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1 CURSO: Letras DISCIPLINA: Português VIII CONTEUDISTAS: Ana Cláudia Machado Teixeira Luciana Sanchez Mendes Nadja Pattresi de Souza e Silva José Carlos Gonçalves Aula 6 – Pesquisa da Variação Sociolinguística Diastrática Meta Nesta aula, apresentamos a importância dos estudos da variação linguística diastrática que caracteriza diferentes formas produzidas por falantes de diferentes classes sociais. Complementarmente, tencionamos refletir sobre a relação variação padrão e variação não- padrão, uma vez que esse movimento de pressão de unificação e de diversificação é típico da dinâmica natural e do caráter heterogêneo da língua. Objetivos Esperamos que, após o estudo do conteúdo desta aula, você seja capaz de: 1. Compreender e relacionar heterogeneidade linguística com heterogeneidade social; 2. Reconhecer e identificar a variabilidade da língua como fenômeno natural, influenciada pelos usos sociais que os falantes fazem dela; 3. Refletir criticamente sobre o uso da língua como representante de diferentes subgrupos socioculturalmente distintos; 4. Constatar que os aspectos distintivos dos grupos sociais são condicionados por fatores como a idade, o sexo, a classe social, a profissão, o grau de escolaridade, entre outros. CEDERJ – CENTRO DE EDUCAÇÃO SUPERIOR A DISTÂNCIA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO 2 Introdução Na aula anterior, iniciamos a introdução afirmando que uma língua natural é como um sistema vivo e, por essa razão, se modifica, se matiza, se diversifica. Essa condição básica da língua está implicada na relação entre linguagem e sociedade. Seres humanos se comunicam, se relacionam e procuram ser expressivos em quaisquer contextos devido, sobretudo, à necessidade de serem ouvidos, estabelecerem uma troca, manterem uma relação. Nesta aula, caminhamos por uma via que identifica características da variação diastrática (do grego “dia” = através de + do radical latino “estrato” = camada). Essa via pode se desdobrar no plano fonético, como em “Craudia”, no plano lexical, por exemplo, “presunto” para identificar “corpo de uma pessoa assassinada” e no plano sintático, como em “nós vai”, variante de “nós vamos”. Ilustraremos, nesta aula, variações que se manifestam na fala de indivíduos marcando identitariamente grupos sociais e que, muitas vezes, são relacionadas à variedade não- padrão da língua. Na outra margem desse caminho, destacamos a polêmica da identificação da variante padrão, como representante oficial da língua da comunidade de fala. Leia um trecho da música “ConeCrewDiretoria” de Rap Cerva Erva & Muita Larica: Rany Money: Tranquilidade na nave, tamo suave a vontade Demoro, é só me chamar que tem rap até mais tarde Tem festa na laje e é só os amigo que invade E já que é só os amigos, hoje é só os amigos de verdade Quem fecha, fecha, quem não fecha, abraço Hoje é melhor até sair voado, porque quem não fecha vai pras frechas Me desculpa, esse é o papo Esse é o papo reto, mano, igual acordo de tráfico Mas sem caô, hoje eu só quero paz e amor 3 Um beck de Amsterdã? aham (...) Então vem meu mano, fala tu da missão Hoje tem 100 no bando, então vamo de busão INÍCIO DO BOX PARA SABER MAIS Para conhecer o grupo de rap, sua discografia e sua história acesse: https://pt.wikipedia.org/wiki/ConeCrewDiretoria FIM DO BOX Para este primeiro caso, recorremos ao estudo de Votre (2003, p. 51) que revela a relação entre a variável “nível de escolarização” como “correlata aos mecanismos de promoção ou resistência à mudança” e a dinâmica natural de expansão, adequação, mutabilidade ligadas à característica de continuidade e mudança típicas da língua. A partir do estudo de Votre, destacamos o binômio “forma de prestígio social e forma relativamente neutra”, “fenômeno imune à estigmatização e fenômeno socialmente estigmatizado”. Para a primeira, o autor destaca que o foco recai sobre o status econômico e o prestígio social dos falantes, já para a segunda, a atenção incide sobre o estigma social. Ambas estão relacionadas uma vez que podemos analisar a língua a partir dos dois enfoques paralelamente. É o que vemos a seguir, a partir do rap “ConeCrewDiretoria”. Inúmeros são os exemplos que podemos destacar dessa variável. No plano fonético, podemos comparar “demorô” com “demorou”, no plano lexical, “caô” com “mentira”, no plano sintático a marca de concordância entre “os amigo” com “os amigos”. Se, de um 4 lado, identificamos a marca de um grupo social, por outro, reconhecemos o nível de escolaridade representante desse mesmo grupo. Nesse caso, estaremos assumindo a heterogeneidade da língua como imbricada à heterogeneidade social. Na contramão dessa ideia, seguindo o movimento de estabilização e normatização, observamos dois desdobramentos: a questão do preconceito linguístico e a atuação da escola como reprodutora da norma. Pensar nesse último caso é tratar de um movimento atual e alvo de estudos, pesquisas e, também, de polêmicas que vão ao encontro do entendimento do espaço escolar apontado por Votre (2003) em termos de resistência à mudança e fenômeno imune à estigmatização. Para instigar ainda mais essa questão e tocar em um dos objetivos dessa aula, destacamos as variantes no nível fonético-fonológico “vamos” e “vamo” ou “cantar” e “cantá” em que a última, a princípio, era alvo de preconceito e discriminação, mas que hoje já se encontra praticamente disseminada em toda comunidade linguística do português do Brasil. Trata-se de um fenômeno muito conhecido da variação diacrônica estudada na aula 3 da língua chamado “apócope”, que designa a supressão de fonema no fim da palavra. Esse exemplo demonstra o caráter mutável da língua, bem como apresenta a ideia de que os movimentos de expansão e estabilização se apropriam de regras que já atuavam em tempos passados. Essa constante atualização do sistema por meio de determinada regra, então, nos motiva a refletir acerca de fatores não somente extralinguísticos como nível de escolaridade, classe social, gênero, mas também nos incentiva a refletir sobre a articulação do sistema fonético assim como os de ordem econômica, como a redundância. No caso da apócope, a supressão do “s” final, além de indicar/marcar a prevalência da paroxítona na língua portuguesa e o consequente apagamento da sílaba átona final, o apagamento é enfatizado pela redundância do plural como em “nós vamos” por “nós vamo”. No caso da apócope do fonema /R/, podemos citar o estudo de Oliveira (1997), que afirma que esse fenômeno é observado historicamente e tem ocorrido em outros idiomas vindos do latim: no francês, desapareceu quase todo /R/ em final de palavra, permanecendo 5 somente em monossílabos (como noir, air); no Sul da Espanha, o /R/ desapareceu em algumas palavras como ayer, caer em algumas regiões de Sevilha, Córdoba, Huelva, Cadiz e Málaga; na mudança do latim vulgar para o português, também houve a perda do fonema /R/ em algumas situações: persona para pessoa, por exemplo. Utilizar os estudos sociolinguísticos é investigar a linguagem relacionando-a a fatores sociais que distinguem diferentes comunidades de fala para a desconstrução da ideia de homogeneidade linguística. Tais estudos, por sua vez, ressaltam variação e mudança como inerentes às línguas, um fenômeno cultural motivado por fatores linguísticos e extralinguísticos. Dois outros fatores extralinguísticos relacionados à variação diastrática são geralmente explorados nos estudos sociolinguísticos, o gênero e a faixa etária do falante. Podemos utilizaro mesmo rap com que iniciamos esta aula para estudá-los. A partir da hipótese de que homens e mulheres falam de formas distintas seja em função do ritmo e do tom de voz seja pela preferência de certas estruturas, a relação sexo e linguagem é um tema bem discutido na sociolinguística quando se pensa em estratos sociais. A associação que, na maioria das vezes, se atribui é a de que falantes do sexo feminino tendem a utilizar a forma socialmente prestigiada. Segundo Paiva (2003, p. 33), as diferenças mais evidentes entre fala de homens e mulheres se destacam no plano lexical. A associação feita, num primeiro plano, é de que se segue uma regra na sociedade ocidental de que “não fica bem para uma garota falar dessa forma”. Caminhando por uma reflexão mais profunda dessa questão aparentemente preconceituosa, a autora destaca que, de alguma maneira, não se pode ignorar outro fator que ancora essa perspectiva, mesmo que, grosso modo, “a maior ou menor ocorrência de certas variantes, principalmente daquelas que envolvem o binômio forma padrão/forma não-padrão e o processo de implementação de mudanças esteja associada ao gênero/sexo do falante e à forma de construção social dos papéis feminino e masculino”. 6 De forma semelhante, a hipótese de que falantes com faixa etária intermediária e com idade mais avançada tendem a se filiar à variante de prestígio tem sido alvo de muitos estudos. Citando uma pesquisa acerca da concordância nominal, Scherre (1988, p. 427-8) diz que: “o ápice das formas de prestígio é encontrado nas faixas etárias intermediárias devido às pressões do mercado de trabalho”, isso em situações de variação estável. É importante ressaltar que a pesquisadora faz uma observação relativa ao processo de mudança do fenômeno pesquisado. Você deve se lembrar da aula 04, em que discutimos a diferença entre variação e mudança. Segundo Scherre, se o caso for de mudança, então os resultados com relação à faixa etária mostram uma distribuição inclinada com o peso distribuído nas duas pontas, ou seja, as formas inovadoras predominando entre os mais jovens e as formas conservadoras predominando entre os mais velhos, enquanto que os indivíduos da faixa etária intermediária podem demonstrar um comportamento linguístico mais ou menos neutro, ou seja, usam ambas as formas, tanto as conservadoras como as inovadoras. Com relação aos estudos que interligam três fatores sociais ou extralinguísticos (anos de escolarização, sexo e faixa etária), podemos citar o de Naro & Scherre (1998). Os autores assinalam que a concordância de número no português do Brasil exibe um caráter sistemático, apontando variantes explícitas e variante zero (Ø) de plural em elementos verbais e nominais. Os pesquisadores buscam correlacionar variáveis linguísticas (saliência fônica e posição) e sociais citadas acima. A partir desse grupo de fatores, o estudo explicitou que palavras/sílabas fonicamente mais acentuados (salientes) favorecem as marcas explícitas de plural, assim como os não nucleares à esquerda do núcleo do sintagma; ao passo que aqueles não nucleares à direita desfavorecem-nas. De outro lado, se os núcleos estiverem na mesma linha sintagmática, porém à direita da cadeia sintagmática, ou seja, ocuparem a primeira posição na sentença, favorecem mais marcas explícitas na construção sintática. As pessoas com mais anos de escolarização e as do sexo feminino apresentam mais a variante explícita. A associação feita por eles foi a seguinte: falantes com maior nível de escolarização estão diretamente mais expostos à correção gramatical, já o grupo do sexo feminino, como outras pesquisas já atestaram e ainda atestam, tendem a 7 não “transgredirem” as normas de prestígio; o último grupo, a variável faixa etária, apresenta um padrão ligeiramente curvilinear, de forma que quanto maior os anos de vida maior a probabilidade de produtividade profissional e, por isso, maior pressão para assumir as formas de prestígio. Outra linha de estudos geralmente relacionada à variação diastrática que, na verdade, é um desdobramento das questões sociais e da resistência à mudança é a dicotomia norma- padrão e não padrão. A primeira associada a uma prescrição muitas vezes retrógrada que desconsidera toda a organicidade natural da heterogeneidade linguística de que trata a segunda. Esse tópico será tratado na sequência das seções desta aula. INÍCIO DO BOX PARA SABER MAIS Vamos indicar alguns estudos desenvolvidos por pesquisadores do Brasil. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-44502007000300012 http://www.ai.mit.edu/projects/dm/bp/scherre94-number.pdf SIMÕES, D.: OSÓRIO, P.; MOLLICA, M. C. (Orgs.). Contribuição à Linguística no Brasil: um projeto de vida. Miscelânea em homenagem a Claudia Roncarati. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2015. Confira, nas referências bibliográficas, os dados do livro “Introdução à Sociolinguística: o tratamento da variação”, organizado pelas pesquisadoras Maria Cecília Mollica e Maria Luiza Braga. FIM DO BOXE Antes de passarmos para o outro tópico, que tal testarmos o conteúdo estudado até aqui? Vamos lá! 8 ATIVIDADE 01 Vamos voltar à letra do rap do pessoal do “Rap Cerva Erva & Muita Larica”. Esse grupo é formado por seis rapazes, do Rio de Janeiro, com idade entre 20 – 28 anos. A tarefa é buscar na letra da música palavras, expressões ou estruturas sintáticas que apontem variantes da fala dos componentes do grupo e, ao lado, indicar como essa mesma palavra, expressão ou estrutura é ensinada na escola. Após preencher a tabela abaixo, veja as respostas sugeridas em respostas comentadas. Variantes do rap Variante padrão, ou escolar 1) Tranquilidade na nave Está tudo calmo, sob controle 2) Tamos suave Estamos calmos e/ou normais Resposta comentada: A ideia é você compreender a atuação das forças de variedade e de estabilidade e como os grupos sociais, representados muitas vezes pelos músicos, artistas, esportistas, afirmam sua identidade, de um lado, e, como a escola atua na “resistência à mudança”. Vamos começar: 2. O padrão X o não padrão: o paradigma do preconceito Já que estamos pensando na relação entre variação linguística e fatores sociais, é importante retomar o tema do preconceito linguístico, que discutimos na aula 04. Isso porque, como já falamos, o julgamento que recai sobre uma ou outra forma de uso da língua é, antes de 9 tudo, fruto de uma forma de avaliação social mais ampla, direcionada para os falantes e sua origem social, cultural e econômica. Na área dos estudos linguísticos, essa postura preconceituosa tem muito a ver com a ideia que nós, falantes do português, temos a respeito do que seja “certo” ou “errado”. Ao longo de anos, durante toda a nossa formação educacional, ouvimos falar que, com o futuro do presente ou do pretérito, o pronome átono não deve aparecer nem antes nem depois do verbo, e sim no meio, no fenômeno de nome tão incomum quanto o seu próprio uso: a mesóclise, como em “dar-te-ei as estrelas” em vez de “te darei as estrelas”, por exemplo. Também fomos, e somos ainda, repetidamente instruídos a empregar apenas os pronomes átonos (o, a, os, as) para a função de complemento verbal, em objetos diretos, como em “eu o encontrei”, ainda que o uso cada vez mais frequente, inclusive, o de pessoas escolarizadas em situações de menor controle, seja “eu encontrei ele”. Sobre preconceito, linguistas e a língua que falamos, por Português é legal. 4:13 Preconceito Linguístico - entrevista com o autor Marcos Bagno, por FranciscoDarci Feitosa. 24:51 Prof. Evanildo Bechara no Programa do Jô [2002], por Razec Henriques. 30:22 10 Preconceito Linguístico - Marcos Bagno, por Vídeos diversos. 7:51 Prof. Evanildo Bechara no Programa do Jô [2008], por Razec Henriques. 16:57 Linguista Ataliba T. de Castilho no Programa do Jô, por editora Contexto. 22:23 Preconceito Linguístico - Marcos Bagno, por Joseanne Guedes. 3:57 TV Brasil - A língua falada e a língua escrita (24/05/2011), por Coisas na TV. 43:48 Entrevista - Evanildo Bechara, por TV Camara Rio. 37:53 11 D-17 - Norma culta e variedade linguística, por Univesp TV. 24:10 Marcos Bagno, O polêmico linguísta Parte 1por Thiago Silva. 13:13 01 - Variações linguísticas por Instrução Digital. 29:05 Esses e muitos outros casos que mais parecem contradizer do que confirmar a regra prevista nas gramáticas convencionais decorrem da visão que estas representam e reproduzem: a da chamada norma-padrão. Conforme nos esclarece Lucchesi (2001, p. 64), faz-se necessário pensar na ambiguidade do termo “norma”, do qual derivam dois adjetivos, “normativo” e “normal”. Do primeiro, “normativo”, vem a ideia da norma padrão como “um sistema ideal de valores que, não raro, é imposto dentro de uma comunidade”. Do segundo adjetivo, “normal”, temos a noção daquilo que é habitual, frequente, um costume para determinado grupo. Assumindo essa postura prescritiva, que busca dizer como devem ser e não como efetivamente os usos são, a gramática tradicional se coloca a serviço de um conceito de língua que não existe no uso, nem entre os grupos de falantes mais escolarizados. Uma das razões para isso, inclusive, resulta da confusão que a gramática acaba promovendo entre a língua e o padrão escrito literário a partir do qual apresenta as regras da língua. 12 Refletindo sobre o tema, Marcos Bagno (2007) chama a atenção para a importância de se diferenciar norma-padrão de norma culta, explicando que, apesar de serem usadas como sinônimos, são conceitos muito diferentes. A primeira, como dissemos, seria uma abstração imposta, uma tentativa ideológica de prescrever e controlar a natureza heterogênea e constitutiva da linguagem, ao passo que a segunda daria conta dos usos reais e possíveis que falantes mais escolarizados e representantes de grupos sociais de maior prestígio fazem da língua. O mesmo autor destaca a importância de não utilizarmos termos como “língua padrão”, “variedade padrão” ou “dialeto padrão”, pois “para se usar os termos ‘variedade’, ‘dialeto’ ou ‘língua’, é necessário que exista um conjunto de pessoas que realmente falem essa variedade, esse dialeto, essa língua. Ora, ninguém fala, efetivamente, o padrão, nem mesmo as pessoas altamente escolarizadas em situações de interação verbal extremamente formais. (BAGNO, 2007, p. 95-6). O termo norma culta, então, utilizado por autores como Dante Lucchesi e Rosa Virgínia Mattos e Silva, por exemplo, surge como uma possibilidade de lidar com o uso que se vê entre pessoas mais escolarizadas. Essa ocorrência se coloca ao lado, em termos de uso, da norma popular ou vernácula. A norma culta seria fruto da nossa história colonial em associação à língua herdada da metrópole portuguesa, conservada ao longo de séculos de formação do país pelos representantes da elite social brasileira em poucos centros urbanos. A vernácula, por outro lado, seria o português tal qual foi se forjando em contato com os índios, africanos e mestiços, a forma que predominava em grande parte do território brasileiro. Assim, caberia a constatação de que o português, entre a variedade linguística e a pressão por estabilidade, seriam, na verdade três, a norma-padrão, um modelo abstrato e ideológico; a norma culta e a norma popular ou vernácula. Refletindo, ainda, sobre a questão terminológica, Bagno (2007) propõe substituir os termos norma culta e norma popular ou vernácula por variedades prestigiadas e variedades estigmatizadas, respectivamente. 13 Essa proposta tem por fim evitar a pressuposição que se poderia extrair da expressão “norma culta”: se há uma norma ou normas cultas, haveria também normas que, por não representarem a cultural letrada e socialmente prestigiada, seriam desprovidas de legitimidade e representatividade cultural, o que indica mais um preconceito. Dessa forma, vemos que os termos sugeridos reforçam a ideia de que os julgamentos sobre os usos linguísticos são tanto mais pejorativos quanto menor o prestígio social e econômico dos seus falantes e vice-versa. Em outras palavras, a língua e suas variedades são avaliadas e mais ou menos estigmatizadas a depender da origem e da posição social de seus usuários. BOXE PARA SABER MAIS Para saber mais sobre esse assunto e a afirmativa de que o português, sem dúvida, não é apenas um, e sim dois ou, de forma mais abrangente, três e vários, sugerimos a leitura do livro de Rosa Virgínia Mattos e Silva, O português são dois, bem como do artigo de Dante Lucchesi, intitulado “Norma linguística e realidade social”. Você encontra as referências completas dessas e de outras obras importantes ao final desta aula, certo? FIM DO BOXE PARA SABER MAIS ATIVIDADE 02 O título da obra de Rosa Virgínia faz uma intertextualidade explícita com o poema de Carlos Drummond de Andrade, chamado “Aula de Português”. Leia o poema e, depois, proponha uma possível relação entre o texto de Drummond e a discussão sobre norma- padrão e as normas efetivamente usadas pelos falantes da língua. (10 linhas) 14 Aula de português A linguagem na ponta da língua, tão fácil de falar e de entender. A linguagem na superfície estrelada de letras, sabe lá o que ela quer dizer? Professor Carlos Góis, ele é quem sabe, e vai desmatando o amazonas de minha ignorância. Figuras de gramática, esquipáticas, atropelam-me, aturdem-me, sequestram-me. Já esqueci a língua em que comia, em que pedia para ir lá fora, em que levava e dava pontapé, a língua, breve língua entrecortada do namoro com a prima. O português são dois; o outro, mistério. Resposta comentada: No poema, percebemos um nítido contraste entre a língua ensinada na escola, cheia de regras, normas, personificadas pelo professor e gramático do século XX, Carlos Góis, que “atropelam” e “desmatam” a vivacidade, a riqueza e o dinamismo da língua que se usa no cotidiano, que se aprende naturalmente ao longo da vida, que serve às múltiplas atividades sociais de que fazemos parte. De certa forma, o falante, que 15 acompanhamos no poema, intui a enorme distância entre o que é apresentado e ensinado como o padrão da língua pela escola e pelas gramáticas e o uso efetivo que dela fazemos para uma multiplicidade de funções sociais, o que pode ser visto nas variedades da língua. FIM DA ATIVIDADE A seguir, vamos conhecer algumas pesquisas de base sociolinguística que estudam e descrevem variações diastráticas que, em geral, são alvo de forte preconceito, tanto no plano lexical quanto no fonético e sintático. 3. Variações e preconceito em níveis, o caso lexical Como já lembramos, a postura preconceituosa diante dos usos linguísticos está diretamente relacionada a fatores sociais que a condicionam como, por exemplo, a faixa etária, o gênero, o nível de escolaridade e a condição socioeconômica. Vamos refletir agora um pouco sobre a relação entre o nível lexical e a perspectiva social, que, muitas vezes, gera pontos de vista preconceituosos.Vamos pensar em duas pesquisas sobre o assunto, buscando relacionar as escolhas lexicais às suas motivações sociais e culturais, uma vez que, como já discutimos nas aulas anteriores, língua também é uma questão de identidade. E, nas palavras de Castilho (2010, p. 31), “é na língua que se manifestam os traços mais profundos do que somos, de como pensamos o mundo, de como nos dirigimos ao outro”. Considerando o fator faixa etário associado à condição socioeconômica, Baronas e Oliveira (2011) investigam as falas de um grupo de seis adolescentes, de uma classe social desprivilegiada, estudantes de uma escola que visa à formação profissional em Londrina. No grupo total de seis alunos, havia três meninos e três meninas. Um dos meninos já estava no mercado de trabalho e uma das meninas já havia cumprido medidas socioeducativas. 16 Além de traços fonéticos, as pesquisadoras verificaram a presença de gírias relacionadas ao grupo de jovens. Ao falar de suas experiências de vida e preferências musicais, por exemplo, as gírias apareceram na fala de todos os meninos, que utilizaram palavras e expressões como “tá ligado”, “cara”, “curto”, “meu”. VERBETE Gíria: “A gíria é uma linguagem particular e familiar que utilizam entre si os membros de um determinado grupo social. [...] pode ser difícil de entender para aqueles que não façam parte da dita comunidade.” (Fonte: <http://conceito.de/giria>. Acesso em: 04 de jul. de 2016) FIM DO VERBETE Ainda assim, gírias como “meu”, “tipo”, “tá ligado”, “sussa” (sossegado) e “mina” (garota) também foram encontradas na fala de uma das meninas entrevistadas. Essa jovem foi caracterizada, na pesquisa, pelo seu comportamento similar ao de um menino, inclusive, em sua forma de falar com o emprego das gírias, o que não se viu entre as outras meninas. Em outro momento da pesquisa, as autoras chamam a atenção para o fato de que essa jovem indica, também pelo uso de palavrões em sua fala, a oscilação entre diferentes identidades que reclama para si: a de jovem infratora, a de menina que se assemelha a um menino, a de aluna, o que aponta para a necessidade de se afirmar e se constituir como sujeito. As pesquisadoras também destacam a fala do rapaz já inserido no mercado de trabalho, que faz escolhas lexicais mais próximas às da norma padrão e também típicas do universo discursivo do mundo do trabalho. Ao ser indagado sobre seus planos para o futuro, o jovem responde (op. cit., p. 203): “Primeiro, quero passar no vestibular pra jornalismo, me formar, me firmar, quem sabe trabalhar como representante internacional de uma emissora importante... Hoje, diante da emergência do mercado, além do feedback, tem que gostar daquilo que se faz para ser um bom profissional e bem na carreira, eu quero isso e vou ser bom nisso e depois conhecer o mundo!”. 17 Entre as outras meninas entrevistadas, várias marcas que são convencionalmente associadas ao falar feminino apareceram, tais como o uso de diminutivo e a expressão de carinho e afeto por meio de certas escolhas lexicais. Quando falam de suas preferências musicais e também de seus projetos futuros (op. cit., p. 204), elas dizem: “Ouço sempre Victor e Leo. Amo eles. São lindinhos, né?” e “Penso em viaja pra aqueles lugarzinho bem bonitinho que aparece na novela, sabe?” Ainda que, segundo as pesquisadoras, o estudo esteja em fase inicial, é possível observar a relação entre língua e identidade, e entre as escolhas lexicais e o lugar que cada um ocupa ou deseja ocupar no mundo. Isso pode e deve ser levado em consideração, numa perspectiva livre de avaliações e preconceitos, como uma diretriz para a compreensão do universo dos jovens, sobretudo, aqueles que provêm de grupos sociais de menor prestígio. Outra pesquisa recente, relacionada ao Atlas Linguístico-Etnográfico da Região Sul do Brasil (ALERS), é a de Pinho e Margotti (2009) sobre as formas de se denominar “diabo”, do campo temático crenças e religiões, na região Sul do Brasil, destacando-se o grau de variação observada de acordo com as regiões mais ou menos rurais ou urbanas. BOXE PARA SABER MAIS O Atlas Linguístico-Etnográfico da Região Sul do Brasil, ALERS, foi lançado em 2002 e se caracteriza por ser um projeto interinstitucional, executado com o apoio do CNPq, FINEP, FAPERGS e das três universidades federais envolvidas, a do Rio Grande do Sul (UFRGS), a de Santa Catarina (UFSC) e do Paraná (UFPR). A coordenação geral do ALERS encontra-se, desde seu início, no Instituto de Letras da UFRGS, onde são reunidos os dados dos três Estados e elaboradas a cartografia, editoração e publicação do Atlas. Entre suas principais metas e contribuições estão o conhecimento mais abrangente da realidade sociocultural e linguística do Sul do país, sobretudo no que diz respeito aos estudos de "variação e mudança linguística" e de "bilinguismo e línguas em contato". Além 18 disso, apresenta subsídios importantes para questões centrais como a melhoria do ensino de línguas, a história de ocupação do território, o pluralismo étnico-cultural e a política linguística e educacional. (Fonte:<http://www.ufrgs.br/setordealemao/projetos_pesquisa/cleo_vilson_altenhofen/atlas _linguistico.htm>. Acesso em: 19 de dez. 2015.) FIM DO BOXE PARA SABER MAIS As perguntas que nortearam a pesquisa foram: “Deus está no céu e no inferno está o...?” e “Que outros nomes dão para ele?”. Além das conclusões relacionadas à distribuição diatópica das variações para o vocábulo estudado, os pesquisadores chegaram a alguns resultados relacionados à dimensão social das variantes na região Sul, sobretudo em Santa Catarina. A observação das variantes nesse estado torna-se relevante porque ele é considerado como um local de transição entre as áreas linguísticas do Paraná e do Rio Grande do Sul. Em seis municípios urbanos de Santa Catarina (Blumenau, Chapecó, Criciúma, Florianópolis, Joinville e Lages), três informantes foram entrevistados: um com o Ensino Médio, outro com um nível de escolaridade entre o 6º e o 9º ano do Ensino Fundamental e um analfabeto. Para a primeira pergunta, não se observou grande influência do nível de escolaridade para o uso da variante, que foi, em geral, a mesma: diabo. Já para a segunda pergunta, um número maior de variantes foi visto. Ao contrário do que seria de se esperar (os sujeitos mais escolarizados empregariam as formas mais próximas do português padrão; e os menos escolarizados, os regionalismos), essa não foi a tendência observada. Ainda que ressaltem a necessidade de um estudo mais aprofundado, com maior número de dados, os pesquisadores apontam que “em Joinville e em Blumenau, os informantes mais escolarizados e os analfabetos forneceram as mesmas variantes, demônio e capeta, respectivamente. E os medianos o vocábulo diabo. Já em Lages, a variante santa fé, que não 19 é padrão no contexto urbano, foi utilizada pelo informante mais escolarizado”. (op. cit., p. 60). Em resumo, de forma geral, os pesquisadores concluíram que a fala nas áreas urbanas se mostra mais padronizada que a nas zonas rurais, onde o isolamento geográfico e um menor grau de escolaridade tendem a propiciar um uso mais amplo de regionalismos lexicais que se associam às características culturais das diferentes regiões. Vejamos essa tendência na tabela-resumo abaixo: Tabela adaptada de Pinho e Margotti (2009, p. 58) Área Rural Área Urbana “Deus está no céu e no inferno está o...?” Variante N° de ocorrência “Deus está no céu e no inferno está o...?” Variante N° de ocorrência diabo 57 diabo15 “demonho” 8 demônio 1 Satanás 3 “demonho” 1 Demônio 2 “saci” 1 Capeta 2 Lúcifer 1 Bichinho 1 demo 1 “Que outros nomes dão para ele?” Variante N° da ocorrência “Que outros nomes dão para ele?” Variante N° da ocorrência “demonho” 19 Demônio 4 satanás 13 Capeta 4 demônio 12 Diabo 3 capeta 12 Satanás 2 diabo 11 “demonho” 1 “temonho” 1 Chifrudo 1 “coisa ruim” 1 “timbinga” 1 20 guampudo 1 “coisa ruim” 1 “o coisa” 1 Santa fé 1 serelete 1 curisco 1 Judá 1 BOXE PARA SABER MAIS Para saber mais, leia os dois artigos das pesquisas aqui mencionadas. Observe também as referências citadas pelos pesquisadores. Elas indicarão ainda mais possibilidades de compreensão do fenômeno da variação linguística associada aos seus condicionantes sociais. Você pode encontrar as informações sobre os artigos no final desta aula. Mãos à obra! FIM DO BOXE PARA SABER MAIS ATIVIDADE 03 Tendo em vista o uso do léxico em sua região e entre diferentes grupos de pessoas, procure investigar a variação possível para o conceito de “pessoa que é extremamente econômica e/ou não gosta de gastar dinheiro”. Tente realizar o levantamento cruzando diferentes fatores e observando de que forma cada qual interfere na escolha lexical dos falantes. Entre os condicionantes que você pode considerar estão a faixa etária, o nível de escolaridade, a origem social e o sexo dos informantes, por exemplo. Bom trabalho! (10 linhas) Resposta comentada: O objetivo é que você possa observar casos de variação lexical para o conceito dado em associação a condicionantes sociais, verificando que, independentemente das possibilidades, todos os usos cumprem seu papel comunicacional e interacional em língua portuguesa. 21 4. Variações e preconceito em níveis, o caso fonético A fim de ilustrar a variação fonética e recentes pesquisas a ela relacionadas, trataremos de dois fenômenos: a palatalização das consoantes dental-alveolares (“t” e “d”) quando precedidas da vogal alta “i”, e também a da realização do “r” em posição de coda silábica, já que ambos os fenômenos são, frequentemente, alvo de estigma e preconceito social e linguístico. BOXE PARA SABER MAIS Neste ponto, é importante que você se lembre do curso de Fonética e Fonologia. Além da descrição dos fonemas, vale destacar sua posição nas sílabas em língua portuguesa. O termo “coda” silábica diz respeito ao uso da consoante em posição pós-nuclear dentro de uma sílaba, ou seja, após a vogal, tal como o “r” em “mar” e em “perfeito”, por exemplo. FIM DO BOXE PARA SABER MAIS Vamos começar pelo caso da palatização de “t” e “d” depois das vogais “i”. Essa ocorrência costuma ser comum em regiões do Nordeste e, em pesquisa de 2008, Santos e Mota estudaram o fenômeno em três capitais nordestinas (Salvador, Maceió e Aracaju) a partir de dados do Atlas Linguístico Brasileiro (ALiB), obra da qual já falamos na aula 05. Em palavras como “muito” e “doido”, é comum que as consoantes sofram palatização, passando a [tʃ] e [dʃ], em pronúncias como “muntcho” e “dodjo”, quando são denominadas africadas baianas. Os informantes foram distribuídos em dois grupos, segundo a faixa etária (a primeira de 18 a 30 anos, e a segunda de 50 a 65 anos), segundo o sexo e o nível de escolaridade (fundamental e universitário). Partindo do princípio de que as variações não são aleatórias, observaram-se elementos linguísticos e extralinguísticos que poderiam interferir na pronúncia dental-alveolar ou palatalizada das consoantes. Entre os primeiros, estavam, por exemplo, fatores como o vozeamento da consoante, a vogal da sílaba antecedente, a classe 22 morfológica do vocábulo e o tipo de oração; já entre os segundos, a diatopia, a escolaridade, o gênero e a faixa etária do informante. Entre os resultados, verificou-se que Maceió concentra o maior número de casos de palatalização, sobretudo entre os informantes da segunda faixa etária, isto é, os mais velhos. Percebeu-se que também em Aracaju os mais velhos tendem à palatalização, ao passo que, em Salvador, a tendência é que os mais jovens apresentem esse comportamento. O gênero masculino e feminino não foi relevante para a alteração dos resultados, mas o fator escolaridade revelou diferentes resultados de acordo com a capital. Em Maceió, não houve diferenças entre o grupo do ensino fundamental e o do ensino superior, ao passo que, em Aracaju e Salvador, os informantes de nível fundamental apresentaram mais variantes palatalizadas. Entre os fatores linguísticos enfocados, o tipo de oração se mostrou relevante no recorte observado. Viu-se que, em orações exclamativas, a palatalização das consoantes “t” e “d” foi mais frequente que em orações não exclamativas. Um exemplo seria a frase exclamativa “Eitcha, você está dodjo!”. (op.cit., p. 4). Outra pesquisa recente, datada de 2014, dedicou-se ao estudo do “r” e suas variações em final de sílaba, associado à sua avaliação social e cultural por falantes universitários da região de Jacarezinho, Paraná. Na pesquisa, foram ouvidos quatro falantes do Curso de Letras da Universidade Estadual do Norte do Paraná, campus Jacarezinho, entre os quais dois professores, um homem e uma mulher, e dois estudantes do primeiro ano, também um homem e uma mulher. Considerando que todos eram naturais do Jacarezinho, cidade do interior do Paraná em que a pronúncia do “r” caipira predomina, buscou-se descrever, a partir de diferentes questionários, qual era a tendência de pronúncia do “r” no grupo estudado, bem como sua 23 avaliação e crenças sobre o falar típico da região. Entre as pronúncias possíveis, relacionaram-se: o retroflexo, [ɹ]; o tepe, [ɾ]; o velar, [Χ], o apagamento [Ø] e o R rótico (típico da fala caipira em início de frase). Entre os principais resultados, verificou-se que, dos quatro informantes, a mulher e professora universitária (informante A), que realizou especialização fora do país e já residiu em Curitiba e Rio de Janeiro, esforçou-se para monitorar a pronúncia do “r” retroflexo, realizando-o, quase sempre, como o velar. Entre os demais informantes, percebeu-se a tendência ao “r” retroflexo ou, em alguns casos, ao apagamento da consoante, o que também sinalizava certo grau de monitoramento em sua fala. Quanto à avaliação dos informantes a respeito da fala local, também se notou, no discurso da informante A, uma tendência a um olhar qualitativo e negativo acerca da realização do “r” retroflexo, que ela associa a um falar “feio” ou “menos culto”. Ela própria relata, ainda, durante a obtenção dos dados da pesquisa, ter sido reprimida, quando criança, por seus avós, para que evitasse tal pronúncia. Entre os outros informantes, houve certa variação nas respostas, mas, em geral, também se reforçaram ideias cristalizadas e preconceituosas, como a de que os falantes mais velhos é que usam a gramática da língua corretamente, por exemplo, e a de que existe um falar “melhor” em oposição a um “pior”. Ao final do estudo, destaca-se a relevância de se investigarem as crenças que se têm sobre o uso e a variação linguística, pois esse conhecimento serve de base para um ensino mais democrático e proveitoso. Além disso, permite a professores e alunos lidar, de forma menos preconceituosa, com as possibilidades igualmente legítimas de uso da língua, que também funcionam como marcas identitárias dos grupos a que se vinculam. BOXE PARA SABER MAIS Quer saber mais? Leia os dois artigos aqui mencionados e conheça mais detalhes sobre os dados e a metodologiada pesquisa sociolinguística. As informações sobre os textos estão nas referências. 24 FIM DO BOXE PARA SABER MAIS ATIVIDADE 04 Nos respectivos estudos de Dias (2014) e de Santos e Mota (2008), qual foi a influência do fator escolaridade na variação da pronúncia da consoante lateral “r” e também na palatalização das consoantes dental-alveolares? (10 linhas) Resposta comentada: No estudo de Dias (2014), observou-se que, em diferentes graus, houve a tendência a um maior monitoramento/controle da variante retroflexa, socialmente estigmatizada e típica da região do Jacarezinho, local da pesquisa. Uma das informantes procurou realizá-lo como um “r” velar, comum na região do Rio de Janeiro, por exemplo, ao passo que outros o apagaram em algumas situações. Já no estudo de Santos e Mota (2008), a variável escolaridade não alterou a tendência à palatalização de “t” e “d” depois da vogal alta em Maceió, ao passo que um menor grau de escolaridade foi relacionado a uma maior tendência à palatalização das consoantes dental-alveolares em Aracaju e Salvador. 5. Variações e preconceito em níveis, o caso sintático Resta, agora, observar como a variação diastrática se manifesta no plano sintático com mais detalhes. Já falamos, no início desta aula, sobre o caso da variação na concordância nominal e verbal no português brasileiro, que oscila entre o polo da variação e da mudança. Que tal pensarmos agora em outro fenômeno cada vez mais comum no português do Brasil: o caso da flutuação entre “nós” e “a gente”, bem como a alternância que pode ser observada quanto à concordância verbal nesse mesmo contexto? Em exame comparativo entre duas capitais nordestinas, João Pessoa e Teresina, Ferreira e Cardoso (2008) estudaram, com base nos dados do ALiB, grupos de informantes em 25 diferentes faixas etárias e níveis de escolaridade: um de 18 a 35 anos e outro de 50 a 65 anos; um com o nível fundamental e outro com o nível universitário. Para fins de comparação, as pesquisadoras também consultaram gramáticas e livros didáticos e verificaram que, apesar do seu emprego corrente no português, a descrição de a gente como uma possibilidade de substituição para a primeira pessoa do plural não aparece na maioria das obras. Os resultados da pesquisa revelaram que, em ambas as cidades, houve maior ocorrência da variante a gente na função sujeito. De forma geral, em relação à idade dos informantes, houve ligeira predominância do uso de “nós” pelos mais velhos. Já quanto ao empego de “a gente”, houve maior equilíbrio entre as faixas etárias em João Pessoa, e um uso bem mais frequente entre os jovens em Teresina. Com relação ao grau de escolaridade, o uso de “a gente” predominou entre os informantes do nível fundamental em Teresina e, em João Pessoa, o uso de “a gente” prevaleceu tanto no nível fundamental quanto no universitário. O fator sexo parece não ter sido relevante para o uso de uma ou outra forma nas duas cidades. Em outro trabalho, realizado por Souza e Botassini em 2009, podemos obter mais dados relacionados à alternância das duas formas no português do Brasil, estudado no estado de São Paulo. Para o exame da variável dependente “representação da primeira pessoa do plural”, o estudo levou em conta a faixa etária dos falantes, divididos em dois grupos (de 18 a 30 anos, e de 50 a 65 anos) e o sexo, masculino e feminino. Quanto à escolaridade, todos os falantes apresentavam o quinto ano do nível fundamental. As autoras partem da explicação sobre a gramaticalização do termo “a gente”, que, de uma locução nominal plena passou a ser considerado um pronome de sentido indeterminador. Como tal, assumiu funções específicas na língua, substituindo o pronome “nós”, por exemplo, mas mantendo a mesma concordância gramatical de um elemento de terceira pessoa. 26 BOXE PARA SABER MAIS: Você deve se lembrar do conceito de gramaticalização, não é? Para refrescar a memória, reveja e revise a aula 7 deste curso, intitulada “Gramaticalização e mudança linguística”. FIM DO BOXE PARA SABER MAIS: As autoras constatam que, apesar de a tradição gramatical ainda apresentar os seis pronomes (eu, tu, ele, nós, vós, eles), o uso linguístico revela a coexistência das formas “nós” e “a gente” para a primeira pessoa do plural, inclusive no uso de falantes considerados mais cultos. Apesar de a alternância já não ser alvo de muita estigmatização social, os resultados também apontaram para a mistura, socialmente estigmatizada, da concordância com tais variantes: “a gente vamos” e “nós vai”. Do total de ocorrências investigadas (230 casos), as pesquisadoras encontraram 51 casos de “nós” com verbo em terceira pessoa do singular e três casos de “a gente” com verbos terminados em -mos, como em “Nóis fica em casa...” e “Aí tem uma prainha lá, tudo, a gente ficamo lá,...”, respectivamente. (op. cit., p. 4). A ocorrência do tipo “a gente vamos” poderia ser interpretada como um caso de hipercorreção, em que o falante percebe a noção de plural em “a gente” e faz a concordância plural no verbo. Já a concordância do tipo “nós vai” poderia ser interpretada como uma questão de economia, pelo fato de o falante já usar e perceber a marca de plural no pronome “nós” sem que tenha que aplicá-la também ao verbo. Isso também estaria de acordo com a simplificação do quadro de conjugação verbal que parece estar em curso no português brasileiro. A tabela abaixo, adaptada de Duarte (1993 apud Souza e Botassini, 2009, p.5), ilustra esse percurso: 27 PESSOA NÚMERO PARADIGMA 1 PARADIGMA 2 PARADIGMA 3 1ª EU singular cant-o cant-o cant-o 2ª TU singular canta-s ---------------- ---------------- 2ª VOCÊ singular canta-0 canta-0 canta-0 3ª ELE/ELA singular canta-0 canta-0 canta-0 1ª NÓS plural canta-mos canta-mos canta-0 2ª VÓS plural canta-is ----------------- ----------------- 2ª VOCÊS plural canta-m canta-m canta-m 3ª ELES/ELAS plural canta-m canta-m canta-m A evolução do quadro flexional em português brasileiro – Tabela adaptada de Duarte (1993 apud Souza e Botassini, 2009, p. 5) A tabela mostra que, de um quadro de seis formas pronominais, passa-se a um quadro em que “tu” e “vós” desaparecem, e permanecem, para a segunda pessoa, “você” e “vocês”, com a concordância equivalente a “ele”/”ela”, ao lado de “eu”, “nós” e “eles”. Esse conjunto parece estar em concorrência com um ainda mais simples, em que “nós” cede lugar a “a gente” e a concordância verbal passa a apenas três formas: primeira pessoa do singular e terceira pessoa do singular e do plural. Em relação aos outros resultados da pesquisa, percebeu-se que tanto homens quanto mulheres empregam a forma mais inovadora “a gente”, ainda que sua maior ocorrência esteja entre as mulheres. Quanto às duas faixas etárias estudadas, ao contrário de estudos mais antigos em que se associava o uso mais tradicional aos mais velhos, o uso de “nós” e de “a gente” se mostrou bastante frequente entre os dois grupos, o que parece indicar um caso de variação estável e não de mudança em curso para o contexto específico estudado. BOXE PARA SABER MAIS: Não deixe de ler os textos citados para aprofundar os seus conhecimentos sobre o assunto. Confira os dados completos nas referências. FIM DO BOXE PARA SABER MAIS 28 ATIVIDADE 05 Do ponto de vista sociolinguístico, como devemos entender as variantes lexicais, fonéticas e sintáticas relacionadas a fatores sociais? (10 linhas) Resposta comentada: Com base nas pesquisas sociolinguísticas, entendemos que todos os usos que os falantes fazemda língua não são caóticos, e sim sistemáticos, previstos pelo próprio funcionamento da língua, que, pelo seu dinamismo, interage e sofre influências de aspectos internos e externos ao sistema. Embora todos os usos sejam legítimos, há casos em que as variantes lexicais, fonética e/ou sintáticas acabam sendo alvo de julgamentos e avaliações qualitativas, o que gera preconceito linguístico. Como vimos, isso resulta, na maioria das vezes, de questões sociais e econômicas mais amplas que acabam sendo transferidas para o uso linguístico que determinados grupos apresentam. Como a língua é cultura e identidade, é importante não assumir uma postura discriminatória, e sim descritiva e interpretativa, assim como as pesquisas aqui relacionadas, a fim de que possamos compreender os fatores tanto linguísticos quanto extralinguísticos que condicionam as variações e impulsionam as mudanças na língua. Para a próxima Aula Nesta aula, você estudou a variação sociolinguística diastrática, observando como as questões identitárias fazem parte de uma língua natural. Para fazermos isso, trouxemos algumas pesquisas da sociolinguística a fim de compreendermos como os estudiosos dão tratamento a língua em uso. Ao abordamos a polarização da variação padrão e não padrão, pudemos refletir sobre os apagamentos das identidades inscritas na língua natural que são realizados para se atingir uma abstração ideológica. Na aula seguinte, vamos estudar as variantes socioculturais e nos ateremos mais detidamente aos fatores relacionados a elas. 29 Referências bibliográficas: BAGNO, Marcos. Nada na língua é por acaso: por uma pedagogia da variação linguística. São Paulo: Parábola, 2007. BARONAS, Joyce Elaine de Almeida; OLIVEIRA, Elaine Vitorino de Moura. A identidade adolescente e a variação linguística. Polifonia, Cuiabá, MT, v. 18, n. 23, p. 193- 208, jan./jun. 2011. DIAS, Luiz Antonio Xavier. Crenças e atitudes linguísticas no uso dos róticos de professores e professorandos de Jacarezinho – PR. Entrepalavras, Fortaleza, ano 4, v. 4, n. 2, p. 90-104, jul./dez. 2014. FERREIRA, Viviane de Jesus Ferreira; CARDOSO, Suzana Alice Marcelino da Silva. Os pronomes pessoais-sujeito no português do Brasil: nós e a gente segundo os dados do Projeto Atlas Linguístico do Brasil. III Seminário de Pesquisa em Estudos Linguísticos, v. 3, n.1, 2008. LUCCHESI, Dante. Norma linguística e realidade social. In: BAGNO, Marcos (Org.). Linguística da norma. São Paulo: Loyola, 2002. MOLLICA, Maria Cecília; BRAGA, Maria Luiza (Orgs.). Introdução à sociolinguística: o tratamento da variação. São Paulo: Contexto, 2003. OLIVEIRA, Marta Kohl. Vygotsky: aprendizado e desenvolvimento um processo sócio- histórico. São Paulo: Scipione, 1997. PINHO, Antonio José de; MARGOTTI, Felício Wessling. Aspectos de variação lexical no sul do Brasil: o demônio varia no sul? Interdisciplinar, Sergipe, ano IV, v. 9, p. 51-66, ago./dez. 2009. 30 SANTOS, Andréa Mafra Oliveira dos; MOTA, Jacyra Andrade. A variação diastrática no português do Brasil: Palatalização das oclusivas dento-alveolares em Inquéritos do projeto atlas linguístico do Brasil (AliB). III Seminário de Pesquisa em Estudos Linguísticos, vol. 3, n. 1, 2008. SCHERRE, Pereira Maria Marta. Reanálise da concordância nominal no português. Tese de Doutorado. Rio de Janeiro: UFRJ, 1988. SILVA, Rosa Virgínia Mattos e. O português são dois: novas fronteiras, velhos problemas. São Paulo: Parábola, 2004. SOUZA, Adriana dos Santos; BOTASSINI, Jacqueline Ortelan Maia. A variação no uso dos pronomes-sujeito nós e a gente. Anais do SILEL, Uberlândia: v. 1. Uberlândia: EDUFU, 2009. VOTRE, Sebastião José. Relevância da variável escolaridade. In: MOLLICA, Maria Cecília; BRAGA, Maria Luiza (Orgs.). Introdução à sociolinguística: o tratamento da variação. São Paulo: Contexto, 2003, p. 51-57
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