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Patrick Charaudeau, Para uma Nova Analise do Discurso1996

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Agostinho Dias Carneiro (org.)
Patrick Charaudeau
Giani David Silva/Hugo Mari/Paulo Henrique A. Mendes
Guy Lochard
Maria Aparecida Lino Pauliukonis/ Leonor Wemeck dos Santos/
Sigrid Castro Gavazzi
Ida Lucia Machado
Jose Carlos Santos de Azeredo/Regina Celia Cabral Angelim
Helenio Fonseca de Oliveira
Jean-Claude Soulages
CONSELHO DIRE TOR
Ronalda Fonseca Paes de Lima
Luiz Ricardo Leitiio
Lia de Oliveira
ASSESSORIA TECNICA
Jane Lucas Assunciio o DISCURSO DA MfDIA
CONSELHO EDITORIAL
Carlos Eduardo Falcao Uch8a
Cecilia Maria Boucas Coimbra
[odo Ramos Filho
Jose Novaes
Leonor Werneck dos Santos
Manoel de Carvalho Almeida
Manoel Ricardo Simoes
92,
Oficina do Autor
Rio de Janeiro - 1996
PARA UMA NOVA
ANALISE DO DISCURS01
Patrick Charaudeau
Por que falar de "nova analise do discurso"? Antes mesmo,
e preciso perguntar se a analise do discurso tern direito de
cidadania entre as ciencias da linguagem. Nao e ela considerada
por certos lingiiistas e particularmente pelos cognitivistas - sejam
eles americanos ou europeus - como parte de uma II periferia" mais
ou menos soft da disciplina, estando a parte hard voltada para os
estudos dos sistemas da lingua e do pensamento? E alern disso, a
pragmatica nao e suficiente para 0 estudo do aspecto discursivo
da linguagem como ato que tern efeitos sobre 0 interlocutor? Enfim,
se ja existe uma analise do discurso (na verdade existem varias),
''1 originaria de uma escola dita francesa representada inicialmente
por urn grupo de pesquisadores da universidade de Rouen, depois
por uma corrente de pesquisa que integrou as proposicoes teoricas
de M. Pecheux, por que prop or uma nova corrente?
E exatamente para situar-nos entre esses diferentes poles,
num projeto global que tenta ligar os fatos da linguagem entre si
segundo sua dimensao lingutstica, psicologica e sociologica, sem
por isso deixar de ser estritamente lingiiista, psicologo ou sociologo,
que nos propomos este qualificativo de II nova" analise do discurso.
e/ 1Texto traduzido por Agostinho Dias Carneiro.
5
o LINGUfSTICO E 0 SITUACIONAL discursiva no momento em que essa e considerada por meio doque se convencionou denominar uso da fala.
A significac;flOdiscursiva, pode-se afirmar, e uma resultante.
Uma resultante de dois componentes dos quais urn pode ser
dcnominado linguisiico, ja que opera com material verbal (a lin-
gua), sendo ele mesmo estruturado de maneira significante
segundo os principios de pertinencia que the sao proprios, e ou-
tro, siiuacional, ja que opera urn material psicossocial, testemunha
dos comportamentos humanos, que colabora na definicao dos se-
res ao mesmo tempo como atores sociais e como sujeitos comuni-
cantes. Trata-se, assim, de uma resultante, isto e, de uma forca
cujos componentes sao simultaneamente aut6no~0~,. em .sua
origem, e interdependentes em seu efeito, 0 que significa dizer
que nao se pode chegar a construcao da significacao discursiva
sem 0 estudo de urn ou outro desses componentes.
Marca-se, assim, uma posicao, desde 0 inicio, diante de urn i
ponto de vista demasiadamente /I sociologizante", para ~ ~ual 0
discurso nada mais e do que urn lugar de marcas das hipoteses
sociologicas. ou demasiadamente "linguistico", para 0 qual tudo
o que e "dizivel" e expresso pela lingua e, portanto, inscrito em Gf Q
marc as formais.
Essa tomada de posicao nao invalid a, evidentemente, esses
dois pontos de vista, que possuem, entre outras coisas, 0 merito
de destacar os limites de cada uma dessas abordagens. Ela permite
ainda avaliar melhor as lacunas a preencher e se destina a anunciar
de imediato que as observacoes, criticas e proposicoes que seremos
levados a formular se inscrevem num processo que tenta relacionar
a dimensao situacional e a dimensao linguistica do discurso.
Se nos pudessernos permitir urn pouco de superficialidade,
diriamos que 0 imperialismo que exerceu uma lmguistica "pura e
dura" sobre a analise dos fatos de linguagem cornecou a desa-
gregar-se com 0 surgimento, nesse campo, da nocao de enuncuicdo
que pouco a pouco transformou-se em conceito, e mesmo em teoria,
e, em qualquer caso, tornou-se 0 polo em torno do qual gravitam
diferentes correntes das ciencias da linguagem: pragmatica,
ctnomctodol6gica, conversacional, sociolingiiistica etc. Ao mes-
mo tempo. estabeleceu-se de fato - e isso, apesar das especificida-
d!'s mcrodologicas de cada uma dessas correntes - urn certo
lUI1Sl'IlS0 sobre a maneira de abordar 0 problema da significacao
1 - Os consensos tratados diferentemente
Para trabalhar com rapidez, pode-se dizer que este consenso
foi construido em torno das tres oposicoes seguintes: proposicional
X relacumal, expliciio X impliciio, inierno X exierno.
A primeira oposicao produziu uma mudanca definitiva
sobre a maneira de conceber a lingua: esta nao tem mais por
vocacao quase exclusiva voltar-se para 0 mundo referencial para
segmenta-lo, estrutura-lo e representa-lo de maneira factual.
Reconhece-se nela, simultaneamente a esse aspecto que se torna
somente uma funcao da linguagem, uma outra vocacao, funda-
mental, que consiste em significar a relacao que se estabelece entre
os parceiros do ate de linguagem. Mais do que isso, essa vocacao
(ou funcao) prevalece sobre a outra, que fica dependente dela.
Benveniste", inserindo a subjetividade no coracao da lingua-
gem por meio da expressao da pessoa eu, e a filosofia analitica de
Austin, colo cando em evidencia 0 fato de que 0 sentido se constroi
por meio das forcas relacionais (ilocutoria, perlocutoria), contribuem
para deslocar a problematica da construcao do sentido: ele nao se
constr6i somente na relacao lingua / mundo, mas numa relacao
triangular que subordina" a referencia ao mundo (a proposicional)
a intersubjetividade dos interlocutores (a relacional):
MUNDO
.)J;;L~
EU' :::...:_----__:.:::~TU
A segunda oposicao e a que obrigou os lingiiistas estru-
turalistas e gerativistas a nao mais considerar a linguagem como
teria feito Sao Tomas: 0 sentido, nao e somente 0 que e significado
explicitamente pOI' uma combinacao do semantismo dos vocabu-
2 BENVENISTE, Emile (1966). Problemes de Linguistique Gencrale. Paris, Gallimard.
3 Pode-se considerar que a oposicao proposiciorutllrelacional nao e nova e que e encontrada
em Descartes sob os termos entendimentoiooniade, enos gramaticos da Jdade Media sob
as termos diciusimodus. 0 que e novo e que 0 primeiro termo seja subordinado ao segundo.
6 7
los (at incluidas a polissemia e as conotacoes), mas e tambem 0
que nao e dito de maneira explicita, 0 que esta implicito. Mais
<linda, 0 sentido nao e somente 0 de uma ou outra dessas men-
sagens, tampouco somente a soma das duas; ele esta na inter-rela-
cao que as torn a solidarias uma da outra. E a observacao do
intercambio Iinguageiro' nos mostra claramente que os jogos de
comunicacao se realizam nessa inter-relacao,
A terceira oposicao, por fim, correlativa das duas prece-
dentes, e igualmente objeto de consenso, mas de maneira mais
polemica: ela se encontra no centro das discuss6es atuais.
Aceitar a existencia de urn sentido relacional e de uma di-
mensae implicita da significacao discursiva e aceitar que existe
urn "fora da linguagem" (realidade extralingiiistica) que se com-
bina de modo pertinente (mesmo se nao sabemos bern como) com
o local da manifestacao discursiva. E e ai que esta 0 problema.
Porque se nenhuma das abordagens da lingua gem definidas
anteriormente chega a negar a existencia desse "fora da lingua-
gem" empirico, os metodos de analise e sua teorizacao nao lhe
dao todos 0 mesmo estatuto. Para alguns, trata-se somente de urn
dado empfrico que nao pode ser integra do no estudo da linguagem;
para outros, ele pode ser estudado, mas permanece exterior a
linguagem enquanto outros se contentam em realizar pequenas
incurs6es nesse terreno.
b) inter-relacao entre dois espa~os enunciativos,
de producdo
(EU) e de inierpretacdo (TU) com a interposicao de uma aoaliaciio.
Tal postulado fundador da significacao esta no centro das
reflex6es te6ricas de certos autores.
Situando-se no prolongamento de Benveniste e passando
pela critica de Bakhtin, F. jacques" prop6e fundar a significacao
enunciativa do discurso sobre uma comunidade de enunciadores
e, mais geralmente, das instancias enunciativas que sao englobadas
pela relacao interlocutiva e seus efeitos dinamicos de interacao
verbal e de transacao sernantica, e nos quais sentido, referencia e
forca ilocut6ria se acham incluidas.
H. Parret (1983)6 prop6e urn "agenciamento piramidal de
subsistemas enunciativos" cuja base seria constituida pelo que ele
denomina uma comunidade enunciativa ... transcendental, a qual
atribui uma funcao fundadora, ja que ela "constitui 0 alicerce de
toda a piramide ..." a qual engloba as atividades de co-conven-
cionalizacao, e co-referenciacao (como em F. Jacques), e de
1/ co-percepcao do c6digo" .
Encontraremos em nosso postulado de intencionalidade as
dimens6es de co-reierenciaciio (Saber), de co-conuencionalizaciia
(poder) e de comunidade de enunciadores possivelmente trans-
cendental (Encenacao). Mas e necessario mostrar, antes, em que
os divers os enfoques precedentes (pragmatico, etnometodol6gico
etc.) assumem pontos de vista diferentes do nosso.
2 - As expectativas de uma teoria do discurso
o ponto de vista que sera desenvolvido aqui e 0 de que nao
se pode construir uma teoria do discurso como jogo de cornu-
nicacao sem levar em conta simultaneamente urn espa~o externo
e urn espa~o interno de construcao do senti do - 0 que nos leva as
dimensoes situacional e linguistica da significacao discursiva.
De fato, sera postulado que a significacao e construfda par
meio de duas inter-relacoes que se articulam ao mesmo tempo
uma sobre a outra:
a) inter-relacao entre dois espa~os de producao de sentido,
I'XiCnlO e interno;
PERCURSO CRITICO
Nao podendo passar aqui em revista todas as correntes da
ciencia da linguagem que se interessam pelo discurso e pelo
intercambio linguageiro, contentar-nos-ernos em mostrar as
diferentes orientacoes da pragmatica, com sua pertinencia e
legitimidade, mas que nao satisfazem a condicao que propomos
como principio do estudo da linguagem: 0 espa~o exierno como
4 () n-rmo /illSllngeim C uma traducao do frances langagier, significando aquilo que e
pr6prio cia linguagem de forma geral. (N. de T.)
5 JACQUES, F. (1982). Difference ei sUbjectivite. Paris, Aubier
6Procurou-se respeitar 0 texto de Patrick Charaudeau, que nem sempre indica a referenda
bibliografica de suas citacoes. Sempre que possivel, serao destacadas as referencias, mas
em alguns casos, como esse, ficara apenas 0 ultimo sobrenome do autor citado e a data
da publicacao, (N. de T.)
8 9
fundador do espac;:ointerne e, ao mesmo tempo, construido por
cstc: 0 espw;o inierno como dependente do espac;o exierno propondo
suas proprias categorias.
1 - Austin: condicoes, procedimentos e forcas
Desde as primeiras conferencias de Austin (1962), consa-
gradas a descricao dos enunciados performativos, encontra-se
formulada a ambivalencia que estara na origem da diversidade
de pontos de vista em pragmatica da linguagem. De fato, Austin
utiliza certos vocabulos que podem receber pelo menos duas
interpretacoes: condicdo, procedimenio e forc;a ilocut6ria.
Condiciio e empregado para fazer compreender que os
enunciados nao possuem urn seniido em si, mas urn sentido que
depende de algo mais - a enunciacao - e que e na relacao do enun-
ciado com esse algo mais que podem ser avaliadas (para os perfor-
mativos, por exemplo) as enunciacoes apropriadas ou nao. Ora,
tal nocao, ligada a urn algo mais do enunciado, pode ser interpretada
de dois modos:
a) inierna ao processo lingiiistico: a linguagem nao se reduz
a articulacao de alguns enunciados (encerrada a lingiiistica logico-
frastica), mas e 0 resultado de uma ampla combinacao textual que
se articula sobre dois pIanos, 0 do enunciado e 0 da enunciacao, e
isso nao mais numa perspectiva onde 0 enunciado seria domi-
nante, mas sim numa perspectiva onde ele estaria subordinado a
enunciacao. E sendo a pr6pria enunciacao expressa linguis-
ticamente por marcadores de toda especie, e na lingua que sera
preciso encontrar as condicoes de realizacao dos enunciados (dai
as taxinomias dos verbos de enunciacao e 0 desenvolvimento dos
estudos sobre os conectores).
b) exierna ao processo lingiiistico: os intercambics
linguageiros sao considerados como uma realidade rnais ampla
que a pura realidade Iinguistica que se encontra englobada por
aquela. Assim tambem, sem perder de vista 0 fato lingiiistico como
tal, as condicoes de felicidade dos enunciados devem ser procuradas
na observacao dos elementos de ordern situacional, os quais con-
dicionam a significacao dos fatos de linguagem.
Essa dupla interpretacao esta igualmente desenvolvida no
nome procedimenio ("Deve haver urn procedimento, reconhecido
t'.,
10
por convencao." Austin, 1970). Pode de fato existir urn procedi-
mento convencional no interior do processo linguistico (que preside
a relacao enunciado / enunciacao), ou exterior a ele como condi-
cao valida a configuracao do processo lingiiistico (que exige, por
exemplo, que 0 sujeito falante seja "presidente de mesa").
Finalmente, a expressao [orca ilocuioria e, tambern ela,
ambivalente, segundo destaquemos urn ou outro dos nomes que
a comp6em. Forca leva a urn algo mais externo ao processo
linguistico e obriga a observar 0 que ocorre acima e abaixo do ato
de enunciacao, enquanto ilocut6rio leva a urn /I algo mais" intra-
Iinguistico na medida em que pode ser recu perado a partir de cer-
tas marcas do aparelho enunciativo.
Esta serie de dupla interpretacao leva a propor a seguinte
questao: Q ate ge.H!lg.1::l~~emem geral (e a forca ilocut6ria em
particular), e de ordem_12D2C£.dimen.t(lLQl:LAg§_c.[~tiva? A primeira
orientando os estudos em direcao as condicoes de emprego e de
uso, a segunda em direcao ao sentido dos vocabulos, Eviden-
temente poder-se-ia ter como resposta que as duas, se se faz
referencia aos performativos. Mas os performativos constituiram,
desde 0 inicio, a arvore que esconde a floresta.
De qualquer modo, essa dupla interpretacao esta na origem
dos estudos que se desenvolveram em tres direcoes que vamos
cxplorar, destacando em cada uma delas urn problema particular.
2 - A pragmatica linguistica e 0 problema do sujeito [alanie
A posicao de defesa de uma pragmatica Iinguistica postula
que tudo 0 que e significado no mundo pelo intercambio
linguageiro e feito pela interrnediacao da lingua e, assim, com
marcas linguisticas (0 que estabelece urn primeiro principio de
pertinencia), Q sujeitoJaJante ~, .':lssjIllLi!l1tes de mais nada,
fun9€!fJ1_el1!~.IJ:ll~r:t.~.lil1g~[stico_.7A partir desse postulado. pode-se
observar, grosso modo, tres atitudes metodol6gicas.
A prime ira consiste em apostar que sera possivel ir do
Iinguistico ao situacional por uma serie de ligacoes de unidades
7 Faz-se aqui alusao a uma corrente, mais do que uma escola, que se constituiu com e a
partir dos trabalhos de M. Pecheux, B. Cone in, JM. Marandin, JJ. Courtine, R. Robin,
para s6 falar de alguns. Ver: Iviaterialitee discursiues. Presses Universitaires de Lille, 1981
e Lllllgages, nQ81, marco 1986.
11
com dimensoes variaveis. Esse foi 0 projeto inicial de Harris, que
tomava a frase como modelo de base para construir operacoes
transfrasticas. 0 discurso nascia de um alem da frase obtido pela
aplicacao das mesmas operacoes sintagmaticas e paradigmaticas
da frase a concatenacoes de frases. E assim, quando tal pro-
cedimento foi explorado no dominio da analise do discurso -
particularmente no caso do discurso politico -, somente submetidas
ao vies do que foi denominadoJ2Ii_:requisi.tcLOll.px£=CQllw.:utaidg916gi-
co, e que se
realizaram as interpretacoes discursivas. Como se ve,
;tio e resolvido aqui 0 problema do sujeito, porque de urn lado ele
e 0 ser Iinguistico ordenador da frase, e, por outro lado ele e um
ser ideol6gico abstrato, 0 segundo estando sobre 0 primeiro.
~nda. atilgde_.corresponde ao desenvolvimento da
descricao dos atos de linguagem, que, inicialmente, tenta definir e
classificar tais atos em funcao das marcas lingiiisticas que os
configuram (listas de verbos enunciativos, analise de conectores)
e, em seguida, numa segunda etapa, abre-se preferencialmente
para 0 contexto com a tomada de consciencia do fato de que tais
atos podem ser expressos indireiamenie; 0 que teve por conse-
quencia urn desvio de focalizacao, que estava acentuadamente diri-
gida para as vocabulos, para as condicoes de realizacao dos atos,
condicoes que algumas vezes sao gerais, e, outras vezes, particulares".
Nessa segunda atitude, 0 sujeito falante nao e estritamente
linguistico, Ele e sempre considerado como responsavel e organi-
zador dos enunciados, mas, alem disso, the e reconhecida a possi-
bilidade de ter urn projeio deialo? e entao de poder usar estrategias,
isto e, de poder jogar com as relacoes enunciado / enunciacao e
explicito / implicito. Mas esse ser linguageiro e totalmente des-
provido de identidade social. Dito de outro modo, e sucintamente,
o enunciado Alea jacta est sera analisado como urn ato de linguagem
cuja significacao discursiva variara segundo 0 locutor, seja Cesar
dirigindo-se a seus comandados, urn professor de frances a seus
alunos, um ministro aos membros de seu gabinete ou urn chefe de
estado a seu colega italiano. E se se deseja acrescentar a prova do
contrario, seguindo 0 exemplo dos performativos cuja descricao
se ap6ia sobre 0 estatuto juridico do sujeito falante (magistrado,
H Vcr os tr.ibalhos de Stampe, Warnock, Bach et Harnisch e Revanati, na sequencia dos
cnsuios de Searle (1979).Expression and meaning. Cambridge, Cambridge University Press.
'J !isla cxprcssao nao aparcce em Iugar algum como tal, mas ela convern perfeitamente
nestc cas". Vel':Charaudcau (1983). Langage ei discours. Paris, Hachette.
12
sacerdote, prefeito etc.), pode-se fazer notar que se trata ai de um
caso particular que se pode denominar aios de linguagem insiiiuidos,
porque muito particulates para que sirvam de modelo geral. Alem
disso, a questao permanece intocavel no que diz respeito a saber
se, mesmo no caso dos performativos, 0 estatuto juridico e uma
categoria interna da linguagem (da ordem de um papellinguagei-
ro) ou externa (da ordem de uma identidade socioI6gica). Por ou-
tro lado, tais estudos de pragmatica se dirigem preferencialmente
a verificar se, e como, as condicoes gerais de presuncdo Iingidsiica,
de periinencia, de sinceridade e de niio-coniradiciio sao respeitadas, e
desenvolvem muito pouco os estudos sobre as condicoes parti-
culares que obrigariam os analistas a interessarem-se de mais perto
pelas identidades psicossociais dos sujeitos.
A terceira atitude consiste em tomar claramente _posic;aoem----- ...~~--------.-..-~,~-..-.--~... ---.- ... ---_--._ .. , '~'-"""'" -;. .-'_-_,';_.'_-.--._.-- .. ""-~."~' -,'" .. '_-"-_'-"---, _-_,' -,'
relfjs.a,g.a()quee de ordemsituacional.E 0 que parece fazer Ducrot"
quando.declara t::?<:pE<:.~!ClIllenteque,se e ver~ade .qlle atras de todo
locutoj; hA um sujeita empirico, 0 lingiiista nao deve ocupar-se de
tal;;gjeitp. E assim numa inter-relacao entre um locutor exclu-
sivamente linguageiro e varies enunciadores que ele desenvolve
sua teoria da palifania e dos iopoi (1988).
Por muito legitime que seja esse posicionamento - que tern
ao menos 0 merito da clareza -, nao deixa de ser incomodo, Nao
para a analise dos iermos do discursa, como faz seu autor - porque
se trata nesse caso de definir as instrucoes enunciativas minimas
que sao veiculadas pelos vocabulos -, mas para a analise dos
intercambios linguageiros.
De fato, de um lado isto seria supor que 0 sujeito fala exclu-
sivamente no que concerne as condicoes de emprego dos voca-
bulos, e jamais em funcao das condicoes da situacao em que se
encontram os parceiros do ato de linguagem e sua identidade",
Sao elas no entanto a garantia do implicito do discurso. Se posso
inter pre tar 0 enunciado Voce pade me dar um PF? como Voce pode
me seruir um prate feita? e porque sou um gart;;am ao qual acaba de
dirigir-se urn fregues, numa eiiuacao onde cada um se encontra no
cxercicio de suas funcoes.
10 DUCROT, O. (1984). Le dire ei pas ledit. Paris, Ed. de Minuit.
II Ver igualmente a critica de Roulet (1985). L'ariiculaiion du discoure en fl'alu;ais
CIlIl tempera in. Berne, Peter Lang. p.4: "E assim que nao se encontrarao em Ducrot e
Anscombre analiscs de intercambios autenticos".
13
Por outro lado, isto seria reduzir 0 discurso a (mica finali-
dade revelada pela enunciacao de tal sequencia de enunciados, e
privar-se de trabalhar sobr~ a intencionalidade .mu~tipla q~e habi-
ta todo sujeito empirico. E tambem uma pohfoma do discurso
psicossocial que faz aparecer 0 sujeito como dioidido"', de que uma
das provas e 0 [alar desconexo":
Pode-se perguntar se, ao desenvolver sua teoria sobre os
iopoi, Ducrot nao sera obrigado a levar em conta este .sujeito
empirico, ja que os iopoi sao definidos como crencas partilhadas
sobre 0 mundo e que elas possuem forcosarnente urn conteudo
psicossocial.
Em conclusao, podemos perguntar-nos se essa orientacao
linguistica da pragmatica nao repousa sobre um mal-entendido: 0
fato de que a lingua tenha a possibilidade de descrever ou de
representar um ate nao quer dizer que ela se torne um ato; inver-
samente, urn ato de lingua gem pode fazer ou [azer fazer sem que
isso seja explicitamente descrito pelos vocabulos da lingua. E, em
consequencia. 0 sujeito falante, ser estritamente lingiiistico, nao
pode, por si mesmo, ser a testemunha da complexidade discursiva
do ato de linguagem. Nao ha relacao de reflexo entre 0 fazer e 0
dizer, este sendo 0 espelho daquele, pelo menos termo a termo.
3 - A pragmatica etnometodol6gica e 0 problema das regras
Por etnometodologia entendemos uma filiar;;iio (e nao uma
escola, nem mesmo uma corrente) antropo-etno-sociologica da
comunicacao, na qual se encontram, apesar de suas diferencas,
Garfinkel e Jefferson, Sacks e Schegloff, Labove Fanshel, Goffman,
e - na sequencia de Austin - Searle e Grice em torno das nocoes de
condicoes, regras, mdximas e tmplicaiuras conuersacionais.
Nao retomamos as discussoes que se desenvolveram a pro-
posito das regras de Grice, desde Wilson e Sperber" e que con-
tinuam hoje. Faremos nossas algumas dessas observacoes e acres-
,i-C:j IABROL, C. (1990). "Rcguler la construction de l'identite du sujet de discours", In:
I. 'intcmciion communicative. Berne, Peter Lang.
I \ IlI,A N CIIE- BENVENISTE, C. & JEANJEAN, C. (1986). Le franqais parle. Paris, INA LF-
Didier.
14 WI LSON, D. & SPERBER, D. (1979). "L'interpretation des enonces". In: Communications,
1\" 30. Paris, LeSeuil.
14
centaremos as nossas proprias para mostrar em que esse ponto de
vista rompe com a pragmatica linguistica sem classificar-se como
psicossocial.
o estabelecimento de regras ou de maximas conversacionais
colocara sempre 0 problema de saber-se qual e 0 seu campo de
aplicacao:
a) Ele e geral- assim, as regras se erigem em prindpios gerais
constitutivos que governam todo ate de linguagem, qualquer que
seja seu contexto ou sua situacao. Elas possuem um valor fundador
da linguagem, 0 que e ao mesmo tempo bastante sobre 0 plano
teorico e pouco sobre 0 plano operatorio, ja que elas nao permitem
discriminar a particularidade situacional dos intercarnbios lin-
guageiros. Neste caso, 0 nao respeito as regras tem por conse-
quencia invalidar a palavra (como ato de comunicacao) e nao mais
erial', e fazer descobrir implicitos, ja que 0 direito a palavra nao
existe mais.
b) Ele e particular - assim as regras
atuam como limitacoes
(normas) locais que regem 0 sucesso do ato de comunicacao
(reencontram-se as condicoes de felicidade); 0 seu desrespeito ora
invalid a 0 ato de lingua gem na situacao dada (e somente nessa
situacao), ora torna-se 0 indice de indirecao do ate", construindo
o implicito.
Esta segunda hipotese coloca 0 problema da determinacao
do (ou dos) criterio (s) que permitiria (m) definir 0 respeito ou
desrespeito a uma regra. Retomemos 0 exemplo 0 senhot pode me
seroir um PF? sob 0 ponto de vista da maxima de quanti dade de
Grice ("tanta inforrnacao quanta necessaria e nada mais"). Se
dizemos que a regra de quantidade nao foi respeitada, como
explicar 0 sucesso da recepcao da mensagem? Se, ao contrario,
diz-se que a maxima foi respeitada, ja que nessa situacao (nesse
coniraio, diria eu) toda eoliciiaciio de dizer torna-se uma soliciiacdo
de [azer, onde se encontra a pertinencia intern a dessa regra?
Tomemos agora os casos dos atos de desculpa e de polidez.
Urn estudo" mostrou que, no curso das negociacoes entre vende-
dor e cliente num mercado frances, as formulas de desculpa e de
15 GRICE, H.P. (1975) "Logic and conversation". In: COLE, P. &MORGAN, J. (org). Syntax
and Semantics, v. 3: Speech acts. New York.
16 MARTINEZ AYALA, J. (1988). L' interaction uendeuriclieni dans le marche alimeniaire en
plein air a Paris et a Mexico. Universite de Paris XIII. (Tese de Doutoramento)
15
polidez sao dirigidas reciprocamente (perdiio / perddo; desculpe-me /
niio, ° culpado fui eu; bom-dia / bom-dia); no mercado mexicano, ao
contrario, nao ocorre a reciprocidade, ja que ela seria suspeita de
querer dar uma licao ao outro - 0 que e culturalmente inaceitavel.
Qual das duas regras devera impor-se para descrever os atos de
desculpas e de polidez: a da reciprocidade ou a da sua ausencia?
E, nesse ultimo caso, dir-se-a que 0 principia da cooperacdo (PC) foi
desprezado, ja que 0 silencio se impos?
Wilson e Sperber" ja tinham nota do que as regras sao sempre
mais ou menos respeitadas, visto que tudo repousa sobre uma
maxima da relacdo; Flahaut (1979) partilha desse mesmo ponto de
vista, afirmando que todo ato de lingua gem repousa sempre sobre
uma visiio de periinencia; e, mais tarde, Verschueren (1980) prop6e
uma nocao suscetivel de unificar regras, maximas, condicoes e
implicacoes conversacionais, denominada por ela de condiciies de
apropriaciio.
No que nos diz respeito, proporemos distinguir, de urn lado,
urn modelo sociocomunicativo que seja suscetivel de descrever os
componentes do mecanisme linguageiro (nao como regras ou rna-
ximas, mas como principios gerais que fundamentam 0 direito a
fala), e, de outro lado, uma ieoria dos generos em torno da nocao de
coniraio que permite descrever, nao as condicoes de realizacao do
contrato (ja que 0 contrato se imp6e sempre como estando la por
suas pr6prias condicoes), mas as diferentes estrategias que podem
desenvolver-se a partir dele.
Mas, por ora, far-se-a observar que 0 ponto de vista etno-
metodol6gico prop6e considerar os intercambios linguageiros
como estrutura do comportamento humano, e de aborda-los pelo
vies de condicoes de realizacao e, assim, nao se sabe se eles de-
pendem de uma moral (regras prescritivas, normativas) ou de uma
antropologia (regras descritivo-ontoI6gicas, constitutivas). Alern
disso, nao existe, nessa orientacao, nenhum procedimento que
permitisse sistematizar a passagem das categorias condicionais a
categorias linguisticas. E que os atos de linguagem indiretos
confundem essa passagem, e volta-se a mesma questao: 0 que e
que permite conduir pela indirecao de urn ato de linguagem, as
limitacoes situacionais do intercambio ou 0 valor dos enunciados?
Enfim, este ponto de vista, que po de ser qualificado de
16
"antropoI6gico", nao diz nada sobre a dimensao psicossocial dos
intercambios linguageiros: uma nocao como proieciio da face
(Goffman, 1981) e tao geral (e portanto antropol6gica) quanta a de
simeiria e complemeniaridade da escola de Palo Alto (Watzlawick,
1967).
4 - A pragmatica sociol6gica e 0 problema da legitimidade
Trata-se aqui tambem de uma filiar;iio na qual se encontram
diferentes pesquisadores que se interessaram, cada urn a seu modo,
pela relacao linguagem-sociedade, mas cujo ponto comum con-
siste, em ultima analise, no fato de que e 0 uso social que sobre-
determina a linguagem e 0 construido (Veron, 1984).
Para Halliday e Hasan", a linguagem seria "modelada e de-
terminada pelo uso que se faz dela" e inversamente 0 social se
l'eflete na organizacao intern a da linguagem. Esse postulado - que
lembra a concepcao dos gramaticos do seculo XVII, para quem a
linguagem e 0 reflexo do pensamento (em Halliday, do social) -
define ao mesmo tempo 0 discurso como 0 lugar de iracos funcionais
da estrutura social.
Segundo Bernstein (1971,1973), a estrutura social condiciona
os c6digos lingilisticos (restritos / elaborados) e estes condicionam
o sucesso social.
Para Fishman (1971, 1972), uma sociologia da linguagem e
possivel no relacionamento de uma macrossociolinguistica (lugar
de sistemas de valor da comunidade Iinguistica) e de uma micros-
sociolingiiistica (lugar de categorias linguisticas), esta sendo
determinada por aquela.
Labov (1972), mesmo dedarando nao fazer "sociologismo",
considera que a hierarquia social condiciona os usos sociais que
constituem a personalidade do locutor e prop6e urn metoda em-
pirico que permite estabelecer as correlacoes entre as variacoes
sociais e as variacoes linguisticas.
Nao nos deteremos sobre esses diferentes pontos de vista
cuja caracteristica comum parece bern ser - apesar das dedara-
coes de intencao - que 0 sociol6gico sobredetermina de uma
maneira ou outra 0 linguistico.
1M HA LLID AY &HASAN (1973). Cohesion. in spoken and umten English. Londres, Longman.
17
Desejamos preferencialmente interessar-nos pelos recentes
desenvolvimentos das teses de Bourdieu sobre a relacao lingua-
gem/ sociedade que deram lugar a diferentes trabalhos em torno
da nocao de legitimidade.
Lembremos, inicialmente, que para Bourdieu (1982:103-104)
a pragmatica fez uma interpretacao unilateral e naiue das
proposicoes de Austin sobre afo1"l;ailoculoria. Ela procurou 0 poder
dos vocabulos nos vocabulos, enquanto ele se encontra nas
condicoes sociais de uso dos vocabulos: ... a fon;a de ilocucdo das
expressiies ndo poderia ser enconirada nos proprios ooctibuloe. como os
"perjormaiioos ", nos quais ela e indicada au melhor representada com
duplo sentido(. ..). 0 poder das palaoras niio e nada aiem que 0 poder
delegado do poria-palaora, e suas palavras - isto e, indissociavelmente,
a materia de seu discurso e sua maneira de falar - sao no maximo uma
testemunha entre ouiras da garantia de delegacao de que ele e investido.
Ao mesmo tempo, pode ser criticado na pragmatica Iinguis-
tica ter ela estudado os fatos da linguagem num "contexte ideal
de interacao ideal" (Encreve, de Fornel, 1983), e na pragmatica
etnometodol6gica limitar-se ao exame de uma categoria modesta
de conversacoes (chamadas telefonicas, pedidos de informacoes,
narrativas) cujo contexto propria mente social parece pouco
decisivo a ponto de poder ser "negligenciado" (id.). Dai a propo-
sicao desses autores de levarem em conta a realidade sociol6gica
dos falantes numa esiruiura objetiva, e nao conjuntural. E, para
fazerem isso, os autores utilizarao os conceitos de hdbiio, de mercado
e de capital propostos por Bourdieu.
Nao se trata de negar a utilidade desses conceitos, mas pa-
rece, sobretudo a vista das analises propostas por esses autores,
que esse ponto de vista e ainda correlacionista. Porque, se e ver-
dade que a estrutura social nao e mais tratada em categorias so-
cioprofissionais (CSP) algo simplistas, mas de preferencia em ca-
pital social e culiural represeniado, nada impede que este esteja ligado
as CSP (medico, professor, operario), pre-determinadas, conside-
radas como mais ou menos condicionantes.
Se se aceita que todo modelo sociolinguageiro deva procurar
articular urn espa<;ointerno e urn espa<;oexterno da linguagem, a
rcivindicacao por esses autores de uma esiruiura objetivante torna
tal articulacao - no melhor dos casos onde nao se pretendesse fa-
zcr prcdorninar 0 social- algo fixista.
18
De qualquer forma, essa posicao se encontra na linha direta
do pensamento de Bourdieu, para quem a legitimidade da palavra
do sujeito reside no social, ja que 0 sujeito nada mais e do que urn
poria-palaora que recebe uma delegac:;aode poder.
Pode-se objetar a isso que basear uma teoria de discurso no
pressuposto de que s6 existe atraves de sua legitimidade de porta-
palavra e inviabilizar uma analise dos fenomenos psicossocio-
linguageiros de credtbilidade. Ora, de urn lado, muitos intercambios
linguageiros se fazem sem que os parceiros conhecam a identidade
social de urn au de outro (conversacao de bar, encontros de rua);
de outro lado, muitos intercambios repousam sobre as jogos cornu-
nicativos que neutralizam 0 estatuto social do parceiro e operam
com caracteristicas psicol6gicas (0 humor, a carater etc.). Algumas
vezes a identidade social desaparece completamente em proveito
de urn papel abstrato, por exemplo, a comunicacao publicitaria,
de urn lado uma instancia complexa do ponto de vista economico,
que se configura em papel de anunciante e, de outro, alvos
diferentes configurados em papel de consumidor potencial; enfim, 0
que dizer do caso em que os sujeitos adquirem poder (poder de
influencia, de persuasao, como as lideres) por meio da operaciona-
lizacao de estrategias linguageiras, sem, por isso, ter nenhum poder
institucional e mesmo tendo algumas vezes uma posicao social de
inferioridade?
Em outras palavras, parece que reconhecer no sujeito falan-
te uma identidade sociol6gica nao quer dizer que esta deva ser
considerada como absoluta nem mesmo como necessariamente
predominante. Caso contrario, impede-se 0 estudo das estrategias
linguageiras e fabrica-se, ao fim de contas, urn modelo de analise
no qual nao ha lugar para uma concepcao de linguagem dinamica
que, integrando dados da realidade psicossocial, e suscetivel de
ter, em troca, uma influencia sobre a dimensao psicossocial dos
intercambios linguageiros.
Ora, e necessario urn modelo no qual 0 espa<;oexterno (lugar
de legitimidade) penetre 0 espa<;ointerno, sendo construido por es-
te (lugar de credibilidadei.
5 - Balance critico e proposicao de urn ponto de vista
o postulado de partida era que a significacao discursiva e a
19
resultante de do is componentes: 0 situacional e 0 lingidstico.
Ora, 0 que e que se observa? Do lado lingiiistico, a descricao
das marc as do discurso (elas sao ditas II do discurso" porque sao
reveladoras de uma parte do processo de enunciacao), ou das
ligacoes de enunciados, depende de context os idealizados, con-
siderados fora de situacao, ja que nao sao levadas ern conta as
caracteristicas psicossociais do sujeito falante. Do lado situacional,
nos sao propostas descricoes sobre os mecanismos gerais dos
intercambios linguageiros que nao se atern ao aspecto psicossocial
do intercambio (ponte de vista antropol6gico), descricoes de
situacoes de intercambios muito localizados (ponto de vista niti-
damente etnol6gico) e que ao mesmo tempo nao podem fundal'
conceitos gerais, ou descricoes de tipo correlacionista entre do is
espa<;os pre-estruturados (ponto de vista sociol6gico) que nao
permitem compreender como a linguagem age, pOI'seu lado, sobre
o psicossocial. Este ultimo ponto de vista e bern uma teoria socio-
16gica da linguagem, e nao uma teoria social do fato linguageiro.
Cada urn desses pontos de vista tern evidentemente sua
razao de ser, ja que define claramente seu principio de pertinen-
cia; mas 0 que faz corn que nao possamos adotar plena e exclu-
sivamente nenhum deles e que cada qual descreve os fatos da
linguagem como se fossem portadores de urn s6 jogo de signifi-
cacao da parte de urn s6 sujeito falante. Ora esse jogo e representado
pela intencionalidade argumeniaiioa de um sujeito linguieiico (a
polifonia de Ducrot e estritamente linguistica. ja que ela discute
varios enunciadores, todos seres de fala; sobre 0 plano da signi-
ficacao dis curs iva s6 ha monofonia, ja que 0 sujeito dito empirico
e rejeitado); ora ele e representado pelos comportamentos de
proiecdo de face como condicoes preparat6rias de mecanismos
interativos; ora e 0 implicito que se encontra nos atos indiretos;
ora, enfim, a revelacao de urn certo capital social ou cultural. Ern
contra partida, os fatos de linguagem sao portadores de varies jogos
c eles testemunham urn sujeito complexo, na verdade dividido.
Urn mesmo enunciado numa situacao comunicativa dada
tcstcrnunhara de urn sujeito que tera, simultaneamente, uma certa
inlcnciio discursioa, urn certo comporiamenio de proiecdo, varies
itnplicilo« a deixar entender, e uma certa identidade social a manifestar
(voluntariamente ou nao),
A SOiU\;lO,para quem procura analisar a complexidade da
20
significacao discursiva, estaria do lado de urn projeto federativo,
como propoe 0 grupo de Genebra (E. Roulet,1985)? Pode ser, mas
vemos af alguns inconvenientes:
a) pode-se perguntar como e possivel construir urn princi-
pio de pertinencia na intersecao de varies principios de pertinen-
cia tao diferentes como os apresentados nas seis correntes do grupo
de Genebra (por isso nossa posicao e a do antrop6fago e nao do
federativo );
b) urn tal projeto nao leva ern conta a dimensao psicossocial
do sujeito falante. Alern de 0 grupo estar num estagio onde
desenvolve seus trabalhos entre 0 nivel das incursoes e dos aios de
linguagem, deixando 0 nivel da negociacdo ao postulado goffma-
niano da face, parece que seu objetivo nao e 0 de prestar contas
dos textos. Ele reivindica a escolha II de trabalhar sobre discursos
completos resultantes de interacoes autenticas ..."19, mas os extra-
tos dos discursos citados, tao longos quanta sejam, s6 se destinam
a ilustrar e a verificar as categorias construidas, e nao a dizer
alguma coisa sobre 0 objeto discursivo propriamente. E que - e
necessario declarar em alto e bom som - nao se pode dizer nada
sobre os objetos discursivos se nao se dispoe de uma teoria dos
generos;
c) enfim, e este e um a priori de nossa parte, tememos sempre
que um modelo fortemente hierarquizado, como 0 que propoe esse
grupo, impeca a descoberta da multiplicidade do que chamamos
os posslveis inierprelaiiooe",
o pr6prio Austin declarou: 0 que se necessita, parece-me, e
uma teoria nova, ao mesmo tempo completa e geral, do que se faz ao dizer
algo, em todos os sentidos dessa frase ambigua, e do que eu denomino aio
de discurso, nao somente sob este au aquele aspecto, abstracdo feita
de todo a resto, mas tomada em sua totalidade+.
Nao se po de trabalhar sobre essa "totalidade"se nao se
dispoe de uma teoria do situacional em relacao corn 0 lingidsiico, e
de uma teoria do Iingitietico ern relacao corn 0 situacional. Ern ou-
tras palavras - e para evitar cair na problematic a de urn ponto de
19 ROULET, E. et al. (1985). L 'articulation du discours en [rancaie coniemporain. Berne, Peter
Lang. p. 4.
20 CHARA UDEA U, Patrick (1983). Langage ei discours. Paris, Hachette.
21 Revista Communications, n'' 32. Paris, Seuil, 1980.
21
vista macrossocial oposto a urn ponto de vista microlingiifstico,
au a de uma sociologia aplicada a linguagem (ou correlacionada a
ela) -, e necessaria problematizar a linguagem num modelo que
constroi a social em sociolinguageiro e 0 linguistico em socio-
discursivo. Quer dizer que, de urn lado, ha categorias psicossocio-
logicas que penetram a linguagem e se encontram transformadas
em categorias psicossociolinguageiras, e, de outro lado, as cate-
gorias linguisticas que se apresentam como instrucoes de sentido
procedurais e que, consideradas em
contexto e situacao particulares,
tornam-se indicios possiveis de significacao psicossociodiscursiva
numa pertinencia ora intern a, ora externa ao corpus.
o problema de fundo, pais, sera: Sobre que nos apoiamos para
fazer "tnierencias inierpreiatioas "] Eis ai porque dissemos anterior-
mente que nosso ponto de vista era a do antropofago, que pode
ser leva do a alimentar-se de certos conceitos tornados aqui e ali
(tais como Iegitimidade, mercado linguisiico. proiecdo da face, encenacdo,
negociaciio, marcadores, coneciores etc.) para tornar a servi-los
transformados num outro lugar de pertinencia, num outro modelo,
que seja estritamente linguageiro.
Qualquer que seja ele, a primeiro movimento (do psicosso-
cial a linguagem) leva a construcao do que denominamos modelo
sociocomunicativo e, correlativamente, a uma definicao do objeto
discursivo numa ieoria dos generos; a segundo movimento (da
lingua ao dis curs iva) define urn procedimento de analise que con-
sidera a texto como uma superficie semiolingiifstica composta de
signos-ineirucoes que se tornam signos-indices em funcao das carac-
teristicas do genera e da encenacdo do sujeito.
Propomos, assim, explorar a que segue: qual e a fundamento
da linguagem e qual a modelo dai proveniente.
o QUE FUNDAMENTA 0 ATO DE LINGUAGEM
1 - A escolha de urn postulado
Urn postulado determina e justifica a raciocinio que leva a
construcao de urn edificio teorico e de sua metodologia. Urn
postulado, par definicao, nao po de ser demonstrado, mas ele nao
n<1SCl' do nada. Ele se elabora no espirito a partir de observacoes
22
ernpiricas que, colocadas em relacao umas com as outras, acabam
por construir os pilares que constituirao as alicerces do edificio
teorico. Evidentemente tais observacoes, par empiricas que sejam,
nfio sao fruto do acaso. Sao a resultado de uma construcao in-
telcctual que foi elaborada em torn a do estudo (au dos estudos)
de urn fenomeno particular, ele mesmo objeto de uma estrutu-
racao dependente das hipoteses que presidiram seu estudo. Trata-
se da intertextualidade da ciencia em relacao a qual deve ser
avaliado todo discurso demonstrativo e que, e evidente, impede a
pesquisador de fazer a jogo da inocencia au da independencia
(me sma quando escreve em prime ira pessoa).
Queriamos, assim, apoiar-nos num certo numero de obser-
vacoes para melhor justificar nosso postulado de intencionalidade.
A prime ira observacao fala da necessidade de utilizar a nocao de
"contrato de comunicacao".
Ia se tera notado que entre as reacoes possiveis de urn inter-
locutor vis-a-vis de urn locutor que the dirige a palavra, ha uma
que consiste para a interlocutor em negar a seu proprio papel. Tal
comportamento - que po de manifestar-se de modos diversos= -
nega ao mesmo tempo a existencia do locutor: se nao ha TU, nao
ha EU. 0 que nos leva a pensar que todo sujeito falante deve
preferir encontrar-se em presenc;a de urn interlocutor que nao esteja
de acordo com ele - porque so par esse fato ele a reconhece, ao
menos, como parceiro de linguagem - do que de urn sujeito que,
negando-se (circunstancialmente), nega as interlocutantes e, assim,
a proprio contrato de comunicacao,
. Concluir-se-a que uma das condicoes minimas para que
exista urn tal contrato reside no fato de que as dais parceiros do
intercambi? se reconhecam urn ao outro em seu papel de inter-
locutante. E para reivindicar essa exist en cia do sujeito falante que
se remete a expressao Eu niio falo para as paredes!
A segunda observacao aborda a fenomeno geral do "mal-
:ntendido". Os dais parceiros se reconhecem em seu papel de
mterlocutor na medida em que produzem signos de intercambio
(termos de referencia, replicas, interrupcoes etc.), mas, levan do
em consideracao seu proposito, eles so podem constatar (mais ou
menos conscientemente) que suas intencoes de comunicacao nao
22 Ver CHARAUDEAU (1984). "L'interlocution comme interaction de strategies
discursivcs". In: Verbum, VII.Un. de Nancy II.
23
se encontram sempre refletidas (ilusao da transparencia) no
proposito do outro. Entre os clash e as tentativas de "ajustamento
consensual", nao pode deixar de operar-se nos sujeitos falantes
esta tomada de consciencia: sobre a cena de comunicacao, 0 sentido
circula com dificuldade, os personagens se entendem mal, se
compreendem com atraso e respondem algumas vezes a uma
replica que vern de outro ponto; para cada urn deles 0 outro nao e
jamais 0 seu duplo, raramente aquele que ele pensava; 0 outro
tern sua propria liberdade (ou alienacao) na construcao do senti-
do; 0 outro e urn problema.
Ao mesmo tempo, 0 sujeito falante sabe (surdamente) que,
mesmo quando quer dizer tudo, ele nao pode faze-lo por definicao:
porque ele mesmo nao e mestre dos efeitos que produz.
Pode-se ver, ja aqui, 0 que nos distingue de Goffman na
formulacao, Porque nos nao chegaremos a dizer que" 0 outro no
ponto de partida e uma ameaca". Dizemos que, tomando conscien-
cia do duplo fato que para comunicar ha necessidade do outro
(EU so existe atraves de TU e vice-versa), e que ele nao po de domi-
nar esse outro totalmente, 0 sujeito falante considera que falar e
arriscar-se: a incompreensdo ou a negacao. A ameaca e 0 proprio ato
de comunicacao.
Testemunha des sa tomada de consciencia: 0 "falar des-
conexo". As hesitacoes, repeticoes, diferencas de elocucao, reto-
madas, antecipacoes e autocorrecoes as quais se po de entre gar 0
sujeito falante constituem a marca dessa situacao conflitiva na qual
ele se encontra.
A terce ira observacao se refere ao que se poderia denomi-
nar aptoximaciio relacional. Tal fenomeno e correlato aos preceden-
tes. 0 reconhecimenio reciproco dos parceiros, nao podendo ser urn
dado de partida, e necessario construi-lo, e faze-lo socialmente.
Dai 0 fato de os membros de uma comunidade se dotarem de
indices relacionais que funcionam como signos de reconhecimento
a priori. E 0 que alguns denominam indices eticos e contribuem para
a construcao da mascara social (codigos de polidez) que justifica
o papel dos interlocutantes.
Reencontram-se aqui os elementos da [uncao fatica de
[akobson, assim como as Iimitaciies dos rituais de abordagem de
Coffman, que so consideramos como marcas de urn compor-
huncnto rcvelador do problema da legitimidade.
24
A quarta e ultima observacao se refere ao que se poderia
denominar a pertinencia do saber. E 0 fato de que nenhum sujeito
possa falar sem referir-se explicitamente ou implicitamente a urn
dominic de saber pre-existente. Simplesmente porque outros ja
falaram e, a forca de falar, sedimentou-se urn saber (de maneira
mais ou menos frouxa, mais ou menos constituida), saber esse que
se torna, na instancia me sma da profericao de urn nova palavra,
referencia dessa quanta a seu conteudo, E 0 que a tradicao da
analise do discurso denomina interiexiualidade.
Em consequencia, para evitar ser desqualificado, todo sujeito
falante deve empenhar-se para que 0 interlocutante possa atribuir
pertinencia a seu proposito, ligando-o a urn certo dominic do saber.
Assim, ele nao podera ser criticado de "falar para nada dizer".
Essas observacoes nos levam ao problema do reconhecimenio do
sujeito, em seu estatuto de ser comunicante. E necessario que lhe
seja reconhecido 0 dire ito a palavra.
2 - 0 postulado de intencionalidade: 0 direito a palavra
Trata-se de que 0 sujeito falante - comunicante ou inter-
pretante - seja reconhecido como sujeito falante. Isto e, ja que ele e
admitido segundo urn outro postulado basico (fundamentando a
significacao segundo 0 principio da percepcao das diferencas),
ele nao e 0 sujeito falante sem 0 outro - nada de locutor sem inter-
locutor, nada de EU sem TU -, ele necessita de que cada parceiro
do ato de comunicacao seja reconhecido pelo outro como digno
de ser escutado, em outras palavras como tendo direiio a palavra. E
a relacao com 0 outro que fundamenta esse direito.
Com essa unica condicao
podera ser suposto que 0 sujeito
falante nao e aliena do, ele nao escapa ao criterio de normalidade
do humano, e entao sera possivel atribuir uma pertinencia in ten-
cional a seu plgjeto dejala .
.--.--~-~
As hist6rias de loucos existem precisamente para testemu-
nhar 0 contrario do que e a ausencia de pertinencia intencional: 0
sujeito falante nao pode ter projeto de fala fundado em razao. Para
salvar (recuperar) a historia de louco, e preciso proceder como
diante da poesia: dar-lhe a possibilidade de discutir 0 criteria de
normalidade social, discussao que permitiria entrever a perspectiva
de urn outro lugar de pertinencia e, assim, de uma outra signi-
25
ficacao do mundo. E para que essa nova significacao possa se impor
seria necessario que 0 sujeito-louco fosse legitimado por urn
estatuto qualquer de poder, e tornado crivel por urn certo saberfazer,
sem 0 qual ele seria desqualificado pelas etiquetas do genero: "doce
sonhador", "utopico" etc.
Em qualquer caso, encontram-se aqui reveladas as tres
c~:mdi<;6esque fundamentam 0 direito a fala: ~--.
a) uma e relativa ao Saber: sera denominada reconhecimenio
do Saber;
b) outra e relativa a posicao de Poder do sujeito: sera deno-
minada reconhecimento do Fader;
c) a terceira e relativa a competencia do sujeito: sera deno-
minada reconhecimento do Saber faze1'.
o reconhecimento do Saber
o dorninio do saber e 0 lugar onde circulam os discursos de
verda des e de crencas. Mas nao se trata aqui de urn debate filosofico
em tor no do Verdadeiro e do Falso destinado a fundamentar 0
Conhecimento, nem de uma regra de conversacao (quase deon-
tologica) Que a contribuicao seja ueridica (Grice), nem de uma
condicao pragmatica de sinceridade - que nos vern da retorica
classica - e que consiste em afirmar que deve-se crer no que se diz
(ponto de vista subjetivo) e que a que se diz vale pela verda de sabre a
mundo (ponto de vista objetivo).
Trata-se aqui, entao, da definicao de urn dominio em termos
de discurso sabre a mundo. Os sujeitos de uma comunidade social, a
forca de trocar praticas discursivas e representa<;6es sobre essas
praticas, acabam por construir (sedimentacao progressiva)
significados consensuais. Esses constituem os pontos de referencia
que permit em aos parceiros da comunicacao movimentarem-se
nas repreeeniacoes supostamente partilhadas (RSP) concernentes a
percepcdo do iangioel (consenso sobre 0 mundo fisico), a experiencia
do vivido (consenso sobre 0 mundo dos afetos e sobre 0 mundo
das acoes), a prova do raciocinto (consenso sobre 0 mundo do
intelecto ).
Estes consensos nao sao /I a verdade" sobre 0 mundo. Eles
/I sao", simplesmente. E, em sendo, ocupam 0 lugar de uma verda de
ndlida segundo urn mais ou menos forte grau de ueroesimilhanca, a
vcrossimilhanca sendo ela mesma definida como opiruuiel majo-
26
l:itar~a,. grupal ou social, ~e que fala Barthes. E assim que e ne-
cessano entender nosso discurso de uerdades e de crencas: discursos
como contratos de p~odu<;ao / reconhecimento construidos por
consensos, que permitern a cada urn dos interlocutantes tomar
posicao, isto e, proceder a uma operacao de validacao.
. Nada nem ninguem pode obrigar urn sujeito falante a ser
smcero, nem a crer no que ele diz. Em troca, ele e obrigado, se ele
~uer ser reconhecido como tal, a mostrar que seu proposito esta
hga~o a um_certo dorninio do saber em relacao ao qual ele sera
avahado. Nao se trata entao de uma crenca polarizada sobre 0
Verdadeiro / Falso ou sobre 0 Bern / Mal etc., trata-se de uma
cren<;~sobre a existencia de urn certo discurso, 0 qual pode ser
pol~nzado sobre urn desses eixos. As reflex6es do genero Ele sabe
/ nao sabe do que fala tern por funcao discursiva confirmar /
desn;e.ntir 0 conhecimento que 0 sujeito falante pode ter do
dominio do saber em questao.
Estudamos em 1982 uma publicidade cujo texto dizia: Eis
OBERNAI. A primeira grande ceroeja que coniem 1/3 de calorias a me-
nos. ~izer qu.e, para compreender essa publicidade, e preciso que
o~ leltor~s salb~m que na. s~c~eda?e a qu~ se relaciona essa publi-
cidade e valonzada a dieieiica, e propnamente referir-se a urn
dominic de saber que e configurado sob forma de dis curs os mais
ou menos explicitos. E, no entanto, nada obriga a crer na virtude
ou beneficios da dietetica, Basta poder reconhecer a existencia
desses discursos.
Veremos mais longe que, a esse dominio do Saber, corres-
pondem 0 que nos chamamos 1J)liJJ.el·sg~!!e.4ist;:_l_I:rsq:Porenquanto,
lemb:e~os que este reconhecimento do ponto de vista do Saber
eontribui para fundar a legitimidade do sujeito falante, seu direito a
palavra.
o reconhecimento do Podenalegitimidade socioinstitucional
. . Os indi~i~uos de .uma sociedade nao sao, enquanto atores
iocla~s, seres umcos e simples. Porque eles participam de varios
r.mms de relacao, sao levados a ter comportamentos divers os e a
descmpenhar papeis diferentes uns dos outros, papeis que, em
tro~a, lh~s dao status espedficos. Isso nao e novo, pelo menos em
"oclOlogia e em psicossociologia. 0 que ainda nao foi suficien-
temente definido sao os conceitos de identidade, de papeis e de
27
esiaiuios num quadro linguageiro, isto e, quando os atores sociais
sao ao mesmo tempo sujeitos que comunicam.
Os atores sociais s6 sao aqui considerados desde que embar-
cados nos intercambios linguageiros. N6s nos situarnos, assim,
integralmente, numa problematic a linguageira (e nao sociol6gica
nem psicossociologica, mesmo que esses pontos de vista sejam
levados em conta), numa problematica de duplo espa<;:oexterno /
interne, de que ja falamos, e que faz com que 0 sujeito seja
impregnado de realidade psicossocial, mas no jogo comunicativo
que 0 define. Assim, pode-se anunciar, como faz Parret (1983),
que II a teoria de discur so nao e uma teoria do sujeito antes que ele
enuncie, mas uma teoria da insiiincia da enunciacdo":
Se, por exemplo, um medico pergunta a um paciente 0 se-
nhor fuma?, nao e a totalidade de seu estatuto socioprofissional de
medico que esta aqui em causa. S6 uma parte dele deve ser consi-
derada, aquela que define 0 medico como expert em medicina capaz
de estabelecer um diagn6stico. Mas se esse mesmo medico coloca a
questao a um colega que ele encontra durante um congresso, nao
sera mais segundo a mesma parte de estatuto que ele havia
mobilizado na situacao precedente. Ese, enfim, ele coloca a mesma
questao a seu vizinho de mesa numa confeitaria, nada de seu
estatuto socioprofissional sera percebido por seu interlocutor.
Numa problematica linguageira, nao convern utilizar so-
mente 0 estatuto sociol6gico de maneira apriorista e sistematica,
como fazem as teorias correlacionistas. Trata-se de poder prestar
contas de sujeitos que se definem numa inter-relacao entre, de um
lado uma ideniidade psicossociol6gica, e de outro um papel lingua-
geiro que n6s denominamos comunicacional. Assim sera analisado
o fenomeno da construcao do sujeito II por inferencia sobre a pes-
soa empirica, suporte da enunciacao (...) das caracteristicas psi-
col6gicas e sociais da enunciacao" 23.
E, assim, nessa inter-relacao e somente nela que pode ser
julgado 0 bom fundamento da palavra e a legitimidade daquele
que a profere. Nao e 0 estatuto socioprofissional que faz auto-
ridade, senao um sujeito seria investido ou nao de autoridade por
seu estatuto, e isso, qualquer que fosse a situacao de comunica-
cao, Nao e mais do que uma parte desse estatuto, em relacao com
um papellinguageiro, que faz autoridade ou nao.
zT(~T!ARROL, C. (1990). Op. cit.
28
Isso nao deve impedir a constatacao de que, algumas vezes,
essa inter-relacao pode ser mais ou menos sobredeterminada pelo
polo socioinstitucional, como no caso dos performativos em que 0
poder de dizer coincide com 0 poder de [azer do sujeito comunicante.
Mas nao se perdera de vista que esse poder de fazer depende da
situacao de comunicacao: 0 "Presidente da Republica"
em pessoa
nao tem outro poder em seu dizer, a nao ser 0 que the confere 0
s~u estatuto de consumidor, se ele se encontra numa loja, inc6g-
nito, comprando um produto qualquer. Evidentemente as coisas
nao sao assim tao simples, porque 0 estatuto social, fora da situa-
c;ao de comunicacao, po de influenciar 0 sujeito comunicante e
iransparecer; e necessario ainda que 0 interlocutor conheca este
estatuto para que ele possa exercer uma influencia sobre 0 jogo do
intercambio linguageiro. Logo, a legitimidade vem ao sujeito, nao
somente do espa<;:oexterno, mas do grau de adequacdo que se esta-
belece entre a identidade psicossocial do sujeito (espaco externo)
e seu comportamento enquanto ser linguageiro, comunicante
(espaco interno). Resta ver 0 que assegura essa adequacao (ou
inter-relacao) .
o reconhecimento do Saberfazer: a Credibilidade
o duplo reconhecimento que da ao sujeito falante uma
Jegitimidade ?e Saber e de Poder nao e suficiente para fun dar 0
direito a fala. E necessario urn outro reconhecimento, 0 que permite
julgar 0 sujeito competente em sua acao de sujeito que comunica.
-ful:tJJ83, apresentamos 0 conceito de projeio de fiala como 0
que define o-suj-eif()I~J~rif~:~~!1j~u~Ji1Ti.nfTiinf£l1dqf{e""c9;:n~;;i~qtlva
(seja ela consciente ou nao). E~se conceito vai a~e~c~~tro cla
postulacao de reconhecimento do Saber fazer. De fa to, 0 projeto de
fala do sujeito falante nao e uma construcao abstrata, uma pura
intencionalidade desprovida das circunstancias de comunicacao.
Ao_cQutr?ri?, ela depende partkularmenJ~,_cl~ 1l!l1: !~_c:!9!_A:<:)que
entao c:hCl-l11a.v:a.rnosocontratodefalatql1~ __e?ta ligi:lcl9aurrlCl- __~itua<;:ao
de comunicacao Pi:ll'tic:ular;deoutr()ladocdc) qlle ch(ln;~gto_?(_q~sde
1981,0 olhar avalladorqueJiga econstituios S_!1j~i!()s_interlocutantes.
Em outras palavras,_S!}:J_roj_etodeJaIa e 0 resultado de um "ato
conjunto"24, gue se faz num Il1oviment()de vai-e-vemco~stante
entre 0 espa<;:oextern~ e internO da cena comunicativa. E na apti-
uJACQUES, r. (1982)_ Op. cit.
29
dao em saber ligar esses dois espacos e seus componenies que po de ser
julgado 0 Saber fazer do sujeito e que pode ser reconhecida sua
cornpetencia enquanto sujeito tendo um projeto de fala. E 0 que
lhe dara credibilidade, sem a qual, nao obstante toda legitimidade
que possua pelo Saber ou pelo Poder, ele nao sera entendido, e
nao the sera reconhecido, de fato, 0 direiio a palavra.
Ve-se que estamos longe da posicao de Bourdieu: nem tudo
e jogado no pre-aio de enunciacao, e 0 sujeito falante nao e sim-
plesmente 0 porta-palavra de uma posicao de poder. E mesmo no
caso onde pare<;a que a posicao socioinstitucional seja sobre-
determinada, nada esta definitivamente jogado, porque ela podera
ser rediscutida por um certo Saber Fazer (perda ou ganho de
credibilidade).
Mas nao se dira, ao contrario, como parece fazer Kerbrat-
OrecchionP5, que as posir;;oes baixas ou altas dos sujeitos, deter-
minadas pelos intercambios linguageiros, nao sao mais que fatos
do discurso sempre recuperaveis nas marcas discursivas.
Na verdade, 0 fato de escolher uma lingua e nao outra, 0 tu
e 0 vos, de falar muito ou pouco, com uma elocucao rapida ou
lenta, de escolher questionar, recusar ou aceitar uma opiniao etc.
(sao esses os casos apresentados por Kerbrat-Orecchioni), nao pode
ser julgado como colo cando 0 sujeito em posicao alta ou baixa, ~g_
n.~_ose levam em conta asidentidades psicossociais dos parceiros
e d'Os.~qn~raf()sd~ comunicacao que lhes atribuem.p~peis d~fer-
minados. Basta citar aqui 0 caso da entrevista radiofonica: I1ogenero
eiiuacionul, a identidade socioprofissional do entrevistador assim Col)1O
a-papd linguageiro do sujeito questionador que the atribui .o 90n-
iraio dejala impedem (salvo cas os de comportamento anormal)
encontrar na formulacao das perguntas traces deposicao alta ou
baixa.
o fojeto de fala"ds sujeito falante e construido em torno de
um certo numero aeob}etivos que VaG engendrar 0 mesmo numero
de gpjefL7J_QsC_9?J1Yl1lcCltiILQs26. Pode-se citar quatro: factitivo,
informativo, persuasioo, seduior, dos quais daremos as grandes linhas.
Factitivo, este objetivo corresponde a uma finalidade de
:----- ....--.-.y ...--.~.~--.-- •...-•.. -----~ ...----- -'-'. ' . _". ~'-'---'~
C;;;KERBRAT-ORECCHIONI, C. (1990). Les interactions oetbales. Tome L Paris, Armand
Colin.
;'r, Em fmnc0s, 0 tcrrno uS<l~~EeJa~I!~~r_~_1:I~s~::~~~llllic~!i:v-,-,~.(N. de T.)
30
Irtllnipulqr;qo 40 ?l:':t.rQ. p?<ra0 J(:lzer agir num sentido que seja
lavoravel ao Stlj~it9f;:lJCll1te.Ele consiste, para 0 sujeito falante, em
lazcr ll!_zel~_oq.~_gt_J(l_!:t;l~_dlzer qualquer coisa a um outro, seja
ordcnando, se ele tem uma posicao de poder, seja sugerindo, se
de nao a possui. A comunicacao publicitaria, por exemplo, se
inscreve num contrato situacional onde 0 parceiro publicitario nao
esta em posicao de autoridade para ordenar ao consumidor
potencial que compre determinado produto. As.si:rn,_ap-ll_Q1!c:~q,ade
poderatersimultaneamente tanto JJmQb.jeJiYQ~:lg..l?~;rStl<:l.?~.Q~como
urn obj~tivo (:Ie seducao (jogo_ de palClv_ras,n~rrativas mais ou
menos mitiC::Cl?tapelosaos sentidos, .elogio do gost()! prazer de
convivencia etc.) para in sitar oleitor da publicidade aapropriar-
se do produto elogiado. ~ __C.2'P: E~li:l<;~()..i:l esse. gbjetivofactitivo que
convern estudar os intercambios linguageiro~ de negociacao,
porque esses colocam em acao parceiros que desempenharn um
papel de sujeito inciiador. .
(i;;Iil:~'~-tTv9)0 ())?j~tiV()corresponde a uma finalidade de
transmissii~ deSaber, que consiste,para 0 sujeito falanteem fazer
sabet.Cl!g~~i:1:_c:o~~Cl.Cl9 Q:t!!ro. Este objetivo repousa sabre-tim
principio de novidade, como ideal de saber fazer: 0 fato de trans-
rnitir ao outro um fragmento de saber que este parece ignorar.
Desse modo, 0 sujeito falante tem um papel (arquetfpico) de prover
informacao, cuja validade depende da relacao com 0 outro. Nada
de mais constrangedor, de fato, para 0 sujeito que pretende
informar, que a replica: Eu ja sabia. Assim tambern as replicas do
tipo Ele diz sempre a mesma coisa, Todo 0 mundo ja sabe disso, Nada de
novo etc. tern por funcao dis curs iva desacreditar 0 sujeito que e 0
alvo, torna-lo inexistente quanta a seu papel de sujeito informante.
Em troca, se os diferentes suportes da midia correm depois do
scoop, e porque um dos aspectos do contrato de comunicacao sobre
o qual repousa a sua credibilidade e precisamente este [azer saber.
Reencontram-se aqui certas leis do discurso propostas por
Ducrot e maximas conversacionais propostas por Grice. De fato
as regms de exaustividade e de quantidade respondem a necessidade
de definir uma especie de razao de ser minima da proliferacao da
palavra: se nada de mais do que sabe 0 interlocutor e dito, entao
nao ha nenhuma razao de falar. E nesse sentido que essas regras
se encontram integradas, deixando de lado a relacao maximo de
informm;iio I maior economia da maxima de Grice, lembrando que
qualquer que seja a exaustividade ou a quaniidade deste principio,
31
este depende do contrato que liga os parceiros de comunicacao.
Enfim, precisemos que esse principio de informacao po de
referir-se a transmissao de saberes relativos: a fatos (0 que e
percebido do ponto de vista da qualificacao: ele tem quinze anos,
ou da acao ele partiu), a experiencias (Se voce falal' antes dele, ele ndo
dira nada), a conhecimentos (A America foi descoberia em 1492), ou a
isso que Searle denomina estados iniencionau/" (introduzidos por
Eu creio, eu espem, eu desejaria etc.).
, Pers.@fJiPPL 0 objetivo corresponde a finalidade de controle
.do outro pelo-Yi~,~'L,<:liOl.E.~~~9,~!iI~.<:l:.'l:de,que consiste para 0 sujeito
falante emJazererer aIguma coisa ao outre. Este objetivo repousa
sobre urn princfpio de nao-contradic,;ao, de rigor logico, de
vcrossimilhanca de proposito, como ideal de saber fazer, que
permite fazer 0 outro aderir
a seu proprio universo de discurso
(verdades e crencas). Evidentemente nao se trata aqui de imagens
de nao-contradicao e de verossimilhanc,;a, que os parceiros sao
suscetiveis de partilhar socialmente como ideal de persuasao.
Este objetivo podera engendrar os comportamentos dis cur-
sivos de argumentacao. de composic,;ao, de organizacao do texto
etc., todas coisas que tendem a confirmar 0 papel de sujeito
persuasioo, isto e, de sujeito provando 0 verdadeiro. Reencontram-
se aqui certas leis do discurso e maximas conversacionais: a
homogeneidade, logica, progressao. clareza, falar a proposito, sao
nocoes que participam do fazer crer, e que nao se deve passar a
conta do fazer saber. Pode-se fazer saber sem ter que fazer crer e
vice-versa; mas evidentemente os dois podem tambern combinar-
se, mesmo sobrepor-se num mesmo enunciado. Falta observar,
enfim, que esse objetivo deixa ao parceiro mais possibilidades
interlocutivas que 0 precedente; em relacao ao saber fazer ele so
pode mostrar que sabe ou nao: em relacao ao [azer crer ele pode,
alern disso, conte star e contra-argumentar.
S~pr, 0 objetivo corresponde a finalidade de controle do
outre, mas neste caso pelo vies de a:gradar. EJe c_DIlsiste,para ,0
sujeito falante, em fazer prazer ao outro. 0 principio que define
essa atividade consiste em acionar 0 outro, a faze-lo "sentir"
estados emocionais positivos, como ideal de saber fazer. ~e
objetivo produzira comportamentos discursivos de nao-racio-
.-.--"--.------"--~-.-"-,,.-----,-,.-.----,--.--. .--".._." ... , ...- ... ,_ ..•.. , .•..... ,.... _ ..... _-
27 SFARI.E, J-R. (1991). "L'mtentionalite collective". In: La communaulc en paroles. Bruxelles,
Mardaga.
ualidade; ..de nao-ve!o~siI.J1ilh(;l,l1S:a.:(ou de uma verossimilhanca
fit'cional), todas essas coisas que tendem a construir imaginaries
(mais ou menos miticos) nos quais 0 outro po de projetar-se e com
os quais pode identificar-se,
E para responder a esse objetivo que os membros de uma
cornunidade social se dot am de indices eiicos (codigos de polidez)
que constituem prevencoes canty'a'as possiveis tensoes que
poderiam provo car os intercambios linguageiros. E igualmente a
esse objetivo que devem ser ligados os comportamentos humo-
rfsticos (piadas) e mais globalmente os jogos de palavras. Este
ebjetivo se realiza por rneio da narraiioa, das qualijicacoes, das aoa-
lialloes e.dos julgamentosconsensuais(mais ou menos estereotipados)
.obre tudo 0 que e de ordem hedonica ("os sentidos") e estetica
("0 gosto"). '
d
. Concluindo esta descricao dO,p()!'tl-llado de intencionalidade,
iremos:
- qU~_C:l.~giti111idadei pre-determinada e.naonegociavelno
qlle ela e q'lclaJ1Q S'lli€!t9 (seja por efeito - "Ele fala como
um X" ::1..§~i~.PQr~l1it;rencia- "Eu sei que e um X"), a partir
da posicao que ele ocupa nas diferentes redes de praticas
sociais. Essa legitimidade pode apoiar-se sobre uma auto-
ridade que procede do Saber e do Poder. Dir-se-a que essa
posicao confere ao sujeito comunicante uma identidade
socioinstitucional que so pode ser julgada em relacao com
seu estatuto linguageiro.
- qg_~.~__c;r~E@ilidJJd.c.t_gm.Jroca,....nao ...e .pre~determinada. Ela
n~Q_~,_,c!Cl<:la'll1as(l_dqtliEida,e po de ser, a to do momenta,
rediscutida. §la representa uma capacidade de capiializat
uma auioridade de fa to, pela demonstracao de um saber fazer
(competencia). Ela e, dessa mane ira, fundadora do direito
a palaora, ja que a legitimidade tem necessidade de ser con-
firmada por ela e, as vezes, esta po de ser rediscutida por
aquela.
33
A ESTRUTURA<::Ao
SOCIOLINGUAGEIRA E 0
QUADRO METODOLOGICO
1 - Urn rnodelo de estruturacao
Urn ato de linguagem, como acabamos d.e ver, indic~ uma
intencionalidade, ados sujeitos falantes, parceiros de u~ ~nter-
cambia. Depende da identidade deles, resulta de u~ ob]e.tzvo de
iniiuencia, e portador de urn prop6sito sobre °mundo: Alem dlSSO,s:
realiza num tempo e num espa<;o dados, determmando a que e
comumente denominado siiuaciio.
Eis porque, para que urn ato de linguagem seja valid~ (ist~
e, produza seu efeito de comunicacao, realize. a tra~sa<;ao), e
necessaria que as parceiros se reconhecam obngatonamente a
direito a palavra (0 que depende de sua identidade), e que .eles
possuam em comum urn minima dos saberes colocados em. Jog~
no ato de intercambio linguageiro. Mas ao me smo tempo - e lSt~ e
devido particularmente aos principos de influencia e de regulacao
- esses parceiros tern uma certa margem de manobra que_lhes
permite praticar estrategias, Dir-se-a entao que a estru:ura<;ao de
urn ato de lingua gem comporta dais espa<;os:!!mqtle ser~ ~hama_do
espfIqo de limitaqoesrporqueele compreende as dad~s illlmmo~_~~s
quais e necessario-satisfazer para. que .0. ato de,Jl:f\gu,::gel1:_lseJa
valido outre que se denominara espaqo ti~~.st.l·£!t~g!(l~l£()Eqg~.~le
corresponds as possiyeis escolhas" que as sujeitos podem fazer
na encenacao do CltO delinguagern.
Enfim, se se acrescenta que a principia de pertinenci~, que
implica ato de reconhecimento reciproco da parte dos parce~ros_e
saber comum, ultrapassa largamente a instan~ia. de enunciacao
do ato de linguagem e inclui todo urn saber prevlO sabre a expe-
riencia do mundo e sabre as comportamentos dos seres humanos
vivendo em coletividade, saber que nao e necessariamente expresso
mas que e necessaria a producao e ~ompreensao do ato de
linguagem, entao se dira que este se realiza num duplo espa<;o de
34
significancia, externo e interno a sua verbalizacao, determinando
por issa mesmo dais tip as de sujeitos de linguagem: de uma parte,
(IS parceiros, as interlocutores, as sujeitos agindo como seres sociais
possuindo intencoes - as que designamos sujeito comunicante e
sujeiio tnierpreianie; de outra parte, as protagonistas, as intra-
locutores, as sujeitos seres de fala, responsaveis par seu ato de
enuncia<;ao - as que designamos (sujeito) enunctador e (sujeito) des-
linaidrio . E se ha relacao de condicionamento entre esses dais ti-
pos de sujeitos, nao ha, no entanto, relacao de transparencia
absoluta.
Essa serie de hip6teses definindo a ato de linguagem como
nascendo de uma situa<;ao concreta de troca, demonstrando uma
intencionalidade, organizando-se ao redor de urn espaco de
lirnitacoes e de urn espaco de estrategias, e significando numa
interdependencia entra.nm.espaco externo e-um espaco interno,
nos leva a pf(?p()r.1J.I!l.llJod~10.(:ig~strutura<;aQ.emJ.r€s.D.iveis:
- a niYeldo.,s.itY(lf!.Q!:lEI.l.guese ocupa dos dados de espaco
extern 0, e que constitui ao mesmo tempo a espaco de
Iimita<;oes do ato de linguagem. E a Iugar onde sao de-
terminadas: a firzalid(lc1.r;g.Q_atode linguagem, que consiste
em responder a pergunta: para que dizer ou fazer?; corre-
lativamente, a identidade dos parceiros do intercambio
linguageiro, respondendo a pergunta: quem fala a quem?;
sempre correlativamente, a dominio do saber veiculado pe-
10objeto de intercarnbio, respondendo a pergunta: a pro-
p6sito de que?; enfim (mas nao se trata de uma cronologia),
a dispositivo constituido de circunstancias materiais do
intercambio, respondendo a pergunta: em que quadro fisico
de espaqo e tempo?
- c:>~~_.clQ.£omunicaciorzaL Iugar onde sao determinadas as
maneiras de [alav (escrever) em funcao dos dados da si-
tuacao, respondendo a pergunta: como dizer? Corre-
Iativamente, a sujeito falante (seja ele comunicante ou
interpretante) se coloca a questao de saber que "papeis
linguageiros" ele deve ter que justifiquem seu "direito a
palavra"(finalidade), rnostrern sua "identidade" e Ihe
permitam tratar de urn certo tema (prop6sito) em certas
circunstancias (dispositivo).
- a .I1i~:l...<i()_di."~ZJ._l:~~'lJO constitui a Iugar de intervenc;ao do
35
sujeito falante, tornado sujeito enunciador, 0 qual deve
satisfazer as condicoes de legitimidade (principio de alte-
ridade), de credibilidade (principle de pertinencia) e de
capiaciio (prindpios
de influencia e de regula~ao), para
realizar urn conjunto de "atos de discurso", isto e, final-
mente, urn texto. Este e feito com 0 auxilio de urn certo
numero de meios linguisticos (categorias de lingua e
modos de organizacao discursiva), em funcao, de urn Ia-
do, das limitacoes do situacional e das possiveis maneiras
dedizer do comunicacional, e, de outro lado, do "projeto
de fala" proprio ao sujeito comunicante. Com isso, 0
sentido de urn texto produzido sera, por urn lado, sobrede-
terminado pelas limitacoes da situacao de troca e, por outro
lado, da especificidade do projeto de fala. Por exemplo,
toda publicidade devera comportar os indices Iinguisticos
e semiologicos do seu quadro de limitacoes (0 que a faz
ser reconhecida como publicidade), mas, por outro lado,
cada publicidade escolhera sua estrategia de captacao.
Para fazer isso, 0 sujeito comunicante fara escolhas que
serao reveladoras de sua propria finalidade, de sua pro-
pria identidade, de seu proprio proposito, e que permi-
tirao construir sua propria legitimidade, sua propria
credibilidade e sua propria captacao.
2 - 0 quadro metodo16gico
A analise do discurso, do ponto de vista das ciencias da
linguagem, nao e experimental mas ernpfrico-dedutiva". Isso quer
dizer que 0 analista parte de urn material empirico, a linguagem,
que ja esta configurada numa certa substancia se~iologica (verbal),
e e tal configuracao que ele percebe e pode mampular para deter-
minar, por meio da observacao das compatibilidades e das incom-
patibilidades de infinito possivel das combiriacoes, os cortes
formais simultaneamente as categorias conceptuais que lhes
correspondem.
Urna analise do discurso deve entao determinar quais sao
os seus objetivos em relacao com 0 tipo de objeto que ela se constr6i,
""J Vr-r,;'I~~-~;;-~picmento,nosso artigo na revista Langages, n? 117, Paris, Larousse, 1993.
36
equal e a instrumentacao que ela utiliza em relacao com 0 caminho
que escolhe.
Objetivos e tipos de objeto
Em termos de objetivo, urn dos problemas que se colocam
para a analise do discur so e 0 seguinte: procuram-se descrever as
caracteristicas gerais do funcionamento do dis cur so em geral, ou
as caracteristicas particulares de urn discurso particular, isto e, de
urn texto?
A prime ira opcao corresponderia a uma perspectiva an-
tropologico-social. Trata-se de descrever os comportamentos lin-
guageiros proprios aos individuos que vivem em sociedade, que
sao levados a reagir sempre do mesmo modo quando sao inseri-
dos nesta ou naquela situacao de comunicacao, E a tendencia
seguida pela filosofia da lingua gem e uma parte da etno-
metodologia". Tal perspectiva coloca uma dupla questao: 0 que e
que permite dizer que as caracteristicas descritas possuem urn tal
grau de generalidade? Elas foram submetidas (idealmente) a prova
da confrontacao com urn grande numero de situacoes de inter-
cambio (diversas no tempo e no espaco)? Correlativamente, e se e
assim, qual pode ser a utilidade de analise de categorias tao gerais?
A segunda opcao corresponderia a uma perspectiva de
analise textual. Trata-se de centralizar-se sobre uma realizacao
particular (urn texto), para ten tar descrever, da maneira mais
exaustiva possivel, os traces que a caracterizam. E uma outra
tendencia da etnometodologia e de certas analises de texto. Tal
perspectiva coloca igualmente duas questoes: 0 que e que se pode
retirar de fatos particulares se eles nao nos mostram os mecanis-
mos recorrentes que presidem a fabricacao de textos? Correlativa-
mente, esses fatos particulares nao dependem de regularidades
que foram instaladas e que, organizando os intercambios, obrigam
os analistas a leva-las em consideracao?"
As respostas a essas perguntas sao dadas pel os pesquisa-
dores, porque todos sabem que 0 caminho de analise e duplo - do
particular ao geral e do geral ao particular. Isso nao impede que as
3D Conceitos como os de proieciio da face e mdximas e regras participam dessa tendencia,
31 Por exemplo, uma tomada de palavra, numa interlocucao, nao tern sentido somente
em funcao do que precede ou segue, mas tarnbern em funcao do que na situacao a torna
possive!.
37
tendencias privilegiem esse ou aquele processo e i.n~uzam assim
esse ou aquele modelo. Daremos aqui a nossa pO~I<;ao.
Nosso objetivo de analise do discurso c~nsls:; em le~ant~r
as caracteristicas dos comportarnentos linguage~ro~ ( como d~er )
em funcao das condir;oes psicologicae que as limitam seg~m ? os
tipos de snuacao de intercambio ("contrato"). A.perspe~t~va e as-
im dupla numa relarao de reciprocidade: quaIS condicoes paraSI ,'s , . . porta
uais comportamentos linguageiros posslVel.s, _e q,-:als c~m _-
~entos linguageiros efetivos para quais condl<;oes.E ~r:clso entao
que se disponham os meios de estudar essas condl<;oes e esses
comportamentos.
Condicoes e contrato de comunicar;Cto
. _ ,- truturadas em contrato deAS_c;gry:llr;oes, para nos, sao es _. '__ ; .-- -
comunicaqiio, 0 qual preside a toda pro~u<;ao lmguage~ra. Par~
desciev@-i~s, e preciso reunir as producoes que ". supoem ~er
tencer ao mesmo tipo de situacao. no que se denomma um Cal pus
de textos. Esse trabalho e feito simultaneamente po~ u~ levan-
tamento empirico das constantes que possibilitam reurur tats textos
(por exemplo, para a publicidade, relaci.o~am-se ~s c~nstantes:
roduto, marca, slogan, agencia de ~ubhCldade, difusao). e por
kvantamento tambem empirico as diferenr;as entre esses tex.tos e
os textos que a eles se assemelham, mas que possuem 0 conJunto
de constantes anterior mente assinaladas (por exemplo, ~s textos
de propaganda politica). Estabelecem-se ass~n: as frontelras que
circunscrevem, no ponte de partida, urn (ou vanos) cor~us de textos
relativamente homogeneo Esse duplo trabalho determm~ u~~ das
condicoes que consideramos fundamentais para a,~onshtUl<;a~~e
e que e'constitutiva do processo de analise: a condicaourn corpus,
de "contrastividade".
Desse modo, 0 estudo de caracteristicas discursivas pro?r~as
h m tempo quais sao as condicoesa esse corpus testemun a ao mes 0 .
do contrato de comunicacao. na medida em que e~as os rea~IVam
ou os transgridem, e quais sao as estrategias.propnas (consClentes
ou nao) ao projeto de fala do sujeito comumcante.
Uma tipologia .
o objetivo global estando determinado (na~ s~ :rata aq~l de
hip{ltcses), resta pre cisar alguns criterios de conshtUl<;aodo COl pus.
38
o estabelecimento de fronteiras que acabamos de evocar
remete a possibilidade de agrupar os textos segundo certos criterios
de semelhanca, isto e, construir uma tipologia. 0 problema e que
nao ha uma so tipologia de textos, mas tantas tipologias quantos
sao os criterios estabelecidos. Tudo depende do que se escolhe: as
formas, 0 sentido, os mecanismos, E, alem disso, quais formas,
qual sentido, quais mecanismos? Correlativamente, coloca-se 0
problema da hierarquizacao desses tipos (ou desses generos) uns
em relacao aos outros: 0 que e que identifica 0 modele geral e 0
que e que identifica 0 subtipo ou subgenero?
o que nos propomos e construir uma tipologia, nao de
formas nem de sentido, mas de condicoes de realizacao dos textos
- isto e, os coniraios de comunicacdo -, considerando que existem
contratos mais ou menos gerais que se ligam uns nos outros e que
cada urn deles pode dar lugar a variantes. Por exemplo, 0 contrato
de comunicacao "propagandista" engloba contratos particulares
como os do "discurso publicitario" e do "discurso eleitoral" e, no
interior do discurso publicitario, encontram-se variantes como a
publicidade de rua, de loja ou de televisao. Do mesmo modo, 0
contrato de comunicacao do "debate" se liga a contratos particu-
lares como os do "debate da midia", 0 "debate cientifico", 0 "debate
politico" (parlamentar), e, no interior do "debate da midia", encon-
tram-se variantes como 0 debate "cultural", 0 debate de "socie-
dade" ou" talk show". Urn modelo assim

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