Grátis
32 pág.

LUHMANN, Niklas A opinião pública
Denunciar
Pré-visualização | Página 1 de 13
ESTEVES, JOÃO PISSARRA (ORG.), COMUNICAÇÃO E SOCIEDADE, 2.ª ED., LISBOA, LIVROS HORIZONTE, 2009 A OPINIÃO PÚBLICA NIKLAS LUHMANN Muitos conceitos clássicos da teoria política encontram-se hoje numa situação contraditória: não os podemos, simplesmente, abandonar, nem levá-los a sério no seu sentido primitivo. Eles parecem caracterizar importantes avanços da sociedade moderna e dos seus sistemas políticos, mas fazem-no de uma maneira que já não satisfaz, sendo, por assim dizer, demasiado directa, demasiado compacta e simplificada. As mais recentes correntes científicas da teoria dos sistemas, da teoria da decisão e da teoria da organização, que procuram ampliar a capacidade científica de tratamento de factos complexos, abandonam o património dos conceitos tradicionais. As disciplinas que pretendem conservá-lo correm, por isso mesmo, o risco de se deixarem atrasar ou de se limitarem à hermenêutica e à história das ideias. Nestas circunstâncias, a reconstrução dos conceitos políticos clássicos através de novos instrumentos de pensamento apresenta-se como uma tarefa interessante. Aqueles conceitos eram mesmo, não só criações científicas, mas, sobretudo, respostas a uma consciência aguda de problemas reais. Conceitos como política, democracia, domínio, legitimidade, poder, representação, estado de direito, controvérsia, opinião pública não visavam, sobretudo, explicar os acontecimentos e os desenvolvimentos efectivos; antes serviam para a fixação de soluções de problemas enquanto conquistas institucionais, e a sua problemática própria consistia, em boa parte, no facto de a precedente problemática do sistema permanecer obscura e muitas vezes desconhecida e de a “solução” poder consistir apenas numa combinação de exigências de comportamento e problemas consequentes, e não na eliminação do problema. A ser exacta esta suposição, deveria ser possível, mediante a clarificação e a fundamentação teórica dos problemas em causa, reconduzir estas respostas conceptuais às suas premissas, reconstruir o seu sentido, reconhecer a função das estruturas e dos processos em questão, e por esta via proceder à sua comparação com outras possibilidadesi. Semelhante tentativa deve ser aqui empreendida com base no conceito de opinião públicaii. O presente trabalho expõe-se conscientemente à objecção de que tudo o que será de seguida tratado sob o rótulo de opinião pública já nada tem a ver com o respectivo conceito clássico ou, então, falha, pelo menos, o núcleo essencial e a moralidade característica daquela. Para irmos ao encontro dessa objecção, enunciem-se as premissas que possam ser objecto de ataque: baseamos o nosso direito a prolongar a utilização do conceito na continuidade existente entre o problema e o seu âmbito de solução e encaramos o problema a que o conceito se refere na contingência do que é jurídica e politicamente possível, e o âmbito de solução do problema no processo de comunicação política. Da referência ao problema da contingência deriva a necessidade de uma reinterpretação da relação entre opinião pública e processo de comunicação: a opinião pública não pode mais ser considerada, simplesmente, como um resultado politicamente relevante, antes deve ser vista como estrutura temática da comunicação pública. Por outras palavras: não mais deve ser concebida, apenas, causalmente, como efeito produzido e continuamente operante, mas funcionalmente, como meio auxiliar de selecção. 1. “Opinião pública” é hoje um conceito cujo objecto se tornou discutível, ou até mesmo inexistente. Para a dissolução do objecto contribuiu, o que é significativo, precisamente a intenção de investigar empiricamente a opinião pública. A investigação empírica teve de introduzir substitutos dos dois elementos característicos do conceito. A opinião foi substituída por respostas, fornecidas a inquéritosiii, enquanto o elemento da publicidade foi substituído pelo interesse selectivo dos políticos por tais “opiniões”iv, ou pela influência que determinados grupos exercem sobre a formação da opinião. Se se combinar os substitutos dos dois elementos do conceito, torna-se evidente a problemática subjacente àquelas pesquisasv. Em todo o caso, os êxitos indiscutíveis de tais pesquisas não se podem atribuir às premissas teóricas que as fundamentam. Embora esta problemática científica seja conhecida há muito tempo, permanece contudo viva a recordação do conceito clássico, e da sua função política. O tema da opinião pública torna sensível a insuficiência de uma teoria política que se regule exclusivamente pelos aspectos institucionais. O poder político e o exercício de cargos políticos parecem ser insuficientes para uma compreensão plena dos acontecimentos políticos e para impedir que estes se desviem do seu curso normal. Com perplexa ironia, define V.O. Keyvi a opinião pública como “ o espírito santo do sistema político”. Importa, por conseguinte, descobrir um conceito mais apropriado, que não precise de ser acomodado nem na psicologia social nem na teologia, mas antes possa ser integrado numa teoria do sistema político. Se recuarmos até à concepção liberal da opinião pública, a sua pré-história torna antes de mais evidente que ela estava destinada a libertar a política da sua ligação com a verdade, típica do direito natural da velha Europa. O desenvolvimento da sociedade na Idade Média tardia e no início dos tempos modernos conduzira a uma diferenciação mais acentuada entre religião, política, economia e ciência, o que teve como consequência o surgimento, nestes domínios parcelares do sistema social, de novas autonomias e representações de objectivos mais abstractas. Os tradicionais fundamentos de verdade em que assentava a política perderam, por essa razão, a sua credibilidade e o seu carácter de ideias directrizes. Ainda dentro do direito natural interpretado como direito da razão, o pensamento jurídico do século XVIII converteu- sevii à positividade (fixação do direito mediante decisões) dos fundamentos do direito, necessitando para tanto de um quadro de orientação moderno, que estivesse à altura da tão elevada contingência do que é juridicamente possível. Apesar de todas as tentativas no sentido de estabelecer fórmulas teleológicas invariáveis e princípios racionais enquanto limites da política, surgiu a necessidade de uma bitola directriz mais dúctil que a verdade, capaz de poder alterar os seus pontos de vista e os seus temas. Tal bitola já não podia ser concebida como verdade, mas apenas como opinião – como maneira provisoriamente retida de conceber o justo, a qual passara por determinados controlos da razão subjectiva e da discussão pública. A opinião pública é, por assim dizer, contingência política substantivada – um substantivo ao qual se confia a solução do problema da redução da discricionariedade do que é jurídica e politicamente possível. Se quisermos examinar mais pormenorizadamente, teremos, portanto, de perguntar pelos fundamentos desta confiança, pelas premissas estruturais do sistema em que ela assenta, para se poder então verificar se estas suposições são também, ainda, válidas para o sistema social da sociedade industrial avançada. Se as análises de Habermasviii se confirmam na realidade, podemos reconhecer que subjaz ao conceito clássico de opinião pública uma situação geral da diferenciação social que apresenta as seguintes características: os sistemas de formação da opinião são pequenos círculos onde se debatem ideias, nos quais os seres humanos se podem encontrar e aceitar como seres humanosix. Para a ordem interna daqueles círculos, é essencial que não ocorra separação entre conflito e cooperação, ou seja, procura-se