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HIS Andre Aguiar Nogueira

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ANDRÉ AGUIAR NOGUEIRA 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
“FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E 
CULTURA POPULAR NO BAIRRO SERVILUZ EM FORTALEZA 
(1960-2006)” 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
MESTRADO – HISTÓRIA SOCIAL 
 
 
 
 
 
 
 
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO 
 
 
 
 
SÃO PAULO 
2006 
 
 
1
ANDRÉ AGUIAR NOGUEIRA 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
“FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E 
CULTURA POPULAR NO BAIRRO SERVILUZ EM FORTALEZA 
(1960-2006)” 
 
 
 
 
 
 
 
Dissertação apresentada a Banca 
Examinadora da pontifícia Universidade 
católica de São Paulo, como exiegência 
parcial para a obtenção do título de Mestre 
em História Social sob a orientação do Prof. 
Dr. Maurício Broinizi. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
PUC/SP 
 
2006 
 
 
2
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
BANCA EXAMINADORA 
 
 
 
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Dedidado especialmente à 
minha mãe Francisca, 
ao meu pai Batista 
e aos meus irmãos: 
Adriana, Andréia e Alex. 
 
 
4
 
Agradecimentos 
 
 Uma pesquisa é sempre uma elaboração realizada em conjunto. Gostaria de agradecer 
inicialmente a todos aqueles, que por qualquer motivo, sentiram seus nomes ausentes nesta 
lista. 
 Agradeço muito especialmente ao meu parceiro e orientador Maurício Broinizi 
Pereira. Agradeço igualmente ao corpo docente da PUC-SP, principalmente as professoras: 
Yvone Avelino, Denise Bernusi Sant’Ana, Olga Brites, Vera Lúcia e Antonieta Antonacci. 
 Agradeço de todo o coração a querida Márcia Barros Valdívia, pessoa maravilhosa e 
que muito contribuiu para a execução do presente trabalho. 
 Ao professor Eduardo Bonzato e ao amigo Antônio Luiz Macêdo pela disponibilidade 
e inteligência na leitura desse texto. 
 Agradeço ao professor Janes Jandes e novamente a professora Yvone Avelino pelas 
preciosas sugestões oferecidas na banca de qualificação. 
 Obrigado a Ana Karine, Alan, Beth, Emília, Mayara, Fernanda, Alice e a todos os 
companheiros da minha turma de mestrado com os quais compartilhei as primeiras alegrias e 
as tensões na confecção dessa dissertação. 
 Agradeço a ternura, o respeito e o acolhimento de Marcelo Farias, pessoa que muito 
estimo e que me ensinou também os caminhos noturnos de Sampa. 
 Muito obrigado a Leandro Paschoarelli, companheiro e amigo, sua forte personalidade 
certamente ajudou a tonar a vida mais bela e cadenciada em meio às loucuras da paulicéia. 
 Agradeço a Antônio Gilberto e a Wellington Júnior, amigos de Fortaleza, São Paulo e 
sempre. 
 Agradeço ao Josberto e a Clarissa. Obrigado Kiko, Fábio e Rafael Caxilé. 
 Aos amigos Abel e Armando e Eliomar, dispersos, mas sempre queridos. 
 Tudo começou no PET História da UFC e lá se vão alguns anos. Agradeço aos 
companheiros do Programa, e hoje amigos, Edson, Gustavo, Juliana, Viviane, Felipe, Eudes e 
Silviana. Agradeço a “turma dos sete”: Idalina, Henrique, Lucília, Marla, Márcio e Zé da 
Rocha, com os quais partilhei as primeiras angústias da pesquisa histórica. Obrigado ainda ao 
Raimundo, Guilherme, Hermano e Eduardo. 
 Agradeço a todos os professores do curso de História da UFC, especialmente aqueles 
com os quais, de algum modo, compartilhei essa pesquisa: Frederico de Castro Neves, 
 
 
5
orientador e incentivador durante a graduação, Kênia Rios, Edilene Toledo, Verônica Secreto, 
Adelaide Gonçalves, Eurípedes Funes, Régis Lopes, Frank Ribard e Ivone Cordeiro. 
 Um agradecimento especial à professora Simone Simões, antropóloga e amiga 
querida. 
 Obrigado a professora Helena do Imparh pela competente e sugestiva revisão desse 
texto. 
 A toda a galera do curso de História da UFC: Thiago, Daniel, Kerson, P. A, Carol, 
Renata, Anna Carmem, Laninha, Liana, Edgar, Yassuo, Neto, Pedro, Henrique, Naná, Alê, 
João Paulo, Josi, Engels, Gesner, Adalberto, Pereira, Rquel, Vitão. 
 A todos os colegas do primeiro semestre do ano 2000, especialmente a Túlio Muniz e 
Camila Pagliuca. 
 A rapaziada do bosque: Capacete, Calixto, Carlos Jorge, Manoel Carlos, Tyrone, 
Paulinho, Chicão, Gerardo e aos colegas do curso de Comunicação Social. 
 Agradeço sinceramente a inesquecível Lorena Lyse Lima Rodrigues. 
 À querida Nicinha e família. 
 A Karla, pela felicidade nesses dias preocupantes. 
 Esse trabalho não seria possível sem a participação dos moradores da comunidade do 
Serviluz. Agradeço a todos aqueles que em algum momento me ajudaram, dando dicas 
preciosas ou simplemente emprestando-me um pedaço de papel e uma caneta. 
Agradeço especialmente a todos os que gentilmente concederam-me entrevista. 
Agradeço aos amigos Clécio, Cleilson, Gleison, Jorge, Cláudio, Fábio, Gleisinho, Hélio, 
Ilamar e a toda a galera do Titanzinho. Aos meninos do Paz e do Peleja. Ao David, vizinho, 
historiador e amigo. 
A todos os meus familiares. 
Aos funcionários dos arquivos em que passei e que gentilmente atenderam-me. 
Agradeço a CAPES pelo auxílio financeiro. 
Agradeço de modo muito especial à população do Serviluz, pelas lutas, conquistas, 
ensinamentos e pela feitura de uma história, sem dúvidas, dignas de ser narrada. Espero 
sinceramente que este trabalho esteja à altura da grandeza de vocês. 
 
 
 
 
 
 
6
RESUMO 
 
Essa dissertação tem por objetivo central compreender o processo histórico de 
formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada entre o 
oceano Atlântico, o Porto do Mucuripe e um complexo industrial especializado no ramo de 
gás e combustível, esse estreito pedaço de praia no extremo leste de Fortaleza foi ocupado por 
um contingente bastante heterogêneo de trabalhadores. Pescadores, meretrizes, surfistas, 
portuários, trabalhadores da indústria, pequenos comerciantes e, sobretudo, trabalhadores 
informais misturam-se, configurando aspectos particulares de uma comunidade culturalmente 
multifacetada e marcada por distintas experiências migratórias. Procura-se perceber ainda 
como a comunidade convive com uma paisagem natural modificada pelo progresso e de que 
modo às pessoas vivenciam suas sociabilidades. 
 
Palavras-chaves: bairro, comunidade, natureza e cultura popular. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
7
ABSTRACT 
 
This dissertation has for central objective to understand the historical process of 
formation and urbanization of the Serviluz district, in Fortaleza. Community located between 
the Atlantic Ocean, the Port of the Mucuripe and an industrial complex specialized in the 
production of gas and fuel, this narrow beach piece was occupied by a sufficiently 
heterogeneous contingent of workers. Fishers, prostitutes, surfers, dock workers, industry 
workers, small traders and, over all diligent informal, are together, configuring particular 
aspects of a community culturally multifaceted and marked by distinct migratory experiences. 
It is looked to perceive how the community coexists with a natural landscape modified by the 
progress and which way the people had lived its sociabilities. 
 
Key-words: district, community, nature, popular culture. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
8
Sumário 
 
Introdução.................................................................................................................…...6Capítulo I 
1 O Mucuripe e o Serviluz - da aldeia de pescadores à moderna selva de 
pedra...............................................................................................................................20 
1.1 Os verdes mares bravios.........................................................................................20 
1.2 Homens do mar, pés no chão..................................................................................30 
1.3 A “tragédia” portuária............................................................................................41 
1.4 A indústria de fogo..................................................................................................47 
1.5 A Fortaleza do turismo e da especulação imobiliária..........................................52 
Capítulo II 
2 Migração, trabalho e a transformação do Serviluz em uma comunidade 
multifacetada................................................................................................................57 
2.1 Farol, os “de dentro” e os “de fora”.....................................................................58 
2.2 A Praia Mansa........................................................................................................69 
2.4 A crise na pesca e o surgimento de novos trabalhadores...................................75 
2.3 A seca e a cidade.....................................................................................................80 
2.5 A marginalidade e a imagem do medo.................................................................88 
2.6 A comunidade .......................................................................................................95 
Capítulo III 
3 O homem e a natureza: os elementos para as 
transformações.........................................................................................................109 
3.1 As areias que voam.............................................................................................109 
3.2 Da taipa ao tijolo.................................................................................................120 
3.3 Surfe: o surgimento de uma escola local...........................................................131 
Conclusão...................................................................................................................144 
Relação de Siglas ......................................................................................................145 
Relação de imagens anexas.......................................................................................146 
Arquivos e Fontes......................................................................................................147 
Bibliografia................................................................................................................150 
Anexos .......................................................................................................................155 
 
 
 
 
9
Introdução 
 
O desejo de estudar a história do bairro Serviluz, litoral leste de Fortaleza, apesar de 
um sonho antigo, somente começou a se concretizar quando ingressei na Universidade 
Federal do Ceará, em 2001. Acredito que somente nesse momento foi possível conciliar os 
instrumentos teóricos e metodológicos, gerados, sobretudo, a partir das reflexões da História 
Social. Começava então a tomar corpo a idéia de produzir um trabalho historiográfico que 
fundia a pesquisa acadêmica na minha vivência diária. 
A presente pesquisa tem por objetivo central analisar o modo de vida dos sujeitos e as 
relações sociais que estes estabeleceram na região industrial em torno do Cais do Porto do 
Mucuripe, em Fortaleza. mais especificamente, esse estudo procura compreender o processo 
histórico de formação e urbanização de uma faixa de praia que se convencionou chamar 
popularmente de Bairro Serviluz. 
 Ocupação urbana recente, a formação desse núcleo habitacional está relacionada a 
uma série de transformações ocorridas nos espaços da cidade no período contemporâneo, 
sobretudo a partir da segunda metade do século XX. Minhas indagações visam principalmente 
compreender quais foram as condições de trabalho e moradia dos migrantes que 
experimentaram a vida nessa parte da cidade que se tornava metrópole. 
A análise das condições de vida e das sociabilidades geradas entre as pessoas que se 
estabeleceram nessa região só foi possível a partir da reconstrução de parte do processo de 
ocupação, formação e consolidação dos primeiros núcleos habitacionais dessa parte de 
Fortaleza. O cotidiano dos homens e mulheres que vivem no bairro Serviluz está diretamente 
relacionado ao modo de viver dos pobres na periferia urbana, principalmente os das áreas 
litorâneas, e inscrito nas mediações e contradições estabelecidas com as políticas públicas e 
com a iniciativa privada da cidade. 
A percepção das múltiplas dimensões da vida social dos trabalhadores que ocuparam 
esse lugar necessitou de um entendimento da cultura como sendo algo pessoal e subjetivo e ao 
mesmo tempo um processo de convívio coletivo. Resultado de ações concretas, os aspectos 
culturais das classes trabalhadoras comportam a simplicidade do viver em família como 
também refinados mecanismos de estratégias políticas, dentro dos quais se vivem tanto as 
relações pessoais mais íntimas quanto as coletivas. 
Situado entre o oceano Atlântico, o novo porto é um complexo industrial especializado 
no ramo de gás e combustível, esse estreito pedaço de praia no extremo leste de Fortaleza foi 
 
 
10
ocupado por um contingente bastante heterogêneo de trabalhadores. Ali, ainda hoje, 
pescadores, meretrizes, surfistas, portuários, trabalhadores da indústria, pequenos 
comerciantes e, sobretudo, trabalhadores do mercado informal, os ditos “biscateiros”, 
misturam-se, configurando aspectos particulares de uma comunidade culturalmente 
multifacetada e marcada por distintas experiências migratórias. 
 No Serviluz, milhares de famílias vivem em casas muito apertadas. Amontoadas, as 
pequenas habitações formam ruas estreitas e labirínticas constantemente ameaçadas pela 
invasão da areia, soprada pelos fortes ventos dessa parte do litoral. Geograficamente, o espaço 
já foi apenas uma praia afastada, constituída por dunas de areias móveis e assolada pela ação 
corrosiva da maresia. Quando as primeiras construções foram edificadas, o local, inóspito, era 
praticamente inabitável. No lugar, não são raros os relatos de pessoas que tiveram suas casas 
repetidas vezes derrubadas pelo vento ou pela água da chuva. 
O avanço das marés, as cortinas de areia, a feroz ventania, e, posteriormente, o fogo da 
indústria petroquímica foram elementos que se integraram à composição da paisagem social. 
Essa mistura fazia sugerir a existência de uma relação orgânica, intensa e imediata entre 
homem e natureza, entre natureza e cultura. 
SERVILUZ era o nome do antigo Serviço de Luz e Força de Fortaleza, empresa 
geradora de energia elétrica extinta no início dos anos 1960. Após a desativação da usina, esse 
se tornou também o nome popular da favela que a circundava, sendo nessa denominação que 
seus moradores passaram a se reconhecer. “Aqui é o Serviluz: de dia falta água e de noite 
falta luz”, essa antiga anedota local parece indicar um dos primeiros elos de unidade entre os 
moradores do bairro: a inexistência de energia elétrica, por longo tempo, nos domicílios que 
se localizavam ao lado da usina. 
Os números demográficos e a delimitação urbanística do bairro são bastante 
imprecisos, mas segundo pesquisas populares, atualmente a população do bairro conta com 
cerca de vinte mil habitantes1. Na distribuição administrativa municipal, o bairro e umasérie 
de outros núcleos populacionais aparecem sob a designação de Bairro Vicente Pinzón2. O fato 
é que o bairro simplesmente não existe na configuração urbana oficial da cidade. 
 
1 Pesquisa realizada por membros locais do Partido dos Trabalhadores (PT). 
2 O Vicente Pinzón integra-se administrativamente a Secretaria Executiva Regional II (SER II) da Prefeitura 
Municipal de Fortaleza e engloba basicamente os bairros Serviluz, Castelo Encantado, Conjunto Santa 
Teresinha, Lagoa do Coração, Morro das Placas, parte da Praia do Futuro, entre outros. A dimensão geográfica, 
confusa, certamente não corresponde à totalidade da população que ali habita. Nas estatísticas oficiais, por 
exemplo, a região possui uma população de apenas 39.551 habitantes. Por sua vez, o Bairro Cais do Porto, 
comumente confundido também com o Serviluz, apresenta um quadro demográfico de 21.529 habitantes (Censo 
IBGE-2000). Para se ter uma idéia desse desacordo, enquanto o Mucuripe tem 11.990 moradores, o Grande 
Mucuripe, uma nomenclatura vaga, registra 203.220 habitantes (Censo IBGE-2000). 
 
 
11
As primeiras ocupações do Serviluz e de boa da área leste da cidade foram efetivadas a 
partir da construção do novo porto de Fortaleza e da transferência e instalação de um novo 
ponto de meretrício na cidade em 1961, a zona do Farol do Mucuripe. 
No fim dos anos 1970, com a intensificação do processo migratório para a capital 
cearense em período de forte estiagem (1978-1982), e com o remanejamento para o local (ver 
mapa) de uma comunidade de pescadores, antes fixada nas margens do cais portuário, a beira 
de praia sobre a qual se ergueu o bairro já estava completamente tomada por tipos variados de 
trabalhadores. 
O crescimento demográfico e a diversidade de ocupantes refletiu-se nas subdivisões 
internas que o bairro passou a comportar após o processo de ocupação3 (ver mapa). Além do 
recorte espacial, uma dificuldade inicial da presente pesquisa foi ainda o estabelecimento de 
um recorte temporal que abarcasse a ocupação inicial do bairro, nos anos 1960, e as 
transformações desencadeadas no período atual. A chegada de grande leva de prostitutas, 
trabalhadores do cais, pescadores e outras famílias fugidas das secas, sobretudo nos anos 
1970/80, consolidaram uma população hoje com aspectos muticulturais. 
Na tentativa de reconstituição desses eventos, a coleta, a sistematização e os 
questionamentos lançados sobre as fontes, e principalmente a produção de entrevistas com 
moradores do bairro, fizeram-me acreditar que seria imprescindível partir do momento atual, 
do tempo da fala. Além disso, algumas vezes foi preciso recuar no tempo, mesclando uma 
gama de temas diferentes que se mostravam essenciais ao entendimento do Serviluz como 
resultado de um processo histórico complexo e ainda em andamento. Desse modo, procura-se 
articular os diferentes momentos de ocupação do lugar, a produção de lutas pela organização 
comunitária, as interações e as sociabilidades em constituição. 
A escrita de uma história do tempo presente evidencia, entre outras especificidades, a 
singularidade de estabelecer uma proximidade mais imediata com o objeto de estudo, o que 
inevitavelmente acaba agregando pontos de vista, experiência pessoal, e ensejando 
posicionamento e compromisso social do historiador. 
Como pesquisador, foi de suma importância reconhecer o meu profundo envolvimento 
com esse objeto de estudo com o qual mantenho estreitas relações de afinidade pessoal. No 
trabalho, além do que foi encontrado nas fontes escritas e registrado nas fitas cassetes, 
considerei igualmente importantes as incontáveis conversas informais, as frases de domínio 
 
3 As divisões internas foram se estabelecendo no decurso do tempo e, geralmente, em função das migrações de 
grupos de trabalhadores para o local. A Estiva, o Farol, a Fronteira, a Favela, o Titanzinho, o Rastro, o Final da 
Linha, a Pracinha, e o Chespierre são partes localizadas, mas integrantes do mesmo bairro. 
 
 
12
geral (citadas entre aspas), as observações de campo, as anotações das pequenas impressões e 
a experiência de alguém que também migrou para aquela praia e nela reside há mais de quinze 
anos. Sobretudo, deve-se creditar qualquer possível rigor científico deste estudo ao modo 
transparente com o qual os documentos foram trabalhados. 
No que concerne mais diretamente à metodologia com História Oral, Portelli4 
observou que a relação social e pessoal entre os dois interloucutores também tem um papel 
importante na produção das fontes de pesquisa. Trata-se de uma troca pessoal que se torna 
uma declaração pública, uma performance que vira texto. A forma da entrevista depende 
também do grau de familiaridade do entrevistador em relação à realidade sob investigação: 
“os narradores pressuporiam que um historiador ‘nativo’ já conhece os fatos e fornecem em 
substituição explicaçõoes, teorias e julgamentos”5. 
Richard Hoggart foi taxativo ao enfatizar que um escritor tem obrigação de resolver 
estes problemas como lhe for possível e durante o próprio processo de escrever, enquanto luta 
por descobrir o que tem verdadeiramente para dizer: “Não me eparece possível que ele 
consiga alguma vez atingir uma objetividade absoluta”6. 
Sabendo de antemão dos perigos e das armadilhas decorrentes da proximidade com as 
entrevistas, que exigiram um necessário “afastamento” metodológico, a singularidade de 
conhecer mais de perto a realidade diária dessas pessoas me forneceu muitos elementos de 
análise, capazes talvez, de apreender com maior riqueza de detalhes as dimensões mais 
íntimas do cotidiano, da cultura e das identidades locais. 
A praia do Mucuripe foi um conhecido reduto de jangadeiros e prostitutas que 
recebiam, esporadicamente, visitantes de outras regiões encantados com aquela bela 
paisagem. Com a construção do cais e o advento da indústria, alguns estivadores e indivíduos 
de outras categorias somaram-se timidamente a esse contingente. Durante a estiagem de 
quatro anos, no fim de 1970, novas favelas se espraiaram sobre as dunas dessa parte da 
cidade. 
Fortaleza é uma cidade cuja história é profundamente marcada pelo êxodo rural; ilhas 
de prosperidade e bairros elegantes se constituíram em meio a periferias. De modo geral, os 
núcleos habitacionais, ou favelas, que circundaram o complexo portuário, foram sendo 
ocupados sobre as areias da praia de jangadeiros do Mucuripe desde a década de 1940, época 
 
4 PORTELLI, Alessandro. História Oral como gênero. In: Projeto História: Revista do Programa de Estudos 
Pós-Graduados em História e do Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, nº. 
22. São Paulo: EDUC, junho de 2001. 
5 Op. Cit. PORTELLI, p. 21. 
 
 
13
do término da construção da primeira etapa do porto e do início da montagem do parque 
industrial na região. 
É a partir do novo porto - elemento central no processo de expansão e reordenação 
espacial da tradicional enseada de pescadores do Mucuripe - que a região vai experimentar 
uma série de mudanças: nas suas reservas geográficas, no tipo de ocupação territorial e uso do 
solo, na funcionalidade econômica, na expansão demográfica e na vivência social do seu 
espaço. 
Em Fortaleza, o projeto de industrialização correu, em determinado momento, em 
paralelo à invenção de uma cidade turística diferenciada. No Mucuripe, as remoções iniciais 
da população pobre, realizadas para o porto, foram continuadas com a construção da primeira 
etapa da luxuosa Avenida Beira-Mar (1963), tornando esse espaço alvo privilegiado da 
especulação imobiliária. A cidadedas areias foi sendo cortada por asfalto. Em todas as 
direções, bairros longínquos se integraram num curto espaço de tempo. 
Essa é uma época caracterizada historicamente por grandes transformações, tanto na 
paisagem quanto nos usos sociais dos espaços litorâneos brasileiros. Na Região Nordeste, a 
velha imagem do semi-árido sofrido foi se intercalando com a idéia de um paraíso tropical, 
belo e atrativo. Devido à “limpeza” urbana, algumas cidades nordestinas, como Fortaleza, 
ganharam condições de disputar a atração de turistas nacionais e estrangeiros com os outros 
lugares de visitação do país. O turismo tornou-se uma febre. 
Assim, as modificações e intervenções do homem na natureza não alteraram apenas a 
paisagem natural, mas também o convívio e a cultura. No Serviluz, após a ampliação de mais 
um espigão de pedras e o aterramento de parte da orla, para que os pescadores da Praia Mansa 
(ver mapa) fossem remanejados da área portuária, possibilitou-se a prática do surfe pela 
garotada local. Inicialmente realizado sobre tábuas, o surfe na praia do Titanzinho (ver mapa) 
emergiu como um tipo de trabalho e uma forma de promoção social. Os meninos da 
comunidade logo ganhariam títulos e notoriedade, colocando a comunidade na mídia 
esportiva nacional. 
Nesta pesquisa procuro argumentar que, na pequena praia do Serviluz, um espaço 
configurado historicamente por múltiplos territórios e personagens, em meio às adversidades, 
proporcionadas tanto pela complicada relação estabelecida com a natureza quanto pelas 
mediações mantidas com as políticas públicas excludentes da cidade, homens e mulheres 
 
6 HOGGART, Richard. As utilizações da cultura. Aspectos da vida da classe trabalhadora, com especiais 
referências a publicações e divertimentos. Lisboa: Editora Presença, 1973. (Coleção Questões). P. 22. 
 
 
14
aprenderam a compartilhar projetos e angústias, a redefinir valores, tornando-se agentes mais 
ativos na construção de suas histórias de vida. 
De modo geral, são escassos as pesquisas e os documentos sobre as regiões portuárias 
cearenses. Apesar do rico patrimônio cultural dos habitantes das áreas praianas, também não 
são muitos os trabalhos sobre a história dos moradores de seus bairros, principalmente os 
formados em decorrência das migrações recentes para a capital. Em Fortaleza, algumas 
regiões mais antigas incorporadas à malha urbana da cidade ainda na primeira metade do XX, 
como Messejana e Parangaba, ou bairros mais antigos como Centro e Pirambu, foram temas 
estudados e sobre esses lugares há uma documentação já catalogada. 
Sobre o histórico vilarejo do Mucuripe, um dos berços habitacionais da cidade, existe 
numerosa e variada documentação. Passagens sobre a história do lugar são encontradas em 
antigos livros de História do Ceará, na literatura, em vários jornais e em reminiscências de 
memorialistas. A praia foi ainda inspiração de músicas e poemas e recentemente passou a 
contar com um acervo do bairro7. 
No caso do Serviluz, encontrado muitas vezes nas fontes de pesquisa como sendo 
apenas mais uma ramificação marginal do velho Mucuripe, minha primeira preocupação foi 
realizar um levantamento de fontes sobre sua história. Aos poucos, reunindo informações 
dispersas e cruzando diferentes tipos de documentos, acreditei se tratar de um processo 
histórico instigante, em que um emaranhado de conflitos e resistências, intrigas e partilhas 
podiam ser reconstruídos. 
Na documentação do Estado, cujo principal arquivo consultado foi o Acervo Virgílio 
Távora8, obtive numerosas informações sobre a seca e os municípios com ameaça de invasão 
de trabalhadores no interior; o problema habitacional e a política social na periferia da capital; 
os projetos de eletrificação e o processo de industrialização; a racionalização da agropecuária 
no campo e o problema da falta de empregos na cidade. Mesmo sendo uma documentação de 
cunho oficial, esse material foi imprescindível, pois nele foi preciso reconhecer como os 
trabalhadores, citados sob a forma de estatísticas, participavam de ações políticas e da disputa 
pelo poder local. 
 
7 Arquivo criado na década de 1990. Reúne uma variada documentação, escrita e iconográfica, sobre a história 
do bairo. O acervo foi criado e é coordenado por uma antiga moradora do Mucuripe Vera Lúcia Miranda, a 
Verinha. 
8 O acervo do ex-governador Virgílio Távora, organizado em 2003, está disponível no Arquivo Intermediário do 
Arquivo Público do Estado do Ceará. O acervo reúne documentos particulares e administrativos, mapas, 
fotografias, comendas, troféus, diplomas e objetos pessoais do político cearense. Cf. CEARÁ, Inventário do 
Acervo Virgílio Távora. Ceará. Secretaria da Cultura. Arquivo Público. Fortaleza: SECULT, 2005. 
 
 
15
Nas páginas dos jornais da época, os destaques primeiros foram dados para o tímido 
crescimento do mercado imobiliário, a emergência elegante dos bairros ilustres e dos clubes 
de veraneio, o debate sobre as obras no porto, a abertura de novas estradas, as empresas que 
resolveram migrar do Sul para o Nordeste e as disputas pela terra no sertão. Noutro momento, 
a partir de meados dos anos 1970, as notícias davam conta do inchaço desordenado da cidade, 
do saneamento urbano nas novas áreas de risco, das sucessivas crises econômicas e do tímido 
anúncio da globalização. Num médio prazo, realizando uma leitura mais panorâmica dos 
jornais, parece que o país foi do sonho eufórico da modernização operada nos anos 1950 ao 
tenebroso pesadelo das sucessivas crises econômicas desencadeadas a partir da década de 
1970. 
Mas, nos cadernos dos diversos periódicos, não era difícil observar que a praticidade e 
as benesses da vida moderna sempre se intercalavam ao cotidiano violento, criminoso e 
desajustado das favelas que não paravam de crescer. Tratava-se de notícia dispersa que, 
analisada em conjunto, indicava e atribuía formas e definições, emitindo juízos sobre 
determinados assuntos. 
Interessante observar como grande parte dos registros sobre a vida na periferia estava 
escrita nas páginas policiais. De modo geral, essas fontes veiculam informações e produzem 
representações que não correspondem à realidade vivida nesses espaços. Nas reportagens 
divulgam-se, sobretudo, os dramas, as catástrofes e a política assistencialista do Estado, cada 
vez mais disfarçada sob o lema da ampliação da cidadania. 
 A imprensa do Ceará no período contava com os seguintes jornais: O Povo, Correio do 
Ceará, Unitário, Tribuna do Ceará e O Estado, além do jornal Diário do Nordeste, criado em 
1982, e do jornal alternativo Mutirão (1977-1982). Na imprensa, guardadas as devidas 
especificidades, a pesquisa sobre determinados espaços da cidade, como o Serviluz, foi 
revelando que as informações vinham sistematicamente acompanhadas de adjetivos como 
“perigoso” e “assustador”, e as coisas que dali provinham tinham quase sempre uma “origem 
duvidosa”. 
Por isso, ao utilizar esse material como fonte historiográfica, foi necessário considerar 
o caráter do processo de produção da informação e a imprensa como constituinte de um certo 
tipo de memória, que atende prioritariamente ao interesse de grupos sociais específicos. 
Apesar da relevância das fontes de imprensa para os investigadores do período 
contemporâneo, sabe-se que a grande maioria da população do bairro não tem acesso a esse 
tipo de leitura. 
 
 
16
Foi então preciso estabelecer uma metodologia de pesquisa na qual os critérios de 
escolha e análise das fontes documentais possibilitassem a percepçãoda comunidade sob o 
ponto de vista de seus moradores e não somente sob o epíteto de favelados. A meu ver, 
analisá-los simplesmente, sob o prisma econômico, seria injusto e limitado em demasia. 
 Nesse contexto, foi importante considerar não apenas o que era dito sobre a 
comunidade, mas principalmente o que fora produzido dentro da comunidade. Dessa 
produção, os registros das associações de moradores mereceram reconhecido destaque. Nos 
arquivos encontrei indícios mais concretos de experiências associativas e do aprendizado 
político ali desenvolvido. 
Nos arquivos das associações do bairro, porém, encontra-se uma documentação quase 
sempre incompleta, cheia de lacunas e às vezes faltam elementos básicos como a data ou o 
local da realização do encontro. As atas, por exemplo, são do tipo falada, algumas palavras 
são anotadas com erros gramaticais, escritas às pressas em letras garrafais. O texto era escrito, 
mas carregado de características da oralidade. 
Esse discurso, embora elaborado numa linguagem própria e eivada de sentidos, 
obviamente não corresponde à prática. E, por mais pormenorizada que seja uma ata, através 
dela não seria possível identificar, por exemplo, o clima tenso ou alegre de uma reunião. 
Outra consideração importante sobre tais registros é que, apesar de essa ser uma 
produção realizada pelos próprios moradores da comunidade, muitas vezes somente os 
membros da diretoria, os “sócios”, tinham direitos a voz e voto. Apesar de a finalidade social 
dessa fonte estar relacionada basicamente à prestação interna de contas entre os associados, 
possuindo efeito simplesmente comprobatório das ações do movimento, a documentação é 
sempre permeada por relações de poder e se fundamenta em grande parte na hierarquia que 
rege a instituição. 
No Serviluz, assim como nos modelos organizacionais dos bairros adjacentes, é muito 
relevante a opinião das lideranças comunitárias como formadoras de uma certa versão da 
memória local. Se, por um lado, foi preciso reconhecer a importância dessas lideranças para o 
desenvolvimento político da comunidade, por outro, não se podia esquecer que a altivez 
dessas vozes ocultava a fala dos participantes anônimos do mesmo processo. 
Disso resultou que, além das fontes escritas, a contribuição oferecida pela oralidade se 
mostrou riquíssima, sobretudo porque muitos dos participantes ativos dessa trama ainda estão 
vivos. Ademais, ainda teima em prevalecer ali a tradição viva da fala, da experiência verbal e 
dos ensinamentos proverbiais dos mais velhos, gente que quase sempre consegue sobreviver 
dispensando o mundo da escrita. Por isso, o diálogo com esses sujeitos é fruto não apenas da 
 
 
17
necessidade de “dar voz” a essas pessoas, mas também porque esse é um universo em que a 
oralidade sobrepõe-se à escrita nas construções e reconstruções da memória. 
O trabalho com História Oral foi uma experiência rica e bastante singular. Um longo e 
sinuoso trajeto foi percorrido das primeiras histórias de vida - timidamente colhidas diante do 
gravador, objeto muitas vezes assustador - à convicção de que em cada depoimento havia uma 
mensagem a ser transmitida e uma “verdade” a ser considerada; o contínuo retorno à infância 
e a constante ressignificação das experiências passadas em função do tempo presente. 
Basicamente, o processo de produção das entrevistas pode ser dividido, do ponto de 
vista metodológico, em dois momentos distintos. No primeiro, os depoimentos orais foram 
obtidos através de um prévio roteiro de perguntas e respostas mais diretas e que funcionaram 
em essência como fonte de informação para a elaboração de subitens temáticos. Essa foi uma 
fase relativamente simples, pois os próprios moradores da comunidade indicaram as pessoas 
mais “sabidas” sobre a história do bairro. Com facilidade, estabeleci uma relação a meu ver 
coerente. 
Elaborei assim uma espécie de rede de entrevistas, estabelecendo, como critério 
primordial de escolha dos depoentes, a tentativa de dialogar com diferentes membros da 
comunidade. Líderes comunitários, pescadores, estivadores, trabalhadores da indústria, ex-
prostitutas, surfistas, donas de casa e trabalhadores informais foram ouvidos, perfazendo um 
total de 11 (onze) entrevistas com durações de tempo variado. 
Logo aflorou a deficiente formação profissional e a inexperiência acadêmica para 
realização dessa atividade. A fragilidade metodológica inicial incluía desde o manejo com o 
equipamento técnico até a falta de uma certa sensibilidade para lidar com a sutileza de 
situações simples ocorridas no decurso do diálogo. 
Já na primeira entrevista, depois de uns quinze minutos de conversa, o entrevistado, 
bruscamente, interrompeu a gravação, desligando ele próprio o aparelho e pedindo-me para 
que pulasse aquela pergunta. Eu o havia interrogado sobre uma possível participação sua nas 
associações comunitárias do bairro. Ao fim da conversa, o entrevistado me contou que não 
falara sobre aquele assunto porque “comunidade dava muita encrenca”. 
Paradoxalmente, o gravador parecia ajudar tanto quanto atrapalhar. Eu mesmo não 
gostava daquele objeto estranho entre duas pessoas no ato da entrevista. Aquele aparelhinho 
tinha a incrível capacidade de inibir as pessoas que, ao saberem que tudo seria registrado, 
tinham demasiada cautela no ato da fala. Por outro lado, muitos o aproveitavam e o utilizavam 
como meio de soltar a falar e denunciar. 
 
 
18
Optei então pelo uso de um rádiogravador portátil. Um pouco maior e com microfone 
embutido no próprio aparelho, permitia captar o som numa distância mais longa, o que 
possibilitou a eliminação física imediata do gravador. Além disso, para eliminar a tensão dos 
primeiros instantes, comecei a ter também o hábito de ligar o rádio e ouvir música enquanto 
preparava a gravação, o som poderia facilitar um possível relaxamento do depoente. 
Num segundo momento da confecção das entrevistas, a dinâmica e a maleabilidade da 
fonte oral exigiram uma redefinição dos critérios de escolha das pessoas e das questões a 
serem feitas. Foi preciso, por exemplo, redimensionar a filtragem em função da profissão 
exercida e a separação dos indivíduos em grupos, na medida em que essa divisão não 
satisfazia a certos problemas e indagações da pesquisa em fase mais avançada. 
Permanecia ainda a tentativa de dialogar com os múltiplos sujeitos do bairro, figuras 
“representativas” de seus grupos e espaços, possibilitando assim a abertura de canais de 
interação entre a diversidade ali existente. Segundo Ecléa Bosi “a memória oral é fecunda 
quando exerce a função de intermediária cultural entre gerações”9. 
Numa nova triagem, bem como no possível retorno a entrevistas anteriores, procurei 
levar em conta não apenas o grau de conhecimento, a participação e o envolvimento político 
do depoente, mas principalmente a forma e a capacidade de relembrar suas memórias. A idéia 
não era mais saber apenas sobre a história do bairro em si, mas perceber como, no desenrolar 
de cada narrativa individual, as pessoas reelaboravam suas experiências de coletividade. Não 
interessava simplesmente constatar as participações mais efetivas, mas entender o sentido que 
cada participação ou ausência teve na vida das pessoas. 
Ao se trabalhar com História Oral, foi preciso aprender que o silêncio pode dizer 
muito. Ao mesmo tempo, o fato de se saber da existência de certos constrangimentos sobre 
determinados assuntos revelou a necessidade de se ter grande delicadeza para tratar certas 
questões, ainda mais quando se mora na comunidade pesquisada. 
Nos registros das associações do bairro, já apareciam denúncias de brigas e corrupção 
entre os membros das entidades. O fato é que supostas fraudes, apropriaçõesindébitas dos 
equipamentos comunitários e os casos de brigas e ameaças passaram também a fazer parte da 
luta por melhorias. Indicavam tanto os perigos decorrentes do exercício e manipulação do 
poder no local, como a existência de uma tênue diferença entre o que é o espaço público e 
aquilo que se torna particular. Existe um fluxo permanente e intenso de informações entre a 
rua e o lar, a partir do qual ambos são constantemente modificados. 
 
9 BOSI, Ecléa. Memória da Cidade: lembranças paulistanas. In: O Direito a Memória: Patrimônio Histórico e 
Cidadania. São Paulo: DPH, 1991. p. 146. 
 
 
19
Se foi preciso respeitar a individualidade de cada entrevistado, foi possível observar 
que no Serviluz muitos dramas e tragédias particulares se tornaram histórias de domínio 
público. Há na verdade uma continuidade, entre as gerações, da transmissão dos casos mais 
célebres que permeiam o imaginário e a memória social do bairro. Numa perspectiva 
diferenciada das dos jornais, essas narrativas trazem geralmente situações dramáticas ao 
extremo, crimes, mortes ou histórias de vidas que findaram tragicamente. A desgraça alheia, 
nesse caso, vem sempre acompanhada de uma mensagem moralizante e exemplar. 
Foi preciso ter em conta ainda que, apesar de o tema lidar com eventos históricos 
contemporâneos, havia algumas distinções que se referiam à historicidade e à cultura dos 
diversos grupos sociais, as quais precisavam ser consideradas. 
No meretrício, por exemplo, era bastante difícil encontrar os personagens que viveram 
nesse ambiente à época da inauguração dos prostíbulos do Farol, em 196110. No bairro, nessa 
profissão o tempo de vida das mulheres é geralmente bem curto, quase todas faleceram ou 
mudaram de endereço com a crise da “zona” nos anos 90. Muitas mulheres assumiram a nova 
condição de dona de casa ao se casarem com pescadores ou estivadores mais prósperos que as 
tiraram dos bordéis. Nesses casos, mesmo quando a mulher assumia desinibida o seu passado, 
além da questão ética11 que perpassa todo o tema, restava ainda uma forte questão de gênero, 
pois ela estava sendo entrevistada e falaria da sua vida íntima para um homem. 
Já entre os surfistas, uma peculiaridade importante a ser considerada foi a pouca idade 
dos praticantes desse esporte. Na localidade, mesmo os adeptos da primeira geração 
dificilmente ultrapassam os 40 anos de idade. Nesse caso, não dialogava com os mais velhos, 
fundamento básico no trato com história oral, mas com pessoas essencialmente jovens e que, 
além disso, se expressam numa linguagem própria. 
 Outro fator relevante é que, apesar da pouca idade, esses adolescentes vão adquirindo, 
ao longo de campeonatos, o hábito de aparecer na mídia esportiva promovendo seus 
patrocinadores. Esse fato acaba propiciando a cristalização de certas falas e jargões entre os 
competidores. Por outro lado, não foram raros os surfistas que preferiam não gravar o 
depoimento, mas se mostrav Por isso foram utilizados alguns trechos das entrevistas 
 
10 Cf.: ANJOS JUNIOR, Carlos Silveira Versiani dos. A serpente domada: um estudo sobre a prostituição de 
baixo meretrício. Fortaleza: Edições UFC, 1983. Foram utilizados alguns trechos das entrevistas realizadas por 
este autor. 
11 Cf.: PORTELLI, Alessandro. Tentando aprender um pouquinho. Algumas reflexões sobre ética na História 
Oral. In: Projeto História: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de 
História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, nº. 15. São Paulo: EDUC, abril 1997. 
 
 
 
 
20
realizadas por am totalmente disponíveis a cair n’água e pousar para lentes fotográficas. São 
jovens que falam através do corpo e da gestualidade, expressam-se em movimentos 
acrobáticos captados pelos holofotes da mídia. 
Fonte construída através de um processo dialógico, recíproco e dinâmico, esse 
material ajudou a desvelar a percepção do sentimento de pertencimento ao grupo, a 
identificação das redes internas de solidariedade, a ajuda mútua, as discórdias, o 
reconhecimento dos valores afetivos e a melhor compreensão dos mecanismos internos de 
regulação da comunidade. 
Através dos depoimentos orais, fui descobrindo que, além das associações de 
moradores, que compuseram um quadro geral de organização popular nos bairros da cidade, 
outros grupos também tiveram efetiva participação no coletivo local. Segundo o entrevistado 
José Osmir Monteiro da Souza, filiado ao Partido dos Trabalhadores (PT), uma pesquisa do 
seu partido no bairro identificou que o Serviluz “atualmente conta com aproximadamente 
trinta tipos diferentes de associações populares”12. 
Foi importante considerar que, durante grande parte do período de abrangência dessa 
pesquisa, o país estava mergulhado numa ditadura militar. Apesar disso, os movimentos 
sociais ganharam destacada notoriedade. Já havia algum tempo, comunidades e bairros se 
organizavam. As manifestações artísticas e culturais que clamavam por liberdade de 
expressão se intensificaram e, de modo geral, as camadas populares passaram a exercer maior 
pressão sobre o Estado. 
 Os indícios apontam que os tipos de ação política praticada no bairro não estão 
diretamente associados a instâncias tradicionais de luta do trabalhador, ainda que existam 
conexões, mas espalhadas nos diversos núcleos de sociabilidades e culturas que se 
constituíram. Afinal o bairro havia deixado de ser apenas o lugar onde as pessoas moravam, 
para ser o lugar onde elas também viviam, encontravam-se, desenvolviam relações de união e 
solidariedade, e onde acumulavam experiências de vivência comunitária e de resistência 
coletiva. 
Após os anos 1990, os movimentos associativos se multiplicaram no bairro. Ligas 
esportivas mobilizavam centenas de jogadores de futebol em competições realizadas nos fins 
de semana. Surfistas promoviam campeonatos e realizavam projetos sociais voltados à 
preservação ecológica. Manifestações e festas católicas, como as tradicionais caminhadas em 
procissões, eram realizadas pelas ruas escuras e violentas do bairro, as atividades nas pastorais 
 
12 Entrevista concedida por José Osmir Monteiro de Sousa ao autor em 28/01/2003. 
 
 
21
do pescador e da mulher eram igualmente freqüentes. Na Igreja Presbiteriana, missionários 
ensinavam a ler e a escrever, enquanto na Pentecostal pastores socializavam jovens contra a 
perdição das drogas. Nos muitos terreiros de macumba, mandingas e festas animadas eram 
feitas para saudar a Rainha do Mar, Iemanjá. Nos cultos religiosos, emerge a diversidade e a 
constituição de distintas memórias. Trata-se de uma comunidade marcada por uma enorme 
efervescência política e cultural que faz surgir lampejos de autonomia entre seus moradores . 
No primeiro capítulo desta pesquisa, procuro observar as transformações operadas na 
tradicional enseada de jangadeiros do Mucuripe, percebendo como esse antigo reduto de 
pescadores foi radicalmente modificado a partir da construção de um porto e das instalações 
industriais. Paradoxalmente, o espaço foi se constituindo numa área de moradia e lazer das 
elites e ao mesmo tempo se tornou um aglutinador de trabalhadores que chegaram à capital. 
No segundo capítulo, abordo os vários deslocamentos que possibilitaram essas 
mudanças e a ocupação do Serviluz por diferentes grupos populares em períodos distintos. 
Analiso o bairro como sendo um espaço de múltiplos territórios: prostitutas, madames, 
marinheiros; pescadores e empresários da pesca; surfistas, capoeiristas e jogadores de futebol 
suburbano; estivadores e trabalhadores do gás;homens e mulheres convivendo numa 
ambiência específica onde o trabalho tende a perder a forte interação que mantinha com o 
meio. 
No terceiro capítulo, descrevo um pouco da arquitetura do lugar, ruas de areia, becos 
estreitos e pequenos quintais, um cenário onde se opera uma estranha lógica em que as casas 
mais próximas da praia são as mais pobres e as mais ameaçadas pelas condições naturais. 
Realizo uma breve discussão sobre a relação entre natureza e cultura, percebendo como estes 
aspectos se cruzam no cotidiano da população e como nesse cruzamento os homens também 
se transformam. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
22
Capítulo I 
 
1 O Mucuripe e o Serviluz: da aldeia de pescadores à moderna selva de 
pedra 
 
 
 “As velas do Mucuripe vão sair para pescar 
 vou levar as minhas mágoas pras águas fundas do mar” 
(Fagner e Belchior) 
 
“O pescador que antes pisava descalço o chão de sua intimidade, já passeia sobre chinelos de plástico. Não 
mais olha e vê as horas que são, pela posição das estrelas, mas pelos sinais digitais do relógio japonês de 
pulso (...) a cabaça de ontem é a marmita de alumínio de hoje” 
(Eduardo Campos) 
 
 “A gente mora numa bomba!”. 
 (Boi, morador do Serviluz) 
 
1.1 Os “verdes mares bravios” 
 
Os homens já não mais acordam ao cantar do galo, mas o hábito de cedo levantar 
ainda permanece. Diferentemente do horário de trabalho na indústria, no qual os operários 
devem estar à porta da fábrica ao toque da estridente sirene, os trabalhadores do mar não 
batem o cartão de ponto. Na pequena pesca, o momento do trabalho depende quase sempre da 
sazonalidade da maré. 
 Se o mar “tá pra peixe”, o mestre reúne os pescadores. A força de trabalho quase 
sempre se compõe no momento exato de iniciar a pescaria, mas muitos homens se engajam no 
decurso do processo de captura. Entre oito e dez homens, no mínimo, são necessários para a 
realização da pesca com a rede de “três malhos” 13. Esse é um tipo de equipamento de pesca 
destinado basicamente a pesca de sardinhas. 
 
13 “O tresmalho, de origem portuguesa, era uma rede de emalhar composta pela superposição de três malhas de 
tamanhos diferentes. A rede de tresmalho era fabricada com fios de algodão pelos próprios pescadores, que 
passavam boa parte do tempo em contínuo conserto”. Cf.: DIEGUES, Antonio Carlos Sant’Ana. Pescadores, 
camponeses e trabalhadores do mar. São Paulo, Ática, 1983. P. 37. 
 
 
 
23
 O barco, ancorado na beira da praia, é arrastado pelos pescadores para a beira d’água, 
sendo carregado sobre um eixo de ferro e sustentado por duas rodas de automóvel. Alguns 
poucos barcos ainda fazem porto e ficam abrigados sob deterioradas cabanas na praia do 
Serviluz. Ali, ainda é possível visualizar desgastados rolos de madeira enterrados na areia. 
Dependendo do tipo de pesca a ser empreendido, no entanto, o barco, geralmente do tipo bote, 
não parte da areia, mas precisa estar na água, à espera, já no escuro da madrugada. 
 Na tradicional pesca com a rede de “três malhos”, a pequena embarcação compõe-se 
de uma superfície de madeira que mede geralmente quatro metros de comprimento por dois 
de largura, essas dimensões, entretanto, são bastante variáveis. Sobre o barco, preparado 
desde a pescaria anterior, é possível o equipamento básico a ser utilizado: uma rede14, dois 
montes de corda, dois remos e uma longa vara de madeira. 
Quando a embarcação e todo o equipamento já estão na superfície da água, a equipe 
impulsiona, “faz força”, e o casco do barco desliza contra as ondas. Nesse instante, três ou 
quatro homens sobem no barco enquanto os outros sustentam a corda em terra. A força de 
trabalho se forma e se divide de acordo com as habilidades e a experiência profissional de 
cada pescador15. 
 A maré nem sempre facilita o ingresso dos homens mar adentro, e vencer a 
arrebentação das ondas, em algumas épocas do ano, consiste na etapa mais difícil e penosa de 
todo o processo de captura. O risco da embarcação virar é imenso. Além disso, essa operação 
pode levar horas ou pode simplesmente ser abortada devido à fúria indomável das águas. 
Quando os chamados “homens de terra” já não conseguem mais avançar no mar, recuam com 
a ponta da corda e começam a puxá-la lentamente; começa uma verdadeira batalha contra as 
ondas. Na “voga”, o pescador mais experiente vai à frente do barco utilizando os dois remos 
de que dispõe simultaneamente. As ondas quebram às suas costas e, como é ininterrupto o 
balanço da maré, seu corpo é constantemente jogado para o centro do bote. À medida que o 
 
14 A rede também apresenta uma grande variação de tamanho, em média, são confeccionados entre 80 e 120 metros 
de rede para cada embarcação. Basicamente, a rede compõe-se do “saco”, parte onde a malha é maior, e do “copo”, a 
parte mais estreita, o fundo da rede. Extremamente pesada, uma boa rede é tecida com uma média de: 80 quiilos de 
náilon, alguns pescadores utilizam linha de seda para baratear os custos; 500 quilos de chumbo, responsáveis pelo 
afundamento do material; 70 peças de isopor ou “abóias”, necessárias à flutuação da parte que fica sobre a superfície. 
O náilon, o chumbo e o isopor são distribuídos ao longo de uma imensa corda; esta, além da parte “entranhada” na 
rede, apresenta ainda mais uns 200 metros de corda solta, que delimita a distância que o barco se distanciará para 
lançar a rede. 
15 Esse é um tipo de pesca que emprega pescadores “de terra” e “de mar”. O “vogador”, o “vareiro” e os “cordeiros” 
são os profissionais mais especializados, são eles que partem no barco para o lançamento da rede. Costumeiramente, 
o dono da embarcação não pesca, mas é possível que um arrendatário participe de modo direto de todo processo de 
trabalho. 
 
 
 
 
24
barco se inclina, os homens tentam controlá-lo. Na “vara”, o pescador, em pé, impulsiona a 
longa tira de madeira contra o chão, arremessando a embarcação para dentro d’água. Os 
“cordeiros” vão aos poucos soltando a corda. Vale ressaltar que todas as tarefas são realizadas 
em conjunto e calorosos gritos de orientação são pronunciados a todo instante. A fala é um 
componente importante do processo de trabalho. 
 Vencida a arrebentação, o barco faz uma espécie de círculo, distribuindo a rede 
cuidadosamente, realizando um tipo de cerco. No momento da distribuição da rede, aumentam 
as precauções; “o mais perigoso é a rede cair em cima da gente”, afirmam muitos pescadores. 
Por ser a rede grande e pesada, em caso de naufrágio, dificilmente o homem debaixo do 
equipamento poderá subir de novo à superfície, já que estará com centenas de quilos sobre seu 
corpo. 
 Quando o bote retorna à areia trazendo a outra ponta da corda, recomeça o trabalho 
pesado em terra. Na areia, a embarcação é colocada em um lugar estratégico a fim de ser 
imediatamente arrumada para uma nova pescaria. É chegada a hora de puxar as duas pontas 
da corda de maneira coordenada e essa é quase sempre a etapa mais demorada do trabalho 
(um lance completo demora em média duas horas). A eficácia dessa empreitada depende da 
quantidade de homens disponíveis na ocasião. A corda é tão pesada que dificilmente poucos 
homens conseguem arrastá-la; por esse motivo, é comum que alguns curiosos sejam aceitos 
como complemento circunstancial da mão-de-obra. Assim, a composição da força de trabalho, 
apesarde previamente definida, aumenta de acordo com o fluxo de pessoas na praia. Alguns 
jovens, por exemplo, alternam a atividade de pesca com as partidas de futebol que acontecem 
ao lado da pescaria. 
 Os primeiros metros da corda são arrastados para a terra e um pescador desata o nó, 
destacando-a do resto da rede. O bote está numa posição privilegiada e todo o material vai 
sendo gradativamente recolhido e disposto de modo a facilitar a organização da próxima 
viagem. Puxados mais alguns metros de corda, dos dois lados da rede aparecem estacas de 
madeiras, com cerca de dois metros cada, que demarcam o início da rede de náilon 
propriamente dita. Trata-se de uma técnica de pesca de arrasto, por isso a madeira ou “calão” 
precisa ser arrastada na posição vertical, a fim de facilitar a abertura e impedir a fuga do peixe 
por baixo ou por cima da rede. 
 Os homens aceleram, empregam mais força, intensificam-se os gritos. Em meio à 
gritaria, o esforço consiste em aproximar a rede o máximo possível das pedras do espigão, 
onde a fertilidade natural e as pedras despejadas por tratores fazem concentrar um maior 
volume de peixes. 
 
 
25
 No instante em que a rede se aproxima, uma pequena aglomeração de pessoas faz-se 
nos arredores. Enquanto alguns se integram no arrasto da corda, outros, pequenos 
atravessadores, comerciantes ou simples curiosos, esperam a certa distância o resultado da 
pescaria. À medida que a rede se estreita, dois pescadores, certamente os mais habilidosos, 
encarregam-se do desembaraço e coordenação da aproximação de cordas. A atenção e a 
falação são redobradas. Quando a “abóia” sinaliza na rede a ponta do saco, já é considerável a 
quantidade de pessoas em torno do pescado. 
 No momento da chegada da rede à areia, uma porção razoável de pequenos peixes 
salta da armadilha, sendo imediatamente agarrados por mulheres e crianças. À medida que as 
sardinhas menores escapam, pessoas de todas as idades vão agarrando-as e guardando-as em 
sacolas plásticas ou mesmo nos bolsos da roupa. A quantidade de aproveitadores dessa sobra 
de pesca oscila de acordo com o horário e o dia em que se dá a realização da pescaria; boa 
parte dos moradores conhece os períodos de maior abundância, sabe-se que na fartura 
dificilmente se nega uma sardinha a um vizinho. 
A ida à praia depende, em boa medida, dos imperativos do tempo, das águas, dos 
ventos, das condições apresentadas pela natureza. Dessa forma, algumas interações entre as 
pessoas do lugar, os pescadores há tempos já não constituem a maioria da população, 
condiciona-se, de certo modo, a forma como o meio ambiente se apresenta 
circunstancialmente. 
 O fato é que, na atividade pesqueira, o passar do tempo não apagou antigas formas de 
relação com um mundo natural, alguns modos de organização social e laços de solidariedade e 
afeição que têm atravessado gerações. 
 Outro fato é que, apesar do cerco que os curiosos fazem nos “três malhos”, 
dificilmente as pessoas que não participaram de forma direta da coleta do peixe ousam atacar 
o saco com o pescado; os pescadores estão suados, ofegantes e inquietos. A aproximação tem 
limites. 
 Entre os observadores, comerciantes locais ou possíveis atravessadores negociam a 
produção que vai sendo rapidamente resgatada da rede. Realizada a transação, o produto é 
transportado em bicicletas, em carrinhos-de-mão ou mesmo nos ombros, sendo de imediato 
escoado para pequenas peixarias locais ou vendido de porta em porta nas ruas do bairro e de 
regiões adjacentes. 
 Como a produção e a comercialização são realizadas na beira da praia, logo os 
comerciantes desaparecem, correm imediatamente para a revenda, pois o peixe fresco tem 
 
 
26
mais aceitação no mercado. O pescador permanece na praia, o próximo lance precisa ser 
organizado. O aglomerado humano se desfaz. 
 A divisão do lucro desse tipo de pescaria obedece a parâmetros mais ou menos 
regulares. O dono dos meios de produção abocanha geralmente 40% do resultado total, o 
restante é dividido “meio a meio” entre a tripulação. Apesar do cálculo relativamente fácil, o 
sistema de partilha nesse tipo de pesca é por vezes irregular e envolve fatores subjetivos 
externos à ação de captura16. 
 A imprecisão na distribuição do pescado se dá pelo caráter de familiaridade e 
vizinhança com que se desenvolve o processo produtivo. Não sendo essa uma modalidade 
formal de trabalho, a mão-de-obra é por vezes dispersa, atividade é encarada como uma 
espécie de “bico”17. Muitos homens se engajam nesse labor ocasionalmente, para garantir a 
refeição do dia dos filhos, ganhando uma pequena parte da produção e não uma remuneração 
em dinheiro. O resultado da produção, apesar do esforço organizado e coletivo empregado na 
captura, é também distribuído por outros critérios de solidariedade ou como forma de 
pagamento de pequenos favores prestados entre os moradores no cotidiano do bairro. 
Na rede de pesca atual, muitos dos novos trabalhadores do mar não procuram mais os 
grandes peixes. Os pescadores da pequena pesca no bairro preferem percorrer o náilon com os 
olhos à procura de relógios, óculos, jóias, dinheiro, perfumes e outros objetos que passaram a 
ser arrastados no fundo das redes. Artefatos da cultura material urbana, vestígios do turismo, 
das oferendas a Iemanjá e dos excrementos residenciais, são artigos que passaram a compor o 
cenário litorâneo contemporâneo da cidade. 
 “Aqui no Serviluz, meu filho, era tudo mar!”, comoveu-se dona Maria Zuleide, 56 
anos, uma antiga moradora do bairro Serviluz18. Dona Zuleide relembrava emocionada, 
durante a primeira entrevista, a enorme dificuldade que os moradores tiveram para levantar as 
primeiras habitações naquele canto de praia vazio e assombrado, e seus olhos brilhavam como 
se tivesse acontecido há poucos instantes. “Casas não, casebres no meio dos morros!”19. 
No antigo cenário, hoje renovado pelas inúmeras habitações feitas de tijolo, as paredes 
durante muito tempo foram edificadas à base de varas, entrelaçadas e enchidas a mão com 
barro, eram as conhecidas casas de taipa, herança que remonta ao período colonial. Ali se 
 
16 Entre a tripulação, é consenso que os pescadores “de mar”, pela especialização advinda da experiência, 
percebam uma remuneração maior que a dos pescadores “de terra”, que utilizam simplesmente a força braçal. Já 
o dono do equipamento, habitualmente, dispensa sua parte na produção quando essa é insuficiente, inclusive para 
ser repartida entre os trabalhadores. 
17 Biscate, trabalho informal ou temporário. 
18 Entrevista concedida por Maria Zuleide de Oliveira Moura ao autor em 01/01/2003. 
19 Entrevista concedida por Maria Zuleide de Oliveira Moura ao autor em 01/01/2003. 
 
 
27
morava em barracos improvisados; muitos deles eram erguidos com estruturas de lona 
plástica, madeira e até mesmo papelão. Tempos difíceis eram aqueles em que o vento e a 
areia, quando não derrubavam as casas, entravam nos olhos e nas panelas dos moradores 
abrigados em casebres ainda esparsos. 
A pobreza das habitações, no entanto, contrastava com a abundância encontrada nas 
panelas suspensas sobre o fogo a lenha, quase sempre abarrotadas de peixe, alimento básico 
na mesa das famílias praianas. Apesar das intensas transformações ocorridas na praia e na 
economia pesqueira nas últimas décadas, boa parte da população que habitava o local ainda 
conseguia sobreviver exclusivamente da atividade de pesca. 
“A gente chegava a comer peixe até seis vezes por semana”20, afirmou, nostálgico, seu 
Francisco Herton, nascido no início dos anos 1960, na praia do Serviluz. Para ele, o alimentoera fácil porque, além de ser reduzida a população que residia na praia à época, o acúmulo de 
substâncias alimentícias atraía vários cardumes para as colunas de concreto e ferro, 
construídas como base de sustentação para a edificação do porto. 
Nos depoimentos orais, é fácil perceber como as crianças nascidas naquela época 
cresciam na beira da praia e brincavam em torno do porto recém construído. Pulando sobre as 
pedras dos espigões, nadando entre os barcos ancorados ou correndo na areia frouxa, a 
garotada passava o dia todo se divertindo na orla. A lamparina ainda não havia sido 
substituída pela lâmpada e, devido à ausência de uma vida noturna para os mais jovens, cedo 
se dormia. A praia era praticamente o único espaço de moradia, trabalho e lazer daquela gente 
e os jovens costumavam aprender, na beira da praia mesmo, algum tipo de ofício, as 
habilidades surgiam quase sempre em meio à execução de pequenas tarefas necessárias às 
viagens rumo ao mar; trabalho e lazer facilmente se confundiam. 
A pescaria farta e as humildes choupanas dos pescadores, porém, deixaram de ser 
características essenciais da conhecida praia de jangadeiros do Mucuripe. Da segunda metade 
do século XX em diante, a praia estendeu-se por outros domínios e modalidades distintas de 
trabalho e habitação passaram a coexistir no local. 
Um breve olhar sobre a história da ocupação da praia do Mucuripe revela que esse foi 
um lugar onde se desencadearam muitos fatos importantes para a História do Ceará. Durante 
muito tempo, a memória desse antigo vilarejo de pescadores, núcleo populacional antigo, se 
constituiu um lugar de natureza exótica, berço dos povos nativos cearenses que viviam 
rusticamente. 
 
20 Entrevista concedida por Francisco Herton Lima Rodrigues ao autor em 30/02/2002. 
 
 
 
28
Resgatando uma polêmica histórica, Raimundo Girão afirmou categórico que foi no 
Ceará, e mais especificamente na enseada do velho “Mocoripe”, onde “(...) o homem europeu 
sentiu, a primeira vez, a terra e o céu brasileiros” 21. Ali, segundo Girão, fora o “Rostro 
Hermoso”, ponta de mar em que as caravelas do navegador espanhol Vicente Pinzón 
supostamente aportaram, antes mesmo do desembarque de Cabral em Porto Seguro, na 
Bahia22. 
Foi também nas praias do Mucuripe que ocorreram os primeiros contatos entre os 
aborígines locais e o homem branco europeu. Na literatura cearense, na obra indianista 
Iracema, o romancista José de Alencar descreveu fragmentos daqueles “verdes mares 
bravios”, espécie de lugar mitológico onde o “bom selvagem” e o branco “civilizado” 
viveram suas aventuras. O Mocoripe era um alto e belo morro de areia que tinha a alvura da 
espuma do mar ou simplesmente o “morro da alegria”23, praia privilegiada para o descanso de 
marujos aventureiros. Navegantes antigos, quando no Ceará aportavam, ancoravam nessa 
parte da orla em busca de comida e água fresca, à sombra do arvoredo que outrora margeava o 
riacho Maceió, agora soterrado. 
A beleza e a exuberância da natureza selvagem naquelas terras, cantada em verso e 
prosa, resistiram durante centenas de anos no Ceará, mas, desde meados do século XIX, 
intensifica-se a idéia do “progresso” urbano. Nessa trajetória, a praia e os imensos areais da 
virgem Iracema foram sendo gradativamente sufocados pelas pedras imponentes da 
modernização. 
A primeira edificação de maior envergadura nessa área foi a construção de um 
pequeno forte onde se instalou um farol, por volta de 1840, quando a ponta de mar do 
Mucuripe tratava-se ainda de um ponto estratégico de proteção da cidade24. 
 
21 GIRÃO, Raimundo. Geografia Estética de Fortaleza. Imprensa Universitária do Ceará. Fortaleza, 1959. p. 
19-27. 
22 Segundo o Historiador Raimundo Girão, amparado nos estudos de Francisco Adolfo Varnhagen, o navegador 
espanhol Vicente Yañez Pinzón desembarcou na ponta do Mucuripe em janeiro ou fevereiro de 1500, antes, 
portanto, de Cabral ter chegado a Porto Seguro. In: GIRÃO, Raimundo Geografia Estética de Fortaleza. 
Também recentemente em Fortaleza, o jornalista Rodolfo Espíndola publicou o livro “Vicente Pinzón e a 
descoberta do Brasil”, onde chega a afirmar que “não se tem mais dúvida que o primeiro ponto do Brasil 
avistado e aportado por Pinzón foi a aponta do Mucuripe”, defendendo a construção de um monumento histórico 
no local. Cf.: Jornal O Povo 02/02/2004, p. 03. 
23 No romance Iracema, de 1865, José de Alencar explica que o nome Mocoripe vem de corib (alegrar) e mo 
(partícula ou abreviatura do verbo fazer). In: ALENCAR, José de. Iracema: Lenda do Ceará, 26ª ed. São 
Paulo: Ática, 1992. p. 56. Raimundo Girão, entretanto, sugere que essa explicação seja por demais romantizada. 
24 O farol era um antigo fortim construído para evitar as invasões estrangeiras. “O plano para a construção do 
farol do Mucuripe foi apresentado a D. Pedro I pelo presidente da província do Ceará, no dia 17 de agosto de 
1826”. A construção só terminou em 1846, sendo reformada em julho de 1872, em comemoração do aniversário 
da Princesa Isabel. Cf.: Jornal O Povo, 12/07/1982, p. 29. O farol foi desativado nos anos 1950 e mais 
recentemente transformado em Museu do Jangadeiro. No museu, no entanto, não há qualquer referência aos 
 
 
29
Em tempos mais recentes, moradores do Serviluz lembram-se das balas de canhão 
encontradas nas areias da praia. 
 
“Na época eu menino com idade de doze anos eu carreteava (escorregava) de taubinha naquele morro, 
aqui acolá a gente fazendo escavação achava aquelas balas de canhão, bola assim com peso de um quilo 
dois quilo, coisa antiga mesmo! Se fosse o caso de a gente vender hoje em dia, vendia como relíquia. A 
gente menino lá se lembrava disso...” 25. 
 
A memória do Mucuripe como lugar de duelos e batalhas não se reduz aos vestígios 
materiais e aos objetos esporadicamente encontrados na praia, há uma lembrança herdada e 
compartilhada através das gerações, a vivência desse espaço é por vezes concebida como 
sendo esse um lugar das partidas e das dispersões. Ali foram embarcados retirantes famintos 
em diversas estiagens, foi lançada a sorte dos chamados “soldados da borracha”26 rumo aos 
seringais da Amazônia e aconteceu o desembarque dos pracinhas cearenses que lutaram na 
Segunda Guerra Mundial. 
Como o Mucuripe foi um dos primeiros ancoradouros da Capitania, embarques e 
desembarques de toda ordem se sucediam, havia tempos que lá desciam numerosas 
embarcações abastecidas de mercadorias, alvo constante da pilhagem dos flibusteiros. Nessa 
parte da província, funcionava um porto bem arcaico e diariamente circulavam gêneros 
comerciais destinados à Capitania do Siará Grande, ainda subordinada administrativamente à 
de Pernambuco. Com o Ceará independente, em 179927, a vila de Fortaleza assumiu a 
hegemonia política e econômica da capitania, e suas riquezas, sobretudo a partir do rico 
comércio do algodão, em detrimento da criação de gado, começaram a descer pelo litoral e 
não mais pelos rios. 
Nesse momento, principalmente em decorrência da distância de cerca de cinco 
quilômetros que separava esse povoado da então sede do município, não foi no ancoradouro 
do Mucuripe, mas na área da atual Praia de Iracema, que se iniciaram as obras do porto. 
Rodolfo Teófilo, durante uma das maiores estiagens da história do Ceará, 1877, 
afirmou: 
 
 
jangadeiros, grande parte do antigo prédio é ocupada com informações do projeto de energia eólica, detecnologia alemã, instalado na Praia Mansa, em1996. 
25 Entrevista concedida por Francisco Herton Lima Rodrigues ao autor em 30/02/2002. 
26 Sobre a migração dos “Soldados da Borracha” para a Amazônia cf., entre outros, BARBOSA, Edson Holanda 
Lima. Ida ao inferno verde: Experiências dos trabalhadores cearenses imigrados para a Amazônia 
(1942/1945). Dissertação de Mestrado da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2005. 
 
 
27 Fortaleza somente ganharia ascensão administrativa de vila à cidade em 1823. 
 
 
30
O presidente, acreditando ser devida à aglomeração de retirantes a alteração do estado 
sanitário da capital, resolve crear mais dous abarracamentos: um em Mocuripe e outro em 
Pajussara, a fim distribuir melhor a população adventícia. Os indigentes do Mocuripe se 
empregariam em quebrar pedras e os da Pajussara no fabrico de tijolos, destinados às obras 
que se estavam fazendo28. 
 
Nas obras do governo, entre as quais a do porto de Fortaleza, os retirantes famintos e 
cansados que chegavam à velha pedreira do “Mocuripe” trocavam o penoso trabalho de 
carregar pedras de aproximadamente 15 (quinze) quilos às costas, sobre terrenos arenosos, por 
um punhado de farinha e carne seca, ração distribuída pelos socorros públicos em épocas de 
calamidade. 
Rodolfo Teófilo, escritor e farmacêutico famoso por empreender campanhas de 
vacinação contra epidemias entre a população mais pobre da capital, geralmente os moradores 
dos areais, se opunha diretamente ao então governo provincial. Através de suas obras, não foi 
possível perceber referências mais diretas sobre a possível fixação dos retirantes no local, o 
que muito provavelmente aconteceu já que, à época da estiagem, era possível que “dois terços 
do eleitorado da província estivessem deslocados, tivessem emigrado e carregassem pedras da 
pedreira do Mucuripe”29. Em sua literatura naturalista, porém, o pacato vilarejo do Mucuripe 
já começava a receber novos contingentes de trabalhadores e a ser palco de outros conflitos: 
“A soldadesca açulada pela certeza da impunidade dos crimes, na mais infernal algazarra, na 
mais estúpida zombaria, corria a galope em direção ao Mucuripe, enquanto mais de cem 
infelizes gemiam deitados na areia da praia”30. 
Desde o final do século XIX, configurou-se uma prática de isolamento em relação ao 
trânsito dos flagelados, criaturas indesejáveis ao progresso que se fazia, pelas alamedas de 
Fortaleza: 
 
Os comboios despejavam os flagelados na parte da cidade que ficava mais próxima do mar, 
onde se localizavam as últimas estações férreas de Fortaleza. Muitos retirantes erguiam seus 
casebres na proximidades da praia. Esse aspecto ajuda a entender o processo de constituição 
das primeiras favelas de Fortaleza 31. 
 
A população sertaneja que chegava a cidade representava também um numeroso 
contingente de mão–de-obra gratuita utilizada na construção de obras públicas e no 
melhoramento urbano, empreendimentos essenciais ao desenvolvimento comercial e 
 
28 TEÓFILO, Rodolfo Historia da seca no Ceará (1878-1880). Rio de Janeiro: Imprensa Inglesa, 1922. p. 194. 
29 Op. Cit. p. 84. 
30 Op. Cit. TEÓFILO, p. 181. 
31 Cf.: RIOS, Kênia Sousa. Campos de Concentração no Ceará: Isolamento e poder na seca de 1932. 
Fortaleza: Museu do Ceará/Secretaria da Cultura e Desporto do Ceará, 2001. p. 18. 
 
 
31
industrial do Ceará. “O grande flagelo de 1932 possuía, assim, um claro objetivo: mostrar a 
urgência de um novo porto em Fortaleza” 32. 
O antigo porto de Fortaleza foi construído ainda no final do período imperial, 
momento em que a cidade já tinha assumido a hegemonia econômica e administrativa da 
província do Ceará. Com o advento da República e a emergência de novas forças sociais, a 
capital centralizou ainda mais as decisões políticas do Estado; e as elites locais, além da 
construção de equipamentos modernizadores como o Porto, a Estrada de Ferro e o Passeio 
Público, também empreenderam um verdadeiro processo de remodelação, saneamento e 
controle do espaço urbano33. 
No Porto do Mucuripe, no entanto, as primeiras pedras só começaram a ser assentadas 
por volta de 1940. Obra demasiadamente demorada, levou cerca de 25 anos para ser 
concluída, período em que seus arredores foram sendo rapidamente ocupados por levas de 
retirantes e por imponentes clubes de veraneio que se erguiam na cidade. Após o porto, a bela 
praia do Mucuripe nunca mais seria a mesma. 
O memorialista Blanchard Girão observou que nessa época: 
 
O romântico e íntimo esconderijo de velhos homens do mar, fez-se caótica albergaria de gente 
doutras origens e de outros costumes. Em meio a essa desordem urbanística, implantou-se ali 
também a prostituição. Não se distinguia casa séria de casa ‘suspeita’. A pobreza e a 
promiscuidade nivelavam todos34. 
 
Antiga aldeia indígena, a praia do Mucuripe se transformou num pequeno povoado de 
pescadores e mulheres fazedoras de renda. Atualmente, com o avanço da especulação 
imobiliária e do turismo, as alvas dunas da virgem Iracema constituem um dos metros 
quadrados mais caros da cidade, lazer de estrangeiros e habitação preferida dos ricos da terra. 
Antes do porto, os primeiros ocupantes dessa parte da cidade foram em boa parte 
pescadores, migrantes de outras regiões praianas da longa costa cearense que, em distintas 
épocas de calamidade, fugiram para a capital. Na cidade, optaram pela vida numa tradicional 
região de pesca, dirigindo-se para as areias do Mucuripe e erguendo ali suas choupanas. 
 Até a primeira metade do século XX, aquela era ainda uma população cuja 
organização era talvez mais tribal que urbana, com as jangadas, as choupanas e os botequins 
barulhentos. Uma imensa floresta de cajueiros deu lugar a uma paisagem mais moderna e 
 
32 Op. Cit. p. 26. 
33 PONTE, Sebastião Rogério. Fortaleza Belle Époque: Reformas urbanas e controle social (1860-1930). 3° 
ed. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2001. 
34 GIRÃO, Blanchard Mucuripe: De Pinzón ao Padre Nilson. Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha, 1998. p. 
32-33. 
 
 
32
cosmopolita quando começou o tempo da indústria, da agitação imobiliária e dos arranha-
céus. “O Mucuripe tornou-se uma espécie de Copacabanazinha onde um palmo de terra, que 
nada valia no tempo da aldeia de pescadores, custa agora um dinheirão”35. 
 
 
 
2.2 Homens do mar, pés no chão 
 
 
“A pouco e pouco, o tempo apaga hábitos e costumes, mas não os extingue completamente. Visíveis as choupanas 
de palha de coqueiro, onde a indigência geme. Na frente, a sala da visita. Entre esta e a cozinha, de fogão 
improvisado, a camarinha de amor discreto. E nos quatro cantos, na intimidade pouco ambiciosa, a rede e os 
sonhos dos filhos que não param de nascer” 
(Eduardo Campos) 
 
 
 Migrantes de praias distantes, os primeiros moradores do Bairro Serviluz viveram 
durante muito tempo da atividade pesqueira. São tributários de costumes e modos de vida 
com características seculares. Trata-se de uma cultura em que o sustento das famílias não 
depende simplesmente da venda da força de trabalho, mas da interação direta entre o homem 
e o seu meio natural. Diferentemente do tempo de trabalho industrial que se instalou 
posteriormente, no mar o relógio é a lua, são os ventos, as tempestades e o tamanho das 
marés. 
Vida singela, desapego material, vestuário modesto caracterizam o modo de vida dos 
pescadores, tidos costumeiramente como um povo simples, portadores de um estilo de vida 
reproduzido à semelhança das antigas culturas indígenas. Algumas das comunidades de 
pescadores fixadas na costa cearense ainda hoje apresentam hábitos e costumes desprovidos

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