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A transferência na histeria – um estudo no caso Dora de Freud 23 23 A transferência na histeria – Um estudo no “caso Dora” de Freud Sérgio de Gouvêa Franco Pulsional Revista de Psicanálise, ano XIII, no 132, 23-33 O trabalho examina a transferência da paciente e do analista no caso Dora de Freud, tomando como apoio o artigo “Intervenção sobre a transferência” de Lacan. A análise avança quando Freud interpreta a resistência de Dora. A análi- se pára quando tem dificuldade de reconhecer os complexos mecanismos de iden- tificação histéricos que vacilam entre uma bipolaridade sexual (hetero e homoerótica) – aí a resistência do analista. Palavras-chave: Transferência, histeria, Dora, Lacan, feminilidade The article examines the transference of patient and analyst on Dora’s case of Freud, using the Lacan’s article Intervention on Transference as a support. The analysis goes on when Freud is able to interpret Dora’s resistance. But analysis stops when he fails to recognize the complex mechanisms of identification on hysteria, which hesitate between two sexual poles (hetero and homoerotic ones) – there we can see the analyst resistance. Key words: Transference, hysteria, Dora, Lacan, femininity 24 Pulsional Revista de Psicanálise Se eu te amo, cuide-se. Joel Birman1 INTRODUÇÃO Freud atendeu esta moça de apenas dezoito anos, conhecida pelo pseudôni- mo de Dora, apenas três meses: entre outubro e dezembro de 19002. No iní- cio de 1901 ele escreveu sobre o caso, enquanto escrevia também “Sobre a psi- copatologia da vida cotidiana”, livro que saiu ainda em 1901. Mas o caso Dora só foi publicado em 1905, com o título “Fragmento da análise de um caso de histeria”3. Tudo indica que a demora na publicação se deu para proteger a priva- cidade da paciente. O título original do livro era “Sonhos e histeria, fragmento de uma análise”. O título abandonado aponta para o lugar central que a inter- pretação dos dois sonhos do caso ocu- pa no tratamento. De fato, Freud pen- sou o livro como uma continuação de seu fundamental A interpretação dos so- nhos, de 1900. Ele quer mostrar como os achados do livro sobre os sonhos po- dem ser aplicados na cura da neurose. 1. Título de artigo de Joel Birman (“Se eu te amo, cuide-se – Sobre a feminilidade, a mulher e o erotismo nos anos 80”) em M.T. Berlinck (org.) Histeria. 2. Os biógrafos de Freud confirmam que o atendimento de Dora se deu em 1900, ainda que ele tenha se enganado mais de uma vez imaginando que o ano tivesse sido 1899. 3. Bruchstück einer Hysterie-Analyse, em alemão. 4. Dora é um dos cinco grandes casos clínicos publicados por Freud, juntamente com Pequeno Hans, Schreber, Homem dos ratos e Homem dos lobos. 5. S. Freud. E.S.B., vol. VII, p. 15. 6. S. Freud. E.S.B., vol. VII, p. 23. 7. S. Freud. E.S.B., vol. VII, p. 24. O livro sobre Dora pode ser visto não apenas como uma continuação de A in- terpretação dos sonhos, mas também como uma ponte entre este e os “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, de 1905. Muitos conceitos sobre a teo- ria da sexualidade apresentados nos “Três ensaios...” já aparecem no caso Dora: a noção de que a neurose é o reverso da perversão, é um bom exemplo disto. Escrevendo para Fliess em 1901, Freud refere-se ao caso Dora4 como “a coisa mais sutil que já escrevi”5. Ele parece estar impressionado com a complexida- de que estava aparecendo na sua clíni- ca: descobre “a estrutura mais fina da neurose”6. Um dos objetivos explícitos do livro é exatamente “demonstrar a estrutura íntima da doença neurótica”7. Além de mostrar o fino tecido das iden- tificações múltiplas na histeria, o caso fez Freud aprofundar conceitos de sua teoria da sexualidade e da transferência. Ele já sabia há muito tempo sobre a etio- logia psicossexual da neurose, mas ain- da não tinha reconhecido plenamente a “importância da corrente homossexual A transferência na histeria – um estudo no caso Dora de Freud 25 nos psiconeuróticos”8. A falta deste re- conhecimento implicou um manejo de- ficiente da transferência que levou, como o próprio Freud reconhece, ao término prematuro da análise. Escrevendo para Fliess em 1901 depois do término da análise, ele fala da importância na histe- ria do conflito “desempenhado pela opo- sição entre uma atração pelos homens e outra pelas mulheres”9. Esta ambivalên- cia de identificações masculina e femi- nina na histeria, que descobriu em Dora, provocou profundamente o pensamen- to de Freud. Muito tempo depois do tér- mino do tratamento, Freud ainda conti- nua pensando sobre os temas nele en- volvidos10. O presente trabalho tem a in- tenção de iluminar a questão da transfe- rência na histeria a partir do estudo do caso Dora.11 A DUALIDADE TRANSFERENCIAL Jacques Lacan, em seu artigo “Interven- ção sobre a transferência”, discute a questão da transferência no caso Dora. Afirma que “a experiência psicanalítica ... se desenrola inteiramente nessa rela- ção sujeito a sujeito”12. A fala do pacien- te se constitui na presença do analista. Não é possível assim pensar o paciente como um objeto, como uma coisa com características a serem examinadas por um cientista devidamente distanciado. A psicanálise permanece como uma rela- ção onde um sujeito está diante de ou- tro sujeito. Paciente e analista relacio- nam-se e mutuamente influenciam-se. Trata-se de um diálogo, de uma dialéti- ca, diz Lacan: “A psicanálise é uma ex- periência dialética, e essa noção deve prevalecer quando se coloca a questão da natureza da transferência.”13 É no caso Dora que Freud reconhece claramente que o analista participa da transferência e não só o paciente14. É com esta experiência que fica claro para ele que sua escuta de Dora determina, ao menos em parte, o que ela vai dizer. Suas atitudes e interpretações podem abrir ou fechar a possibilidade do avan- ço da análise. Freud ainda não tinha tanta 8. S. Freud. E.S.B., vol. VII, p. 114, nota 2. 9. S. Freud. E.S.B., vol. VII, p. 16. 10. A prova disto é que Freud faz acréscimos e notas ao seu livro sobre Dora em 1923, mais de vinte anos após o seu atendimento, especialmente na última seção intitulada de postfácio. 11. O trabalho pressupõe o conhecimento da complexa trama analisada por Freud. A descrição detalhada do caso foi evitada por poder tornar-se enfadonha ou artificial pela exclusão do movimento interno do atendimento. Serge André possui um resumo do historial em um pará- grafo no seu livro O que quer uma mulher?, p. 146. 12. J. Lacan. “Intervenção sobre a transferência” (Pronunciada no Congresso Dito de Psicanalis- tas de Língua Românica, de 1951) in Escritos, p. 88. Vamos tomar o artigo de Lacan como um auxílio para ler Freud. 13. J. Lacan. Op. cit., p. 88. 14. J. Lacan. Op. cit., p. 90. 26 Pulsional Revista de Psicanálise experiência clínica; é com este caso que percebe o fenômeno dual da transferên- cia. Ele reconhece “as severas exigên- cias que a histeria faz ao médico e ao investigador”. Percebe que estas exigên- cias “só podem ser satisfeitas pelo mais dedicado aprofundamento, e não por uma atitude de superioridade e despre- zo”. Por fim cita Goethe: “Nem só a Arte e a Ciência/ No trabalho há que mostrar paciência”15. Ele percebe que está implicado no processo. Com hu- mildade e paciência é que o analista des- cobre em que lugar está colocado pelo paciente ou em que lugar se coloca in- conscientemente. Até este caso, Freud estava acostuma- do a pensar a resistência do lado do pa- ciente. O analista sempre trabalha para levantar a resistência, pensava ele. A par- tir de Dora, percebe que a resistência pode estar do lado do analista também. Ele já sabia que uma relação de con- fiança era necessária para vencer os “sentimentos de timidez e vergonha”16 do paciente de forma que pudesse falar tudo o que tem na consciência. Ele sa- bia que a interpretação do analista era necessáriapara trazer à tona o material inconsciente e recompor as lacunas de memória. Mas Freud pensava até aqui que o analista sempre ajudava a análise. A esta época, no entanto, ele percebe que o analista pode atrapalhar. A técnica fica menos diretiva: “... agora deixo que o paciente determine o tema do trabalho cotidiano”17. Dora se tornou tão funda- mental para Freud porque foi com ela que percebeu pela primeira vez que a análise não avançou por uma limitação do próprio analista, no caso, ele mesmo – Freud. REVIRAVOLTAS DIALÉTICAS No já citado artigo de Lacan, o autor francês diz ser possível pensar o caso Dora por meio de uma série de revira- voltas dialéticas. A interpretação do ana- lista produziria estas reviravoltas no re- lato do paciente. Dora conta que a Sra. K. e seu pai são amantes há muitos anos e dissimulam o relacionamento com ficções que beiram o ridículo. O terrível, anun- cia Dora, é que deste modo ela fica su- jeita às insinuações do Sr. K. Seu pai fe- cha os olhos para evitar chamar atenção sobre seu próprio relacionamento com a Sra. K. Dora seria uma espécie de moe- da de troca que compra o silêncio do Sr. K.: Quando ficava com ânimo mais exaspera- do, impunha-se a ela a concepção de ter sido entregue ao Sr. K. como prêmio pela tolerância dele para com as relações entre sua mulher e o pai de Dora; e por trás da ternura desta pelo pai podia-se pressentir sua fúria por ser usada dessa maneira.18 15. S. Freud. E.S.B., vol. VII, pp. 26 e 27. 16. S. Freud. E.S.B., vol. VII, p. 28. 17. S. Freud. E.S.B., vol. VII, p. 23. 18. S. Freud. E.S.B., vol. VII, p. 42. A transferência na histeria – um estudo no caso Dora de Freud 27 A primeira reviravolta na fala da paciente se dá quando Freud questiona esta pos- tura de simples vítima de Dora. Não so- mente pelo silêncio, mas pela cumplici- dade direta, Dora sustentara a relação dos amantes. Nas palavras de Freud: [Dora] tornara-se cúmplice desse relacio- namento e repudiara todos os sinais que pudessem mostrar sua verdadeira nature- za... Durante todos os anos anteriores ela fizera o possível para favorecer as relações do pai com a Sra. K. Nunca ia vê-la quan- do suspeitava de que seu pai estivesse lá. Sabia que, neste caso, as crianças seriam afastadas e rumava pelo caminho em que estava certa de encontrá-las, indo passear com elas.19 Então, Dora sustentava a trama dos re- lacionamentos que permitia os galanteios do Sr. K. Ela não é vítima, pelo contrá- rio, desfruta da atenção e presentes do Sr. K. Admitido este passo de verdade, é pre- ciso perguntar: por que subitamente Dora teria manifestado este ciúme ante a relação amorosa do pai? A segunda re- viravolta dialética se avizinha. Não é ape- nas o ciúme do pai que move Dora. Não há dúvida que ela se liga amorosamente ao pai e ao Sr. K., seu substituto psí- quico. Mas o que põe em marcha a ação de Dora, exigindo o fim do relaciona- mento do pai com a Sra. K., é a ligação que tem com ela: “Dora continuava ter- namente ligada à Sra. K. e não queria saber de nenhum motivo que fizesse as relações do pai com ela parecerem in- decentes”20, explica Freud. Elas tinham uma relação de intimidade: Dora ouvia as confidências da Sra. K. Sabia o estado das relações dela com o marido. Dora se identificava também com a Sra. K. no amor por seu pai. Quando Dora falava sobre a Sra. K, costu- mava elogiar seu “adorável corpo alvo” num tom mais apropriado a um amante do que a uma rival derrotada... Na verdade, devo dizer que nunca ouvi dela uma só pa- lavra áspera ou irada sobre essa mulher, embora, do ponto de vista de seus pensa- mentos hipervalentes, devesse ver nela a principal causadora de suas desventuras21, conta Freud. O fato que desencadeia a ação de Dora, que deixa a moça furiosa, é a descober- ta de que a atenção da Sra. K. por ela não era assim tão grande. De fato, a Sra. K. traíra o segredo de Dora em nome da preservação do relacionamento com o pai de Dora. A Sra. K. conta ao mari- do que Dora lê livros sobre temas se- xuais (Mantegazza). O Sr. K. defende- se, diante do pai de Dora acerca de sua insinuação à Dora, dizendo que alguém que lê livros assim pode muito bem fan- tasiar o episódio de assédio. A Sra. K. também não a [Dora] amava por ela mesma, e sim por causa do pai. Ela a 19. S. Freud. E.S.B., vol. VII, pp. 43 e 44. 20. S. Freud. E.S.B., vol. VII, p. 44. 21. S. Freud. E.S.B., vol. VII, p. 65. 28 Pulsional Revista de Psicanálise havia sacrificado sem um momento de he- sitação para que seu relacionamento com o pai de Dora não fosse perturbado. Essa ofensa talvez a tenha tocado mais de per- to e tido maior efeito patogênico... Creio não estar errado, portanto, em supor que a seqüência hipervalente de pensamentos de Dora, ... destinava-se não apenas a su- primir seu amor pelo Sr. K., que antes fora consciente, mas também a ocultar o amor pela Sra. K.22 O que move Dora é o ciúmes da Sra. K. Quando não se vê amada por ela, Dora ameaça suicídio e exige que o pai acabe o relacionamento com sua amante. A REVIRAVOLTA DIALÉTICA QUE FICOU FALTANDO O que Lacan procura mostrar em seu ensaio é que ficou faltando neste trata- mento de Dora uma terceira e última re- viravolta dialética, que Freud não pode fazer: “... aquela que nos mostraria o va- lor real do objeto que é a Sra. K, para Dora”23. A Sra. K. se transformou para Dora no mistério de sua própria femini- lidade, mas especificamente no mistério de sua feminilidade corporal. Lacan chega aqui ao que considera o cerne da questão. O problema para toda mulher “é no fundo o de se aceitar como objeto do desejo do homem”24. É por esta razão que a Sra. K. se torna o mis- tério da feminilidade para Dora. Ou seja, Dora precisaria da Sra. K. para poder reconhecer a sua própria feminilidade. Como ela não pode se aceitar como ob- jeto de desejo, ela precisa da Sra. K. para sustentar esta posição. Se Freud, em uma terceira reviravolta, tivesse podido orientar Dora para o reconhecimento do que significava a Sra. K. para ela, um mundo de novas informações sobre o relacionamento das duas poderia ter apa- recido. Freud explica que não pôde apreciar a tempo o laço homossexual que unia Dora à Sra. K.: Quanto mais me vou afastando no tempo do término dessa análise, mais provável me parece que meu erro técnico tenha consis- tido na seguinte omissão: deixei de desco- brir a tempo e de comunicar à doente que a moção amorosa homossexual (ginecofíli- ca) pela Sra. K. era a mais forte das cor- rentes inconscientes de sua vida anímica. Eu deveria ter conjeturado que nenhuma outra pessoa poderia ser a fonte principal dos conhecimentos de Dora sobre coisas sexuais senão a Sra. K., a mesma pessoa que depois a acusara por seu interesse nesses assuntos... Antes de reconhecer a importância da corrente homossexual nos psiconeuróticos, fiquei muitas vezes atra- palhado ou completamente desnorteado no tratamento de certos casos.25 22. S. Freud. E.S.B., vol. VII, p. 66. 23. J. Lacan. Op. cit., p. 93. 24. J. Lacan. Op. cit., p. 95. 25. S. Freud. E.S.B. vol. VII, p. 114, nota 2. A transferência na histeria – um estudo no caso Dora de Freud 29 Lacan assevera que esta dificuldade em reconhecer a tendência homossexual en- tre os histéricos se deve a um precon- ceito de Freud. Ele sente simpatia pelo Sr. K. e atração por Dora. Por ter se co- locado “um pouco demasiadamente no lugar do Sr. K.”26 ficou impedido de ver a atração de Dora pela Sra. K. e de inter- pretar esta atração. Por este motivo nar- císico contratransferencial, Freud se vol- ta ao amor que o Sr. K. inspiraria em Dora. O que nem sempre Dora confirma. Lacan pergunta ainda neste seu artigo o que de fato aconteceu na cena do lago que colocou Dora doente e necessitada de ajuda. A resposta está no próprio tex- to. O Sr. K. teve apenas tempo de dizer algumas palavras: “Sabe, nãotenho nada com minha mulher”27. Como resposta a estas palavras, Dora lhe dá uma bofeta- da. Deste modo se rompe o feitiço de Dora em relação ao Sr. K. Se ele não se interessa por sua mulher, então Dora também não se interessa ele. O interes- se de Dora pelo Sr. K. só se sustenta na medida em que ele está ligado à Sra. K. No momento em que ela percebe que não há ligação real entre ele e sua mu- lher, o triângulo se desfaz. A TRANSFERÊNCIA DE FREUD Lacan declara em outro artigo que Freud tentou modelar o ego de Dora28. Ele achava que Dora deveria se apaixonar por um homem. A transferência negati- va de Dora (que a levou a interromper o tratamento) deve ser entendida então como uma resposta (raivosa) às dificul- dades impostas ao tratamento pelo pró- prio Freud. Devido ao seu preconceito, Freud não pode ver a ligação de Dora com a Sra. K. Talvez, mais que isto, seja necessário dizer que o que escapou à compreensão de Freud foram as identi- ficações masculinas de Dora. O preço a pagar por esta falta de percepção foi o término abrupto da análise. Se Freud tinha uma transferência com Dora que toldou sua percepção, esta transferência deve ser analisada. Dora está identificada a um personagem mas- culino, o Sr. K., de maneira que ela pode facilmente se identificar com Freud. Freud percebeu o deslocamento pai de Dora/Sr. K./o analista Freud, mas ima- ginou que as figuras masculinas eram objeto de amor e não de identificação. A identificação viril de Dora, cuja ma- triz infantil pode ter sido sua identifica- ção com o irmão mais velho, não teve uma apreensão mais completa da parte de Freud. Podemos relacionar o discurso histéri- co de Dora ao desejo de Freud, como quer Serge Cottet29. A transferência de Dora se modula pelo desejo freudiano de 26. J. Lacan. Op. cit., p. 96. 27. S. Freud. E.S.B., vol. VII, p. 97. 28. Em “Os escritos técnicos de Freud”, Seminário I, conforme Serge Cottet em Freud y el deseo del psicoanalista, p. 41. 29. S. Cottet. Freud y el deseo del psicoanalista, p. 43 e sg. 30 Pulsional Revista de Psicanálise convencê-la a uma relação heterosse- xual. A esta altura da teoria, Freud não faz uma distinção clara entre objeto de amor e objeto de identificação. Então a ligação que vê entre Dora e Sr. K. re- duz ao amor. Mas a ligação com o Sr. K. é também e primeiramente identificató- ria. Dora se aproxima do Sr. K. para en- tender como um homem deseja uma mu- lher. O erro de Freud foi não perceber este lugar que o Sr. K. ocupava para Dora e transferencialmente o lugar identifica- tório que ele próprio ocupava para ela. A afonia de Dora evidencia claramente o lugar que o Sr. K. ocupa em seu ima- ginário. Em sua ausência, conta Freud, o sintoma piora. O poder da pulsão oral aumenta quando Dora está só com a Sra. K. A sua afonia tipifica o sexo oral com a amante de seu pai, mostrando como está identificada com o Sr. K. Esta identificação histérica com o Sr. K. per- mite a Dora ficar em um lugar onde pode desejar a Sra. K. A resistência aqui então é de Freud e não de Dora. Quando ele insiste em interpre- tar como amor o que Dora sente pelo Sr. K., estamos diante da resistência do analista e não do paciente. Quando ele se põe na posição de dono da verdade, impede que Dora se dê conta de seu de- sejo pela Sra. K. A resistência é falsa- mente imputada a Dora, quando, na ver- dade, ela é de Freud. O efeito desta re- sistência de Freud em Dora foi desper- tar a raiva e agressividade dela contra Freud, raiva que já sentia contra seu pai e o Sr. K., generalizando agora a todos os homens. Freud pode favorecer esta “agressividade” de Dora em relação aos homens não ven- do os fundamentos verdadeiros de sua re- lação com o homem, que é uma identifica- ção imaginária que estrutura a relação nar- císica, afirma Serge Cottet.30 Querendo colocar Dora em um bom ca- minho, Freud estimulou seu desejo de vingança contra todos os homens – uma conseqüência de sua alienação narcísi- ca, a saber, sua identificação com o Sr. K. e com Freud. Então, Dora se vinga de Freud rompendo o tratamento do mesmo modo como se vingou do Sr. K. e de seu pai. A MULHER COMO UM MAIS ALÉM A compreensão de que Freud teria in- troduzido um elemento resistencial na análise de Dora poderia eventualmente nos levar a conclusão de que ela estives- se fazendo um vínculo estritamente ho- mossexual com a Sra. K. Parece que foi este ponto de vista que Freud valorizou quando escreveu sobre o caso Dora após o seu término31. Os desdobramentos posteriores do pensamento do próprio Freud, no entanto, apontam para outra 30. S. Cottet. Op. cit., p. 46. 31. Conferir a última seção do caso, intitulada de postfácio. A transferência na histeria – um estudo no caso Dora de Freud 31 direção. O que parece estar em jogo efe- tivamente são os complexos mecanis- mos de identificação histéricos que va- cilam entre uma bipolaridade sexual. Dora, por um lado, se identifica com o Sr. K. (identificação masculina), com seu pai e com Freud para poder desejar a Sra. K. Por outro lado também se iden- tifica com a Sra. K. (identificação femi- nina), desejando ser amada pelo Sr. K. e por seu pai à maneira pela qual a Sra. K. é amada por esse último. Esta com- plexidade identificatória só encontrará al- guma tematização em Freud em seus ar- tigos no final de vida, especialmente os artigos sobre a feminilidade32. Freud en- tão se aperceberá da profunda assime- tria do Édipo feminino e se dará conta de que tanto menino como menina têm como primeiro objeto de amor a mãe. O chamado Édipo completo não está de- senvolvido à época de Dora. Serge André nos mostra em seu livro O que quer uma mulher?33, que no Semi- nário Mais, Ainda, Lacan fala da mulher como um mais além do desejo masculi- no. Neste seminário a feminilidade é vista além da condição de desejada pelo sexo masculino. Trata-se de um acréscimo de Lacan que não descarta o anteriormen- te dito sobre Dora e a feminilidade. Sem este desenvolvimento, Lacan também caracteriza a ligação de Dora com a Sra. K. como homossexual. Quando, reco- menda André, o melhor seria falar em “uma homossexuação do desejo de Dora, homossexuação ligada aos desvios das identificações pelas quais ela deve pas- sar para interrogar sua própria feminili- dade”34. A histérica se colocaria no lu- gar masculino para apreciar o valor que a mulher recebe do desejo masculino. Dora não forma um par sexual com a Sra. K., pelo contrário. Tendo demarca- do a posição da Sra. K., do ponto de vis- ta do homem, Dora conclui que gosta- ria de ser amada por um homem como a Sra. K. é amada por seu pai. O que à luz de Mais, Ainda se pode di- zer é que para Dora, a Sra. K. é objeto do amor de seu pai para além dela pró- pria, quer dizer, como suplemento de feminilidade da qual ela mesma se sente em falta. O mesmo vale em relação ao Sr. K., Dora pode aceitar seus galan- teios desde que permanece um mais além da Sra. K. Neste sentido, o processo todo vai denunciar nem tanto a homos- sexualidade de Dora, como o lugar super- valorizado que a Sra. K. ocupa para ela como encarnação da feminilidade. Recolocando então a questão transferen- cial, o que se precisa dizer é que o que Dora está fazendo é colocar a questão 32. “A dissolução do complexo de Édipo” (1924), “Algumas conseqüências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos” (1925), a conferência 33 sobre “Feminilidade” (1933) em “Novas conferências introdutórias sobre a psicanálise”, entre outros. 33. A. Serge. O que quer uma mulher? 34. Idem, p. 150. 32 Pulsional Revista de Psicanálise da feminilidade em sua análise com Freud. A pergunta sobre a mulher é fei- ta nesta relação analítica. Dora procura em Freud a resposta desta questão. Dora demanda dele o sentido de seu corpo e alma de mulher. Mas como nenhum sa- ber pode dar conta desta indagação, as respostas de Freud sãoinsuficientes... Ele aponta para questão da maternidade, uma resposta boa mas parcial, que faz Dora interromper a análise. Mais tarde Freud reconhecerá o limite do conheci- mento psicanalítico sobre a mulher: Isto é tudo o que tinha a dizer-lhes a res- peito da feminilidade. Certamente está in- completo e fragmentário... Se vocês quise- rem saber mais a respeito da feminilidade, recorram a suas próprias experiências, ou dirijam-se aos poetas ou aguardem até que a ciência possa dar-lhes uma informação mais profunda e mais coerente.35 CONCLUSÃO A histérica está em busca do amor. Ao seu médico apresenta sua demanda, não raro apresentando-a com intensidade e dramaticidade. Uma intensidade de de- manda que freqüentemente coloca o ana- lista em situação desconfortável. Uma intensidade de demanda que mobiliza re- sistências no analista. Como Freud no caso Dora, o analista pode ser enreda- do por esta demanda histérica. Como Freud, o analista pode se tornar a prin- cipal resistência ao avanço da análise. Como defesa à demanda de Dora, Freud usa seu saber para conter esta deman- da. Mas diz Lucien Israel “todo o saber sobre o outro corre o risco de ser re- dutor para o outro.”36 A histérica coloca sua questão na análi- se: como posso ser uma mulher? Se o analista tem paciência, se não se assus- ta nem atende a demanda, a pergunta pode se tornar: o que existe em mim que pode agradar aos homens? A histérica demanda e oferece amor ao analista per- guntando por sua feminilidade. Ao ana- lista cabe não acolher nem rejeitar este amor. Cabe a ele escutar este amor e interpretá-lo, para que a histérica descu- bra o que há em si mesma nesta oferta de amor. Cabe ao analista possibilitar à paciente que continue em análise, pro- duzir a revolução dialética que dissolve a resistência de que fala Lacan. Nas pa- lavras de Manoel Berlinck: Seria levado a dizer, então, que o ato do psicanalista [acting] é menos uma ação e mais a falta de ação que deixa de reatuali- zar no sujeito o des-centramento da posi- ção propriamente psicanalítica que relan- ça o sujeito em sua própria análise.37 35. S. Freud. Conferência 33 – “Feminilidade” in Novas conferências introdutórias sobre a psica- nálise. Traduzido e citado por Letícia Nobre in “Da histeria ao feminino: uma passagem em análise”. Pulsional Revista de Psicanálise, São Paulo, ano XII, n o 126, outubro de 1999. 36. L. Israel. Mancar não é pecado, p. 149. 37. “A histérica e o psicanalista” in M.T. Berlinck (org.). Histeria, p. 43. A transferência na histeria – um estudo no caso Dora de Freud 33 Quando o analista pode suportar seguir a histérica até este ponto... Quando acei- ta ficar no lugar de não dar resposta alguma à demanda, quando luta para desmontar suas próprias resistências, quando suporta o descontentamento his- térico que exige sem cessar do analis- ta38, pode-se manter aberto o espaço ana- lítico que permite a cada histérica pen- sar o que significa, para ela, ser uma mu- lher. BIBLIOGRAFIA ALONSO, S. Notas Seminário sobre Histe- ria. Instituto Sedes Sapientiae de São Paulo, 1999. ANDRÉ, S. O que quer uma mulher? Trad. D. D. Estrada. O Campo Freudiano no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 1987. BERLINCK, M.T. (org.). Histeria. Biblioteca de Psicopatologia Fundamental. Trad. M. Seincman. São Paulo: Escuta, 1997. COTTET, S. Freud y el deseo del psicoana- lista. Trad. C. A. de Santos. Buenos Aires: Hacia el Tercer Encuentro del Campo Freudiano, 1984. ETCHEGOYEN, R.H. Fundamentos da técni- ca psicanalítica. Trad. C.G. Fernan- des. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989. FENICHEL, O. Teoria psicanalítica das neu- roses. Trad. S. P. Reis. 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