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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA – TRATAMENTO DA INFORMAÇÃO ESPACIAL A GEOPOLÍTICA ENERGÉTICA DO BRASIL E OS NOVOS EIXOS DE PODER NA AMÉRICA DO SUL Ricardo Ghizi Corniglion Belo Horizonte 2011 Ricardo Ghizi Corniglion A GEOPOLÍTICA ENERGÉTICA DO BRASIL E OS NOVOS EIXOS DE PODER NA AMÉRICA DO SUL Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Geografia – Tratamento da Informação Espacial da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Geografia. Orientador: Oswaldo Bueno Amorim Filho Área de concentração: Análise espacial Belo Horizonte 2011 FICHA CATALOGRÁFICA Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais Corniglion, Ricardo Ghizi C818g A geopolítica energética do Brasil e os novos eixos de poder na América do Sul / Ricardo Ghizi Corniglion. Belo Horizonte, 2011. 301f.: il. Orientador: Oswaldo Bueno Amorim Filho Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Tratamento da Informação Espacial. 1. Geopolítica - Brasil. 2. Energia. 3. Relações internacionais – América do Sul. I. Amorim Filho, Oswaldo Bueno. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Tratamento da Informação Espacial. III. Título. CDU: 911.3(81) Ricardo Ghizi Corniglion A Geopolítica Energética do Brasil e os Novos Eixos de Poder na América do Sul Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Geografia – Tratamento da Informação Espacial da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Geografia. _________________________________________________________ Oswaldo Bueno Amorim Filho (Orientador) (PUC Minas) __________________________________________________________ Alexandre Magno Alves Diniz (PUC Minas) ____________________________________________________________ Luiz Eduardo Panisset Travassos (PUC Minas) ____________________________________________________________ Vágner Camilo Alves (Universidade Federal Fluminense – UFF) ____________________________________________________________ Nelson de Sena Filho (Fundação Educacional de Caratinga – FUNEC) Belo Horizonte, 26 de setembro de 2011. Este trabalho é dedicado, primeiramente, a dois parentes que estiveram presentes na minha vida de forma marcante, desde o meu nascimento, e que se foram recentemente, após toda uma história de dedicação e amor aos seus familiares; contribuíram, também, para a educação que recebi ao longo da infância e da adolescência. Refiro-me a minha avó materna, Alcinéa Branco Ghizi, cujos 94 anos de convivência com filhos e netos em torno da Casa 10, na vila da Rua Tereza Guimarães, em Botafogo, no Rio, deixaram saudade irreparável. À senhora, vó Néa, dedico esta pesquisa, a mais importante da minha vida, para simbolizar o quanto a estimo e a tenho em meu coração. Neto mais velho de um total de seis, permanecem em minha memória os 43 anos de convivência com a senhora, que soube fundar, juntamente com meu avô, Mário Ghizi, um verdadeiro lar, cujo matriarcado assumiu digna e exemplarmente, quando seu esposo se foi, prematuramente, há muitos anos. Refiro-me, também, ao meu avô paterno, Jules François Corniglion, falecido aos 97 anos, e por quem cultivava sentimento de verdadeira adoração. A você, grand-père Jules, que me estendeu a mão sempre que precisei, dedico este trabalho como prova de que jamais esquecerei tudo o que fez por mim. Levarei comigo, eternamente, as lembranças de nossa convivência na casa de Teresópolis e de nossas conversas sobre aviação e sobre a Segunda Guerra Mundial, assuntos que dominava tão bem por tê-los vivido em sua própria história. Por fim, como não poderia deixar de ser, esta tese é dedicada também a minha filha carioca, Beatriz Pontes Corniglion, que, em 24 de abril de 1999, iluminou nossos lares com o seu nascimento, após muitos anos sem a presença de um bebê entre nós. Espero, Beatriz, que esta conquista sirva de exemplo e inspiração para que continue investindo na sua formação ― o maior patrimônio que posso deixar para você, para toda a sua vida. Lembre-se que terá sempre o apoio, a compreensão e o amor do seu papi. AGRADECIMENTOS O doutorado é, além de uma conquista profissional, sobretudo, uma conquista pessoal. Por isso, relaciono aqui aquelas pessoas que contribuíram, seja de forma profissional, seja de maneira indireta ou pessoal, para que pudesse chegar neste momento da minha carreira acadêmica. Agradeço, primeiramente, ao meu estimado orientador, professor e amigo Oswaldo Bueno Amorim Filho, sem o qual este trabalho não estaria concluído. A você, Oswaldo, do qual tive a honra de ser aluno em cinco disciplinas, serei eternamente grato pelo conhecimento, pelo apoio e pela dedicação, guiando-me nessa árdua tarefa. Numa época repleta de “focos de tensões” entre professores orientadores e alunos orientandos, tive a felicidade de tê-lo como companheiro e inspirador ao longo de todos esses anos — educador brilhante, ético e de bom coração, cuja índole está acima de qualquer crítica. A você, que não mediu esforços para dar conta de revisar o conteúdo deste trabalho, indo muito além de uma mera orientação, transmitindo-me, inclusive, conhecimentos inéditos e valiosos, meus sinceros agradecimentos, que serão levados comigo para o resto da minha vida. Merci beaucoup, mon ami! Agradeço, particularmente, ao meu estimado e querido pai, Michel, minha fonte de inspiração intelectual e que reside no altar daquelas raras pessoas pelas quais cultivo sentimento de admiração inquestionável e atemporal. Não me tornei diplomata, como você inicialmente desejava, mas como professor de Relações Internacionais e, agora, de Geopolítica, sinto-me realizado intelectual e profissionalmente, e tenho a certeza de que compartilha comigo a felicidade de ter chegado nesse estágio da minha carreira. Agradeço-lhe muito, também, a revisão que gentilmente se prontificou a fazer do texto, contribuindo para o esforço de aprimorar a redação. E a você, Marta, que sempre recebeu meu irmão e a mim como verdadeiros filhos, ficam meus sinceros agradecimentos por nos acolher de forma tão paciente e afetuosa. Agradeço, especialmente, a minha querida esposa, Geane, que me acompanhou ao longo de todo o doutorado, desde março de 2005 — época na qual nos conhecemos e a partir de quando iniciamos nossa linda história de amor, companheirismo e dedicação. A você, Geane, que inúmeras vezes abriu mão da minha atenção e companhia, nos incontáveis fins de semana de estudo, agradeço pela paciência, pelo apoio e por acreditar que este dia chegaria. Obrigado, também, aos seus familiares, que me acolheram de braços abertos em seus lares em Minas Gerais — em particular, a Gerlice, Irundy, Geiza e Laurindo ― pessoas especiais dessa grande e tradicionalfamília mineira, das maiores riquezas que esta terra é capaz de gerar. Meu agradecimento especial a minha querida mãe, Maria Lúcia, e ao seu companheiro e marido, Aldo ― meu amigo do peito —, sempre dispostos a me ajudar em todos os momentos. A distância que nos separa, desde que vim morar em Belo Horizonte, em agosto de 1999, deixa marcas de saudade no coração, mas como você sempre disse, mãe: ― “É por uma boa causa...”. E a você, Aldo — homem honesto, cuja dignidade não se encontra facilmente nos dias de hoje, por tudo o que fez por nós, reforço o que tenho dito: — “Você tem carta branca comigo, meu amigo, para sempre!” Agradeço ao meu irmão, Renato ― meu grande amigo e companheiro ao longo de toda a infância e adolescência. A convivência com você deixou em minha memória momentos inesquecíveis, sem os quais a minha vida não teria sido tão alegre e divertida. Agradeço-lhe, ainda, a paciência de ter convivido muitos anos com um virginiano nada fácil de lidar. Fico feliz em saber que você também se tornou professor. Por isso, meus sinceros parabéns e toda a minha admiração! Agradeço, em tempo, aos meus familiares maternos que moram no Rio: minhas tias Eunice, Regina e Lígia, meus tios Mário e Pedro Felipe (in memoriam) e meus primos João Felipe, Guilherme, Fernando e Maria Luiza, por fazerem parte da minha história e contribuir para a união da dinastia Ghizi. Não posso deixar de agradecer, em particular, a Maria Carmen Rena, que fez a revisão das normas técnicas desta pesquisa, e cuja competente trajetória na biblioteca da PUC Minas, em Contagem, me deu a certeza de que era a pessoa mais indicada para realizar esta tarefa, de grande responsabilidade acadêmica e científica. Muito obrigado, também, ao meu colega de turma do Programa e atual professor, Wagner Batella, que com muita dedicação, paciência e simpatia contribuiu decisivamente para a elaboração dos mapas digitais, cuja qualidade certamente enriqueceram o presente estudo. Meus agradecimentos, também, às sinceras amizades que fiz nesses 12 anos em Belo Horizonte ― mineiros e mineiras que acolheram esse carioca como se fosse um verdadeiro irmão, todos professores da PUC: Jeter Neves, Padre Dalmo, Sérgio Ribeiro, Robson Marques, Rita Louback, Jean Tavares, Angélica Bicalho, Sara Resende, Nélio Oliveira, Wanderley Novato, Euclides Guimarães, Lívia Brandão, Fabiano dos Santos e Guilherme Nogueira (ex-aluno). Não posso deixar de mencionar outros dois amigos “exilados” em Minas, cuja convivência tem me ajudado a encarar a vida de forma mais leve: o carioca Renan e o paulistano Laércio. Meus sinceros agradecimentos ao professor Arlindo Assumpção ― inesquecível e brilhante mestre da graduação, que me transmitiu os primeiros fundamentos de Relações Internacionais ― ciência pela qual desenvolvi profunda e duradoura paixão. Agradeço, ainda, aos meus amigos do mestrado do IRI, da PUC Rio: Alex, Alexandre e Vágner, cujas acaloradas discussões sobre política internacional, no tradicional restaurante Lamas do bairro Flamengo, tornaram-se um marco na minha vida, e ao Paulinho, meu amigo de infância da vila de Botafogo, que sempre me recebeu como um irmão em sua casa. Por fim, agradeço aos professores do Programa de Pós-Graduação em Geografia, particularmente aos mestres João Francisco de Abreu e Leônidas Barroso, pelos quais tenho profunda admiração e que muito contribuíram para meus estudos de análise espacial. Obrigado aos funcionários da secretaria do Programa, Délio e Fátima, sempre muito educados e solícitos quando deles precisei. Meus sinceros agradecimentos, também, à PUC Minas e à Associação de Docentes da Universidade (ADPUC), por terem me concedido o benefício da bolsa parcial de estudos, e, principalmente, por terem me acolhido em seus quadros de professores, permitindo-me trilhar uma carreira acadêmica que faz de mim um profissional plenamente realizado. RESUMO Esta pesquisa tem como objeto de estudo a geopolítica energética do Brasil e a nova configuração geopolítica da América do Sul. A hipótese levantada é a de que o contexto energético sul-americano da última década desempenhou papel importante no âmbito de uma nova geopolítica continental, configurada não mais a partir de pólos de poder ― típica da época da Guerra Fria ―, mas em torno de três novos eixos geopolíticos: o eixo Bolivariano, o eixo Liberal-democrático e o eixo Mercosul. A pesquisa se inicia com uma breve introdução epistemológica da Geopolítica, para, em seguida, estudar a geopolítica de caráter energético por meio de metodologia básica, bibliográfica, documental e de caráter exploratório. A estrutura do trabalho parte da geopolítica energética mundial para a regional, descrevendo e analisando os principais focos de tensões e conflitos geopolíticos de energia. As principais fontes de energia pesquisadas foram as derivadas do petróleo, do gás natural, da nuclear, da hidrelétrica e do etanol. Verificou-se que há novas geopolíticas energéticas em gestação no hemisfério sul-americano, como a dos biocombustíveis, a eólica e a ambiental (diretamente relacionada às fontes energéticas), e o reordenamento de geopolíticas mais antigas, como a nuclear, a do petróleo e a do gás natural. Verificou-se que o ressurgimento do nacionalismo energético nas nações que estão entre os maiores exportadores de hidrocarbonetos da América do Sul, bem como o rumo das relações internacionais regionais da última década, tem contribuído para fortalecer ou enfraquecer os novos eixos de poder, originando um novo contexto geopolítico, mais dinâmico e complexo. Palavras-chave: Geopolítica. Energia. Relações Internacionais. América do Sul. ABSTRACT This study has the purpose of examining the energetic geopolitics of Brazil and the new geopolitical configuration of South America. The hypothesis upholds that the energetic South American contemporary context has had an important influence by shaping a new continental geopolitical environment, no longer established by poles of power ― like during the Cold War ―, but rather by three geopolitical axis: the Bolivarian, the Democratic-liberal and the Mercosur axis. The research is developed from a basic and exploratory methodology, starting with an overview of the world energetic geopolitics, in order to fulfill, subsequently, more specific analyses of the geopolitical regional context, in which the main energetic political tensions and conflicts are to be described as well as analysed. The main investigated sources of energy were those of oil, natural gas, nuclear, hydroeletric and alcohol. It was noticed that there are new energetic geopolitics in gestation throughout the South American hemisphere, as those of biofuels, eol and environmental (straightly linked to energetic sources) and the rearrangement of more old geopolitics, such as those of nuclear, oil and natural gas. It is remarkable that the reappearance of energetic nationalism in several South American coutries, as well as recent international relations inside the continent, have been contributing to strenghten or weaken the new axis of power, forming today a more dynamic and complex geopolitical context. Keywords: Geopolitics. Energy. International Relations. South America. LISTA DE FIGURAS Figura 01- Estimativa da evolução da matriz energética mundial ............................ 31 Figura 02- Quadro transdisciplinar da Geopolítica .................................................. 34 Figura 03- Visão makinderiana de 1904 ................................................................. 58 Figura 04- Visão makinderiana de 1943 .................................................................59 Figura 05- Cavalo mecânico: extração em terra (onshore) ...................................... 84 Figura 06- Plataforma de petróleo: extração no mar (offshore) ............................... 84 Figura 07- Oleodutos .............................................................................................. 85 Figura 08- Navio petroleiro .................................................................................... 85 Figura 09- Tanques de armazenamento ................................................................... 86 Figura 10- Refinaria ............................................................................................... 86 Figura 11- Caminhão tanque ................................................................................... 87 Figura 12- Posto de combustível ............................................................................. 87 Figura 13- Preço do petróleo, em dólar, por barril .................................................. 100 Figura 14- Poços de petróleo em chamas no Kuwait (1991) .................................... 108 Figura 15- Armas nucleares lançadas em Hiroshima e Nagasaki ............................. 136 Figura 16- Cidade de Hiroshima após o ataque ....................................................... 136 Figura 17- Cidade de Nagasaki antes do ataque ...................................................... 137 Figura 18- Cidade de Nagasaki após o ataque ......................................................... 137 Figura 19- Maquete do submarino nuclear brasileiro, ainda no projeto ................... 139 Figura 20- Prédio do reator do submarino nuclear, em Iperó (SP) .......................... 139 Figura 21- Minério de urânio (em amarelo), em estado bruto ................................. 147 Figura 22- Primeira fase do beneficiamento: yellow cake ....................................... 149 Figura 23- Centrífugas de enriquecimento de urânio, configuradas em cascata ...... 150 Figura 24- Pastilhas de urânio enriquecidas a 5% ................................................... 150 Figura 25- Reator nuclear em funcionamento ......................................................... 151 Figura 26- Simulação da usina nuclear de Angra 3 ................................................. 152 Figura 27- Usina de enriquecimento de urânio em Resende (RJ) ............................ 152 Figura 28- Local de construção da barragem de Itaipu - Rio Paraná (PR) ............... 157 Figura 29- Início da construção de Itaipu (1975) .................................................... 158 Figura 30- Construção da parte central da barragem (1980) .................................... 158 Figura 31- Enchimento do reservatório do rio Paraná (1982) .................................. 159 Figura 32- Itaipu concluída (1991) ......................................................................... 159 Figura 33- Aerogeradores eólicos em Diamantina (MG) ......................................... 164 Figura 34- Parque eólico em Beberibe, no Ceará .................................................... 164 Figura 35- Parque eólico de Osório (RS), o mais antigo e maior do Brasil .............. 166 Figura 36- Uso da energia solar por meio de células fotovoltaicas .......................... 168 Figura 37- Uso da energia solar para aquecimento de água ..................................... 169 Figura 38- Usina termossolar na Espanha ............................................................... 170 Figura 39- Produção de eletricidade em usina termossolar ..................................... 170 Figura 40- Usina solar de Tauá (CE) ....................................................................... 171 Figura 41- Terminal de regaseificação de GNL da Petrobras ................................... 267 LISTA DE MAPAS Mapa 01- Reservas de petróleo no mundo ........................................................... 79 Mapa 02- Reservas de Petróleo – Oriente Médio .................................................. 90 Mapa 03- Reservas de gás natural na América do Sul .......................................... 118 Mapa 04- Reservas de gás natural no mundo ........................................................ 120 Mapa 05- Rede de gasodutos – América do Sul .................................................... 125 Mapa 06- Reservas de carvão mineral por região .................................................. 134 Mapa 07- Reservas de urânio ................................................................................ 148 Mapa 08- Situação das usinas de etanol ................................................................ 215 Mapa 09- Reservas de petróleo na América do Sul ............................................... 251 Mapa 10- Reserva de petróleo do pré-sal .............................................................. 257 Mapa 11- Zona econômica exclusiva brasileira ..................................................... 258 Mapa 12- Países-membros da OPEP ...................................................................... 261 LISTA DE QUADROS Quadro 01- Matriz energética brasileira (2005) .................................................... 29 Quadro 02- Matriz energética mundial (2005) ...................................................... 30 Quadro 03- Disciplinas de geopolítica nas universidades federais e PUCs do Brasil ................................................................................................. 72 Quadro 04- Maiores empresas privadas do mundo, em faturamento (2009) .......... 91 Quadro 05- Etanol: custo médio de produção e produtividade por ano ................. 215 Quadro 06- Ranking das reservas de petróleo (2008) ............................................ 254 LISTA DE TABELAS Tabela 01- Reservas mundiais de urânio, em estado bruto .................................... 148 LISTA DE ABREVIATURAS AIE – Agência Internacional de Energia AIEA – Agência Internacional de Energia Atômica ALBA – Alternativa Bolivariana das Américas ALCA – Área de Livre Comércio das Américas ANFAVEA – Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores API – American Petroleum Institute B/d – Barris por dia BM&F – Bolsa de Mercadorias e Futuro BNDES – Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social BRIC – Brasil, Rússia, Índia e China BRICS – Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul CAFTA+RD – Central America Free Trade Agreement + República Dominicana CASA – Comunidade Sul-Americana de Nações CTA – Centro Técnico Aeroespacial EPE – Empresa de Pesquisa Energética FARCS – Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia GLP – Gás Liquefeito de Petróleo GNL – Gás Natural Liquefeito GNV – Gás Natural Veicular GW – Giga-Watt IAA – Instituto do Açúcar e do Álcool MERCOSUL – Mercado Comum do Sul MW/h – Mega-Watt / hora NAFTA – North American Free Trade Agreement ONGs – Organizações Não Governamentais ONU – Organização das Nações Unidas OPAQ – Organização para a Proscrição de Armas Químicas OPEP – Organização dos Países Exportadores de Petróleo OTAN – Organização do Tratado do Atlântico-Norte PDVSA – Petróleo de Venezuela S.A. PIB – Produto Interno Bruto PPP+C – Plano Puebla Panamá + Colômbia PROÁLCOOL – Programa Nacional do Álcool PUC – Pontifícia Universidade Católica REGAP – Refinaria Gabriel Passos SIG – Sistema de Informações Geográficas SOPRAL – Sociedade dos Produtores de Açúcar e Álcool STI – Secretaria de Tecnologia Industrial TCU – Tribunal de Contas da UniãoTEC – Tarifa Externa Comum TNP – Tratado de Não Proliferação Nuclear UE – União Europeia UNASUL – União das Nações Sul-Americanas UNICA – União da Agroindústria Canavieira YPFB – Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos ZEE – Zona Econômica Exclusiva SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO..........................................................................................................17 2 GEOPOLÍTICA: UMA INTRODUÇÃO EPISTEMOLÓGICA..............................33 2.1 Geografia política e Geopolítica: conceituação .....................................................33 2.2 Histórico da Geopolítica .........................................................................................44 2.2.1 Os pioneiros e os primeiros teóricos (Teorias clássicas).......................................44 2.2.2 A Geopolítica a partir da Segunda Guerra Mundial (Teorias contemporâneas).63 2.2.3 A Geopolítica no Brasil .........................................................................................71 2.3 Introdução à geopolítica de energia .......................................................................74 3 AS FONTES DE ENERGIA DE ORIGEM FÓSSIL ................................................77 3.1 Petróleo....................................................................................................................78 3.1.1 O petróleo e sua importância ................................................................................78 3.1.2 Economia e indústria do petróleo .........................................................................81 3.1.3 Geopolítica mundial do petróleo (1860-2003).......................................................92 3.2 Gás natural............................................................................................................113 3.2.1 O gás natural como fonte estratégica .................................................................113 3.2.2 Economia e indústria do gás natural ..................................................................115 3.2.3 Histórico do gasoduto Brasil-Bolívia ..................................................................121 3.3 Carvão mineral .....................................................................................................132 4 AS FONTES NUCLEARES DE ENERGIA............................................................135 4.1 Energia nuclear para fins militares .....................................................................138 4.2 Energia nuclear para fins pacíficos......................................................................146 5 AS FONTES RENOVÁVEIS DE ENERGIA..........................................................154 5.1 Hidrelétrica ...........................................................................................................154 5.1.1 Aspectos técnicos da energia hidrelétrica ...........................................................154 5.1.2 A geopolítica de Itaipu ........................................................................................156 5.2 Energia eólica ........................................................................................................163 5.3 Energia solar .........................................................................................................167 6 AS FONTES ENERGÉTICAS DE BIOMASSA.....................................................173 6.1 Etanol ....................................................................................................................173 6.1.1 Histórico do álcool combustível no Brasil ..........................................................174 6.1.2 O etanol como commodity internacional ...........................................................211 7 OS NOVOS EIXOS GEOPOLÍTICOS NA AMÉRICA DO SUL..........................217 7.1 Introdução à posição geográfica e geopolítica do Brasil como potência média emergente ....................................................................................................................218 7.1.1 O estudo da posição geográfica...........................................................................218 7.1.2 O Brasil como potência média emergente...........................................................221 7.2 A hierarquia do sistema geopolítico mundial ......................................................233 7.3 Os novos eixos geopolíticos na América do Sul ...................................................236 7.3.1 Da polarização geopolítica à geopolítica dos eixos .............................................236 7.3.2 Hipótese de uma geopolítica dos eixos na América do Sul .................................238 8 A GEOPOLÍTICA ENERGÉTICA DO BRASIL E OS NOVOS EIXOS DE PODER NA AMÉRICA DO SUL...............................................................................244 8.1 Nacionalismo energético e focos de tensões na geopolítica dos eixos..................245 8.2 O pré-sal e a geopolítica petrolífera sul-americana.............................................249 8.3 A geopolítica do gasoduto Brasil-Bolívia .............................................................264 8.4 Balanço da geopolítica energética sul-americana ................................................268 9 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................272 REFERÊNCIAS ..........................................................................................................276 ANEXO A....................................................................................................................291 ANEXO B ....................................................................................................................300 17 1 INTRODUÇÃO O fim da Guerra Fria e seus desdobramentos posteriores marcaram o início de uma nova era nas relações internacionais. Muitas das Ciências Sociais acompanharam com interesse o que ocorreu no mundo após 1989, analisando as suas consequências nas relações sociais, econômicas e políticas internacionais. A Geopolítica, ciência que se preocupa com as relações entre a política internacional e o espaço geográfico, foi uma das mais impactadas; pode-se afirmar inclusive que, a partir da década de 1980, a Geopolítica foi resgatada, nos meios acadêmicos e na imprensa, de seu longo período de hibernação experimentado desde a derrota do nazismo na Segunda Guerra Mundial. A década de 1990 se configurou como um período inquietante, revolucionário e de grande perplexidade para analistas internacionais; foi marcada pela desintegração do bloco comunista, pela guerra do Golfo, pelo aumento da proliferação de armas de destruição em massa, pelos levantes na Croácia e na Eslovênia, pelas guerras da Bósnia-Herzegovina e de Kosovo, pelo genocídio de Ruanda e pelo avanço do terrorismo internacional da al-Qaeda, cujo ataque mais violento ocorreria no início da década seguinte, em 11 de setembro de 2001. Uma das principais consequências do fim da Guerra Fria, em termos globais, foi a redução temporária da influência geopolítica dos russos no mundo e até mesmo no entorno da Rússia, com a independência política de suas ex-repúblicas e com o avanço da Organização do Tratado do Atlântico-Norte (OTAN) e da União Europeia (UE) em direção ao Leste Europeu. Por outro lado, a unificação de Berlim ― a capital geográfica e política da Guerra Fria na Europa ― em 1989, consolidada no imaginário popular através da queda do muro de Berlim, associada à desintegração da União Soviética dois anos depois, alterou os rumos da geopolítica mundial de forma surpreendente, no final do século XX. A importância atribuída a esses dois eventos para o mundo tem inúmeras interpretações,podendo-se afirmar, objetivamente, que encerraram dois dos capítulos mais importantes que moldaram as relações internacionais do século passado: a derrota do nazi-fascismo e uma certa submissão da Alemanha, da Itália e do Japão aos Aliados, a partir de 1945, e o epílogo da revolução que transformou a Rússia numa superpotência militar e comunista de atuação global, a partir de 1917. Esse breve século, nas palavras de Eric Hobsbawm, terminou de forma “abrupta” porque a geopolítica internacional estava mudando aceleradamente, seguindo rumos bem 18 diferentes das décadas anteriores em questão de poucos anos, e até meses. Ao falar da perplexidade para o homem do novo século, Hobsbawm afirma que: O breve século XX acabou em problemas para os quais ninguém tinha, nem dizia ter, soluções. Enquanto tateavam o caminho para o terceiro milênio em meio ao nevoeiro global que os cercava, os cidadãos do fin-de-siècle só sabiam ao certo que acabara uma era da história. E muito pouco mais. (HOBSBAWM, 1995, p. 265). Ao longo da rivalidade ideológica da Guerra Fria, acostumamo-nos a uma outra maneira de ver o mundo, de configuração mais clássica e mais estável, que privilegiava a economia, tanto quanto a ciência. Um mundo que, nas palavras de Yves Lacoste (1995), em seu Dictionnaire de Géopolitique, fosse ele adaptado do liberalismo ou da tendência marxista, assegurava que todos os problemas da sociedade, bem como as rivalidades políticas, decorriam das rivalidades econômicas, fossem elas a concorrência empresarial ou a rivalidade de classes. Como se explica, para Lacoste, que os conflitos geopolíticos são cada vez mais numerosos? No tabuleiro geopolítico europeu, exemplifica ele, uma dezena de novos Estados surgiu após a queda do muro de Berlim; suas reivindicações territoriais tornaram-se cada vez mais agressivas, como se pôde constatar na guerra das ex-repúblicas iugoslavas iniciada após o fim da União Soviética. Não se trata, para Lacoste, de negar a importância dos problemas econômicos, nem de achar que a Geopolítica, esta revigorada forma de ver o mundo, responde a todas as questões; trata-se, sobretudo, de colocar os problemas de forma diferente e complementar (LACOSTE, 1995). A libertação da imposição ideológica da Guerra Fria, com o fim da bipolaridade mundial que norteava a política internacional, abriu novos horizontes em diversos campos de estudo, em particular na Geopolítica, contribuindo para resgatá-la de seu ostracismo. Nesta nova perspectiva, o mundo se reorganiza em outras bases, conforme analisa Ignacio Ramonet: Ao libertarem o pensamento das opressões ideológicas e das fidelidades impostas, o fim da Guerra Fria e as mudanças em curso encorajam-nos a compreender melhor o mundo real, fora dos dogmas, das doutrinas e dos esquemas intelectuais escolásticos. [...] Sabe-se, agora, [...] que a nova ordem deve englobar tudo e não excluir nada de seu campo de ação: a política, a economia, o social, o cultural e a ecologia. [...] De fato, ao projeto da unificação do mundo sob a condução de Washington, opõe-se com vigor a volta de todos os particularismos nacionais, religiosos, étnicos... Todas essas forças históricas, durante muito tempo, imobilizadas pelo equilíbrio do terror e que, neste final de milênio, estão se desencadeando torrencialmente. (RAMONET, 1998, p. 15). 19 Neste emaranhado pós-moderno e sua era de incertezas, as palavras mais disseminadas são, segundo Amorim Filho, “la diversidad, la pluralidad y la incertidubre.” (PENNA; SENA FILHO; SOUZA, 2004, p. 87). Neste sentido, a geopolítica clássica que privilegiava as relações interestatais do passado foi substituída, nos dias de hoje, por uma geopolítica mais abrangente, e ainda mais complexa, que precisa lidar com uma quantidade maior de atores e fenômenos internacionais, se quiser explicar de forma satisfatória boa parte dos conflitos e focos de tensões no mundo. Lacoste afirma, no preâmbulo de seu Dictionnaire de Géopolitique, que para compreender um problema geopolítico, mesmo em linhas gerais, não é suficiente recorrer a causas genéricas, ou seja, ao conflito leste-oeste, como anteriormente; é necessário um certo número de informações relativamente precisas e objetivas (LACOSTE, 1995). Atualmente, considerar o Estado como o único ator importante do sistema internacional já não é mais suficiente para explicar os fenômenos globais. Novos atores entraram em cena, num fenômeno que advém da mundialização dos meios de comunicação e de transporte e do desenvolvimento tecnológico sem precedentes. Outro campo de estudo da Geopolítica, além do internacional, é a geopolítica no interior dos Estados, onde ocorrem competições pela possessão e pelo controle de certos territórios. Os partidos políticos e as forças nacionais, como organizações não governamentais (ONGs) e grupos sociais organizados (como o Movimento dos Sem Terra, no Brasil, por exemplo), também têm criado focos de tensões importantes e muitas vezes desestabilizadores. Por outro lado, a mídia e a opinião pública, ambas beneficiárias da globalização dos meios de comunicação e da liberdade de imprensa em muitas nações, também têm desempenhado um papel crescente na geopolítica contemporânea. O papel das ideias, por sua vez, mesmo as absurdas, também impactam na Geopolítica, uma vez que são elas que justificam certos projetos e determinam as escolhas das estratégias de Estado, por exemplo. Essas ideias são chamadas por Lacoste de “representações”; são formas “desenhadas” de ver o mundo, que podem ser traduzidas como um ato teatral, que desenvolvem personagens simbólicos e situações dramáticas, o que é próprio da Geopolítica. A cartografia, por exemplo, sempre teve um papel de destaque na geopolítica do passado e, também, do presente. Esta concepção nova e global da Geopolítica, que evoluiu em outras bases a partir dos anos 1980, foi evidenciada por Amorim Filho, em artigo intitulado Geografia Política Ampliada, publicado em 1991, em Quito, no Equador. Entre as transformações importantes porque passavam as relações internacionais, o autor identifica as mais notáveis, como a mundialização dos acontecimentos e dos processos políticos; a politização de assuntos que 20 não são necessariamente políticos, como da investigação técnico-científica e do desenvolvimento das comunicações; a preocupação com o equilíbrio ambiental em todos os níveis geográficos do planeta; o permanente questionamento de conceitos, paradigmas e dogmas ideológicos, que tiveram papel importante na estruturação dos espaços e territórios da Terra; a crescente importância dos valores, das representações, das visões de mundo, do espaço vivido e da percepção ambiental e social, além de outras. De fato, esses novos temas, incluindo-se neles o da energia, trazem abordagens inovadoras que merecem um estudo mais aprofundado nos dias de hoje. A geopolítica energética, objeto de estudo deste trabalho, tem tido um peso cada vez maior nesse cenário geopolítico complexo. Segundo Amorim Filho, a luta pelos recursos naturais e pelas matérias- primas, em geral, faz parte das “cadeias causais”, as quais, na análise geopolítica, são consideradas como de fundamental importância para se estudar a tipologia dos conflitos. A geopolítica de energia, embora não tenha origens históricas recentes, uma vez que as décadas (e mesmo os séculos) precedentes confirmam esta constatação, apresenta enorme complexidade, passando, atualmente, por profundas transformações que merecem um estudo mais detalhado. Como será examinado nas próximas páginas, geopolíticas que historicamente foram de suma importância para o mundo, como a do petróleo e a do carvão mineral, tendem a ver sua importância reduzidaao longo das próximas décadas; em contraposição, verifica-se a gestação de novas geopolíticas, como a dos biocombustíveis, a solar, a eólica e a ambiental, que tendem a ocupar, gradativamente, o lugar das petrolífera e carvoeira. Neste contexto de profundas transformações, constata-se, ainda, a reorganização de outras geopolíticas energéticas que, embora não tenham sua origem em tempos recentes, adquirem caráter renovado, como a do gás natural, ou questionável, como a nuclear. O resgate da Geopolítica a partir dos anos 1980, portanto, procura dar conta de entender e explicar a realidade das relações internacionais que, de uma forma ou de outra, tem na Geografia um condicionante fundamental de análise. A “segunda revolução russa” do século XX, iniciada por Mikail Gorbatchev e consolidada por Boris Yeltsin, permitiu o surgimento de novos atores que passaram a figurar entre os mais influentes do sistema internacional, colocando em xeque a forma de se pensar a Geopolítica que vigorava até então. A importância atribuída ao Estado nos estudos geopolíticos não deixou de ser relevante mas, em muitos conflitos internacionais, ele já não pode ser considerado o ator preponderante; em outros, a sua centralidade passou a ser compartilhada com atores não estatais. Um dos maiores exemplos desta nova realidade é aquele que seria tratado, por Amorim Filho (2003), como a 21 “primeira guerra do século XXI”, considerando-se, como tal, desde os atentados de 11 de setembro de 2001, até as ações militares subsequentes. O líder da organização terrorista al- Qaeda, Osama bin Laden, desenvolveu estratégia de atuação transnacional, independentemente do apoio institucional de qualquer Estado, amparado em recursos financeiros próprios e, pelo menos parcialmente, não estatais, com capacidade para angariar e treinar terroristas em países geograficamente distantes e politicamente dissociados, como Afeganistão, Filipinas, Alemanha, Paquistão, Iêmen e Estados Unidos, para citar alguns exemplos. Em sintonia com o nosso tempo, portanto, a Geopolítica passa por um processo de renascimento em outras bases. Nelas estão presentes aspectos que adquirem importância cada vez maior nas relações internacionais, principalmente nos anos que se seguiram ao fim da Guerra Fria. Aquele mundo deu origem a outro, menos preciso, mais complexo, instável e aberto aos novos valores culturais e religiosos que, até então, se conformavam com um papel secundário na geopolítica predominantemente ideológica desde 1945. O início do segundo milênio abre novas perspectivas sobre temas que antes caíam no esquecimento, ou eram considerados menos relevantes ou, até mesmo, obsoletos. É quase impossível realizar uma análise minuciosa da maioria dos conflitos atuais sem levar em consideração elementos étnicos, culturais e religiosos, frequentemente presentes em tais conflitos. O conflito árabe- israelense, as escaramuças na Caxemira indiana, e os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, nos Estados Unidos, de 11 de março de 2004, em Madrid, na Espanha, e de 7 de julho de 2005, em Londres, para citar alguns exemplos, reforçam esta constatação. No caso específico da geopolítica da América da Sul, pode-se identificar mudanças de rumo importantes nas duas últimas décadas. Após a “década perdida” dos anos 1980, a região assistiu à retomada do crescimento econômico e a uma certa consolidação da democracia nos países da região. O início do novo milênio parecia confirmar a certeza de que o continente caminhava para um período de prosperidade sem precedentes, com índices de crescimento econômico superiores aos de muitos países avançados e, aparentemente, sem maiores problemas políticos entre as suas nações. Todavia, episódios recentes, entre os quais o protagonizado por governos rivais, como os da Venezuela e da Colômbia, mudaram este quadro. Delicados e inusitados focos de tensões ocorreram nos últimos anos, em muito contribuindo para aprofundar a complexidade das relações sul-americanas, das quais o Brasil tem sido, ultimamente, um dos maiores protagonistas. 22 A questão energética, especificamente, tem sido o pivô de muitos problemas bilaterais e multilaterais no continente, o que nos leva a afirmar que existe hoje, de fato, uma geopolítica energética importante no hemisfério, cuja pauta tem contribuído decisivamente para moldar um novo relacionamento regional entre seus países, cuja configuração organizou- se em torno do que denominaremos, no Capítulo 7, de Eixos geopolíticos. O presente trabalho procura entender e interpretar a nova geopolítica sul-americana contemporânea a partir dos condicionantes energéticos e dos focos de tensões que, como mencionado acima, têm contribuído significativamente para direcionar os rumos de uma nova geopolítica regional, pós-Guerra Fria; pretende, também, ajudar a responder à pergunta sobre que tipo de papel o Brasil está destinado a ter neste novo e inusitado contexto geopolítico sul-americano. Desde os tempos em que se começava a pensar a política moldada a partir dos condicionamentos e da realidade geográfica, o conflito aparece como tema central nos estudos geopolíticos. Segundo Amorim Filho (2003, p. 332), “o estudo dos conflitos é o tema por excelência da Geopolítica atual.” Algumas tendências temáticas novas vêm sendo incluídas nos estudos dos conflitos, graças ao contato da Geografia Política acadêmica com a geopolítica aplicada em tempos recentes. Paul Claval, citado por Amorim Filho (2003), enumera algumas delas, como por exemplo, a pesquisa minuciosa das causas ou dos fatores de tensão; a compreensão das relações geoestratégicas dos atores envolvidos nos focos de tensões; a ênfase no estudo da complexidade étnica, religiosa e cultural dos Estados, e não apenas na descrição e comparação de seus indicadores econômicos, demográficos etc. A Geopolítica tem incorporado também novos aspectos anteriormente pouco contemplados pelos geógrafos políticos, tais como os fatores psicológicos, os processos de decisão e o papel da opinião pública e das questões ambientais. Outros autores, citados ainda por Amorim Filho (2003, p. 336-337), reforçaram a importância das quase sempre múltiplas causas dos conflitos, contribuindo para “enriquecer a fundamentação teórico- metodológica do estudo dos conflitos.” Entre eles se destacam Michael Brown, cuja obra editada em 1996 é um marco, assim como Aymeric Chauprade e François Thual (1998), para os quais “os conflitos não surgem sem causas e a identificação das causas constitui o primeiro estágio da análise geopolítica.” O estudo da geopolítica energética passa necessariamente pelo estudo dos focos de tensões e dos conflitos políticos que têm, na questão energética, um dos fatores ou o fato causador. A bibliografia a esse respeito é escassa. As obras que tratam deste assunto 23 tendem a focar os aspectos econômicos (geografia econômica ou macroeconomia) ou técnicos (engenharia energética), passando ao largo de suas causas e consequências políticas; outras, realizam uma análise superficial da questão. Esta pesquisa objetiva contribuir para o preenchimento desta lacuna, concentrando-se, portanto, na geopolítica de origem energética. A região a ser estudada é bem delimitada: a América do Sul. O presente trabalho considera, ainda, que existe uma tendência recorrente a focos de tensões no continente, por uma série de motivos. Primeiramente, porque os dois maiores consumidores de energia não a produzem em quantidade suficiente para abastecer seus respectivos territórios: Argentina e Brasil são importadores de gás natural da Bolívia; este país e a Venezuela, por sua vez, são detentores das maiores reservas de gás do continente. Emsegundo lugar, a Venezuela possui a maior reserva de petróleo continental e uma das maiores do mundo, o que fez dela grande exportadora desta matéria-prima e, pelo menos por agora, refratária ao avanço dos biocombustíveis ― colocando-a em rota de colisão com o Brasil, um fervoroso defensor destas fontes alternativas de energia. Este complicado tabuleiro energético sul-americano tem gerado muitos focos de tensões geopolíticos recentes no continente, principalmente após a implantação de uma política energética agressiva por parte de Hugo Chávez, nos últimos tempos. O Brasil foi o país mais atingido por esta política, o que contribuiu para que se questionasse a consistência da sua liderança geopolítica regional, cunhada ao longo de décadas de iniciativas diplomáticas que pareciam ter consolidado, pelo menos em tese, a imagem de um Brasil amigo e solidário junto aos seus pares sul-americanos. Entre alguns dos novos e preocupantes focos de tensões, podemos identificar os mais recentes, como a crise do gás natural entre o Brasil e a Bolívia, em 2006; a exigência do Paraguai em rever o Tratado de Itaipu com o Brasil, em 2007; a falta de acordo entre a Venezuela e o Brasil para a construção de um gasoduto de sentido norte-sul, cortando todo o continente; o desacordo entre a Petrobras e a Petróleo de Venezuela S.A. (PDVSA), no tocante à implantação de uma grande refinaria no estado brasileiro de Pernambuco ― batizada de Abreu e Lima; a crítica coletiva realizada por Hugo Chávez e Fidel Castro ao avanço do etanol no mundo, numa alusão ao etanol brasileiro; finalmente, a expulsão de uma empreiteira brasileira do Equador, a Odebrecht, em 2008, por problemas relacionados com a construção de uma usina hidrelétrica naquele país. O Brasil vem assistindo, nos últimos anos, a uma aliança estratégica entre Venezuela, Bolívia, Equador, Nicarágua e Cuba, que se organizaram em torno de um eixo 24 geopolítico que tem causado problemas de ordem geral à liderança brasileira no continente. Multiplicaram-se, assim, vários focos de tensões de inspiração energética, contribuindo para o surgimento de uma importante geopolítica de energia de dimensões local, nacional e macrorregional. Efetivamente, a segurança energética tem se revelado, cada vez mais, fundamental para a geopolítica internacional, numa escala que só faz crescer em termos de importância estratégica para todas as nações do mundo. Em consequência, a geopolítica hemisférica passa por profundas transformações que merecem um estudo mais aprofundado e abrangente, capaz de indicar possíveis respostas a novas perguntas oriundas deste novo contexto regional. Toda sociedade, para se desenvolver e se proteger de ameaças externas, deve ter um cuidado especial com as condições de geração e distribuição de energia em seu território, ou com a estabilidade de fluxos de abastecimento com base em fontes energéticas localizadas em outros países. Sem energia, por exemplo, os sistemas de transportes e de comunicações não funcionam. O propósito desta pesquisa, no atual cenário internacional de profundas transformações, é descrever e analisar certos aspectos da geopolítica da América do Sul, tendo como objeto de estudo os principais focos de tensões e conflitos cujas origens estão, de algum modo, ligadas às políticas de energia dos países do continente. Neste contexto, as questões energéticas e suas geopolíticas apresentam-se como um dos temas mais importantes da atualidade, em particular no hemisfério sul-americano. Isso se dá, não só pela necessidade fundamental que os países têm na produção e no consumo de energia, mas também, pela consciência crescente da necessidade de se reduzir a degradação ambiental em curso no planeta. Pode-se afirmar, inclusive, que a preocupação com a preservação do meio ambiente fez surgir, em escala global, uma geopolítica ecológica e ambiental que não existia poucas décadas atrás. Esta nova geopolítica se relaciona e dialoga diretamente com a produção e o consumo de energia ― uma vez que a queima dos combustíveis fósseis responde por 87% da matriz energética mundial e está entre os maiores responsáveis pelo aquecimento global (ver Quadro 02). A geopolítica de energia, portanto, está diretamente relacionada à nova geopolítica ambiental. O mais intrigante, todavia, no cenário sul-americano, é a constatação de que muitas das tensões energéticas têm moldado, recentemente, a política externa dos países do continente e contribuído para a configuração de um novo contexto geopolítico, organizado, nos últimos dez anos, em torno de eixos geopolíticos. Esta nova geopolítica, 25 de âmbito regional, se desenvolve, pelo menos parcialmente, a partir de acordos e desacordos no campo da energia. O Brasil, por ser a maior potência da região e o que mais investe nos países vizinhos, possui interesses estratégicos que ultrapassam suas fronteiras, situando-se no centro destas discussões. É nesse espírito de transformação das relações geopolíticas hemisféricas da última década que se enquadra o presente trabalho, tendo como contexto geográfico principal a América do Sul. Antes de seguir especificamente pelo exame destas questões, torna-se necessário discutir, preliminarmente, dois assuntos fundamentais para a execução deste trabalho. Primeiramente, suas premissas epistemológicas e, num segundo momento, sua metodologia. Como a discussão aqui presente situa-se no campo da Geopolítica, será dada atenção especial aos conceitos utilizados e à própria definição do termo geopolítica adotado. Este assunto será desenvolvido no Capítulo 2. Posteriormente, ainda no mesmo capítulo, será feito um levantamento e uma breve reflexão sobre os principais trabalhos acadêmicos relacionados com o tema, concomitantemente à análise da geopolítica a partir da sua epistemologia. Nas palavras do acadêmico Vágner Camilo Alves, Todo escrito no campo das Ciências Sociais apresenta um viés teórico que, através de sua dupla função descritiva e explicativa, permeia-lhe a narrativa e lhe dá encadeamento lógico. No entanto, todo e qualquer modelo teórico é redutor da realidade. Essa constatação é de suma importância, ainda que seja mesmo tautológica. [...] a função descritiva de uma teoria, ainda que importante, é subsidiária e subordina-se sempre à sua função explicativa. Isto significa dizer que um modelo teórico poderá descrever menos, desde que, com isso, o potencial explicativo do trabalho seja maximizado. [...] Na verdade, a escolha de um modelo teórico implica necessariamente um exercício de reducionismo. O esforço humano em conhecer e explicar a realidade encontra barreiras instransponíveis. Nunca é demais lembrar que a realidade, em totalidade, é incognoscível. (ALVES, 2002, p. 18-19). Feitas estas observações, serão delineadas agora as principais premissas sobre as quais se assentará o presente estudo. Optou-se por não fazer uso específico de nenhuma teoria geográfica ou geopolítica, mas sim de conceitos e princípios da própria Geopolítica ― alguns oriundos da Geopolítica clássica, outros, da Geopolítica contemporânea. A preocupação do autor desta tese não é, portanto, teórica. Entretanto, faz-se necessário, antes de abordar o tema, uma releitura das principais teorias em Geopolítica, bem como uma análise das bases epistemológicas da disciplina, de forma a permitir um balanço do estado atual desse ramo da Geografia, tão fascinante, mas, às vezes, refém da evolução das relações internacionais. Fascinante pelos inúmeros ramos do conhecimento 26 relacionados diretamente ao estudo da Geopolítica, tornando-a uma área do saber transdisciplinar e erudita, mas que não deve perder o foco; refém porque, como veremosno próximo capítulo, o da epistemologia, o estudo da Geopolítica esteve, em certos períodos da história, à mercê do desequilíbrio de poder internacional, cujas guerras quase sempre contribuíram para a tendência ao ostracismo acadêmico da disciplina, ou mesmo ao desenvolvimento de um certo preconceito em relação a ela. A metodologia adotada nesta pesquisa não adota uma matriz conceitual, de forma clássica; segue, isto sim, pelo caminho de uma pesquisa básica, bibliográfica, documental e de caráter exploratório. Ao adotar a geopolítica contemporânea da América do Sul como objeto de estudo, sua hipótese é necessariamente de cunho exploratório, uma vez que trata de um tema de carater instável, contingente, imprevisível e dinâmico. Trata-se, portanto, de uma proposta que está em construção, não podendo ser considerada um modelo acabado. O objetivo principal da tese, neste sentido, é o de trazer para a academia um olhar geopolítico novo, atual e relevante, que merece um acompanhamento da sua evolução nos próximos anos. O espírito da pesquisa, assim, baseia-se na aplicação de alguns princípios teóricos e conceituais na realidade geopolítica da América do Sul. A hipótese principal levantada neste trabalho se subdivide em duas partes. A primeira é a de que a geopolítica sul-americana apresenta, atualmente, uma configuração sistêmica que não se organiza mais apenas em torno de pólos políticos ou ideológicos (herdados da Guerra Fria), mas em torno de Eixos de poder, responsáveis por uma nova geopolítica regional ainda em fase de consolidação. A partir deste novo contexto geopolítico, o presente estudo procurará, finalmente, fundamentar a segunda parte da hipótese (Capítulo 8), a partir da identificação dos vínculos existentes entre a geopolítica energética sul-americana da última década com a configuração dos novos eixos geopolíticos regionais. Como declarou com razão o matemático e filósofo francês Henri Poincaré, “a ciência é construída com fatos, como uma casa é feita com pedras. Mas uma coleção de fatos não é mais ciência do que uma pilha de pedras é uma casa.” (POINCARÉ apud SINGH, 2006, p. 26). Neste sentido, pode-se afirmar que a geopolítica da América do Sul está associada a uma outra geopolítica mais abrangente, hemisférica e mundial, cujas forças têm um papel importante na configuração da geopolítica sul-americana. A pesquisa, por isso, se inicia com o estudo da geopolítica energética de caráter global, para que se possa, em seguida, interpretar a sua vertente regional. A partir do raciocínio que parte do geral para o particular, do mundial para o regional, será possível reunir 27 elementos para inferir os fatores causais a moldar o novo contexto geopolítico sul- americano, e as consequências que a política energética brasileira tem neste novo cenário. Certas áreas do conhecimento terão destaque na condução do trabalho, entre elas a Cartografia, a Geografia econômica e regional, a Política Internacional, a História mundial, a Economia da energia e, claro, a Geografia Política. Alguns recursos de geoprocessamento serão utilizados objetivando facilitar, especialmente em termos espaciais, as descrições e análises sobre a geopolítica energética em escala global e regional. Entre os dados a serem mapeados e analisados, dentro do escopo maior da geopolítica de energia, estão as reservas de petróleo, gás natural, carvão mineral e urânio, as redes de transporte de gás, a distribuição das usinas de etanol no Brasil, o mapeamento dos países-membros da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP) e a delimitação da zona econômica exclusiva brasileira. Neste contexto, a evolução do que é produzido em termos energéticos, bem como a comparação do status brasileiro com outros países na área energética, serão temas relevantes e fundamentais nesse estudo. Para a elaboração dos mapas apresentados na tese, foram utilizados dois softwares: o MapInfo 9.0®, para análise e representação dos dados, e o Corel Draw®, para acabamentos. As representações cartográficas foram organizadas em dois grupos, de acordo com a fonte dos dados: mapas coropléticos (dados da British Petroleum) e mapas adaptados de outras fontes. A simplicidade é uma qualidade valiosa da ciência. Por isso, os dados para o desenvolvimento da pesquisa, que compõem mapas, tabelas e gráficos, foram recolhidos de três fontes principais: da Agência Internacional de Energia (AIE), da Revista Análise Energia 2010 e da empresa petrolífera British Petroleum. Os números não são definitivos e 100% precisos, uma vez que se trata de estimativas, mas a decisão de pesquisá-los em instituições de renome internacional, reconhecidas pela comunidade acadêmica, certamente contribui para o rigor científico possível que se pretende alcançar neste trabalho. Esta observação também vale para os dados sobre as demais fontes de energia. A bibliografia sobre Geopolítica em geral, principalmente na sua vertente epistemológica, é vasta, inclusive no Brasil, com um número razoável de obras no idioma nacional. Encontra-se grande variedade de obras em inglês, francês e alemão, devido à contribuição da escola norte-americana e das europeias, em particular da francesa, da alemã e da britânica. Já a produção bibliográfica no campo da geopolítica de energia é bem menor. Encontram-se muitos textos, artigos e livros sobre o tema energia em 28 diferentes campos do saber, como o científico (Física e Geologia, por exemplo), o econômico, o técnico-produtivo, o comercial, mas o geopolítico ainda está para ser melhor desenvolvido e aprofundado. Levando-se em consideração o escasso conhecimento sobre o tema nos meios acadêmicos e, em particular, no ramo da Geografia, apesar da importância que a questão energética tem na política internacional, pode-se afirmar que os estudiosos ainda esperam a elaboração de uma teoria geopolítica sobre energia. Esta situação, por um lado, nos limita neste estudo; por outro, abre perspectivas de se desbravar um território do saber que se encontra em fase pouco avançada nos meios acadêmicos. Considerando a natureza e o propósito da pesquisa, foram realizadas duas visitas técnicas. A primeira foi efetuada numa importante unidade industrial processadora e distribuidora de energia no Brasil, onde foram coletadas informações de caráter técnico e econômico ― a Refinaria Gabriel Passos (Regap), da Petrobras, no município de Betim, em Minas Gerais. A segunda foi realizada no Centro Brasileiro para o Desenvolvimento da Energia Solar Térmica ― Green, com sede na PUC Minas, no bairro Coração Eucarístico, em Belo Horizonte. Os relatórios sobre as visitas técnicas encontram-se nos anexos desta pesquisa. A energia e sua visão territorializada sempre estiveram no centro dos principais debates internacionais. Na atualidade, o tema passou a figurar entre os mais importantes e comentados do mundo, ganhando maior visibilidade, a exemplo do que ocorre com os temas ambientais e com aqueles relacionados ao terrorismo. Este debate contemporâneo sobre energia e meio ambiente ocorre em consequência da conscientização de que a atmosfera dá sinais de exaustão na sua capacidade de absorver os gases poluentes, frutos, em sua maior parte, da queima de combustíveis fósseis, e da constatação de que as reservas de gás natural e petróleo caminham para o esgotamento, num futuro não muito distante. A matriz energética mundial, portanto, está sendo questionada por cientistas, políticos, climatologistas e ambientalistas e passa por lento, porém contínuo, processo de transformação: um modelo antigo, baseado no uso dos combustíveis fósseis, está dando lugar a um modelo novo, que demora a se estabelecer, por motivos que aqui serão discutidos.Trata-se de uma transição global sem precedentes e de suma importância, que já está afetando, inclusive, o cotidiano da população mundial. O Brasil passou a figurar no centro deste debate internacional nos últimos anos. Os motivos para isto são muitos, mas uma rápida análise do contexto regional e internacional é suficiente para justificar tal afirmativa. 29 Primeiramente, o Brasil tem uma matriz energética diversificada. Embora o petróleo ocupe uma posição de destaque, sendo responsável por 40% do consumo nacional, a exemplo do que ocorre em boa parte do mundo, a presença relativamente equilibrada das demais fontes de energia em nossa matriz contribui para uma saudável diversificação, destacando-se a hidrelétrica (13%), a cana-de-açúcar (14%), a lenha / carvão vegetal (13%) e o gás natural (9%). O Quadro 01 permite visualizar melhor a posição que cada fonte ocupa na matriz energética brasileira. O segundo motivo para uma presença mais marcante do Brasil no cenário internacional, em termos energéticos e ambientais, está no fato de que quase a metade das fontes utilizadas diariamente no país são limpas e renováveis, somando 43% do total. Isso transformou o Brasil num paradigma de matriz energética, em contraposição às nações que optaram pelo uso indiscriminado de fontes poluentes, situadas, portanto, entre as maiores poluidoras pela queima de combustível sujo, cujas reservas caminham para a exaustão. Fonte energética % − Nuclear 2 − Hidrelétrica 13 − Outras renováveis* 3 − Gás natural 9 − Carvão mineral 6 − Petróleo 40 − Produtos da cana 14 − Lenha / carvão vegetal 13 (*) - eólica, solar, biomassa e geotérmica Quadro 01: Matriz energética brasileira (2005) Fonte: PINTO JUNIOR, 2007, p. 26. A matriz mundial de energia é, como verificado no Quadro 02, extremamente poluente a altamente dependente dos combustíveis fósseis, que respondem por 87% do total. Estas fontes de energia são, reconhecidamente, as maiores causadoras do aquecimento global. O terceiro motivo que levou o Brasil a figurar no centro do debate internacional, nos últimos anos, é o fato de que o país apresenta boas condições para se tornar um dos maiores 30 produtores e exportadores de fontes limpas e renováveis, o que certamente, num futuro não muito distante, o elevará à condição de potência energética mundial. Além disso, a descoberta de jazidas de petróleo na camada pré-sal do litoral (parte delas contendo óleo leve, de boa qualidade), também altera o tabuleiro geopolítico energético em favor do Brasil no âmbito regional e global, considerando que esta commodity continuará sendo uma fonte de energia importante, pelo menos, pelas próximas duas décadas. Este novo cenário que se configura tem o potencial de alterar significativamente a geopolítica energética regional, podendo trazer benefícios para a população brasileira e alçando o Brasil a um patamar internacional bem mais alto. Fonte energética % − Nuclear 6 − Hidrelétrica 6 − Outras renováveis* 1 − Gás natural 24 − Carvão mineral 24 − Petróleo 39 (*) - eólica, solar, biomassa e geotérmica Quadro 02: Matriz energética mundial (2005) Fonte: PINTO JUNIOR, 2007, p. 25. O tema energia adquire dimensão geopolítica ainda maior ao se verificar que a capacidade do planeta em prover matéria-prima suficiente para a geração de combustíveis se esgota rapidamente. Esse problema seria contornável de forma menos dramática não fosse a urgente necessidade de se rever toda a matriz energética mundial em função do aquecimento global, que já afeta o planeta de forma preocupante. A perspectiva é de uma transição contínua e de longo prazo, que pode ser melhor visualizada na Figura 01. Neste sentido, a transição do modelo energético poluente para outro renovável contribuirá para alterar as relações de poder no mundo, a exemplo do que o petróleo do Oriente Médio fez no século XX. A partir da leitura da Figura 01, percebe-se que o petróleo e o carvão mineral tendem a perder participação e importância no longo prazo, sendo gradativamente substituídos pelo gás natural, pela biomassa moderna e pelas demais fontes renováveis, com destaque para a energia solar. O Brasil, sendo o país que já detém o maior percentual 31 do mundo de energia renovável em sua matriz e por possuir, de longe, um vasto território beneficiado com as melhores condições para a produção de energia renovável, com abundância de água, sol e calor, terá um papel fundamental neste novo tabuleiro geopolítico que se redesenha para o futuro próximo. Estas perspectivas que se abrem têm, na verdade, contribuído para conferir ao Brasil um novo papel no renovado cenário internacional do século XXI. Figura 01: Estimativa da evolução da matriz energética mundial Fonte: NAKICENOVIC; GRÜBLER; MCCONALD, 1998. No caso específico nacional, as fontes nuclear, eólica e hidrelétrica de energia, bem como o etanol, o petróleo e o gás natural são temas fundamentais para se entender o contexto no qual o país está inserido e as perspectivas futuras nestes setores. Por outro lado, os recentes e inéditos focos de tensões de origem energética que colocaram o Brasil em rota de colisão com a Bolívia, a Venezuela, o Equador e o Paraguai trouxeram para a pauta do dia o debate acerca das pretensões geopolíticas desses países, em detrimento de uma liderança continental brasileira que, por sinal, tem sido perturbada pelos esforços do presidente da Venezuela no sentido de se “contrapor” ao Brasil. Feitas estas observações, justifica-se o presente estudo, de forma a procurar elucidar algumas questões de grande complexidade e, na medida do possível, antever o papel que o Brasil terá neste novo e inusitado contexto sul-americano no tocante a sua geopolítica da energia. 32 O próximo capítulo da presente pesquisa versará sobre a epistemologia da Geopolítica, analisando conceitos e definições na área e justificando a escolha daqueles com os quais se trabalhará; realizará, também, uma breve revisão da literatura sobre a história das teorias e principais correntes da Geopolítica, desde os primórdios do seu estudo, a partir das premissas dos pioneiros Conrad Malte-Brun, Carl Ritter, Friedrich Ratzel e Élisée Reclus. Os Capítulos 3, 4, 5 e 6 abordarão as geopolíticas das fontes energéticas de âmbito mundial e regional, permitindo, através de uma visão que parte do geral para o particular, preparar o terreno para os Capítulos 7 e 8 ― os mais importantes da pesquisa ―, que farão uma descrição dos novos eixos geopolíticos na América do Sul, analisando, em seguida, os impactos da política energética brasileira no novo contexto geopolítico do hemisfério. Devido à grande diversidade de fontes de energia em uso no mundo, optou-se pela seleção das mais importantes, mais promissoras e daquelas mais presentes na geopolítica do continente sul-americano dos dias de hoje. São fontes que cobrem uma fatia considerável do total em uso atualmente. 33 2 GEOPOLÍTICA: UMA INTRODUÇÃO EPISTEMOLÓGICA Para se entender o significado do termo geopolítica, nos dias de hoje, é necessário analisar como e porque essa forma de ver o mundo surgiu, porque foi “ocultada” por algumas décadas, para finalmente reaparecer nos anos 1980. As próximas páginas, portanto, fazem um esforço de reflexão sobre a evolução do seu significado, chegando até as suas conceituações atuais, procurando rejeitar a tendência inadequada de se usar o termo geopolítica para nomear certos problemas que nem sempre deveriam receber esse rótulo; objetiva-se, assim, seguir por caminhos menos dogmáticos ou reducionistas. Numareferência ao livro de Yves Lacoste, publicado em 1985, pode-se afirmar que “Idéias comuns, como aquela de que a Geografia serve antes de tudo para se fazer a guerra e de que a Geopolítica é uma arma do fascismo, são tão generalizadoras quanto erradas.” (PENNA; SENA FILHO; SOUZA, 2004, p. 73). 2.1 Geografia política e Geopolítica: conceituação A Geopolítica é um ramo do conhecimento tipicamente transdisciplinar, situando- se na interseção de, pelo menos, três áreas do saber. Essas áreas são a Geografia (voltada para o espaço), a Ciência Política (aspectos relacionados ao poder) e a História (aspectos temporais), conforme ilustrado na Figura 02. Do ponto de vista da Geografia, Yves Lacoste afirma que, entre as diversas acepções que o termo geopolítica possa ter, trata-se, sempre, de rivalidades entre diferentes tipos de poder sobre territórios mais ou menos vastos. Portanto, “constatar esta territorialidade da ‘geo-política’ confirma a referência à geografia, o que a abreviação inicial indica de modo quase evidente.” (LACOSTE, 1995, p. 7, tradução nossa).1 1 Constater cette territorialité de la ‘géo-politique’ confirme la référence à la géographie, ce que l’abréviation initiale indique de façon quase evidente. 34 Figura 02: Quadro transdisciplinar da Geopolítica Fonte: elaborada pelo autor. A política, por sua vez, deve ser entendida como forma de atividade humana estreitamente ligada ao conceito de poder. Se, por um lado, os condicionantes geográficos foram, durante certo tempo, majoritariamente naturais, ou seja, físicos, por outro, o exercício do poder é inerente à práxis humana, o que faz da pesquisa em geopolítica um estudo, principalmente, de geografia humana. Meira Mattos, neste aspecto, acrescenta que... O espaço geográfico natural, através dos tempos, vem sendo politicamente enriquecido por instrumentos e adaptações artificiais implantados pelo homo operandi, tais como pontes, túneis etc. [... e, consequentemente] os progressos da ciência e da tecnologia têm oferecido, historicamente, ao homem operativo os recursos que a sua iniciativa pede para vencer as dificuldades encontradas na superação dos obstáculos do meio natural. (MATTOS, 2002, p. 29). Em função do exposto acima, o autor conclui que o espaço artificial, assim enriquecido, precisa ser reavaliado pela geopolítica. No âmbito deste trabalho, veremos que a construção de toda uma rede de gasodutos, de oleodutos e de transmissão de energia elétrica, por exemplo, dá origem a uma nova geopolítica, a da energia, a qual tem moldado, nos últimos anos, muito dos relacionamentos entre os países do continente sul- americano. O terceiro pilar do estudo da Geopolítica, a dimensão histórica, chamada por Therezinha de Castro de “Geohistória”, pode ser traduzido como “a ciência geográfica das sociedades históricas organizadas sobre o espaço natural.” (CASTRO, 1999, p. 20). A noção da geografia do mundo em termos de desenvolvimento histórico é fundamental no GEOPOLÍTICA 35 estudo da Geopolítica, uma vez que fornece subsídios para o entendimento dos fatores causais dos focos de tensões e dos conflitos, fundamentais para o entendimento deste ramo do conhecimento. Em outras palavras, “É através da interpretação dos acontecimentos históricos à luz da geografia que a geopolítica elabora suas teorias.” (MIYAMOTO, 1995, p. 22). Em suma, a Geografia, a História e a Política reforçam o fato de que a Geopolítica é uma abordagem totalizante, devendo ser desenvolvida a partir de uma visão holística. Porém, mesmo que essas três disciplinas acadêmicas tenham um papel central, a geopolítica dos dias de hoje é bem mais abrangente, levando o pesquisador a incluir áreas do conhecimento tão distintas como a religião, as percepções, as etnias, a economia, a antropologia e a psicologia social, para citar apenas algumas das áreas que fazem parte dos estudos da geopolítica contemporânea. Do ponto de vista conceitual, num primeiro momento, pode-se afirmar que a Geopolítica é a área de estudo que se ocupa da distribuição e das relações de poder no espaço geográfico. Considerando-se as tipologias modernas de poder, o exercício do poder político, econômico ou ideológico, na definição de Norberto Bobbio (1998, p. 954- 957), enquadra-se na categoria do poder social, ou seja, do poder do “homem sobre o outro homem.” Em última análise, é a capacidade que uma pessoa (ou um ator internacional) tem de condicionar o comportamento de outra, ou de um grupo de pessoas. Na Geopolítica, as relações de poder presentes nos processos políticos têm, nas informações geográficas, um elemento essencial para a pesquisa de cunho acadêmico. Um ponto recorrente no estudo da Geopolítica, mas não merecedor de ser aprofundado para efeitos desta tese, é a diferenciação entre o termo geopolítica e a expressão geografia política. Costa (1992), em sua obra Geografia Política e Geopolítica, considera esta discussão estéril e até mesmo inútil, motivo pelo qual muitos autores preferem passar ao largo dela. Ele exemplifica com a obra maior de Ratzel, intitulada Geografia Política (1897): apesar do título, os estudiosos mais destacados a consideram a obra que funda a Geopolítica por excelência, apesar do rótulo, provavelmente, só ter sido cunhado, em 1916, pelo sueco Rudolf Kjéllen. Procurando refletir, ainda que brevemente, sobre esta polêmica, pode-se tomar como referência o Dictionnaire de Géopolitique, de Lacoste (1995), para quem o termo geopolítica acabou por ser aceito como conceito mais geral, tornando-se desnecessário o uso do termo mais antigo geografia política. Lacoste afirma que o sentido do termo é 36 mais frequentemente usado como adjetivo, adquirindo três significados diferentes. O primeiro é aquele que aparece nos grandes dicionários, o Larousse (1962) e o Robert (1965), onde a Geopolítica é somente considerada como uma ciência ou como o estudo de um gênero particular. O segundo conceito, mais frequente, embora ausente dos dicionários, é aquele que aparece no Robert (1965) como significado secundário para a Geografia: se refere “às realidades que fazem o objeto desta ciência” e que são, consequentemente, legítimas de serem consideradas geopolíticas (ROBERT apud LACOSTE, 1995, p. 8). O terceiro significado do termo geopolítica é aquele que se refere a ela como “estratégia”. Este conceito é mais evidente quando se evoca, por exemplo, a geopolítica de Reagan ou aquela de Gorbatchev, ou seja, os diferentes tipos de ações adotados, ou mais exatamente decididos por um ou outro ator político, para modificar uma situação denominada geopolítica. Lacoste conclui que, portanto, nos dicionários, a Geopolítica não é absolutamente considerada como ação e estratégia, mas somente definida como uma ciência ou como o estudo de um gênero particular; suas inúmeras definições são do mesmo gênero daquelas que se dão à Geografia. Detalhando um pouco mais a questão, Lacoste afirma que, para o Robert, a Geopolítica é o “estudo das relações entre as questões naturais da geografia e a política dos Estados.” (ROBERT apud LACOSTE, 1995, p. 9). O Grand Larousse Universel é ainda mais explícito, para o qual a Geopolítica é o “estudo das relações que unem os Estados, suas políticas e as leis da natureza, estas últimas determinando as outras.” (LACOSTE, 1995, p. 9). O Dictionnaire de la Géographie, coordenado por Pierre George, ignora a Geografia Política e afirma que “a geopolítica é o estudo das relações entre os fatores geográficos e as ações ou situações políticas” para, em seguida, mencionar que foi “um dos instrumentos das propagandas políticas [dos] teóricos do
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