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ANDRÉ AGUIAR NOGUEIRA “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E CULTURA POPULAR NO BAIRRO SERVILUZ EM FORTALEZA (1960-2006)” MESTRADO – HISTÓRIA SOCIAL PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO SÃO PAULO 2006 1 ANDRÉ AGUIAR NOGUEIRA “FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E CULTURA POPULAR NO BAIRRO SERVILUZ EM FORTALEZA (1960-2006)” Dissertação apresentada a Banca Examinadora da pontifícia Universidade católica de São Paulo, como exiegência parcial para a obtenção do título de Mestre em História Social sob a orientação do Prof. Dr. Maurício Broinizi. PUC/SP 2006 2 BANCA EXAMINADORA _________________________ _________________________ _________________________ 3 Dedidado especialmente à minha mãe Francisca, ao meu pai Batista e aos meus irmãos: Adriana, Andréia e Alex. 4 Agradecimentos Uma pesquisa é sempre uma elaboração realizada em conjunto. Gostaria de agradecer inicialmente a todos aqueles, que por qualquer motivo, sentiram seus nomes ausentes nesta lista. Agradeço muito especialmente ao meu parceiro e orientador Maurício Broinizi Pereira. Agradeço igualmente ao corpo docente da PUC-SP, principalmente as professoras: Yvone Avelino, Denise Bernusi Sant’Ana, Olga Brites, Vera Lúcia e Antonieta Antonacci. Agradeço de todo o coração a querida Márcia Barros Valdívia, pessoa maravilhosa e que muito contribuiu para a execução do presente trabalho. Ao professor Eduardo Bonzato e ao amigo Antônio Luiz Macêdo pela disponibilidade e inteligência na leitura desse texto. Agradeço ao professor Janes Jandes e novamente a professora Yvone Avelino pelas preciosas sugestões oferecidas na banca de qualificação. Obrigado a Ana Karine, Alan, Beth, Emília, Mayara, Fernanda, Alice e a todos os companheiros da minha turma de mestrado com os quais compartilhei as primeiras alegrias e as tensões na confecção dessa dissertação. Agradeço a ternura, o respeito e o acolhimento de Marcelo Farias, pessoa que muito estimo e que me ensinou também os caminhos noturnos de Sampa. Muito obrigado a Leandro Paschoarelli, companheiro e amigo, sua forte personalidade certamente ajudou a tonar a vida mais bela e cadenciada em meio às loucuras da paulicéia. Agradeço a Antônio Gilberto e a Wellington Júnior, amigos de Fortaleza, São Paulo e sempre. Agradeço ao Josberto e a Clarissa. Obrigado Kiko, Fábio e Rafael Caxilé. Aos amigos Abel e Armando e Eliomar, dispersos, mas sempre queridos. Tudo começou no PET História da UFC e lá se vão alguns anos. Agradeço aos companheiros do Programa, e hoje amigos, Edson, Gustavo, Juliana, Viviane, Felipe, Eudes e Silviana. Agradeço a “turma dos sete”: Idalina, Henrique, Lucília, Marla, Márcio e Zé da Rocha, com os quais partilhei as primeiras angústias da pesquisa histórica. Obrigado ainda ao Raimundo, Guilherme, Hermano e Eduardo. Agradeço a todos os professores do curso de História da UFC, especialmente aqueles com os quais, de algum modo, compartilhei essa pesquisa: Frederico de Castro Neves, 5 orientador e incentivador durante a graduação, Kênia Rios, Edilene Toledo, Verônica Secreto, Adelaide Gonçalves, Eurípedes Funes, Régis Lopes, Frank Ribard e Ivone Cordeiro. Um agradecimento especial à professora Simone Simões, antropóloga e amiga querida. Obrigado a professora Helena do Imparh pela competente e sugestiva revisão desse texto. A toda a galera do curso de História da UFC: Thiago, Daniel, Kerson, P. A, Carol, Renata, Anna Carmem, Laninha, Liana, Edgar, Yassuo, Neto, Pedro, Henrique, Naná, Alê, João Paulo, Josi, Engels, Gesner, Adalberto, Pereira, Rquel, Vitão. A todos os colegas do primeiro semestre do ano 2000, especialmente a Túlio Muniz e Camila Pagliuca. A rapaziada do bosque: Capacete, Calixto, Carlos Jorge, Manoel Carlos, Tyrone, Paulinho, Chicão, Gerardo e aos colegas do curso de Comunicação Social. Agradeço sinceramente a inesquecível Lorena Lyse Lima Rodrigues. À querida Nicinha e família. A Karla, pela felicidade nesses dias preocupantes. Esse trabalho não seria possível sem a participação dos moradores da comunidade do Serviluz. Agradeço a todos aqueles que em algum momento me ajudaram, dando dicas preciosas ou simplemente emprestando-me um pedaço de papel e uma caneta. Agradeço especialmente a todos os que gentilmente concederam-me entrevista. Agradeço aos amigos Clécio, Cleilson, Gleison, Jorge, Cláudio, Fábio, Gleisinho, Hélio, Ilamar e a toda a galera do Titanzinho. Aos meninos do Paz e do Peleja. Ao David, vizinho, historiador e amigo. A todos os meus familiares. Aos funcionários dos arquivos em que passei e que gentilmente atenderam-me. Agradeço a CAPES pelo auxílio financeiro. Agradeço de modo muito especial à população do Serviluz, pelas lutas, conquistas, ensinamentos e pela feitura de uma história, sem dúvidas, dignas de ser narrada. Espero sinceramente que este trabalho esteja à altura da grandeza de vocês. 6 RESUMO Essa dissertação tem por objetivo central compreender o processo histórico de formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada entre o oceano Atlântico, o Porto do Mucuripe e um complexo industrial especializado no ramo de gás e combustível, esse estreito pedaço de praia no extremo leste de Fortaleza foi ocupado por um contingente bastante heterogêneo de trabalhadores. Pescadores, meretrizes, surfistas, portuários, trabalhadores da indústria, pequenos comerciantes e, sobretudo, trabalhadores informais misturam-se, configurando aspectos particulares de uma comunidade culturalmente multifacetada e marcada por distintas experiências migratórias. Procura-se perceber ainda como a comunidade convive com uma paisagem natural modificada pelo progresso e de que modo às pessoas vivenciam suas sociabilidades. Palavras-chaves: bairro, comunidade, natureza e cultura popular. 7 ABSTRACT This dissertation has for central objective to understand the historical process of formation and urbanization of the Serviluz district, in Fortaleza. Community located between the Atlantic Ocean, the Port of the Mucuripe and an industrial complex specialized in the production of gas and fuel, this narrow beach piece was occupied by a sufficiently heterogeneous contingent of workers. Fishers, prostitutes, surfers, dock workers, industry workers, small traders and, over all diligent informal, are together, configuring particular aspects of a community culturally multifaceted and marked by distinct migratory experiences. It is looked to perceive how the community coexists with a natural landscape modified by the progress and which way the people had lived its sociabilities. Key-words: district, community, nature, popular culture. 8 Sumário Introdução.................................................................................................................…...6Capítulo I 1 O Mucuripe e o Serviluz - da aldeia de pescadores à moderna selva de pedra...............................................................................................................................20 1.1 Os verdes mares bravios.........................................................................................20 1.2 Homens do mar, pés no chão..................................................................................30 1.3 A “tragédia” portuária............................................................................................41 1.4 A indústria de fogo..................................................................................................47 1.5 A Fortaleza do turismo e da especulação imobiliária..........................................52 Capítulo II 2 Migração, trabalho e a transformação do Serviluz em uma comunidade multifacetada................................................................................................................57 2.1 Farol, os “de dentro” e os “de fora”.....................................................................58 2.2 A Praia Mansa........................................................................................................69 2.4 A crise na pesca e o surgimento de novos trabalhadores...................................75 2.3 A seca e a cidade.....................................................................................................80 2.5 A marginalidade e a imagem do medo.................................................................88 2.6 A comunidade .......................................................................................................95 Capítulo III 3 O homem e a natureza: os elementos para as transformações.........................................................................................................109 3.1 As areias que voam.............................................................................................109 3.2 Da taipa ao tijolo.................................................................................................120 3.3 Surfe: o surgimento de uma escola local...........................................................131 Conclusão...................................................................................................................144 Relação de Siglas ......................................................................................................145 Relação de imagens anexas.......................................................................................146 Arquivos e Fontes......................................................................................................147 Bibliografia................................................................................................................150 Anexos .......................................................................................................................155 9 Introdução O desejo de estudar a história do bairro Serviluz, litoral leste de Fortaleza, apesar de um sonho antigo, somente começou a se concretizar quando ingressei na Universidade Federal do Ceará, em 2001. Acredito que somente nesse momento foi possível conciliar os instrumentos teóricos e metodológicos, gerados, sobretudo, a partir das reflexões da História Social. Começava então a tomar corpo a idéia de produzir um trabalho historiográfico que fundia a pesquisa acadêmica na minha vivência diária. A presente pesquisa tem por objetivo central analisar o modo de vida dos sujeitos e as relações sociais que estes estabeleceram na região industrial em torno do Cais do Porto do Mucuripe, em Fortaleza. mais especificamente, esse estudo procura compreender o processo histórico de formação e urbanização de uma faixa de praia que se convencionou chamar popularmente de Bairro Serviluz. Ocupação urbana recente, a formação desse núcleo habitacional está relacionada a uma série de transformações ocorridas nos espaços da cidade no período contemporâneo, sobretudo a partir da segunda metade do século XX. Minhas indagações visam principalmente compreender quais foram as condições de trabalho e moradia dos migrantes que experimentaram a vida nessa parte da cidade que se tornava metrópole. A análise das condições de vida e das sociabilidades geradas entre as pessoas que se estabeleceram nessa região só foi possível a partir da reconstrução de parte do processo de ocupação, formação e consolidação dos primeiros núcleos habitacionais dessa parte de Fortaleza. O cotidiano dos homens e mulheres que vivem no bairro Serviluz está diretamente relacionado ao modo de viver dos pobres na periferia urbana, principalmente os das áreas litorâneas, e inscrito nas mediações e contradições estabelecidas com as políticas públicas e com a iniciativa privada da cidade. A percepção das múltiplas dimensões da vida social dos trabalhadores que ocuparam esse lugar necessitou de um entendimento da cultura como sendo algo pessoal e subjetivo e ao mesmo tempo um processo de convívio coletivo. Resultado de ações concretas, os aspectos culturais das classes trabalhadoras comportam a simplicidade do viver em família como também refinados mecanismos de estratégias políticas, dentro dos quais se vivem tanto as relações pessoais mais íntimas quanto as coletivas. Situado entre o oceano Atlântico, o novo porto é um complexo industrial especializado no ramo de gás e combustível, esse estreito pedaço de praia no extremo leste de Fortaleza foi 10 ocupado por um contingente bastante heterogêneo de trabalhadores. Ali, ainda hoje, pescadores, meretrizes, surfistas, portuários, trabalhadores da indústria, pequenos comerciantes e, sobretudo, trabalhadores do mercado informal, os ditos “biscateiros”, misturam-se, configurando aspectos particulares de uma comunidade culturalmente multifacetada e marcada por distintas experiências migratórias. No Serviluz, milhares de famílias vivem em casas muito apertadas. Amontoadas, as pequenas habitações formam ruas estreitas e labirínticas constantemente ameaçadas pela invasão da areia, soprada pelos fortes ventos dessa parte do litoral. Geograficamente, o espaço já foi apenas uma praia afastada, constituída por dunas de areias móveis e assolada pela ação corrosiva da maresia. Quando as primeiras construções foram edificadas, o local, inóspito, era praticamente inabitável. No lugar, não são raros os relatos de pessoas que tiveram suas casas repetidas vezes derrubadas pelo vento ou pela água da chuva. O avanço das marés, as cortinas de areia, a feroz ventania, e, posteriormente, o fogo da indústria petroquímica foram elementos que se integraram à composição da paisagem social. Essa mistura fazia sugerir a existência de uma relação orgânica, intensa e imediata entre homem e natureza, entre natureza e cultura. SERVILUZ era o nome do antigo Serviço de Luz e Força de Fortaleza, empresa geradora de energia elétrica extinta no início dos anos 1960. Após a desativação da usina, esse se tornou também o nome popular da favela que a circundava, sendo nessa denominação que seus moradores passaram a se reconhecer. “Aqui é o Serviluz: de dia falta água e de noite falta luz”, essa antiga anedota local parece indicar um dos primeiros elos de unidade entre os moradores do bairro: a inexistência de energia elétrica, por longo tempo, nos domicílios que se localizavam ao lado da usina. Os números demográficos e a delimitação urbanística do bairro são bastante imprecisos, mas segundo pesquisas populares, atualmente a população do bairro conta com cerca de vinte mil habitantes1. Na distribuição administrativa municipal, o bairro e umasérie de outros núcleos populacionais aparecem sob a designação de Bairro Vicente Pinzón2. O fato é que o bairro simplesmente não existe na configuração urbana oficial da cidade. 1 Pesquisa realizada por membros locais do Partido dos Trabalhadores (PT). 2 O Vicente Pinzón integra-se administrativamente a Secretaria Executiva Regional II (SER II) da Prefeitura Municipal de Fortaleza e engloba basicamente os bairros Serviluz, Castelo Encantado, Conjunto Santa Teresinha, Lagoa do Coração, Morro das Placas, parte da Praia do Futuro, entre outros. A dimensão geográfica, confusa, certamente não corresponde à totalidade da população que ali habita. Nas estatísticas oficiais, por exemplo, a região possui uma população de apenas 39.551 habitantes. Por sua vez, o Bairro Cais do Porto, comumente confundido também com o Serviluz, apresenta um quadro demográfico de 21.529 habitantes (Censo IBGE-2000). Para se ter uma idéia desse desacordo, enquanto o Mucuripe tem 11.990 moradores, o Grande Mucuripe, uma nomenclatura vaga, registra 203.220 habitantes (Censo IBGE-2000). 11 As primeiras ocupações do Serviluz e de boa da área leste da cidade foram efetivadas a partir da construção do novo porto de Fortaleza e da transferência e instalação de um novo ponto de meretrício na cidade em 1961, a zona do Farol do Mucuripe. No fim dos anos 1970, com a intensificação do processo migratório para a capital cearense em período de forte estiagem (1978-1982), e com o remanejamento para o local (ver mapa) de uma comunidade de pescadores, antes fixada nas margens do cais portuário, a beira de praia sobre a qual se ergueu o bairro já estava completamente tomada por tipos variados de trabalhadores. O crescimento demográfico e a diversidade de ocupantes refletiu-se nas subdivisões internas que o bairro passou a comportar após o processo de ocupação3 (ver mapa). Além do recorte espacial, uma dificuldade inicial da presente pesquisa foi ainda o estabelecimento de um recorte temporal que abarcasse a ocupação inicial do bairro, nos anos 1960, e as transformações desencadeadas no período atual. A chegada de grande leva de prostitutas, trabalhadores do cais, pescadores e outras famílias fugidas das secas, sobretudo nos anos 1970/80, consolidaram uma população hoje com aspectos muticulturais. Na tentativa de reconstituição desses eventos, a coleta, a sistematização e os questionamentos lançados sobre as fontes, e principalmente a produção de entrevistas com moradores do bairro, fizeram-me acreditar que seria imprescindível partir do momento atual, do tempo da fala. Além disso, algumas vezes foi preciso recuar no tempo, mesclando uma gama de temas diferentes que se mostravam essenciais ao entendimento do Serviluz como resultado de um processo histórico complexo e ainda em andamento. Desse modo, procura-se articular os diferentes momentos de ocupação do lugar, a produção de lutas pela organização comunitária, as interações e as sociabilidades em constituição. A escrita de uma história do tempo presente evidencia, entre outras especificidades, a singularidade de estabelecer uma proximidade mais imediata com o objeto de estudo, o que inevitavelmente acaba agregando pontos de vista, experiência pessoal, e ensejando posicionamento e compromisso social do historiador. Como pesquisador, foi de suma importância reconhecer o meu profundo envolvimento com esse objeto de estudo com o qual mantenho estreitas relações de afinidade pessoal. No trabalho, além do que foi encontrado nas fontes escritas e registrado nas fitas cassetes, considerei igualmente importantes as incontáveis conversas informais, as frases de domínio 3 As divisões internas foram se estabelecendo no decurso do tempo e, geralmente, em função das migrações de grupos de trabalhadores para o local. A Estiva, o Farol, a Fronteira, a Favela, o Titanzinho, o Rastro, o Final da Linha, a Pracinha, e o Chespierre são partes localizadas, mas integrantes do mesmo bairro. 12 geral (citadas entre aspas), as observações de campo, as anotações das pequenas impressões e a experiência de alguém que também migrou para aquela praia e nela reside há mais de quinze anos. Sobretudo, deve-se creditar qualquer possível rigor científico deste estudo ao modo transparente com o qual os documentos foram trabalhados. No que concerne mais diretamente à metodologia com História Oral, Portelli4 observou que a relação social e pessoal entre os dois interloucutores também tem um papel importante na produção das fontes de pesquisa. Trata-se de uma troca pessoal que se torna uma declaração pública, uma performance que vira texto. A forma da entrevista depende também do grau de familiaridade do entrevistador em relação à realidade sob investigação: “os narradores pressuporiam que um historiador ‘nativo’ já conhece os fatos e fornecem em substituição explicaçõoes, teorias e julgamentos”5. Richard Hoggart foi taxativo ao enfatizar que um escritor tem obrigação de resolver estes problemas como lhe for possível e durante o próprio processo de escrever, enquanto luta por descobrir o que tem verdadeiramente para dizer: “Não me eparece possível que ele consiga alguma vez atingir uma objetividade absoluta”6. Sabendo de antemão dos perigos e das armadilhas decorrentes da proximidade com as entrevistas, que exigiram um necessário “afastamento” metodológico, a singularidade de conhecer mais de perto a realidade diária dessas pessoas me forneceu muitos elementos de análise, capazes talvez, de apreender com maior riqueza de detalhes as dimensões mais íntimas do cotidiano, da cultura e das identidades locais. A praia do Mucuripe foi um conhecido reduto de jangadeiros e prostitutas que recebiam, esporadicamente, visitantes de outras regiões encantados com aquela bela paisagem. Com a construção do cais e o advento da indústria, alguns estivadores e indivíduos de outras categorias somaram-se timidamente a esse contingente. Durante a estiagem de quatro anos, no fim de 1970, novas favelas se espraiaram sobre as dunas dessa parte da cidade. Fortaleza é uma cidade cuja história é profundamente marcada pelo êxodo rural; ilhas de prosperidade e bairros elegantes se constituíram em meio a periferias. De modo geral, os núcleos habitacionais, ou favelas, que circundaram o complexo portuário, foram sendo ocupados sobre as areias da praia de jangadeiros do Mucuripe desde a década de 1940, época 4 PORTELLI, Alessandro. História Oral como gênero. In: Projeto História: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, nº. 22. São Paulo: EDUC, junho de 2001. 5 Op. Cit. PORTELLI, p. 21. 13 do término da construção da primeira etapa do porto e do início da montagem do parque industrial na região. É a partir do novo porto - elemento central no processo de expansão e reordenação espacial da tradicional enseada de pescadores do Mucuripe - que a região vai experimentar uma série de mudanças: nas suas reservas geográficas, no tipo de ocupação territorial e uso do solo, na funcionalidade econômica, na expansão demográfica e na vivência social do seu espaço. Em Fortaleza, o projeto de industrialização correu, em determinado momento, em paralelo à invenção de uma cidade turística diferenciada. No Mucuripe, as remoções iniciais da população pobre, realizadas para o porto, foram continuadas com a construção da primeira etapa da luxuosa Avenida Beira-Mar (1963), tornando esse espaço alvo privilegiado da especulação imobiliária. A cidadedas areias foi sendo cortada por asfalto. Em todas as direções, bairros longínquos se integraram num curto espaço de tempo. Essa é uma época caracterizada historicamente por grandes transformações, tanto na paisagem quanto nos usos sociais dos espaços litorâneos brasileiros. Na Região Nordeste, a velha imagem do semi-árido sofrido foi se intercalando com a idéia de um paraíso tropical, belo e atrativo. Devido à “limpeza” urbana, algumas cidades nordestinas, como Fortaleza, ganharam condições de disputar a atração de turistas nacionais e estrangeiros com os outros lugares de visitação do país. O turismo tornou-se uma febre. Assim, as modificações e intervenções do homem na natureza não alteraram apenas a paisagem natural, mas também o convívio e a cultura. No Serviluz, após a ampliação de mais um espigão de pedras e o aterramento de parte da orla, para que os pescadores da Praia Mansa (ver mapa) fossem remanejados da área portuária, possibilitou-se a prática do surfe pela garotada local. Inicialmente realizado sobre tábuas, o surfe na praia do Titanzinho (ver mapa) emergiu como um tipo de trabalho e uma forma de promoção social. Os meninos da comunidade logo ganhariam títulos e notoriedade, colocando a comunidade na mídia esportiva nacional. Nesta pesquisa procuro argumentar que, na pequena praia do Serviluz, um espaço configurado historicamente por múltiplos territórios e personagens, em meio às adversidades, proporcionadas tanto pela complicada relação estabelecida com a natureza quanto pelas mediações mantidas com as políticas públicas excludentes da cidade, homens e mulheres 6 HOGGART, Richard. As utilizações da cultura. Aspectos da vida da classe trabalhadora, com especiais referências a publicações e divertimentos. Lisboa: Editora Presença, 1973. (Coleção Questões). P. 22. 14 aprenderam a compartilhar projetos e angústias, a redefinir valores, tornando-se agentes mais ativos na construção de suas histórias de vida. De modo geral, são escassos as pesquisas e os documentos sobre as regiões portuárias cearenses. Apesar do rico patrimônio cultural dos habitantes das áreas praianas, também não são muitos os trabalhos sobre a história dos moradores de seus bairros, principalmente os formados em decorrência das migrações recentes para a capital. Em Fortaleza, algumas regiões mais antigas incorporadas à malha urbana da cidade ainda na primeira metade do XX, como Messejana e Parangaba, ou bairros mais antigos como Centro e Pirambu, foram temas estudados e sobre esses lugares há uma documentação já catalogada. Sobre o histórico vilarejo do Mucuripe, um dos berços habitacionais da cidade, existe numerosa e variada documentação. Passagens sobre a história do lugar são encontradas em antigos livros de História do Ceará, na literatura, em vários jornais e em reminiscências de memorialistas. A praia foi ainda inspiração de músicas e poemas e recentemente passou a contar com um acervo do bairro7. No caso do Serviluz, encontrado muitas vezes nas fontes de pesquisa como sendo apenas mais uma ramificação marginal do velho Mucuripe, minha primeira preocupação foi realizar um levantamento de fontes sobre sua história. Aos poucos, reunindo informações dispersas e cruzando diferentes tipos de documentos, acreditei se tratar de um processo histórico instigante, em que um emaranhado de conflitos e resistências, intrigas e partilhas podiam ser reconstruídos. Na documentação do Estado, cujo principal arquivo consultado foi o Acervo Virgílio Távora8, obtive numerosas informações sobre a seca e os municípios com ameaça de invasão de trabalhadores no interior; o problema habitacional e a política social na periferia da capital; os projetos de eletrificação e o processo de industrialização; a racionalização da agropecuária no campo e o problema da falta de empregos na cidade. Mesmo sendo uma documentação de cunho oficial, esse material foi imprescindível, pois nele foi preciso reconhecer como os trabalhadores, citados sob a forma de estatísticas, participavam de ações políticas e da disputa pelo poder local. 7 Arquivo criado na década de 1990. Reúne uma variada documentação, escrita e iconográfica, sobre a história do bairo. O acervo foi criado e é coordenado por uma antiga moradora do Mucuripe Vera Lúcia Miranda, a Verinha. 8 O acervo do ex-governador Virgílio Távora, organizado em 2003, está disponível no Arquivo Intermediário do Arquivo Público do Estado do Ceará. O acervo reúne documentos particulares e administrativos, mapas, fotografias, comendas, troféus, diplomas e objetos pessoais do político cearense. Cf. CEARÁ, Inventário do Acervo Virgílio Távora. Ceará. Secretaria da Cultura. Arquivo Público. Fortaleza: SECULT, 2005. 15 Nas páginas dos jornais da época, os destaques primeiros foram dados para o tímido crescimento do mercado imobiliário, a emergência elegante dos bairros ilustres e dos clubes de veraneio, o debate sobre as obras no porto, a abertura de novas estradas, as empresas que resolveram migrar do Sul para o Nordeste e as disputas pela terra no sertão. Noutro momento, a partir de meados dos anos 1970, as notícias davam conta do inchaço desordenado da cidade, do saneamento urbano nas novas áreas de risco, das sucessivas crises econômicas e do tímido anúncio da globalização. Num médio prazo, realizando uma leitura mais panorâmica dos jornais, parece que o país foi do sonho eufórico da modernização operada nos anos 1950 ao tenebroso pesadelo das sucessivas crises econômicas desencadeadas a partir da década de 1970. Mas, nos cadernos dos diversos periódicos, não era difícil observar que a praticidade e as benesses da vida moderna sempre se intercalavam ao cotidiano violento, criminoso e desajustado das favelas que não paravam de crescer. Tratava-se de notícia dispersa que, analisada em conjunto, indicava e atribuía formas e definições, emitindo juízos sobre determinados assuntos. Interessante observar como grande parte dos registros sobre a vida na periferia estava escrita nas páginas policiais. De modo geral, essas fontes veiculam informações e produzem representações que não correspondem à realidade vivida nesses espaços. Nas reportagens divulgam-se, sobretudo, os dramas, as catástrofes e a política assistencialista do Estado, cada vez mais disfarçada sob o lema da ampliação da cidadania. A imprensa do Ceará no período contava com os seguintes jornais: O Povo, Correio do Ceará, Unitário, Tribuna do Ceará e O Estado, além do jornal Diário do Nordeste, criado em 1982, e do jornal alternativo Mutirão (1977-1982). Na imprensa, guardadas as devidas especificidades, a pesquisa sobre determinados espaços da cidade, como o Serviluz, foi revelando que as informações vinham sistematicamente acompanhadas de adjetivos como “perigoso” e “assustador”, e as coisas que dali provinham tinham quase sempre uma “origem duvidosa”. Por isso, ao utilizar esse material como fonte historiográfica, foi necessário considerar o caráter do processo de produção da informação e a imprensa como constituinte de um certo tipo de memória, que atende prioritariamente ao interesse de grupos sociais específicos. Apesar da relevância das fontes de imprensa para os investigadores do período contemporâneo, sabe-se que a grande maioria da população do bairro não tem acesso a esse tipo de leitura. 16 Foi então preciso estabelecer uma metodologia de pesquisa na qual os critérios de escolha e análise das fontes documentais possibilitassem a percepçãoda comunidade sob o ponto de vista de seus moradores e não somente sob o epíteto de favelados. A meu ver, analisá-los simplesmente, sob o prisma econômico, seria injusto e limitado em demasia. Nesse contexto, foi importante considerar não apenas o que era dito sobre a comunidade, mas principalmente o que fora produzido dentro da comunidade. Dessa produção, os registros das associações de moradores mereceram reconhecido destaque. Nos arquivos encontrei indícios mais concretos de experiências associativas e do aprendizado político ali desenvolvido. Nos arquivos das associações do bairro, porém, encontra-se uma documentação quase sempre incompleta, cheia de lacunas e às vezes faltam elementos básicos como a data ou o local da realização do encontro. As atas, por exemplo, são do tipo falada, algumas palavras são anotadas com erros gramaticais, escritas às pressas em letras garrafais. O texto era escrito, mas carregado de características da oralidade. Esse discurso, embora elaborado numa linguagem própria e eivada de sentidos, obviamente não corresponde à prática. E, por mais pormenorizada que seja uma ata, através dela não seria possível identificar, por exemplo, o clima tenso ou alegre de uma reunião. Outra consideração importante sobre tais registros é que, apesar de essa ser uma produção realizada pelos próprios moradores da comunidade, muitas vezes somente os membros da diretoria, os “sócios”, tinham direitos a voz e voto. Apesar de a finalidade social dessa fonte estar relacionada basicamente à prestação interna de contas entre os associados, possuindo efeito simplesmente comprobatório das ações do movimento, a documentação é sempre permeada por relações de poder e se fundamenta em grande parte na hierarquia que rege a instituição. No Serviluz, assim como nos modelos organizacionais dos bairros adjacentes, é muito relevante a opinião das lideranças comunitárias como formadoras de uma certa versão da memória local. Se, por um lado, foi preciso reconhecer a importância dessas lideranças para o desenvolvimento político da comunidade, por outro, não se podia esquecer que a altivez dessas vozes ocultava a fala dos participantes anônimos do mesmo processo. Disso resultou que, além das fontes escritas, a contribuição oferecida pela oralidade se mostrou riquíssima, sobretudo porque muitos dos participantes ativos dessa trama ainda estão vivos. Ademais, ainda teima em prevalecer ali a tradição viva da fala, da experiência verbal e dos ensinamentos proverbiais dos mais velhos, gente que quase sempre consegue sobreviver dispensando o mundo da escrita. Por isso, o diálogo com esses sujeitos é fruto não apenas da 17 necessidade de “dar voz” a essas pessoas, mas também porque esse é um universo em que a oralidade sobrepõe-se à escrita nas construções e reconstruções da memória. O trabalho com História Oral foi uma experiência rica e bastante singular. Um longo e sinuoso trajeto foi percorrido das primeiras histórias de vida - timidamente colhidas diante do gravador, objeto muitas vezes assustador - à convicção de que em cada depoimento havia uma mensagem a ser transmitida e uma “verdade” a ser considerada; o contínuo retorno à infância e a constante ressignificação das experiências passadas em função do tempo presente. Basicamente, o processo de produção das entrevistas pode ser dividido, do ponto de vista metodológico, em dois momentos distintos. No primeiro, os depoimentos orais foram obtidos através de um prévio roteiro de perguntas e respostas mais diretas e que funcionaram em essência como fonte de informação para a elaboração de subitens temáticos. Essa foi uma fase relativamente simples, pois os próprios moradores da comunidade indicaram as pessoas mais “sabidas” sobre a história do bairro. Com facilidade, estabeleci uma relação a meu ver coerente. Elaborei assim uma espécie de rede de entrevistas, estabelecendo, como critério primordial de escolha dos depoentes, a tentativa de dialogar com diferentes membros da comunidade. Líderes comunitários, pescadores, estivadores, trabalhadores da indústria, ex- prostitutas, surfistas, donas de casa e trabalhadores informais foram ouvidos, perfazendo um total de 11 (onze) entrevistas com durações de tempo variado. Logo aflorou a deficiente formação profissional e a inexperiência acadêmica para realização dessa atividade. A fragilidade metodológica inicial incluía desde o manejo com o equipamento técnico até a falta de uma certa sensibilidade para lidar com a sutileza de situações simples ocorridas no decurso do diálogo. Já na primeira entrevista, depois de uns quinze minutos de conversa, o entrevistado, bruscamente, interrompeu a gravação, desligando ele próprio o aparelho e pedindo-me para que pulasse aquela pergunta. Eu o havia interrogado sobre uma possível participação sua nas associações comunitárias do bairro. Ao fim da conversa, o entrevistado me contou que não falara sobre aquele assunto porque “comunidade dava muita encrenca”. Paradoxalmente, o gravador parecia ajudar tanto quanto atrapalhar. Eu mesmo não gostava daquele objeto estranho entre duas pessoas no ato da entrevista. Aquele aparelhinho tinha a incrível capacidade de inibir as pessoas que, ao saberem que tudo seria registrado, tinham demasiada cautela no ato da fala. Por outro lado, muitos o aproveitavam e o utilizavam como meio de soltar a falar e denunciar. 18 Optei então pelo uso de um rádiogravador portátil. Um pouco maior e com microfone embutido no próprio aparelho, permitia captar o som numa distância mais longa, o que possibilitou a eliminação física imediata do gravador. Além disso, para eliminar a tensão dos primeiros instantes, comecei a ter também o hábito de ligar o rádio e ouvir música enquanto preparava a gravação, o som poderia facilitar um possível relaxamento do depoente. Num segundo momento da confecção das entrevistas, a dinâmica e a maleabilidade da fonte oral exigiram uma redefinição dos critérios de escolha das pessoas e das questões a serem feitas. Foi preciso, por exemplo, redimensionar a filtragem em função da profissão exercida e a separação dos indivíduos em grupos, na medida em que essa divisão não satisfazia a certos problemas e indagações da pesquisa em fase mais avançada. Permanecia ainda a tentativa de dialogar com os múltiplos sujeitos do bairro, figuras “representativas” de seus grupos e espaços, possibilitando assim a abertura de canais de interação entre a diversidade ali existente. Segundo Ecléa Bosi “a memória oral é fecunda quando exerce a função de intermediária cultural entre gerações”9. Numa nova triagem, bem como no possível retorno a entrevistas anteriores, procurei levar em conta não apenas o grau de conhecimento, a participação e o envolvimento político do depoente, mas principalmente a forma e a capacidade de relembrar suas memórias. A idéia não era mais saber apenas sobre a história do bairro em si, mas perceber como, no desenrolar de cada narrativa individual, as pessoas reelaboravam suas experiências de coletividade. Não interessava simplesmente constatar as participações mais efetivas, mas entender o sentido que cada participação ou ausência teve na vida das pessoas. Ao se trabalhar com História Oral, foi preciso aprender que o silêncio pode dizer muito. Ao mesmo tempo, o fato de se saber da existência de certos constrangimentos sobre determinados assuntos revelou a necessidade de se ter grande delicadeza para tratar certas questões, ainda mais quando se mora na comunidade pesquisada. Nos registros das associações do bairro, já apareciam denúncias de brigas e corrupção entre os membros das entidades. O fato é que supostas fraudes, apropriaçõesindébitas dos equipamentos comunitários e os casos de brigas e ameaças passaram também a fazer parte da luta por melhorias. Indicavam tanto os perigos decorrentes do exercício e manipulação do poder no local, como a existência de uma tênue diferença entre o que é o espaço público e aquilo que se torna particular. Existe um fluxo permanente e intenso de informações entre a rua e o lar, a partir do qual ambos são constantemente modificados. 9 BOSI, Ecléa. Memória da Cidade: lembranças paulistanas. In: O Direito a Memória: Patrimônio Histórico e Cidadania. São Paulo: DPH, 1991. p. 146. 19 Se foi preciso respeitar a individualidade de cada entrevistado, foi possível observar que no Serviluz muitos dramas e tragédias particulares se tornaram histórias de domínio público. Há na verdade uma continuidade, entre as gerações, da transmissão dos casos mais célebres que permeiam o imaginário e a memória social do bairro. Numa perspectiva diferenciada das dos jornais, essas narrativas trazem geralmente situações dramáticas ao extremo, crimes, mortes ou histórias de vidas que findaram tragicamente. A desgraça alheia, nesse caso, vem sempre acompanhada de uma mensagem moralizante e exemplar. Foi preciso ter em conta ainda que, apesar de o tema lidar com eventos históricos contemporâneos, havia algumas distinções que se referiam à historicidade e à cultura dos diversos grupos sociais, as quais precisavam ser consideradas. No meretrício, por exemplo, era bastante difícil encontrar os personagens que viveram nesse ambiente à época da inauguração dos prostíbulos do Farol, em 196110. No bairro, nessa profissão o tempo de vida das mulheres é geralmente bem curto, quase todas faleceram ou mudaram de endereço com a crise da “zona” nos anos 90. Muitas mulheres assumiram a nova condição de dona de casa ao se casarem com pescadores ou estivadores mais prósperos que as tiraram dos bordéis. Nesses casos, mesmo quando a mulher assumia desinibida o seu passado, além da questão ética11 que perpassa todo o tema, restava ainda uma forte questão de gênero, pois ela estava sendo entrevistada e falaria da sua vida íntima para um homem. Já entre os surfistas, uma peculiaridade importante a ser considerada foi a pouca idade dos praticantes desse esporte. Na localidade, mesmo os adeptos da primeira geração dificilmente ultrapassam os 40 anos de idade. Nesse caso, não dialogava com os mais velhos, fundamento básico no trato com história oral, mas com pessoas essencialmente jovens e que, além disso, se expressam numa linguagem própria. Outro fator relevante é que, apesar da pouca idade, esses adolescentes vão adquirindo, ao longo de campeonatos, o hábito de aparecer na mídia esportiva promovendo seus patrocinadores. Esse fato acaba propiciando a cristalização de certas falas e jargões entre os competidores. Por outro lado, não foram raros os surfistas que preferiam não gravar o depoimento, mas se mostrav Por isso foram utilizados alguns trechos das entrevistas 10 Cf.: ANJOS JUNIOR, Carlos Silveira Versiani dos. A serpente domada: um estudo sobre a prostituição de baixo meretrício. Fortaleza: Edições UFC, 1983. Foram utilizados alguns trechos das entrevistas realizadas por este autor. 11 Cf.: PORTELLI, Alessandro. Tentando aprender um pouquinho. Algumas reflexões sobre ética na História Oral. In: Projeto História: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, nº. 15. São Paulo: EDUC, abril 1997. 20 realizadas por am totalmente disponíveis a cair n’água e pousar para lentes fotográficas. São jovens que falam através do corpo e da gestualidade, expressam-se em movimentos acrobáticos captados pelos holofotes da mídia. Fonte construída através de um processo dialógico, recíproco e dinâmico, esse material ajudou a desvelar a percepção do sentimento de pertencimento ao grupo, a identificação das redes internas de solidariedade, a ajuda mútua, as discórdias, o reconhecimento dos valores afetivos e a melhor compreensão dos mecanismos internos de regulação da comunidade. Através dos depoimentos orais, fui descobrindo que, além das associações de moradores, que compuseram um quadro geral de organização popular nos bairros da cidade, outros grupos também tiveram efetiva participação no coletivo local. Segundo o entrevistado José Osmir Monteiro da Souza, filiado ao Partido dos Trabalhadores (PT), uma pesquisa do seu partido no bairro identificou que o Serviluz “atualmente conta com aproximadamente trinta tipos diferentes de associações populares”12. Foi importante considerar que, durante grande parte do período de abrangência dessa pesquisa, o país estava mergulhado numa ditadura militar. Apesar disso, os movimentos sociais ganharam destacada notoriedade. Já havia algum tempo, comunidades e bairros se organizavam. As manifestações artísticas e culturais que clamavam por liberdade de expressão se intensificaram e, de modo geral, as camadas populares passaram a exercer maior pressão sobre o Estado. Os indícios apontam que os tipos de ação política praticada no bairro não estão diretamente associados a instâncias tradicionais de luta do trabalhador, ainda que existam conexões, mas espalhadas nos diversos núcleos de sociabilidades e culturas que se constituíram. Afinal o bairro havia deixado de ser apenas o lugar onde as pessoas moravam, para ser o lugar onde elas também viviam, encontravam-se, desenvolviam relações de união e solidariedade, e onde acumulavam experiências de vivência comunitária e de resistência coletiva. Após os anos 1990, os movimentos associativos se multiplicaram no bairro. Ligas esportivas mobilizavam centenas de jogadores de futebol em competições realizadas nos fins de semana. Surfistas promoviam campeonatos e realizavam projetos sociais voltados à preservação ecológica. Manifestações e festas católicas, como as tradicionais caminhadas em procissões, eram realizadas pelas ruas escuras e violentas do bairro, as atividades nas pastorais 12 Entrevista concedida por José Osmir Monteiro de Sousa ao autor em 28/01/2003. 21 do pescador e da mulher eram igualmente freqüentes. Na Igreja Presbiteriana, missionários ensinavam a ler e a escrever, enquanto na Pentecostal pastores socializavam jovens contra a perdição das drogas. Nos muitos terreiros de macumba, mandingas e festas animadas eram feitas para saudar a Rainha do Mar, Iemanjá. Nos cultos religiosos, emerge a diversidade e a constituição de distintas memórias. Trata-se de uma comunidade marcada por uma enorme efervescência política e cultural que faz surgir lampejos de autonomia entre seus moradores . No primeiro capítulo desta pesquisa, procuro observar as transformações operadas na tradicional enseada de jangadeiros do Mucuripe, percebendo como esse antigo reduto de pescadores foi radicalmente modificado a partir da construção de um porto e das instalações industriais. Paradoxalmente, o espaço foi se constituindo numa área de moradia e lazer das elites e ao mesmo tempo se tornou um aglutinador de trabalhadores que chegaram à capital. No segundo capítulo, abordo os vários deslocamentos que possibilitaram essas mudanças e a ocupação do Serviluz por diferentes grupos populares em períodos distintos. Analiso o bairro como sendo um espaço de múltiplos territórios: prostitutas, madames, marinheiros; pescadores e empresários da pesca; surfistas, capoeiristas e jogadores de futebol suburbano; estivadores e trabalhadores do gás;homens e mulheres convivendo numa ambiência específica onde o trabalho tende a perder a forte interação que mantinha com o meio. No terceiro capítulo, descrevo um pouco da arquitetura do lugar, ruas de areia, becos estreitos e pequenos quintais, um cenário onde se opera uma estranha lógica em que as casas mais próximas da praia são as mais pobres e as mais ameaçadas pelas condições naturais. Realizo uma breve discussão sobre a relação entre natureza e cultura, percebendo como estes aspectos se cruzam no cotidiano da população e como nesse cruzamento os homens também se transformam. 22 Capítulo I 1 O Mucuripe e o Serviluz: da aldeia de pescadores à moderna selva de pedra “As velas do Mucuripe vão sair para pescar vou levar as minhas mágoas pras águas fundas do mar” (Fagner e Belchior) “O pescador que antes pisava descalço o chão de sua intimidade, já passeia sobre chinelos de plástico. Não mais olha e vê as horas que são, pela posição das estrelas, mas pelos sinais digitais do relógio japonês de pulso (...) a cabaça de ontem é a marmita de alumínio de hoje” (Eduardo Campos) “A gente mora numa bomba!”. (Boi, morador do Serviluz) 1.1 Os “verdes mares bravios” Os homens já não mais acordam ao cantar do galo, mas o hábito de cedo levantar ainda permanece. Diferentemente do horário de trabalho na indústria, no qual os operários devem estar à porta da fábrica ao toque da estridente sirene, os trabalhadores do mar não batem o cartão de ponto. Na pequena pesca, o momento do trabalho depende quase sempre da sazonalidade da maré. Se o mar “tá pra peixe”, o mestre reúne os pescadores. A força de trabalho quase sempre se compõe no momento exato de iniciar a pescaria, mas muitos homens se engajam no decurso do processo de captura. Entre oito e dez homens, no mínimo, são necessários para a realização da pesca com a rede de “três malhos” 13. Esse é um tipo de equipamento de pesca destinado basicamente a pesca de sardinhas. 13 “O tresmalho, de origem portuguesa, era uma rede de emalhar composta pela superposição de três malhas de tamanhos diferentes. A rede de tresmalho era fabricada com fios de algodão pelos próprios pescadores, que passavam boa parte do tempo em contínuo conserto”. Cf.: DIEGUES, Antonio Carlos Sant’Ana. Pescadores, camponeses e trabalhadores do mar. São Paulo, Ática, 1983. P. 37. 23 O barco, ancorado na beira da praia, é arrastado pelos pescadores para a beira d’água, sendo carregado sobre um eixo de ferro e sustentado por duas rodas de automóvel. Alguns poucos barcos ainda fazem porto e ficam abrigados sob deterioradas cabanas na praia do Serviluz. Ali, ainda é possível visualizar desgastados rolos de madeira enterrados na areia. Dependendo do tipo de pesca a ser empreendido, no entanto, o barco, geralmente do tipo bote, não parte da areia, mas precisa estar na água, à espera, já no escuro da madrugada. Na tradicional pesca com a rede de “três malhos”, a pequena embarcação compõe-se de uma superfície de madeira que mede geralmente quatro metros de comprimento por dois de largura, essas dimensões, entretanto, são bastante variáveis. Sobre o barco, preparado desde a pescaria anterior, é possível o equipamento básico a ser utilizado: uma rede14, dois montes de corda, dois remos e uma longa vara de madeira. Quando a embarcação e todo o equipamento já estão na superfície da água, a equipe impulsiona, “faz força”, e o casco do barco desliza contra as ondas. Nesse instante, três ou quatro homens sobem no barco enquanto os outros sustentam a corda em terra. A força de trabalho se forma e se divide de acordo com as habilidades e a experiência profissional de cada pescador15. A maré nem sempre facilita o ingresso dos homens mar adentro, e vencer a arrebentação das ondas, em algumas épocas do ano, consiste na etapa mais difícil e penosa de todo o processo de captura. O risco da embarcação virar é imenso. Além disso, essa operação pode levar horas ou pode simplesmente ser abortada devido à fúria indomável das águas. Quando os chamados “homens de terra” já não conseguem mais avançar no mar, recuam com a ponta da corda e começam a puxá-la lentamente; começa uma verdadeira batalha contra as ondas. Na “voga”, o pescador mais experiente vai à frente do barco utilizando os dois remos de que dispõe simultaneamente. As ondas quebram às suas costas e, como é ininterrupto o balanço da maré, seu corpo é constantemente jogado para o centro do bote. À medida que o 14 A rede também apresenta uma grande variação de tamanho, em média, são confeccionados entre 80 e 120 metros de rede para cada embarcação. Basicamente, a rede compõe-se do “saco”, parte onde a malha é maior, e do “copo”, a parte mais estreita, o fundo da rede. Extremamente pesada, uma boa rede é tecida com uma média de: 80 quiilos de náilon, alguns pescadores utilizam linha de seda para baratear os custos; 500 quilos de chumbo, responsáveis pelo afundamento do material; 70 peças de isopor ou “abóias”, necessárias à flutuação da parte que fica sobre a superfície. O náilon, o chumbo e o isopor são distribuídos ao longo de uma imensa corda; esta, além da parte “entranhada” na rede, apresenta ainda mais uns 200 metros de corda solta, que delimita a distância que o barco se distanciará para lançar a rede. 15 Esse é um tipo de pesca que emprega pescadores “de terra” e “de mar”. O “vogador”, o “vareiro” e os “cordeiros” são os profissionais mais especializados, são eles que partem no barco para o lançamento da rede. Costumeiramente, o dono da embarcação não pesca, mas é possível que um arrendatário participe de modo direto de todo processo de trabalho. 24 barco se inclina, os homens tentam controlá-lo. Na “vara”, o pescador, em pé, impulsiona a longa tira de madeira contra o chão, arremessando a embarcação para dentro d’água. Os “cordeiros” vão aos poucos soltando a corda. Vale ressaltar que todas as tarefas são realizadas em conjunto e calorosos gritos de orientação são pronunciados a todo instante. A fala é um componente importante do processo de trabalho. Vencida a arrebentação, o barco faz uma espécie de círculo, distribuindo a rede cuidadosamente, realizando um tipo de cerco. No momento da distribuição da rede, aumentam as precauções; “o mais perigoso é a rede cair em cima da gente”, afirmam muitos pescadores. Por ser a rede grande e pesada, em caso de naufrágio, dificilmente o homem debaixo do equipamento poderá subir de novo à superfície, já que estará com centenas de quilos sobre seu corpo. Quando o bote retorna à areia trazendo a outra ponta da corda, recomeça o trabalho pesado em terra. Na areia, a embarcação é colocada em um lugar estratégico a fim de ser imediatamente arrumada para uma nova pescaria. É chegada a hora de puxar as duas pontas da corda de maneira coordenada e essa é quase sempre a etapa mais demorada do trabalho (um lance completo demora em média duas horas). A eficácia dessa empreitada depende da quantidade de homens disponíveis na ocasião. A corda é tão pesada que dificilmente poucos homens conseguem arrastá-la; por esse motivo, é comum que alguns curiosos sejam aceitos como complemento circunstancial da mão-de-obra. Assim, a composição da força de trabalho, apesarde previamente definida, aumenta de acordo com o fluxo de pessoas na praia. Alguns jovens, por exemplo, alternam a atividade de pesca com as partidas de futebol que acontecem ao lado da pescaria. Os primeiros metros da corda são arrastados para a terra e um pescador desata o nó, destacando-a do resto da rede. O bote está numa posição privilegiada e todo o material vai sendo gradativamente recolhido e disposto de modo a facilitar a organização da próxima viagem. Puxados mais alguns metros de corda, dos dois lados da rede aparecem estacas de madeiras, com cerca de dois metros cada, que demarcam o início da rede de náilon propriamente dita. Trata-se de uma técnica de pesca de arrasto, por isso a madeira ou “calão” precisa ser arrastada na posição vertical, a fim de facilitar a abertura e impedir a fuga do peixe por baixo ou por cima da rede. Os homens aceleram, empregam mais força, intensificam-se os gritos. Em meio à gritaria, o esforço consiste em aproximar a rede o máximo possível das pedras do espigão, onde a fertilidade natural e as pedras despejadas por tratores fazem concentrar um maior volume de peixes. 25 No instante em que a rede se aproxima, uma pequena aglomeração de pessoas faz-se nos arredores. Enquanto alguns se integram no arrasto da corda, outros, pequenos atravessadores, comerciantes ou simples curiosos, esperam a certa distância o resultado da pescaria. À medida que a rede se estreita, dois pescadores, certamente os mais habilidosos, encarregam-se do desembaraço e coordenação da aproximação de cordas. A atenção e a falação são redobradas. Quando a “abóia” sinaliza na rede a ponta do saco, já é considerável a quantidade de pessoas em torno do pescado. No momento da chegada da rede à areia, uma porção razoável de pequenos peixes salta da armadilha, sendo imediatamente agarrados por mulheres e crianças. À medida que as sardinhas menores escapam, pessoas de todas as idades vão agarrando-as e guardando-as em sacolas plásticas ou mesmo nos bolsos da roupa. A quantidade de aproveitadores dessa sobra de pesca oscila de acordo com o horário e o dia em que se dá a realização da pescaria; boa parte dos moradores conhece os períodos de maior abundância, sabe-se que na fartura dificilmente se nega uma sardinha a um vizinho. A ida à praia depende, em boa medida, dos imperativos do tempo, das águas, dos ventos, das condições apresentadas pela natureza. Dessa forma, algumas interações entre as pessoas do lugar, os pescadores há tempos já não constituem a maioria da população, condiciona-se, de certo modo, a forma como o meio ambiente se apresenta circunstancialmente. O fato é que, na atividade pesqueira, o passar do tempo não apagou antigas formas de relação com um mundo natural, alguns modos de organização social e laços de solidariedade e afeição que têm atravessado gerações. Outro fato é que, apesar do cerco que os curiosos fazem nos “três malhos”, dificilmente as pessoas que não participaram de forma direta da coleta do peixe ousam atacar o saco com o pescado; os pescadores estão suados, ofegantes e inquietos. A aproximação tem limites. Entre os observadores, comerciantes locais ou possíveis atravessadores negociam a produção que vai sendo rapidamente resgatada da rede. Realizada a transação, o produto é transportado em bicicletas, em carrinhos-de-mão ou mesmo nos ombros, sendo de imediato escoado para pequenas peixarias locais ou vendido de porta em porta nas ruas do bairro e de regiões adjacentes. Como a produção e a comercialização são realizadas na beira da praia, logo os comerciantes desaparecem, correm imediatamente para a revenda, pois o peixe fresco tem 26 mais aceitação no mercado. O pescador permanece na praia, o próximo lance precisa ser organizado. O aglomerado humano se desfaz. A divisão do lucro desse tipo de pescaria obedece a parâmetros mais ou menos regulares. O dono dos meios de produção abocanha geralmente 40% do resultado total, o restante é dividido “meio a meio” entre a tripulação. Apesar do cálculo relativamente fácil, o sistema de partilha nesse tipo de pesca é por vezes irregular e envolve fatores subjetivos externos à ação de captura16. A imprecisão na distribuição do pescado se dá pelo caráter de familiaridade e vizinhança com que se desenvolve o processo produtivo. Não sendo essa uma modalidade formal de trabalho, a mão-de-obra é por vezes dispersa, atividade é encarada como uma espécie de “bico”17. Muitos homens se engajam nesse labor ocasionalmente, para garantir a refeição do dia dos filhos, ganhando uma pequena parte da produção e não uma remuneração em dinheiro. O resultado da produção, apesar do esforço organizado e coletivo empregado na captura, é também distribuído por outros critérios de solidariedade ou como forma de pagamento de pequenos favores prestados entre os moradores no cotidiano do bairro. Na rede de pesca atual, muitos dos novos trabalhadores do mar não procuram mais os grandes peixes. Os pescadores da pequena pesca no bairro preferem percorrer o náilon com os olhos à procura de relógios, óculos, jóias, dinheiro, perfumes e outros objetos que passaram a ser arrastados no fundo das redes. Artefatos da cultura material urbana, vestígios do turismo, das oferendas a Iemanjá e dos excrementos residenciais, são artigos que passaram a compor o cenário litorâneo contemporâneo da cidade. “Aqui no Serviluz, meu filho, era tudo mar!”, comoveu-se dona Maria Zuleide, 56 anos, uma antiga moradora do bairro Serviluz18. Dona Zuleide relembrava emocionada, durante a primeira entrevista, a enorme dificuldade que os moradores tiveram para levantar as primeiras habitações naquele canto de praia vazio e assombrado, e seus olhos brilhavam como se tivesse acontecido há poucos instantes. “Casas não, casebres no meio dos morros!”19. No antigo cenário, hoje renovado pelas inúmeras habitações feitas de tijolo, as paredes durante muito tempo foram edificadas à base de varas, entrelaçadas e enchidas a mão com barro, eram as conhecidas casas de taipa, herança que remonta ao período colonial. Ali se 16 Entre a tripulação, é consenso que os pescadores “de mar”, pela especialização advinda da experiência, percebam uma remuneração maior que a dos pescadores “de terra”, que utilizam simplesmente a força braçal. Já o dono do equipamento, habitualmente, dispensa sua parte na produção quando essa é insuficiente, inclusive para ser repartida entre os trabalhadores. 17 Biscate, trabalho informal ou temporário. 18 Entrevista concedida por Maria Zuleide de Oliveira Moura ao autor em 01/01/2003. 19 Entrevista concedida por Maria Zuleide de Oliveira Moura ao autor em 01/01/2003. 27 morava em barracos improvisados; muitos deles eram erguidos com estruturas de lona plástica, madeira e até mesmo papelão. Tempos difíceis eram aqueles em que o vento e a areia, quando não derrubavam as casas, entravam nos olhos e nas panelas dos moradores abrigados em casebres ainda esparsos. A pobreza das habitações, no entanto, contrastava com a abundância encontrada nas panelas suspensas sobre o fogo a lenha, quase sempre abarrotadas de peixe, alimento básico na mesa das famílias praianas. Apesar das intensas transformações ocorridas na praia e na economia pesqueira nas últimas décadas, boa parte da população que habitava o local ainda conseguia sobreviver exclusivamente da atividade de pesca. “A gente chegava a comer peixe até seis vezes por semana”20, afirmou, nostálgico, seu Francisco Herton, nascido no início dos anos 1960, na praia do Serviluz. Para ele, o alimentoera fácil porque, além de ser reduzida a população que residia na praia à época, o acúmulo de substâncias alimentícias atraía vários cardumes para as colunas de concreto e ferro, construídas como base de sustentação para a edificação do porto. Nos depoimentos orais, é fácil perceber como as crianças nascidas naquela época cresciam na beira da praia e brincavam em torno do porto recém construído. Pulando sobre as pedras dos espigões, nadando entre os barcos ancorados ou correndo na areia frouxa, a garotada passava o dia todo se divertindo na orla. A lamparina ainda não havia sido substituída pela lâmpada e, devido à ausência de uma vida noturna para os mais jovens, cedo se dormia. A praia era praticamente o único espaço de moradia, trabalho e lazer daquela gente e os jovens costumavam aprender, na beira da praia mesmo, algum tipo de ofício, as habilidades surgiam quase sempre em meio à execução de pequenas tarefas necessárias às viagens rumo ao mar; trabalho e lazer facilmente se confundiam. A pescaria farta e as humildes choupanas dos pescadores, porém, deixaram de ser características essenciais da conhecida praia de jangadeiros do Mucuripe. Da segunda metade do século XX em diante, a praia estendeu-se por outros domínios e modalidades distintas de trabalho e habitação passaram a coexistir no local. Um breve olhar sobre a história da ocupação da praia do Mucuripe revela que esse foi um lugar onde se desencadearam muitos fatos importantes para a História do Ceará. Durante muito tempo, a memória desse antigo vilarejo de pescadores, núcleo populacional antigo, se constituiu um lugar de natureza exótica, berço dos povos nativos cearenses que viviam rusticamente. 20 Entrevista concedida por Francisco Herton Lima Rodrigues ao autor em 30/02/2002. 28 Resgatando uma polêmica histórica, Raimundo Girão afirmou categórico que foi no Ceará, e mais especificamente na enseada do velho “Mocoripe”, onde “(...) o homem europeu sentiu, a primeira vez, a terra e o céu brasileiros” 21. Ali, segundo Girão, fora o “Rostro Hermoso”, ponta de mar em que as caravelas do navegador espanhol Vicente Pinzón supostamente aportaram, antes mesmo do desembarque de Cabral em Porto Seguro, na Bahia22. Foi também nas praias do Mucuripe que ocorreram os primeiros contatos entre os aborígines locais e o homem branco europeu. Na literatura cearense, na obra indianista Iracema, o romancista José de Alencar descreveu fragmentos daqueles “verdes mares bravios”, espécie de lugar mitológico onde o “bom selvagem” e o branco “civilizado” viveram suas aventuras. O Mocoripe era um alto e belo morro de areia que tinha a alvura da espuma do mar ou simplesmente o “morro da alegria”23, praia privilegiada para o descanso de marujos aventureiros. Navegantes antigos, quando no Ceará aportavam, ancoravam nessa parte da orla em busca de comida e água fresca, à sombra do arvoredo que outrora margeava o riacho Maceió, agora soterrado. A beleza e a exuberância da natureza selvagem naquelas terras, cantada em verso e prosa, resistiram durante centenas de anos no Ceará, mas, desde meados do século XIX, intensifica-se a idéia do “progresso” urbano. Nessa trajetória, a praia e os imensos areais da virgem Iracema foram sendo gradativamente sufocados pelas pedras imponentes da modernização. A primeira edificação de maior envergadura nessa área foi a construção de um pequeno forte onde se instalou um farol, por volta de 1840, quando a ponta de mar do Mucuripe tratava-se ainda de um ponto estratégico de proteção da cidade24. 21 GIRÃO, Raimundo. Geografia Estética de Fortaleza. Imprensa Universitária do Ceará. Fortaleza, 1959. p. 19-27. 22 Segundo o Historiador Raimundo Girão, amparado nos estudos de Francisco Adolfo Varnhagen, o navegador espanhol Vicente Yañez Pinzón desembarcou na ponta do Mucuripe em janeiro ou fevereiro de 1500, antes, portanto, de Cabral ter chegado a Porto Seguro. In: GIRÃO, Raimundo Geografia Estética de Fortaleza. Também recentemente em Fortaleza, o jornalista Rodolfo Espíndola publicou o livro “Vicente Pinzón e a descoberta do Brasil”, onde chega a afirmar que “não se tem mais dúvida que o primeiro ponto do Brasil avistado e aportado por Pinzón foi a aponta do Mucuripe”, defendendo a construção de um monumento histórico no local. Cf.: Jornal O Povo 02/02/2004, p. 03. 23 No romance Iracema, de 1865, José de Alencar explica que o nome Mocoripe vem de corib (alegrar) e mo (partícula ou abreviatura do verbo fazer). In: ALENCAR, José de. Iracema: Lenda do Ceará, 26ª ed. São Paulo: Ática, 1992. p. 56. Raimundo Girão, entretanto, sugere que essa explicação seja por demais romantizada. 24 O farol era um antigo fortim construído para evitar as invasões estrangeiras. “O plano para a construção do farol do Mucuripe foi apresentado a D. Pedro I pelo presidente da província do Ceará, no dia 17 de agosto de 1826”. A construção só terminou em 1846, sendo reformada em julho de 1872, em comemoração do aniversário da Princesa Isabel. Cf.: Jornal O Povo, 12/07/1982, p. 29. O farol foi desativado nos anos 1950 e mais recentemente transformado em Museu do Jangadeiro. No museu, no entanto, não há qualquer referência aos 29 Em tempos mais recentes, moradores do Serviluz lembram-se das balas de canhão encontradas nas areias da praia. “Na época eu menino com idade de doze anos eu carreteava (escorregava) de taubinha naquele morro, aqui acolá a gente fazendo escavação achava aquelas balas de canhão, bola assim com peso de um quilo dois quilo, coisa antiga mesmo! Se fosse o caso de a gente vender hoje em dia, vendia como relíquia. A gente menino lá se lembrava disso...” 25. A memória do Mucuripe como lugar de duelos e batalhas não se reduz aos vestígios materiais e aos objetos esporadicamente encontrados na praia, há uma lembrança herdada e compartilhada através das gerações, a vivência desse espaço é por vezes concebida como sendo esse um lugar das partidas e das dispersões. Ali foram embarcados retirantes famintos em diversas estiagens, foi lançada a sorte dos chamados “soldados da borracha”26 rumo aos seringais da Amazônia e aconteceu o desembarque dos pracinhas cearenses que lutaram na Segunda Guerra Mundial. Como o Mucuripe foi um dos primeiros ancoradouros da Capitania, embarques e desembarques de toda ordem se sucediam, havia tempos que lá desciam numerosas embarcações abastecidas de mercadorias, alvo constante da pilhagem dos flibusteiros. Nessa parte da província, funcionava um porto bem arcaico e diariamente circulavam gêneros comerciais destinados à Capitania do Siará Grande, ainda subordinada administrativamente à de Pernambuco. Com o Ceará independente, em 179927, a vila de Fortaleza assumiu a hegemonia política e econômica da capitania, e suas riquezas, sobretudo a partir do rico comércio do algodão, em detrimento da criação de gado, começaram a descer pelo litoral e não mais pelos rios. Nesse momento, principalmente em decorrência da distância de cerca de cinco quilômetros que separava esse povoado da então sede do município, não foi no ancoradouro do Mucuripe, mas na área da atual Praia de Iracema, que se iniciaram as obras do porto. Rodolfo Teófilo, durante uma das maiores estiagens da história do Ceará, 1877, afirmou: jangadeiros, grande parte do antigo prédio é ocupada com informações do projeto de energia eólica, detecnologia alemã, instalado na Praia Mansa, em1996. 25 Entrevista concedida por Francisco Herton Lima Rodrigues ao autor em 30/02/2002. 26 Sobre a migração dos “Soldados da Borracha” para a Amazônia cf., entre outros, BARBOSA, Edson Holanda Lima. Ida ao inferno verde: Experiências dos trabalhadores cearenses imigrados para a Amazônia (1942/1945). Dissertação de Mestrado da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2005. 27 Fortaleza somente ganharia ascensão administrativa de vila à cidade em 1823. 30 O presidente, acreditando ser devida à aglomeração de retirantes a alteração do estado sanitário da capital, resolve crear mais dous abarracamentos: um em Mocuripe e outro em Pajussara, a fim distribuir melhor a população adventícia. Os indigentes do Mocuripe se empregariam em quebrar pedras e os da Pajussara no fabrico de tijolos, destinados às obras que se estavam fazendo28. Nas obras do governo, entre as quais a do porto de Fortaleza, os retirantes famintos e cansados que chegavam à velha pedreira do “Mocuripe” trocavam o penoso trabalho de carregar pedras de aproximadamente 15 (quinze) quilos às costas, sobre terrenos arenosos, por um punhado de farinha e carne seca, ração distribuída pelos socorros públicos em épocas de calamidade. Rodolfo Teófilo, escritor e farmacêutico famoso por empreender campanhas de vacinação contra epidemias entre a população mais pobre da capital, geralmente os moradores dos areais, se opunha diretamente ao então governo provincial. Através de suas obras, não foi possível perceber referências mais diretas sobre a possível fixação dos retirantes no local, o que muito provavelmente aconteceu já que, à época da estiagem, era possível que “dois terços do eleitorado da província estivessem deslocados, tivessem emigrado e carregassem pedras da pedreira do Mucuripe”29. Em sua literatura naturalista, porém, o pacato vilarejo do Mucuripe já começava a receber novos contingentes de trabalhadores e a ser palco de outros conflitos: “A soldadesca açulada pela certeza da impunidade dos crimes, na mais infernal algazarra, na mais estúpida zombaria, corria a galope em direção ao Mucuripe, enquanto mais de cem infelizes gemiam deitados na areia da praia”30. Desde o final do século XIX, configurou-se uma prática de isolamento em relação ao trânsito dos flagelados, criaturas indesejáveis ao progresso que se fazia, pelas alamedas de Fortaleza: Os comboios despejavam os flagelados na parte da cidade que ficava mais próxima do mar, onde se localizavam as últimas estações férreas de Fortaleza. Muitos retirantes erguiam seus casebres na proximidades da praia. Esse aspecto ajuda a entender o processo de constituição das primeiras favelas de Fortaleza 31. A população sertaneja que chegava a cidade representava também um numeroso contingente de mão–de-obra gratuita utilizada na construção de obras públicas e no melhoramento urbano, empreendimentos essenciais ao desenvolvimento comercial e 28 TEÓFILO, Rodolfo Historia da seca no Ceará (1878-1880). Rio de Janeiro: Imprensa Inglesa, 1922. p. 194. 29 Op. Cit. p. 84. 30 Op. Cit. TEÓFILO, p. 181. 31 Cf.: RIOS, Kênia Sousa. Campos de Concentração no Ceará: Isolamento e poder na seca de 1932. Fortaleza: Museu do Ceará/Secretaria da Cultura e Desporto do Ceará, 2001. p. 18. 31 industrial do Ceará. “O grande flagelo de 1932 possuía, assim, um claro objetivo: mostrar a urgência de um novo porto em Fortaleza” 32. O antigo porto de Fortaleza foi construído ainda no final do período imperial, momento em que a cidade já tinha assumido a hegemonia econômica e administrativa da província do Ceará. Com o advento da República e a emergência de novas forças sociais, a capital centralizou ainda mais as decisões políticas do Estado; e as elites locais, além da construção de equipamentos modernizadores como o Porto, a Estrada de Ferro e o Passeio Público, também empreenderam um verdadeiro processo de remodelação, saneamento e controle do espaço urbano33. No Porto do Mucuripe, no entanto, as primeiras pedras só começaram a ser assentadas por volta de 1940. Obra demasiadamente demorada, levou cerca de 25 anos para ser concluída, período em que seus arredores foram sendo rapidamente ocupados por levas de retirantes e por imponentes clubes de veraneio que se erguiam na cidade. Após o porto, a bela praia do Mucuripe nunca mais seria a mesma. O memorialista Blanchard Girão observou que nessa época: O romântico e íntimo esconderijo de velhos homens do mar, fez-se caótica albergaria de gente doutras origens e de outros costumes. Em meio a essa desordem urbanística, implantou-se ali também a prostituição. Não se distinguia casa séria de casa ‘suspeita’. A pobreza e a promiscuidade nivelavam todos34. Antiga aldeia indígena, a praia do Mucuripe se transformou num pequeno povoado de pescadores e mulheres fazedoras de renda. Atualmente, com o avanço da especulação imobiliária e do turismo, as alvas dunas da virgem Iracema constituem um dos metros quadrados mais caros da cidade, lazer de estrangeiros e habitação preferida dos ricos da terra. Antes do porto, os primeiros ocupantes dessa parte da cidade foram em boa parte pescadores, migrantes de outras regiões praianas da longa costa cearense que, em distintas épocas de calamidade, fugiram para a capital. Na cidade, optaram pela vida numa tradicional região de pesca, dirigindo-se para as areias do Mucuripe e erguendo ali suas choupanas. Até a primeira metade do século XX, aquela era ainda uma população cuja organização era talvez mais tribal que urbana, com as jangadas, as choupanas e os botequins barulhentos. Uma imensa floresta de cajueiros deu lugar a uma paisagem mais moderna e 32 Op. Cit. p. 26. 33 PONTE, Sebastião Rogério. Fortaleza Belle Époque: Reformas urbanas e controle social (1860-1930). 3° ed. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2001. 34 GIRÃO, Blanchard Mucuripe: De Pinzón ao Padre Nilson. Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha, 1998. p. 32-33. 32 cosmopolita quando começou o tempo da indústria, da agitação imobiliária e dos arranha- céus. “O Mucuripe tornou-se uma espécie de Copacabanazinha onde um palmo de terra, que nada valia no tempo da aldeia de pescadores, custa agora um dinheirão”35. 2.2 Homens do mar, pés no chão “A pouco e pouco, o tempo apaga hábitos e costumes, mas não os extingue completamente. Visíveis as choupanas de palha de coqueiro, onde a indigência geme. Na frente, a sala da visita. Entre esta e a cozinha, de fogão improvisado, a camarinha de amor discreto. E nos quatro cantos, na intimidade pouco ambiciosa, a rede e os sonhos dos filhos que não param de nascer” (Eduardo Campos) Migrantes de praias distantes, os primeiros moradores do Bairro Serviluz viveram durante muito tempo da atividade pesqueira. São tributários de costumes e modos de vida com características seculares. Trata-se de uma cultura em que o sustento das famílias não depende simplesmente da venda da força de trabalho, mas da interação direta entre o homem e o seu meio natural. Diferentemente do tempo de trabalho industrial que se instalou posteriormente, no mar o relógio é a lua, são os ventos, as tempestades e o tamanho das marés. Vida singela, desapego material, vestuário modesto caracterizam o modo de vida dos pescadores, tidos costumeiramente como um povo simples, portadores de um estilo de vida reproduzido à semelhança das antigas culturas indígenas. Algumas das comunidades de pescadores fixadas na costa cearense ainda hoje apresentam hábitos e costumes desprovidos
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