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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO Escola de Artes, Ciências e Humanidades Tradução Parcial do Livro “Birth in Four Cultures: A Crosscultural Investigation of Childbirth in Yucatan, Holland, Sweden and the United States” 1– Brigitte Jordan. “For the midwives of the world, in profound appreciation” – R.D.F Gabriela Paccola Moreno Aluna Profº.Dr. Edemilson Antunes de Campos Orientador Responsável São Paulo 2015/2016 1 “O Nascimento em Quatro Culturas: Uma investigação transcultural acerca do nascimento em Yucatán, Holanda, Suécia e Estados Unidos. ” 2 SUMÁRIO Prefácio da Quarta Edição – 1993: .................................................................................... 3 Capítulo 1: A Estrutura Biossocial para a Comparação Transcultural das Práticas de Nascimento. ................................................................................................................................... 6 Obstáculos para a Comparação Transcultural ............................................................ 10 A sequência do trabalho de campo ................................................................................ 14 Participação Antropológica .............................................................................................. 15 Uma prévia do livro ............................................................................................................. 18 Capítulo 3: A Comparação Transcultural dos Sistemas de Nascimento Através de uma Análise Biossocial. ........................................................................................................... 19 O nascimento nos Estados Unidos, Holanda e Suécia: uma visão geral ............ 21 Estatísticas sobre mortalidade: uma atualização ....................................................... 22 Características Biossociais do Nascimento ................................................................ 23 Visão histórica do nascimento ocidental ...................................................................... 26 Conclusão: ............................................................................................................................ 76 Parte II: O Conhecimento Autoritativo no Nascimento. ............................................ 77 Capítulo 6: A Conquista do Poder Autoritativo nos Nascimentos em Hospitais Americanos ........................................................................................................................................ 79 O Conhecimento Autoritativo........................................................................................... 80 A Equipe Médica como Guardiã do Conhecimento ................................................... 90 Encenando a Performance do Médico ........................................................................... 95 As Estruturas de Participação na Sala de Parto ......................................................... 97 Alguns Pensamentos sobre a Organização do Ambiente do Trabalho de Parto 99 3 Prefácio da Quarta Edição – 1993: Passaram-se quinze anos desde que a primeira edição de “Birth in Four Cultures” foi publicado pela editora Eden Press de Montreal. O livro, de diversas maneiras, foi deixado de lado. Raramente foi veiculado em propagandas, nunca foi resenhado em jornais de grande circulação e sempre foi obtido com muita dificuldade por aqueles que se interessaram. Porém, lentamente, essa situação foi mudando. Donos de livrarias começaram a reclamar que, constantemente, o exemplar esgotava de suas estantes. Professores ligavam por não conseguirem cópias para ministrarem aulas sobre o livro em seus respectivos cursos e, depois de alguns anos, inclusive, passei a receber cartas de lugares como a Mongólia e Lesoto. Uma tradução para o italiano surgiu. Pareceu que, apesar de seu status inicial de baixa notoriedade, o livro obteve algum impacto nas inciativas que visavam transformar a visão americana acerca das formas de nascimento, assim como, nas definições do estudo do nascimento como uma área legítima da pesquisa antropológica. No início dos anos 1970, quando eu estava batalhando para realizar uma pesquisa de campo em uma variedade de configurações acerca do nascimento e escrevendo o livro “Birth in Four Cultures”, o campo de estudo do qual, atualmente, conhecemos como Antropologia do Nascimento não existia. Não haviam trabalhos para serem comparados com este. Não haviam métodos de tentativa e erro. Não haviam conceitos analíticos que poderiam servir como base para a criação do meu material. Eu enfrentei grandes dificuldades ao tentar comparar as maneiras de concepção do nascimento de forma transcultural, assim como, ao expor o nascimento como um evento de entendimento culturalmente enraizado, de mediação biossocial – e alcance interativo, e como um indivíduo poderia facilitar um processo de mudança que preservaria as melhores configurações dos sistemas de nascimento que estavam em colisão e conflito ao redor de todo o mundo. Em meio a todo esse esforço, encontrei inspiração nos trabalhos de Margaret Mead. Quando eu fui reconhecida com o prêmio Margaret Mead em 1980 por conta do trabalho que é apresentado nesse livro, senti que a premiação falou de forma sincera sobre nossa conexão. Mead era a única outra antropóloga que eu conhecia que tinha alguma visão sobre as concepções acerca do que nascimento antropológico 4 poderia ser. Para ela, assim como para mim, essa visão deveria incluir – primeiramente e mais importante de tudo – uma aproximação transcultural. A seguir, assim como enfatizado por nós duas, uma forma cultural específica da fisiologia universal do nascimento e a forma adaptativa (ou não-adaptativa, como pode ser o caso) das práticas particulares e seus efeitos. Em terceiro lugar – como assim insistimos – a área da Antropologia do Nascimento deve focar no estudo dos sistemas de nascimento e não na comparação individual e isolada das práticas que ocorrem. Nós temos consciência de que, em todos os lugares do mundo, o nascimento é um evento socialmente marcado como uma crise na vida dos indivíduos – e que é consensualmente configurado e idealizado. Como tal, consiste em uma série de práticas internas, consistentes e mutualmente dependentes - que podem fazer sentido àqueles que vivem a situação externamente e não necessariamente àqueles que a vivem internamente. Precisamente, são essas noções antropológicas básicas que diferenciam os estudos antropológicos da concepção de nascimento através de investigações biomédicas, sociológicas, fisiológicas ou literárias – embora elas tratem do mesmo tópico. Desde a publicação inicial desse livro, um número de excelentes estudos etnográficos aprofundados acerca dos sistemas de nascimento surgiu. Mas, ainda assim, nós ainda não temos comparações compreensivas e culturalmente enraizadas sobre os diferentes tipos de práticas obstétricas que são esperadas através da produção de estudos antropológicos. Até onde é de meu conhecimento, “Birth in Four Cultures” ainda continua sendo o único material que trabalha com comparações das práticas obstétricas americanas com mais de um sistema que possui suas próprias práticas obstétricas - a despeito do fato de que analistas sofisticados, atualmente, enxergam o modelo ocidental – cosmopolita e de alta tecnologia – apenas como mais um sistema etno-obstétrico (Hahn 1987). Nós, também, não fomos tão longe em termos de modelos ou estruturas para a facilitação de uma mudança.Transformações estão acontecendo ao redor de todo o mundo, em nossos jardins, em nossos hospitais de alta tecnologia obstétrica, assim como, nos países de Terceiro Mundo – onde, em grande parte, todo o prestígio do modelo obstétrico ocidental ofusca a análise da razão acerca daquilo que pode ser oferecido através dos modelos obstétricos nativos. Eu ainda acredito que o modelo de mudança – do qual é discorrido mais detalhadamente no capítulo 5 deste livro – que propõe um método de acomodação mútua entre os sistemas em conflito, pode ser crucial na geração de 5 permutas positivas e frutíferas, sendo essa consequência melhor do que o posicionamento combativo e adversário entre as partes envolvidas. Meu próprio trabalho mais recente foi focado no número de questões que surgiram diretamente após o aparecimento de Birth in Four Cultures. Eu mesma fui progressivamente me tornando mais interessada nas questões sobre tecnologia apropriada, questões individuais acerca da transição entre os sistemas de baixa tecnologia – que podem ser exemplificados através do modelo Maya – aos de alta tecnologia que estão presentes em grande parte dos países industrializados. Eu também tentei chegar a um entendimento profundo sobre o processo de nascimento, do qual os praticantes e participantes dos diferentes modelos de nascimento adquirem as habilidades necessárias para que o evento do nascimento ocorra de forma competente. Sob esse contexto, examinei a relação de aprendiz que foi desenvolvida entre mim e a parteira da comunidade que foi minha mentora em Yucatan. Contrastei essa espécie de experiência de aprendizado com o modelo didático que impõe um alto nível de aquisição de competências na maioria dos programas oficiais. Também continuei trabalhando nas questões metodológicas – particularmente no desenvolvimento de interações analíticas baseadas em vídeos que, combinadas com investigações etnográficas, são uma grande promessa de justiça aos tipos de fenômeno dos quais estamos interessados. Por fim, meu mais recente trabalho girou em torno do “conhecimento autoritativo”, conhecimento este que é construído e mostrado através dos membros da comunidade onde a prática é a base para a tomada de decisões. Alguns desses trabalhos foram incorporados à Parte II da quarta edição desse livro. Robbie Davis-Floyd tomou grande parte dessa incorporação, assim como, do difícil trabalho de conectar as partes da primeira edição desse livro com o estado de pensamento e aprendizado no campo de trabalho. O próprio livro dela “Birth as an American Rite of Passage” 2 (1992) foi uma inspiração para mim quando surgiu sua existência há alguns anos atrás. Muito mudou em termos de trabalho realizado, material disponível, novas visões e novos escritos. Sem a dedicação de Davis-Floyd em produzir adaptações, nada poderia ter sido trazido e acrescentado ao meu livro. De fato, sem ela não existiria uma reedição. 2 “O Nascimento como um Rito Americano de Passagem”. 6 Desde que eu deixei o campo acadêmico na Universidade do Estado de Michigan, eu tive grande sorte de poder trabalhar no Centro de Pesquisa de Palo Alto e no Instituto de Aprendizado e Pesquisa – ambos foram desafios estimulantes e extraordinários no campo de pesquisa. Me sinto em débito com ambas as instituições por apoiarem minhas escritas e meus pensamentos, mas sobretudo, gostaria de agradecer aos meus colegas pelas contribuições que fizeram na direção da qual meu trabalho estava envolvido. A Parte II desse livro não teria acontecido sem a contribuição do XEROX PARC 3e do IRL.4 Portanto, é com grande prazer, e com profunda apreciação dos meus amigos e colegas e pela contribuição de Robbie Davis-Floyd nesse volume, que eu introduzo a vocês essa edição atualizada e revisada de Birth in Four Cultures. Brigitte Jordan, Palo Alto, California. Capítulo 1: A Estrutura Biossocial para a Comparação Transcultural das Práticas de Nascimento. O nascimento é uma transição íntima e complexa cujo assunto é fisiológico e a linguagem é cultural. Tema e linguagem ou, para colocar de outra forma, conteúdo e organização nunca são dispostos um sem o outro. Eles devem ser considerados juntos para uma visão holística. É por essa razão que eu proponho tratar o processo de parturição aqui com uma estrutura biossocial, para assim dizer, como um fenômeno que é produzido juntamente e reflexivamente por uma biologia – que é universal – e uma sociedade – que é particular. A distinção entre aquilo que é biológico e aquilo que é social é, de diversas maneiras, meramente analítica. Não tem um status ontológico. Como é possível vermos, a fisiologia do nascimento e o seu contexto interacional (ou a sociologia do nascimento e seu contexto psicológico) constantemente desafiam muitos esforços para separá-los. Na obstetrícia americana contemporânea, o movimento pelo nascimento através de vias naturais das décadas de 1970 e 1980, destacaram um crescente reconhecimento da relação íntima entre os aspectos fisiológicos da parturição e o 3 Palo Alto Research Center. 4Institute of Research and Learning. 7 manejo e organização social. Similarmente, se considerarmos a gravação etnográfica, descobriremos que não há conhecimento de nenhuma sociedade que o nascimento seja tratado, pelas pessoas que estão envolvidas em seu processo, como uma função meramente fisiológica. Pelo contrário, em todos os lugares ele é socialmente marcado e configurado (Ford 1964; Hart 1965; Mead e Newton 1967; Newton 1972; Newman 1976, 1981; Kay 1982; MacComarck 1982). Falar do nascimento como um evento biossocial, então, sugere e reconhece – ao mesmo tempo – essa função universal e biológica e a matriz social de cada cultura especificamente – da qual a biologia humana está inserida. Em alguns sentidos, a fisiologia do parto é a mesma – ainda que a parturição seja realizada contundentemente de maneiras diferentes e em diferentes grupos de pessoas. Nós sabemos, através de evidências transculturais, que o nascimento é tratado como um evento de crise de vida. Assim, esse período é, em todos os lugares, um candidato para uma configuração consensual e uma matriz social. Em muitas sociedades, o nascimento e o período imediato de pós-parto são considerados um tempo de vulnerabilidade para a mãe e para a criança – de fato, frequentemente, um período ritualístico que representa o perigo para a família e para a comunidade. No sentido de lidar com esse perigo e com a incerteza existencial associados ao nascimento, muitas pessoas tendem a produzir uma gama de práticas e crenças - internamente consistentes e mutualmente dependentes – e que são designadas para lidar com os aspectos psicológicos e socialmente problemáticos da parturição, de um modo a fazer sentido no contexto particular. Dessa forma, não é surpreendente, que – independente dos detalhes de cada sistema de nascimento – os praticantes tenham uma tendência a ver seus sistemas em particular como o melhor, o correto e, de fato, o jeito de trazer uma criança ao mundo5. Por essas razões, que encontramos dentro de um sistema, práticas de nascimento que aparentam estar “empacotadas” de forma relativamente igual, sistemática, ritualística e, mesmo, dentro de uma rotina moral requerida. Nós conhecemos as configurações das práticas e crenças – que são reconhecíveis e culturalmente específicas – quando conversamos, por exemplo, sobre a obstetrícia ocidental ou os diversos etno-obstetras das sociedades tradicionais.5 É importante enfatizar que, para as propostas desse estudo, as práticas e motivações da obstetrícia americana não serão assumidas a fim de providenciar uma posição inerentemente superior na comparação. 8 Como um evento de crise de vida, o nascimento é, em todos os lugares, um candidato para configuração consensual e regulação social – a matriz particular depende da história local, da ecologia, da estrutura social e do desenvolvimento tecnológico. Deste modo, enquanto procuramos por um baixo nível de variações em um sistema, a quantidade de variações em práticas específicas entre sistemas diferentes é extensa. Como uma ilustração dessa variedade, consideremos por um momento a questão: quem deveria (ou poderia) estar presente durante o momento de parturição? Nós descobriremos que em todas as sociedades conhecidas, incluindo a nossa, o acesso ao momento do nascimento é limitado restritamente a um grupo específico de pessoas (Ford 1964:56). O mais frequente é a exclusão categórica de crianças e homens (certas vezes, com exceção do marido ou de um especialista do sexo masculino) e também de mulheres que ainda não tiveram filhos. Existem relatos ocasionais de algumas sociedades em que o acesso é tido como desregulado, mas não é o caso de um exame minucioso sobre esse assunto. Os Krikati do Brasil Central, por exemplo, dirão ao visitante que todos os membros da comunidade, incluindo homens e crianças, possuem o direito de estarem presentes no momento dos nascimentos. Na prática atual, de qualquer forma, as mulheres em trabalho de parto escondem sua condição levando suas atividades diárias o máximo que puderem. Finalmente, quando o nascimento está eminente, elas se afastam para um lugar quieto nos arbustos, acompanhadas de alguma parente mais velha e conhecida – uma figura feminina (Lave 1974). Nos Estados Unidos, a maioria das mulheres dão à luz em hospitais, sendo atendidas pela equipe médica e tendo como acompanhante apenas uma pessoa – geralmente o pai da criança. Enquanto isso, as mulheres Maias de Yucatan são rodeadas de suas famílias e amigas. Em cada um dos sistemas, apenas a companhia das pessoas que já são de costume na convivência é vista como apropriada. Uma mulher Maia, por exemplo, fica irritada com a mera sugestão de chamar um médico do sexo masculino, enquanto isso, as últimas pessoas que uma mulher americana pode querer ver no momento em que está dando à luz, podem muito bem ser sua mãe ou seu pai. Por que uma investigação transcultural das práticas de nascimento é de interesse? A resposta é fácil. Primeiramente, dado que o nascimento é um acontecimento universal, é óbvio que investigar a organização biossocial desse processo torna possível a documentação e o alcance de diversas variedades do 9 comportamento e da psicologia humana – que não são possíveis de serem obtidos por fenômenos que não sejam universais. Em acréscimo, considerando-se que o nascimento, na maioria das sociedades, é um assunto de mulheres, um estudo acerca das maneiras como a parturição é manejada em diferentes culturas não pode, se não, melhorar e ampliar a nossa apreciação dos sistemas de organização feminina – assim como seus interesses e estratégias. Até recentemente na história da antropologia, nossas visões sobre as organizações sociais consistentemente ignoraram os muitos e variados lugares das mulheres nas sociedades – resultando em etnografias e teorias distorcidas e improvisadas (Rosaldo e Lamphere 1974). A investigação de um evento do qual a mulher – essencialmente e centralmente – figura, providencia algum acesso para as maneiras de organização femininas, assim como a realização através de suas mãos. A terceira razão para uma investigação transcultural dos sistemas de nascimento é mais complexa. Requere a consideração que esse tipo de estudo pode proporcionar ou, complementarmente, o que motivou a investigação em primeiro lugar. Em outras palavras, precisamos considerar aqui todos os tipos de problemas que essa categoria de pesquisa irá abordar. Atualmente, os sistemas de nascimento tradicionais estão passando por tremendas mudanças por conta da influência da medicina ocidental – enquanto a prática obstétrica ocidental, também, passa por pressões para ajustar-se às visões de mudança de posição e competência de mulheres e de casais envolvidos no processo de nascimento. Para os sistemas tradicionais, o grande prestígio do modelo médico esmagadoramente proporciona um modelo-padrão de resistência para a mudança. Porém, de qualquer maneira, muitas das práticas obstétricas estão sendo exportadas para os países em desenvolvimento através de orientações médicas. Nações tecnológicas e sofisticadas recebem, ironicamente, um status controverso em casa. Nos Estados Unidos, de fato, a apropriação do modelo médico para a concepção total do nascimento foi seriamente desafiada nos anos recentes, e atualmente, existe uma grande gama de alternativas. Porém, o senso de superioridade e o requerimento moral que é construído em todo o sistema funcional, geralmente, mantém seus praticantes em resistência e, muitas das vezes, “uniformizados” em relação às formas alternativas de manejar o nascimento desde que muitas alterações da maneira “correta”, geralmente, são interpretadas como antiéticas, exploradoras, “más práticas” e 10 tremendamente perigosas. Por essa razão, a experimentação dentro de qualquer sistema é sempre perigosa e, frequentemente, impossível. Seria difícil, por exemplo, realizar um estudo de drogas analgésicas (de alívio de dor) ou investigar os efeitos da ocitocina (que aumenta a força das contrações uterinas) na Holanda. Ambos os tipos de medicamentos são comuns nos Estados Unidos, porém, na Holanda o uso deles em um nascimento por vias naturais é considerado um prejuízo para a mãe e o bebê. Consequentemente, um experimentador nesse país seria responsável por condutas antiéticas. Nos hospitais americanos, por outro lado, até a década de 1970, era próximo do impossível experimentar posições diferentes para a mulher em trabalho de parto desde que a posição litotomica para o parto era (e ainda é) um modelo e integralmente faz parte das rotinas obstétricas. 6 É por essa razão que se espera de uma de uma comparação transcultural o fornecimento de informações para uma melhor compreensão do processo de nascimento – entendimento este que não se encontra disponível do ponto de vista interno de qualquer sistema de nascimento em particular. Pelo fato de que estamos realizando comparações dentro de uma estrutura biossocial, devemos esperar dois tipos de resultados: um que diz respeito à biologia e outro que nos diz acerca das formas que o nascimento é socialmente organizado e culturalmente produzido. Ambos os tipos de resultados devem providenciar um guia estratégico para a mudança que é inevitável nas formas diárias de manusear o nascimento contemporâneo. Obstáculos para a Comparação Transcultural Os obstáculos para a comparação transcultural dos sistemas de nascimento podem ser encontrados em três níveis: o primeiro tem relação com a escassez geral da informação sobre o nascimento; a segunda com o viés particular das informações disponíveis; e o terceiro com a dificuldade de organizá-las – o que pode não deixar claro quais são as partes relevantes da comparação. Permitam-me discutir esses pontos em turnos. 6 Na posição litotomica a mulher é deitada em uma mesa de parto, tendo suas pernas colocadas em apoios. Ela é coberta por panos estéreis, deixando apenas o obstetra com a visão da área exposta. 11 Falta de informações:Dado que, aqui, estamos preocupados com um evento que é comum, fisicamente e socialmente marcado, e, significantemente, uma implicação social na vida de qualquer grupo, é surpreendente que as informações acerca do nascimento são esparsas. De fato, a informação que pode ser utilizada para uma concepção holística do nascimento é, primariamente, notória pela sua falta. Décadas atrás, Freedman e Ferguson apontaram que “praticamente não existem observações primitivas boas, diretas e pessoais do nascimento realizadas por observadores competentes” (1950:365) – uma situação que está, apenas, começando a mudar. Em 1978, quando esse livro foi publicado pela primeira vez, nem um único filme/documentário etnográfico de algum nascimento não-médico e em uma sociedade não-ocidental existia. Niles Newton (Mead e Newton 1967), fez uma pesquisa extensa sobre a literatura médica e antropológica das práticas de nascimento, seus estudos apontam que os escritos médicos possuem uma orientação voltada para a patologia pelo fato de que os médicos que trabalham em sociedades tradicionais tendem a ver apenas os casos de nascimento extremamente anormais. A checagem de dados para esse estudo incluiu arquivos do setor de Relações Humanas, que revelaram que cerca de dois-terços deles não possuíam descrições de nascimentos normais, não importando o quão rapidamente esses dados foram colhidos. Essa falta de informações é um tanto marcante. O nascimento de um novo membro de um grupo não é importante só para a perpetuação do grupo, mas também, esse fato transforma o status de vários de seus membros e, de forma mais marcante, o status dos pais, da família e dos atendentes. Esse fato possui implicações interpessoais, religiosas e econômicas. Se considerarmos a universalidade do nascimento e o seu significado teórico e prático é, de fato, surpreendente não possuirmos mais informações transculturais. Pode parecer estranho que antropólogos, que estudaram as crenças esotéricas dos sistemas, bem como os rituais secretos em grandes detalhes, não obtiveram o mesmo sucesso ao produzir gravações dos nascimentos inerentes às suas próprias culturas. Essa falta de informações pode ser parcialmente explicada pelo fato de que, apesar do nascimento ser algo excessivamente comum comparado com o curso dos eventos que os antropólogos investigam, é, também, extremamente difícil que os estudiosos do sexo masculino ganharem acesso ao evento do nascimento – e vale 12 aqui ressaltar que a maioria dos antropólogos, até recentemente, são do sexo masculino. Porém, isso não é afirmar que esses profissionais do sexo masculino não podem estudar o nascimento. O fato é que eles apenas ainda não o fizeram. Parte disso acontece, pois, muitos antropólogos submeteram-se à noção de que o nascimento é um assunto feminino e que possui menos importância que os rituais de puberdade, guerra, organização de parentesco, economia e etc. A falta de atenção ao nascimento por parte dessas pessoas no passado podem refletir a desvalorização endêmica de assuntos femininos no início de desenvolvimento das ciências sociais (Rosaldo e Lamphere 1974). Por outro lado, é necessário reconhecer que o acesso ao nascimento é, geralmente, difícil de ser obtido por pessoas externas – especialmente do sexo masculino. Sendo assim, esse era o contexto logo que comecei minha pesquisa (e ainda é em muitos lugares): o “nascimento normal que ocorre regularmente dentro de uma tribo ou comunidade está fora do alcance dos médicos, bem como dos antropólogos” (Mead e Newton 1967: 149). Informação Restrita Em acréscimo ao tema “informações”, um segundo obstáculo para uma análise comparativa é encontrar a natureza dos dados que estão disponíveis. Isso cai em duas categorias: uma é orientada de maneira médica e a outra é restritamente antropológica. A equipe médica, de tempos em tempos, precisa estudar os nascimentos em outras culturas, mas esses estudos tendem a focar na parte fisiológica do nascimento (e, geralmente, anormal também) e deixam de fora o que é de igual interesse aqui – os aspectos interacionais. Os compilados estatísticos da Organização Mundial de Saúde (OMS) contêm extensivos dados transnacionais dos quais abordam variáveis como mortalidade e morbidade infantil e materna, a disponibilidade de uma equipe médica e recursos, o status epidemiológico e nutricional da população e etc. Essas informações são úteis para colocar o cuidado obstétrico em uma posição dentro do sistema de saúde de um país e, quando o nível de desenvolvimento é constante, também proporcionam alguns parâmetros para o “sucesso” médico das práticas de nascimento de um país. Porém, eles nos dizem muito pouco sobre os aspectos sociais e interacionais do nascimento. A segunda categoria das investigações transculturais do nascimento, os estudos antropológicos, atualmente, definem essa área de investigação de forma 13 restrita. Antropólogos têm, tradicionalmente, sido ocupados com tópicos como a organização de parentesco, rituais, conflitos, sistema de crenças, e temas relacionados, a informação disponível em sociedades não ocidentais reflete essa ênfase. Não é surpreendente, porém, que os dados transculturais sobre o nascimento, dependendo do ponto em que eles se encontram em relação às informações coletadas no curso geral de um trabalho etnográfico, refletem os interesses tradicionais do antropólogo. Portanto, detalhamos fielmente a informação das formas dentro de um ritual como a disposição do cordão umbilical após o nascimento, porém, sabemos muito pouco acerca da natureza do processo de poder de decisão durante a parturição ou a extensão do apoio físico, material e emocional direcionados à mulher durante a gestação e o trabalho de parto. 7 O único estudo mais utilizado e que está disponível chama-se “O Modelo Cultural do Comportamento Perinatal”8 de autoria de Margaret Mead e Niles Newton (1967) que compreenderam que, nesse ponto, ainda existem informações insuficientes para uma comparação transcultural rigorosa, para isso, propuseram um grande número de sugestões de pesquisa dos fatores culturais envolvidos no evento do nascimento. Essa e outras investigações similares mostram um problema comum, porém frequentemente não reconhecido, indicado no campo: no primeiro ponto do desenvolvimento da pesquisa antropológica sobre o nascimento, não estão claras o que as categorias para uma comparação transcultural e uma comparação entre os sistemas deveriam ser. A profissão médica enfatizou a fisiologia e a patologia, enquanto a antropologia focou nos praticantes nativos e no ritual (Cosminsky 1974, 1977; Paul e Paul 1975; Rubel et. Al 1971, 1975; Schultze Jena 1933, Lévi Strauss 1967). Se, de qualquer maneira, a finalidade for produzir uma estrutura para a análise comparativa das formas da qual a biologia universal do nascimento é mediada e 7 Atualização: quando eu originalmente escrevi este livro, esperava que fosse possível desenvolver uma conceituação holística do nascimento, da qual integra a visão local e o significado desse evento, seus comportamentos associados, e a sua relevância para um sistema transcultural a respeito das condutas no nascimento. E, de fato, essa intenção foi alcançada, não apenas no meu trabalho, mas também nos excelentes estudos comparativos e etnográficos do nascimento que surgiram desde que esse livro foi publicado pela primeira vez em 1978. A maioria desses novos estudos utilizaram a participação antropológica para chegarem a esse tipo de conceituação holística do processo reprodutivo em diferentes culturas. (Veja por exemplo Chominsky 1982; Oakley1981; Kitzinger 1982; Paige e Paige 1981; Gray 1982, Kay 1982; MacComarck 1982b; Sargent 1982, 1989, 1990; Laderman 1983; Scully 1981; McClain 1983, 185, 1987 a e b; Konner e Shostak 1987; Trevathan 1987; Tronick et al. 1987; Faust 1988; Michaelson 1988; Susie 1988; Handwerker 1990; Layne 1990; Lazarus 1988, 1990; O’Neil e Kaufert 1990; Fraser 1992; Lefkarites 1992; Sault 1989, 1992). 8 Cultural Patterning of Perinatal Behavior. 14 interpretada pelas práticas específicas de cada cultura, então, devemos admitir que nesse momento não existe um esquema conceitual para tal iniciativa. Por essas razões eu escolhi focar o meu trabalho em um problema mais limitado, porém, fundamental: isolar algumas características do processo de nascimento que são recomendadas como unidades para a comparação transcultural dentro de uma estrutura biossocial. Isso quer dizer que a minha investigação pode ser melhor entendida como um esforço inicial para remover um dos obstáculos para uma comparação transcultural significativa, isto é a questão de quais características do processo de nascimento podem ser identificadas e quais satisfazem a necessidade de abordar tanto os aspectos sociais quanto os fisiológicos e médicos do nascimento. Está claro para todas as razões citadas acima que essa questão não pode ser respondida pela literatura. Ao invés disso, a estratégia que eu empreguei foi um estudo intensivo para quatro sistemas de nascimento distintos, que possui ênfase na imersão no fenômeno, observação detalhada e, sempre que possível, participação nos trabalhos de parto e nascimento. A sequência do trabalho de campo No inverno de 1972 e na primavera seguinte, minha colaboradora Nancy Fuller e eu tivemos a oportunidade de, em uma cidade rural em Yucatán – México, participar dos nascimentos domiciliares que foram acompanhados por uma partera empírica, uma parteira nativa. Esses nascimentos, de forma alguma, assemelharam-se com o que eu sabia sobre os nascimentos americanos, e enquanto a experiência me cativava de maneira que eu não poderia especificar no momento, eu também descobri que eu não estava apta a falar sobre isso de nenhuma maneira sensível e legitima. Em particular, eu estava inapta a traduzir as características incomuns de um nascimento Maia em termos que fizessem sentido para a obstetrícia ocidental – o sistema dominante na sociedade da qual eu retornei. Ficou claro que eu precisava conhecer sobre a obstetrícia biomédica. Eu comecei a ler livros e revistas sobre obstetrícia e fiz um trabalho de campo no meio obstétrico em um grande hospital-escola na parte norte da Califórnia durante o verão de 1973, e também, dentro de um contexto parecido na parte norte no outono 15 desse mesmo ano.9 Ao mesmo tempo, eu entrevistei mães, pais, obstetras, médicos generalistas, parteiras rurais e enfermeiras obstétricas. Nancy Fuller e eu retornamos à Yucatán em 1974, participando de novo de nascimentos e, até, em visitas pré e pós natais. Foi durante essa segunda visita que eu me tornei versada no papel de ajudante formal da mulher que está dando à luz (tópico que será discutido com mais profundidade no capítulo 2). A parteira, também, começou a me tratar como sua assistente, o que significa que ela providenciou instrução e me encorajou a assumir em alguns momentos. Eu fui golpeada pelas diferenças entre o sistema de Yucatan e o americano, não apenas pelo nível de conhecimento médico e tecnologia, mas também, e mais impressionavelmente, em relação ao espírito do nascimento. Nesse ponto pareceu importante obter alguma noção do que, no sistema americano de nascimento, o que era local e inerente àquele sistema, e o que era devido ao modelo de medicina científica e cosmopolita.10 Eu escolhi Holanda e Suécia como locais de pesquisa de campo durante o verão de 1974, dado ao fato de que esses países tiveram (e ainda têm) a menor taxa de mortalidade infantil do mundo. Em acréscimo, Nancy Fuller e eu retornamos a Yucatán todos os anos para mais um trabalho de campo. Essa sequência de períodos de imersão focados no problema providenciaram a oportunidade de aprender a partir de um contexto para o outro com o objetivo de aproximá-los de forma mais frutífera. Esse percurso facilitou a formulação do que eu concluí serem as características significativas do modelo biossocial do nascimento. Participação Antropológica Uma palavra sobre a minha orientação acerca da coleta de dados é apropriada nesse ponto. Eu formulei minha aproximação a fim de conhecer as necessidades da investigação do nascimento enquanto evitava, ao menos, algumas das armadilhas que estavam reservadas ao investigador transcultural sobre o fenômeno do complexo 9 Um trabalho de campo adicional foi realizado em Michigan, onde eu acompanhei tanto os nascimentos hospitalares quanto os domiciliares de 1976 até 1984. 10 Eu uso o termo “medicina cosmopolita” de uma forma relacionada com “ocidental”, “moderna”, “científica” e “biomédica” para me referir ao modelo de cuidado e crença dentro das práticas de países industrializados. Na maioria dos países em desenvolvimento, algumas versões da medicina cosmopolita constituem o sistema oficial de cuidado em saúde. 16 comportamental. A parte central da minha aproximação é a convicção de que a base para uma compreensão adequada dos eventos biossociais deve vir de uma participação antropológica. Desde que o processo de dar à luz é caracterizado por um alto grau de intimidade (algo que não é público), assim como como o que fazer com as funções corporais e suas características, coletar dados por através de perguntas é provado como um método insatisfatório nas maneiras fundamentais. Um pouco à parte dos tópicos que são considerados tabus e inibições culturalmente condicionadas, o nascimento é um evento de grande complexidade interacional, onde as pessoas sabem o que e como fazer sem, necessariamente, serem capazes de falar sobre os detalhes do que elas fazem. Isso não é falar que aqueles que são considerados próximos (ou até internos) devam ser considerados como ineficientes, mas sim, que o expectador interno não é suficiente para a compreensão de como um sistema funciona. (A visão interna, como é possível notar, é particularmente relevante para uma avaliação dos procedimentos justificáveis, um tema que será levantado no capítulo 5). Para lidar com esse problema, eu fiz o uso de uma participação antropológica como uma ferramenta explícita no intuito de dar ao investigador acesso ao conhecimento de como partejar, isso quer dizer, os comportamentos que cada participante assume como atores competentes das maneiras de realizar um nascimento dentro das práticas de um sistema específico. O segundo problema óbvio que deve ser evitado nas investigações desse tipo é a imposição gratuita das categorias próprias de cada sociedade (e nesse caso, em particular, das categorias médicas) para coleta de dados sobre o nascimento. Novamente, isso não é afirmar que as questões médicas são irrelevantes, mas meramente que essa imersão no fenômeno, e a participação no evento do nascimento, devem sugerir as características relevantes para análise e descrição. Por essa razão, eu propus uma participação antropológica como metodologia fundamental que, combinada com outros métodos, promete providenciar as bases para uma contextualização holística do processo de nascimento. Esse tipo de contextualização irá integrar a visão local e o significado do evento, seus comportamentos associados, e a relevância para questões entre os sistemas no que tange a conduta durante o nascimento. 17Minha noção particular de uma participação antropológica pode exigir uma clarificação maior.11 Eu digo, através de algo mais compreensível do que a presença física ou a participação nas atividades dos “nativos”. Primeiramente, meu interesse inicial refere-se ao nascimento não como um produto, mas sim, uma produção social; isso quer dizer que, a minha preocupação é com os participantes que fazem o nascimento acontecer, com a produção sensível e colaborativa do que os participantes definem como “o nascimento da maneira como o fazemos”. A partir desse interesse, surge uma orientação consistente, e tomando nota disso, sobre as características recorrentes dos nascimentos dentro de configurações particulares, os esforços verbais e não verbais que são alcançados durante a realização, por exemplo, de um nascimento em Yucatán e não, por assim dizer, de uma comida típica (apesar da comida ser consumida durante o processo), ou de uma seção onde histórias são contadas (embora elas também o sejam durante o processo). Meu interesse é em temas como as posições da mulher durante o trabalho de parto ou a divisão das tarefas entre as participantes durante esse momento, mas não, por assim dizer, em cuspir no chão (fato que ocorre em Yucatán) e a sua relação com a forma que eu encontrei o fenômeno, isto é, como a mulher que passou pelo fenômeno do nascimento dentro de diferentes configurações. Assim sendo, uma parte integral da minha participação foi a tomada de notas, a realização de perguntas, as comparações daquilo que eu concluí serem as características particulares de cada sistema de nascimento. A seguir, minha orientação é a realização do processo de nascimento pelos participantes.12 Com o termo “participantes” incluo todas as pessoas (sendo elas profissionais ou não profissionais, incluindo eu mesma) que estão comprometidas na tarefa comum de produzir um evento e torná-lo visível tanto quanto o trabalho que está à mão. Nos eventos de nascimento particulares dos quais essa investigação é baseada, às vezes, os participantes vinham de diferentes contextos culturais ou falavam línguas nativas distintas, ou ainda, alguns deles nunca estiveram presentes durante o processo de um nascimento enquanto outros auxiliaram eles mesmos durante um processo de nascimento/ testemunharam esse evento em várias 11 Essa formulação foi desenvolvida orgulhosamente junto com Nancy Fuller e foi utilizada em meus trabalhos subsequentes. 12 Minha definição de “participante” aqui está em débito, mas não equivalente, à noção de “membro” apresentada por Garfinkel e Sacks (1969: 116). 18 configurações ou, até, acompanharam um nascimento como especialistas profissionais. Esse fato não deve servir como motivação para o questionamento do status completo de alguém como participante, mas sim, deve ser visto como uma forma de providenciar recursos para a construção do nascimento como um evento local e sensível. Fatores como as instruções dos participantes sobre o que fazer em seguida, demonstrações corretas dos procedimentos, questões sobre como é feito em outros lugares, discussões sobre os benefícios de um jeito versus o outro, citações de autoridades e artigos, histórias sobre como algo foi realizado em um caso particular, constituem um dos métodos que os participantes usam no curso da condução de um nascimento. A diminuição do curso próprio de um evento aos olhos de um participante (entendido como um problema), providenciam uma ocasião para o reparo a partir de uma participação colaborativa dos mesmos, isso quer dizer, o reestabelecimento de uma ordem normativa. O trabalho de reparo, deste modo, proporciona um acesso àquilo que é visto como localmente normal, típico ou correto. Os empenhos terapêuticos dos participantes podem tanto ser verbais (“ele não deveria ter dado a ela essa dose”) quanto não verbal (como quando a parteira Maia moveu minha mão para a posição apropriada). Deve compreender-se que a minha análise é baseada na informação obtida a partir dos métodos utilizados pelos participantes. Uma prévia do livro Esse livro é organizado em suas sessões principais. A parte I introduz sobre a necessidade de uma análise biossocial e transcultural dos sistemas etno-obstétricos. O capítulo 2 apresenta uma descrição detalhada das práticas de nascimento de Yucatán, não apenas pelo fato de que o nascimento Maia é mais “exótico” do que os outros sistemas que eu estudei (entende-se como exótico o fato de que ele proporciona um maior contraste em relação ao sistema americano), mas também, pelo fato de que nenhum outro relato que existe na literatura conta com uma testemunha ocular indígena. O capítulo 3 compara os sistemas de nascimento nos termos dos conceitos biossociais analíticos, traçando não apenas a descrição Yucatán anterior, mas também o meu trabalho de campo nos Estados Unidos, na Holanda e na Suécia. 19 O capítulo 4 descreve a minha experiência no trabalho de campo e apresenta alguns dos métodos específicos de coleta de dados que eu utilizei para obter uma total compreensão da complexidade da interação humana acerca do nascimento. No capítulo 5, eu me esforcei para especificar as formas, dentro de cada sistema de nascimento, que o evento é organizado socialmente e culturalmente produzido. Eu também considerei as implicações dessa aproximação para uma melhor compreensão das mudanças presentes e observáveis das práticas de nascimento nos Estados Unidos, bem como as políticas de considerações relacionadas diretamente às mudanças nos países em desenvolvimento e em países desenvolvidos. A nova parte II desse livro introduz o macro conceito analítico do conhecimento autoritativo, apresentando estudos específicos acerca das formas como cada conhecimento autoritativo é construído e retratada como uma base para o poder legítimo de decisão durante o nascimento. O capítulo 6 analisa o alcance desse tipo de conhecimento em um ambiente hospitalar de alta tecnologia. O capitulo 7 descreve o conflito entre o conhecimento autoritativo baseado no modelo médico – que é apresentado em programas de treinamento patrocinados pelo governo – e o conhecimento experimental e adquirido das parteiras Maias de Yucatán. Por fim, o capítulo 8 conclui com uma análise dos efeitos mundiais da difusão do modelo tecnológico obstétrico ocidental na distribuição social do conhecimento autoritativo nos países em desenvolvimento. Capítulo 3: A Comparação Transcultural dos Sistemas de Nascimento Através de uma Análise Biossocial. A antiga descrição das mulheres Maias sobre as formas de dar à luz dá alguma indicação acerca das diversas variações do sistema de organização do parto. O nascimento na cultura Maia encontra-se, claramente, em contraste – não só em relação às práticas convencionais americanas, mas também - e frequentemente – aos sistemas sueco e holandês. Por mais que esses sistemas sejam estáveis, eles, geralmente, são vivenciados como uma apropriação. Interessantemente, a despeito da magnitude das diferenças entre esses sistemas, uma problemática que, especificamente, não ocorre a partir desses sistemas estáveis é o julgamento crítico e radical das práticas. Exames de autoconsciência indicam ser uma característica dos 20 sistemas que estão passando por mudanças, um ponto que será retornado para análise no capítulo 5.13 Como apontado por mim anteriormente, um sentimento de apropriação – e até mesmo um requerimento moral de revisão cara-a-cara das próprias práticas culturais de nascimento é normalmente compartilhado por todos os participantes: a mulher que está dandoà luz, sua família e os profissionais que estão prestando serviço a ela. Sendo assim, é possível considerar esse fator difícil de ser separado sem ser dada nenhuma configuração cultural do que é uma necessidade fisiológica e o que é uma produção cultural. Doña Juana 14, por exemplo, considera que romper a bolsa amniótica é algo perigoso e não natural. Enquanto isso, obstetras americanos consideram que essa mesma prática é útil e rotineiramente aconselhável no rol de suas concepções acerca da fisiologia no desenvolvimento do parto. Nenhum dos dois praticantes acima citados tem experiência com o método do qual não é aceito por eles. Ambos podem ter sentimentos de apreensão acerca do que deve ser feito e, dentro de seus próprios sistemas, realizar procedimentos distintos daqueles que já estão acostumados parece não ser o melhor em relação aos interesses do binômio mãe-bebê. Porém, dado ao fato de que as práticas de nascimento são tão rigidamente configuradas e que apresentam resistência à manipulação a partir de sua apropriação, a investigação transcultural oferece formas de clarear aquilo que não pode ser visto particularmente dentro de um sistema. Eu também apontei anteriormente que as variáveis utilizadas para a comparação nas investigações passadas tenderam a negligenciar a natureza biossocial do nascimento. Nós aproveitaríamos ao máximo a informação de uma comparação transcultural se incluíssemos não apenas os aspectos médico- fisiológicos do nascimento, mas também, os sociais e ecológicos – que são primordiais para considerar o nascimento, também, como um evento biossocial. Desenvolver um trabalho de campo nos Estados Unidos, na Holanda e na Suécia em acréscimo a Yucatán, me permite discutir nas próximas páginas alguns aspectos dos sistemas de nascimento que emergiram ao curso dessa investigação – tendo a forma holística como uma concepção significativa do nascimento. Esses aspectos, apesar de essenciais, são, certamente, insuficientes para alguma iniciativa; eles são 13 Indica que os sistemas estão começando a passar por mudanças no momento em que as pessoas param para pensar neles. 14 Dona Joana – Parteira de Yucatán citada no prefácio. 21 propostos como um entendimento inicial para uma visão mais compreensiva do nascimento. O nascimento nos Estados Unidos, Holanda e Suécia: uma visão geral Permitam-me resumir brevemente as características mais importantes dos sistemas americano e europeu. Fornecerei os detalhes nos pontos certos durante o desenvolvimento da discussão sobre cada sistema e suas configurações em particular. Nos Estados Unidos, 99% dos bebês nascem em hospitais. Um nascimento típico pode ser caracterizado através do atendimento realizado por um médico- obstetra e profissionalmente manuseado com orientações relacionadas com tecnologias médicas e métodos farmacológicos de alívio da dor. Concomitantemente, uma mulher que vai parir e dá entrada em um hospital é tratada como uma paciente. A partir do momento de sua admissão, o poder de decisão e a responsabilidade sobre sua situação são da equipe hospitalar e do médico em plantão. Quanto à Suécia e à Holanda, é importante manter em mente que ambos, por muitos anos, fizeram parte dos países com menor taxa de mortalidade relacionadas ao nascimento (veja ao lado15). O que eles compartilham para isso, é um atendimento pré-natal sistemático e a possibilidade de aborto em demanda, tendo como consequência que, por conta de todas as práticas propostas, todas as gestações e todos os bebês são desejados. Na Suécia, todos os nascimentos acontecem em hospitais e são acompanhados por obstetrizes altamente treinados/treinadas; Na Holanda, cerca de 55% dos nascimentos são domiciliares e também acompanhados por parteiras – tanto no caso dos nascimentos domiciliares quanto hospitalares16. A maior diferença entre os dois países em questão é o fato de que, na Suécia, sedativos e medicações para alívio de dor, indução e estimulação artificial de parto são 15 No caso dessa tradução, abaixo. 16 Atualização: Na Holanda a proporção de nascimentos domiciliares caiu – e cai continuamente – de 74% em 1958 para 35% em 1979, porém, essa tendência foi interrompida – portanto, em 1986 cerca de 36% dos nascimentos ainda ocorreram em domicílio (Kloosterman 1978, 1984; Tew e Damstra Wijmenga 1991:56). Atualmente, cerca de 43% dos nascimentos continuam sob os cuidados da/do obstetriz; 44% deles ocorrem em hospitais e 56% nos domicílios (Tew e Damstra Wijmenga 1991:56). O índice de mortalidade perinatal para os nascimentos holandeses acompanhados por uma/um obstetriz são os mais baixos do mundo – aproximadamente 2/1000 (Kitzinger 1988:236). 22 frequentemente usados – enquanto no sistema holandês a mãe, na maioria dos casos, não recebe nenhuma droga de nenhum tipo.17 Estatísticas sobre mortalidade: uma atualização. A mortalidade infantil inclui o número de mortes desde o nascimento até o primeiro ano de vida; deste modo, as estatísticas relacionadas à mortalidade infantil apresentam mortes não apenas relacionadas às causas durante o nascimento, mas também muitos outros fatores – tais como a falta de amamentação, doenças transmissíveis, má nutrição e abuso ou negligência por parte dos pais. Em 1979, a Suíça teve a menor taxa de mortalidade no mundo, com 7.5 mortes na infância (a cada 1000 nascimentos). Excluindo os países pequenos com poucos nascimentos, a menor taxa seguinte foi do Japão – de 7.9/1000, e da Holanda (8.9/1000). A taxa dos Estados Unidos – 13.8 em 1978 – foi substancialmente maior que uma dúzia de outros países. Em 1976, a taxa de mortalidade mexicana foi de 57.0/1000 – sem excluir a população de Yucatán (Organização Mundial de Saúde – [OMS] 1981). Em 1987, a taxa de mortalidade infantil para a Suíça foi de 5.7, para a Holanda, 7.6 e para os Estados Unidos (em 1986), 10.3 – segundo as Nações Unidas. Mortalidade Infantil Tardia: as Nações Unidas compilam informações acerca da mortalidade infantil tardia – mortes que ocorreram após a 28ª semana de gestação até o nascimento. Em 1985, a taxa para essa categoria foi de 5.9 para a Holanda, 11.1 para o México e 7.9 para os Estados Unidos – permanecendo atrasada em relação à outras quatorze nações, incluindo o Canadá (4.3), Chile (5.8), Japão (5.4) e a Austrália (4.6). Para a Suíça, essa taxa não pôde ser contabilizada e computada pois o número total de mortes infantis tardias foi menor do que mil. Morte neonatal inclui mortes desde o nascimento até vinte e nove dias incompletos. Em 1980, a taxa de mortalidade neonatal para a Holanda foi de 5.7; para 17 Aqui, eu falo acerca dos tipos de nascimento que são rotina na maioria dos hospitais-escola dos quais eu realizei meu trabalho de campo. Existem razões para crer que a maioria das mulheres americanas dão à luz sob condições similares àquelas que eu fui apresentada. Aqui especificamente, não estou interessada nos vários métodos alternativos que estão disponíveis a alguns segmentos da população – tais como o manejo natural do nascimento, programas de tratamento perinatal centrados na família, nascimentos domiciliares e outras características do tipo. 23 a Suíça, 4.9; para o México, 14.8 e para os Estados Unidos, 8.4 – colocando-o atrás de dezenove outros países na categoria “Mortalidade Neonatal”. (OMS 1983:15, tabela 4). Morte Perinatal, segundo sua primeira definição, refere-se às mortes fetais na 28ª semana de gestação ou mais, até às mortes infantis com menosde uma semana. Mortes Perinatais na década de 1980: Holanda, 9.8; Suíça, 7.3; Estados Unidos, 10.8 – essas taxas não estão disponíveis para o México (Nações Unidas, 1988). As estatísticas sobre morte perinatal nos Estados Unidos são coletadas pelo Centro Nacional de Estatística em Saúde18 (1988) e usam a segunda definição acerca dessa categoria: mortes fetais a partir da 20ª semana de gestação ou mais até 28 dias incompletos após o nascimento – deste modo, é possível considerar que essa definição possua características mais inclusivas do que a primeira definição da mesma categoria. As estatísticas dos Estados Unidos apresentaram uma melhora estável recentemente: em 1950 a taxa de morte perinatal (segundo a definição 2) foi de 39/1000; em 1960 de 34/1000; em 1970, 28.9/1000; em 1980, 17.5/1000 e em 1988 (o último ano que houve disponibilidade de informações), 13.8/1000. O número de mortes neonatais também diminuiu, de 20.5 em 1950 para 6.3 em 1988 (Centro Nacional de Estatística em Saúde 1988, Departamento de Comércio dos Estados Unidos19 1991). Porém, consistentemente, o país americano ficou defasado em relação à muitos outros países – incluindo alguns do Terceiro Mundo. Embora seja argumentado que, às vezes, a melhoria nessas taxas seja resultado do cuidado obstétrico, algumas outras pessoas pontuam que essas melhorias também resultam de outras – tais como nutrição, sanitização e padrões de sobrevivência. Para os negros norte-americanos, a taxa de mortalidade perinatal (segundo a Definição II) continuou em 17.7/1000 no ano de 1990. Características Biossociais do Nascimento Com este pequeno esboço como pano de fundo, eu quero examinar agora o número de características biossociais do nascimento – especificamente, a 18 National Center for Health Statistics. 19 United States Department of Commerce. 24 conceptualização do local, do evento em si, da preparação para o nascimento, os profissionais que atendem ao evento e o sistema de apoio, o território que o nascimento ocorre, o uso de medicação, a tecnologia do nascimento e o local cujo poder de decisão é realizado. Para tal comparação transcultural dos sistemas específicos e suas práticas, os recursos utilizados para a melhor compreensão dos aspectos das produções culturais do nascimento devem emergir. A definição cultural de nascimento: A maneira como a sociedade conceitua esse evento constitui o único e mais poderoso indicador da maneira geral de dar forma ao nascimento. Em todas as configurações, a definição dele é de importância fundamental pois informa a todos os participantes “quem”, o “que” e “como” ocorre o nascimento. Eu já falei antes sobre o fato de cada sociedade produzir uma configuração sistemática das práticas de nascimento, que são mutuamente dependentes e internamente consistentes. O que as faz possuírem as características anteriormente citadas, e além disso, serem moralmente corretas é a definição de cultura específica local, como por exemplo, um procedimento médico (nos Estados Unidos), ou, uma estressante, porém normal, parte da vida familiar (como em Yucatán), ou como um processo natural (na Holanda) ou como uma conquista intensamente pessoal (como no caso da Suécia). Essa visão local compartilhada do nascimento garante que, por conta disso, os participantes tenham ideias similares em relação do curso e do manejo do nascimento. Essa visão possui status ideológico, e por isso eu digo que isso serve como um guia para conduzir a rotina do trabalho em questão. Ao mesmo tempo, ela fornece os recursos para lidar com as intercorrências – ao providenciar as bases para justificar procedimentos obstétricos quando eles se tornam problemáticos. O último ponto é importante. A definição do evento a partir de um grupo se torna visível dentro das noções dos membros do que constitui justificação adequada para as práticas das quais eles se comprometem. Deste modo, por exemplo, a questão dos outros filhos da mulher serem autorizados a visitar a mãe e o novo irmão depois do nascimento ter tomado um rumo negativo dentro das bases médicas nos Estados 25 Unidos20, ou no caso de ser positivo na Europa, as respostas são geralmente “é claro” e “importante para a interação familiar”, enquanto isso, em Yucatán essa questão se torna se torna sentido a partir do momento que a mulher a mulher não abandona seu ambiente diário, cujo local as crianças mais velhas simplesmente retornam após o nascimento. Em geral, nós descobrimos que onde quer que seja a conceptualização do local de nascimento, ela direciona de forma poderosa dentro de qual fisiologia da parturição o manejo do nascimento é socialmente interpretado em um ambiente colaborativo e consensual. Ao mesmo tempo, ela determina e serve como justificação para, e complementarmente, a manifestação local invariante das características do nascimento, como o território, pessoas apropriadas e a alocação do poder de decisão. Assim, o que é desnecessário, natural e apropriado dentro do senso comum dentro de um sistema, pode ser completamente inapropriado e injustificável em outros. Nós descobrimos, por exemplo, a noção holandesa do nascimento como um evento natural opõe-se ao uso de medicamentos a mulheres que, em condições similares nos Estados Unidos, receberiam as drogas. É para a compreensão dessas questões que a comparação transcultural das características biossociais do processo de nascimento pretende falar. Desde que a maneira americana do nascimento emergiu como um padrão sedutor em aspiração para as nações em desenvolvimento, eu quero discutir em alguns detalhes a definição americana do evento e algumas de suas implicações. Nós notamos, antes de tudo, que nos Estados Unidos, o nascimento é esmagadoramente visto como um evento médico (maiores informações no quadro). Essa conceituação é consistente dentro do fato de que na sociedade contemporânea dos Estados Unidos, os processos fisiológicos, em geral, são culturalmente definidos como pertencentes do domínio médico. Dessa forma, nutrição, ajuste sexual, padrões de sono, oscilações de humor, obesidade, aprendizagem a partir das dificuldades, alcoolismo, uso de drogas, violência, morte e todos os tipos de “desvios” são considerados assuntos próprios da atenção médica. A inclusão da gravidez e da infância dentro da esfera médica tem um número de consequências, todas elas são pressupostas na transformação da mulher grávida 20 Atualização: Nos Estados Unidos, essa questão foi respondida de maneira majoritariamente negativa na década de 1980 e de 1990 como no conceito de “suporte familiar”. 26 como uma “paciente”. Como Parsons (1951) pontuou há muito tempo atrás, existe, na sociedade americana, uma gama de expectativas institucionalizadas relativas ao papel do doente possuem suporte por muitos participantes. Como uma paciente, a parturiente é, por uma extensão considerável, retirada de suas responsabilidades comum frente aos outros e a ela mesma; ela é definida como indefesa ao lidar com os problemas médicos em mão; e ela é obrigada a assistir as técnicas de ajuda à sua condição. Competência técnica, dentro desse contexto, é definido como expertise médica profissional – as recomendações e práticas de cada um, colocam o paciente em uma posição da qual ele é definido como “incompetente”. O papel do médico, que se articula com o papel do paciente doente, requer que o doutor/doutora coloque seu conhecimento técnico em prática (de doenças e de manejo da dor) para trabalhar no problema do paciente, enquantoo mesmo, de maneira recíproca, é esperado a confiança. Visão histórica do nascimento ocidental Uma breve visão dos desenvolvimentos que precedem a relativa recente predominância da medicina profissional no campo dos nascimentos pode ser instrutiva. Nós possuímos alguns arquivos dispersos de notório interesse médico nos problemas obstétricos da antiguidade (como Hipócrates no ano 5 depois de Cristo e Soranus no ano 2 depois de Cristo); Depois disso, o nascimento foi o domínio indisputado das parteiras por um milênio. As parteiras, nessa época, foram prováveis curandeiras tribais que não acompanhavam apenas nascimentos, mas, geralmente, ministravam nas necessidades em saúde de pessoas comuns (Ehrenreich and English 1973). O nascimento era, nessa época, claramente considerado como domínio feminino, essa definição do evento era, aparentemente, compartilhada por todos os membros da sociedade. Essa visão, sendo valiosa de nota, teve sanções religiosas e legais, como evidenciado pelo fato de um médico alemão que disfarçou a si mesmo de mulher para poder observar um nascimento. Ele foi pego e queimado no poste em Hamburgo, no ano de 1522 (Myles 1971:698). Parece que em toda a história, médicos homens não tinham vantagens de oferecer para a parturiente serviços superiores aos 27 das parteiras – e a mais remota ideia de ter um profissional homem acompanhando o parto era considerada não natural e imoral. Durante e depois o período de Renascença essa visão acerca do nascimento começou a mudar. A Europa estava se urbanizando; quanto mais e mais pessoas se mudavam para as cidades, longe do modelo personalizado de cuidado das parteiras de vilas, para um território de estranhos, hospitais começaram a ser construídos e dentro deles, médicos podiam observar milhares de nascimentos por ano e desenvolver técnicas padronizadas e ferramentas para o manejo do nascimento. Conforme médicos do sexo masculino ascenderam nesse ramo e começaram a adentrá-lo os mesmos desenvolveram um vasto número de objetos mecânicos para fins de intervenção. Por exemplo, uma versão primitiva do fórceps obstétrico foi inventado no século 16 ou 17 por um dos Chamberlens – uma família francesa-inglesa de diversos médicos que manteve a ferramenta em segredo de família por mais de um século. Um de seus descendentes vendeu-a para um colégio médico-farmacêutico em Amsterdã que, em troca, vendeu o fórceps em segredo a médicos licenciados. Muitos anos depois, o segredo foi revelado. Nesse tempo, foi descoberto que os doutores alemães venderam uma única e inutilizável lâmina (Hellman e Pritchard 1971: 1116f). Ainda naquela época, a técnica do fórceps se tornou uma técnica comum de médicos que, com a ajuda da ferramenta, puderam acompanhar nascimentos que estavam além do alcance da expertise das parteiras. Um desenvolvimento que contribuiu para a mudança da visão do nascimento foi a conquista da sepsis puerperal através de técnicas assépticas e sépticas desenvolvidas no decorrer do século. Isso é digno de nota que a febre do recém- nascido não foi um problema de maiores proporções através de grande parte da história. Só foi através do estabelecimento de hospitais institucionais e infestados de germes no século 18 que a febre do recém-nascido se tornou um massivo assassino de mulheres. Sua causa foi descoberta pelo médico austríaco Ignaz Philipp Semmelwiess. Ele descobriu, por volta do ano de 1840, que em seu hospital, a taxa de mortalidade por conta da febre puerperal era três vezes maior em mulheres que foram acompanhadas por médicos do que por parteiras. Quando um de seus colegas se cortou enquanto dissecava o corpo de uma mulher que faleceu por conta de enfermidade, e então, o mesmo apresentou sintomas da infecção fatal, Semmelweiss concluiu que as mãos dos médicos e dos estudantes de medicina transmitiam a 28 doença dos corpos que eles dissecavam para as mulheres que eles atendiam. Doutor Semmelweiss publicou ordens para a higienização consciente das mãos com desinfetante. A despeito de uma queda dramática da mortalidade materna ao passo que as suas instruções eram seguidas, suas ideias foram zombadas e seus avisos não foram seguidos até que o trabalho de Louis Pasteur e Joseph Lister providenciaram uma evidência científica para as observações de Semmelweiss – propriamente, os dois primeiros elaboraram uma teoria para a doença em questão. Ao início do século 20, métodos assépticos e não assépticos se tornaram parte do repertório médico. Foi somente nesse ponto que as parteiras não treinadas ficaram para trás dos médicos profissionais. Foi também nesse ponto que o status das parteiras nos Estados Unidos e da Europa começou a divergir. Nos Estados, como Barbara Ehrenreich e Deirdre English pontuaram, muitos estados decretaram leis proibindo a obstetrícia exercida pelas parteiras logo no início do século em questão (1973b: 33ff). Especificamente, as parteiras foram consideradas responsáveis pela prevalência da febre puerperal e oftalmia neonatal – cegueira causada por conta de gonorreia materna. Ambas as condições podem ser prevenidas por técnicas facilmente ensinadas e aprendidas: higienização das mãos para a febre puerperal e gotas de nitrato de prata para a cegueira. Na Europa, estes avanços científicos foram incorporados ao repertório de técnicas das parteiras. Nos Estados Unidos, por outro lado, nenhum esforço sistemático foi feito para atualizar a profissão por meio de treinamentos. As parteiras foram, de forma crescente, vistas como ignorantes e sujas. Dessa forma, o parto e o nascimento passou para a esfera médica e a obstetrícia exercida pelas parteiras sofreu um declínio que, somente nos dias atuais, começou a ser revertido. Dor e Manejo da dor. Dado o fato de que o alívio da dor é de responsabilidade – e também um privilégio – do ambiente hospitalar, a questão da dor do parto é de interesse maior do que apenas subjetivo e experiencial. De fato, isso surge como um fenômeno cuja relação com a conceptualização do sistema deve ser investigada. Parece ser o fato de que, existem algumas mulheres em determinadas sociedades que passam pela 29 experiência do parto sem sentir nenhuma dor. De longe, é claro que a dor é um fato reconhecido e esperado durante o parto e o nascimento em quase todas as sociedades. É particularmente claro que a noção de nascimento “primitivo” é mais fácil do que um nascimento “civilizado” é falsa (Freedman e Ferguson 1950). O que é de interesse aqui, de qualquer forma, não é o fato das mulheres passarem ou não pela experiência de dor, mas sim, em qual tipo de “objeto” a dor surge nos diferentes sistemas: ela é realçada ou descontada? Em qual tipo de ocasião sua ocorrência proporciona uma visão natural e inerente do sistema? Em suma, qual é o papel da dor ao fazer o nascimento como um evento visível e natural? Dentro desse contexto, é digno de nota que as mulheres americanas, que são atendidas pelos profissionais médicos dentro de uma tecnologia elaborada de alivio de dor, ainda assim, passam por um grande sofrimento. Há quase trinta anos atrás, Hardy e Javert (1949) se esforçaram para mensurar a intensidade da dor durante o parto entre as mulheres americanas. O método utilizado por eles consistiu em perguntar às mulheres em trabalho de parto para mensurarem as dores das contrações uterinas comparadas com a dor infligida simultaneamente em suas costas por radiação termal controlada. Quase todas as mulheres que ainda se encontravam em um estado de cooperação com a pesquisa durante o trabalho de parto relataram que a experiência caracterizava a intensidade máximade dor que elas já vivenciaram. 21 Mensurações à parte, a experiência de dor é observacionalmente mais visível na obstetrícia exercida nos Estados Unidos do que na Holanda, Suécia ou em Yucatán. Uma parteira/obstetriz inglesa que estava trabalhando na Holanda e que teve uma experiência tanto com o modelo médico (o Britânico) e o não medicalizado (o holandês) me marcou que as expectativas engendradas pela concepção local de nascimento influenciam o nível de dor durante a experiência. No sistema médico do qual o método de alívio de dor está disponível, mas a decisão administrada é feita pelo médico atendente, a mulher passa por grandes e medonhos empenhos para convencer o seu atendente acerca de suas necessidades de drogas para alívio de dor. Desde que objeto de alívio da dor não é acessível e nem possível, é de 21 A unidade de medida utilizada para esse experimento foi o dol. 3-5 dols constituem uma dor moderada; 5-7 dols uma dor severa; e 10.5 dols é o tipo de dor mais intenso que pode ser sentido. Aumentar a radiação termal mais do que a última medida citada pode não aumentar a percepção de dor. Um número maior do que 8 dols pode causar danos teciduais; 10.5 dols é comum logo após o nascimento e inflige em queimaduras de segundo grau. 30 responsabilidade da mulher produzir a sua própria visão da experiência; Ainda mais, desde que os atendentes são forçados (pela preocupação dos efeitos que as drogas podem proporcionar durante o trabalho de parto) a segurar o uso de medicações pela maior quantidade de tempo possível, o sistema tem um viés na construção das orientações tanto à mulher quanto aos atendentes em relação ao uso de medicações para a dor. Frequentemente, a mulher está primeiramente ansiosa e preocupada com a possibilidade de sentir dor, a mulher é orientada a esse processo desde o seu desconforto inicial e então é monitorada com o aumento da intensidade da dor. A interação com a equipe médica é dominada por relações de negociação em relação a dor. É de responsabilidade da mulher de antecipá-la e de avaliar o ponto em que a dor se torna intolerável, e dessa forma, ela pode convencer a equipe sobre suas necessidades em relação ao uso de medicação. A exposição necessária dessa necessidade não só tem como adição um alto nível de barulho e histeria no sistema obstétrico americano, como também providencia um poderoso parecer na experiência do aumento dos níveis de dor. Na Suécia, onde os analgésicos e anestésicos também são utilizados como métodos de alívio de dor, a necessidade de convencer a equipe médica sobre a necessidade de sua utilização não se faz presente. As mulheres suecas são informadas sobre todos os tipos de medicação que estão disponíveis, as condições sob as quais eles não são recomendados e os riscos e possibilidades conhecidos em relação ao bebê. A decisão sobre o que tomar, se tomar e quando tomar é da mulher. Consequentemente, elas podem focar a atenção no trabalho de parto, e enquanto a medicação é utilizada como parte da rotina, a atmosfera é calma e quieta, de intensa concentração enquanto o pânico vocal se dissipa. A conceptualização local do nascimento como uma conquista da mulher encontra sua expressão em como ocorre o manejo da dor no sistema sueco. Similarmente, enxergar o nascimento como um processo natural cria um viés do sistema holandês contra todos os tipos de interferência. Os participantes no sistema de nascimento sueco mantêm uma convicção profunda de que o corpo da mulher sabe o que é melhor para si e que, dada uma quantidade suficiente de tempo, a natureza seguirá o seu curso. Essa orientação é similar daquela dada às mulheres maia, que também tendem a tomar uma atitude de espera. Em contraste com a atmosfera de crise do sistema médico dos Estados Unidos, que se baseia na orientação da equipe médica de patologias críticas e um alto drama de cirurgias, nós 31 vemos que em um parto em Yucatán se dá um ambiente parcamente iluminado, minimamente separado da vida familiar e largamente manejado com recursos diários. Para as mulheres maias algum tipo de dor é esperado durante o processo de nascimento, da forma como ela é – uma parte aceita da vida e um processo em geral. Em Yucatán, nenhum esforço é feito para amedrontar a mulher durante o trabalho de parto através da proibição daquilo que inerentemente é seu. A dor aparece nas histórias que as mulheres contam sobre suas experiências de parto, mas essas histórias tornam claro que, durante o trabalho de parto, o stress é algo normal e depois de todo o seu sofrimento tudo irá voltar ao normal – assim como foi para outras mulheres. Indo ainda mais longe, a experiência do nascimento, especificamente o testemunho do marido durante o processo de dor da esposa se torna uma interação poderosa que exerce um maior papel no testemunho de cuidado do marido durante o período puerperal. (Cuidar, em Yucatán, é um eufemismo para o espaçamento de idade das crianças por conta do coito interrompido). Para os maias, então, a dor do parto e a coo experiência social da dor em si servem para tornar o parto como uma das ocasiões significativas na vida normal do ciclo de vida. No processo de manejo da dor, assim como no manejo de outros aspectos do processo de nascimento, nós notamos que a forma como o evento é conduzido reforça um grande valor social. 22 As características e os comportamentos considerados como desejáveis gerais na sociedade, assim como, trabalho árduo, estoicismo, expressão subjugada em relação aos sentimentos e emoções, são considerados igualmente desejáveis no processo de nascimento; Como um fato importância, esse é um evento potencialmente estressante e perigoso – e dá aos indivíduos a oportunidade de mostrar esse tipo de características em um fórum relativamente público. 22 Atualização: em sua comparação de percepção de dor dentre quatro grupos étnicos diferentes nos Estados Unidos, Janice Morse e Caroline Park (1988) mostraram que dois grupos, dos quais os membros não consideram o nascimento como um processo natural – os Anglo-Canadenses e os Indígenas do Leste – julgaram o nascimento como um processo muito doloroso. As mulheres desses dois grupos, também, apresentaram suas percepções durante o processo de nascimento, enquanto os outros dois grupos que veem o nascimento como parte da vida diária – os Hutteritas Agricultores e os Ucranianos – julgaram (e viveram) o nascimento como muito menos doloroso. 32 Preparação para o nascimento. O nascimento é um marco pontualmente fisiológico e cultural dentro de um processo contínuo, cujo o início é arbitrário e o seu fim pontuado. 23 De muitas maneiras, o momento do nascimento é meramente o clímax de um processo de desenvolvimento que começa no momento da concepção e depois disso. Isso vai ser de interesse de exame, na seção seguinte – a extensão das quais as concepções de um sistema específico do nascimento encontraram sua expressividade nos métodos locais de preparo da mulher para o curso e a experiência de parto e nascimento. Dentro de uma estrutura biossocial, dois tipos de considerações transculturais são importantes. A primeira concerne à natureza do processo de socialização pelo qual a mulher é introduzida ao seu sistema de nascimento cultural. Esse tópico requer um exame dos modos formais e informais de transmissão de informações. A segunda dimensão concerne ao conteúdo dessas instruções – o conhecimento substancial que é esperado por parte da mulher a ser adquirido, bem como a preparação física que também se espera
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