquece tudo. Você quer imagem mais monstruosa que Edson Lobão, comandando a sabatina do Alexandre de Morais e ainda ter que ouvir o chincheirinho* minero Aécio Neves, playboy de província? Isso é realismo mágico. O Gabo jamais teria imaginação para criar esse quadro. Com muita razão, no discurso que ele fez, quandorecebeu o Prêmio Nobel, “na verdade nós escritores latino-americanos precisamos recorrer muito pouco à imaginação”. Conforme dizia o Eduardo Galeano, “nessa América enlouquecida, a realidade parece muito mais maravilhosa e muito mais tenebrosa do que a mais fértil das imaginações”. Antes dessa entrevista, estava aqui maravilhado com o Alexandre de Moraes porque não consigo entender nada do ele fala. Vamos ter na corte suprema um cara com a aparência de leão de chácara de bordel de subúrbio, com uma fala de puxador de samba de escola paulista da terceira divisão. O que é isso? Se pelo menos a gente entendesse o que ele fala. É mais fácil entender o Celso de Melo. O que estou dizendo é que os caras conseguem superar qualquer imaginação. Eu iria para Macondo, sem dúvida. (*Gíria usada para definir usuários de cocaína)
Fania Rodrigues – O contexto histórico do livro também tem desdobramento na atualidade. A guerra entre os conservadores e liberais, raiz do conflito armado colombiano, está lá. Justamente esse ano quando a obra completa cinquenta anos, o conflito chega ao fim. Você pode falar sobre essa atualidade do livro?
Um grande escritor peruano, chamado Manuel Scorza, um autor fabuloso, dizia que nós, escritores latino-americanos, tínhamos desmentido os gregos, que diziam que a arte imita a vida, porque na América, às vezes, a arte anuncia a vida. Esse camarada tem uma cena em um de seus livros, em que uma pessoa deixa cair uma moeda de 1 sol na calçada de uma praça pública e ninguém pega a moeda, porque não lhes pertencia. Até que um dia alguém pega a moeda. Quem pega a moeda? O juiz civil da cidade. Isso causou uma explosão de rebeliões. Foi exatamente como nasceu aquele movimento peruano liderado por Tupac Amaru (líder de uma das maiores rebeliões indígenas do continente), que incendiou o Peru. Uma guerra civil horrorosa, contra os desmandos da Justiça e a desonestidade da corte suprema. Imagina isso no Brasil? Então, a atualidade de uma obra de arte é isso, anunciar a vida. Retratar e anunciar. Uma das grandes coisas da literatura hispânica, e da brasileira também, é provar a você através da memória e da imaginação que existem outras realidades ocultas. Que você é vítima de um sistema que te impede de tentar descobrir isso e que te obriga a aceitar a realidade tal como ela é vendida pelas elites dominantes, pelos meios de comunicação. O García Márquez, em todos os livros que ele escreveu desenvolveu uma literatura de denúncia. Não panfletária, mas de denúncia e anunciação.
Fania Rodrigues – Como foi conviver com todos esses escritores geniais, como Galeano, García Márquez, Juan Rulfo?
A coisa mais natural do mundo. Primeiro que a América Latina era outra, o tempo era outro. O professor Antônio Cândido descreve aquela época como os anos jovens. Só quem viveu aquilo vai saber. O século passado teve três grandes momentos. A Paris dos anos 20, a Espanha das vésperas da Guerra Civil e os anos 1970 na América Latina. Conheci o Galeano por acaso. Tinha chegado em Buenos Aires e tinham me pedido para entregar alguns envelopes. Naquela época se conspirava por escrito. Um dos envelopes o Fernando Gaspariano, do jornal Opinião e da editora Paz e Terra, me pediu para entregar a um jornalista uruguaio que chamava Alberto Carbone. Eu era muito menino, tinha 24 anos. Ele ia visitar o Galeano e me levou. Saí da casa do Galeano completamente fascinado com ele. E ele me adotou, mas me adotou no ato.
Eduardo tinha uma coisa que era a seguinte, ele ligava lá em casa e dizia: “O que está fazendo”.E eu que trabalhava de casa, naquela época escrevia para o Jornal da Tarde, dizia: “Tenho aqui uma matéria, mas é para amanhã”. E ele: “Então passa aqui que quero que você conheça o Mário”. Eu chegava lá e era o Mário Benedetti. “Quarta-feira vem almoçar que o Augusto está na cidade”. E era o Roa Bastos. “Olha, não conta para ninguém, mas hoje à noite no bar de tal hotel vamos tomar um uísque com o Julio”. Chegava lá era o Cortázar. Isso era tão natural, como se eu te dissesse: “Venha que quero que conheça um amigo”. Antes de ir embora do Brasil, vários amigos meus tinham dado certo. Nunca achei o Chico (Buarque) famoso. Pra mim é só o Chico.

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