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177cadernospetilosoia número14 | 2013 Fabrício Behrmann Mineo Graduando em Filosoia / Universidade de São Paulo fb.mineo@gmail.com Poder Político em Rousseau: do estado de natureza à sociedade civil Resumo Este artigo pretende esboçar uma articulação entre dois momentos fundamentais do pensamento de Jean-Jacques Rousseau a im de esclarecer sua concepção de poder político. Para isso, recorreremos inicialmente ao Segundo Discurso, a im de compreender a descrição que Rousseau faz do homem no estado de natureza, para, em seguida, tratar do surgimento da desigualdade entre os homens e de como as sociedades estabelecidas perpetuam a injustiça e a desigualdade. Depois, discutiremos os princípios ideais do pensamento político de Rousseau. Para tanto, recorreremos a alguns pontos dos dois primeiros livros de O Contrato Social. Nessa segunda parte, focaremos nos princípios e fundamentos do poder político. Teremos como io condutor nesse percurso, que vai do estado de natureza à sociedade civil, os conceitos de igualdade e liberdade. Palavras-chave igualdade, liberdade, estado de natureza, sociedade civil, lei Introdução O objetivo deste artigo é compreender a concepção de poder político no pensamento de Jean-Jacques Rousseau. Para isso, teremos em vista o Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, conhecido como o segundo Discurso, e os dois primeiros livros de O Contrato Social. Ao percorrer essas obras, a liberdade e a igualdade serão os conceitos norteadores. Tentaremos mostrar qual a relação entre o exercício do poder político e o papel fundamental que esses conceitos desempenham a rti g o 178 no pensamento de Rousseau. Em primeiro lugar, analisaremos alguns pontos do segundo Discurso, obra em que Rousseau elabora sua concepção do estado de natureza. Nesse ponto, trata-se de elucidar qual o método utilizado pelo autor para, em seguida, analisar a descrição do homem natural. Abordaremos as características que Rousseau atribui ao homem original, em especial a liberdade natural e a perfectibilidade. Em seguida, é preciso expor como se dá a passagem do estado de natureza ao estado civil e, consequentemente, como se estabelece a desigualdade política entre os homens. Para isso, é interessante mostrar, de modo geral, a progressão da desigualdade. Em segundo lugar, será feita uma exposição dos princípios e fundamentos do poder político, nos dois primeiros livros do Contrato Social. Inicialmente, é preciso tratar das considerações de Rousseau sobre o pacto social, isto é, o estabelecimento do contrato que dá existência à sociedade civil. Nessa parte, a ênfase será dada à principal cláusula do contrato: a alienação total. Na sequência, tentaremos elucidar o conceito de vontade geral, que é responsável por determinar o movimento e a direção que o poder político deve tomar após o contrato. Desse modo, é necessário explorar, por im, o vínculo entre os conceitos de vontade geral e lei. 1. Homem, eis tua história 1.1 O homem no estado de natureza No segundo Discurso, a im de conduzir uma investigação acerca da origem e dos fundamentos da desigualdade, Rousseau faz uma descrição do estado de natureza. Entretanto, essa descrição não se baseia em fatos nem em documentos históricos; uma descrição pautada nesses registros estaria limitada à condição histórica do homem e não poderia preencher as lacunas da documentação. Uma verdadeira descrição da origem exige um recuo ainda maior. Da mesma forma, a autoridade da religião também é recusada, o autor não recorre ao testemunho da Bíblia1 (cf. Starobinski, 2011, p. 390). A abordagem de Rousseau é coerente com uma de suas principais críticas aos seus antecessores. Para ele, seus predecessores “contrabandearam” 1 Não deixa de ser curioso o fato de que, embora a autoridade da Bíblia seja recusada, o cristianismo de Rousseau aparece no segundo Discurso como um todo (se não explicitamente, ao menos em sua estrutura). Segundo Sta- robinski (2011, p. 389), “Rousseau compõem um Gênese ilosóico em que não faltam o jardim do Éden, nem a culpa, nem a confusão das línguas. Versão laicizada, ‘desmistiicada’ da história das origens, mas que, suplantando a Escritura, repete-a em uma outra linguagem”. 179cadernospetilosoia número14 | 2013 características e conceitos que não dizem respeito ao estado de natureza, mas sim ao estado civilizado; por isso, acabaram atribuindo características do homem social ao homem natural. Esse é um primeiro equívoco que é preciso desfazer a im de encontrar o homem em sua verdadeira origem (cf. Rousseau, 1978, p. 235-7). Mas, então, em que Rousseau se apoia para a descrição do estado de natureza e no que consiste esse estado? Ao afastar um método de pesquisa que recorre aos fatos históricos, Rousseau reivindica um método hipotético-conjectural. É o método hipotético evolutivo, que progredindo através de uma cadeia consequente de raciocínios pretende remontar à origem, tal como podemos concebê-la ou imaginá-la. O estado de natureza é, pois, tão somente o postulado especu- lativo que uma “história hipotética” se confere, princípio sobre o qual a dedução poderá apoiar-se, em busca de uma série de causas e de efeitos bem encadeados, para construir a expli- cação genética do mundo tal como ele se oferece aos nossos olhos (Starobinski, 2011, p. 26). No decorrer do segundo Discurso, o status da descrição do estado de natureza sofre uma alteração considerável. A mera hipótese dá lugar à certeza, o estado “que talvez nunca tenha existido” transforma-se em uma imagem que se impõem, de modo que não é possível concebera origem de outra forma. A descrição do estado de natureza deixa de ser conjectura e torna-se “verdadeira razão” (cf. Rousseau, 1978, p. 259). Para Rousseau, dada a ausência de dados e a lacuna dos fatos, então, não há nada mais provável que a cadeia de raciocínios exposta. Isso posto, vejamos em que consiste essa elaborada cadeia de raciocínios. O objetivo de Rousseau é mostrar a origem da desigualdade. Mas de que desigualdade, precisamente, estamos falando? Rousseau distingue dois tipos. Em primeiro lugar, a desigualdade pode ser natural: é a desigualdade devida à diferença da disposição dos indivíduos, tanto física – isto é, sua saúde, idade, força corporal – quanto das qualidades do espírito, da alma. Mas existe também a desigualdade moral ou política, a diferença que pode ser observada entre os homens em sociedade: sua distinção de riquezas, de poder, dos privilégios; em última análise, a distinção que, em geral, se exprime na forma da dominação, as relações entre senhores e escravos (cf. Rousseau, 1978, p. 235). É inútil e nocivo tentar encontrar um vínculo essencial entre esses dois tipos de desigualdade. Buscar uma relação desse tipo equivaleria a querer saber se aqueles que mandam (os senhores) têm realmente mais valor do 180 que aqueles que servem (os escravos). Entretanto, no segundo Discurso, o objetivo não é buscar uma pretensa justiicação para a desigualdade política – airmando algo como “a lei do mais forte”. Trata-se de descobrir como, por convenção, os fortes acabam por servir os fracos, ou como o povo foi induzido “a comprar uma tranquilidade imaginária pelo preço de uma felicidade real” (Rousseau, 1978, p. 235). Grosso modo, todo o movimento do segundo Discurso mostra como foi possível, partindo de uma desigualdade natural, chegar à desigualdade política. O primeiro passo, então, consiste em compreender o estado de natureza. No estado de natureza, o homem vive de uma maneira muita próxima a dos animais, ambos são guiados pelos seus sentidos e sensações; de modo que homem e animal têm em comum a percepção. Esse homem primitivo – com sua constituição física, boa disposição e vigor – não encontra grandes obstáculos para a satisfação desuas necessidades e desejos; o homem selvagem é forte e robusto, a “seleção natural” (para aplicar o termo de forma anacrônica) leva todos os que não são bem constituídos a perecer. A natureza fornece tudo o que é indispensável à subsistência e conservação, basta estender a mão para colher seus frutos. O homem selvagem vive apenas no imediatismo do presente, não faz planos para o futuro: pela manhã nem sequer pensa no que virá ao anoitecer. Não há previsão, antecipação ou planejamento. No estado de natureza, o selvagem é um animal solitário e, por isso, independente. Não trava relações duradouras e frequentes com outros homens. Logo que o homem deixa a infância não depende mais de sua mãe para sobreviver, assim, está pronto para abandoná-la e seguir seu caminho. Cada um depende apenas de si mesmo para garantir sua sobrevivência e conservação; e, portanto, ainda que exista a desigualdade natural, não há relações de dominação e servidão pela força. A desigualdade natural não é suiciente para originar a servidão: ainda que um homem mais forte decidisse escravizar um outro mais fraco a im de obter vantagens, precisaria vigiá-lo, cuidar para que não fugisse ou o matasse enquanto dorme; desse modo, traria para si uma preocupação maior do que a que tinha quando apenas precisava satisfazer suas necessidades por conta própria. Em algum momento, a guarda do mais forte deve baixar e, mais cedo ou mais tarde, não poderá evitar a fuga do mais fraco (cf. Rousseau, 1978, p. 258). Por essa razão, a desigualdade natural não pode servir de fundamento para a desigualdade convencional. Poderíamos dizer que, no estado de natureza todo homem goza de uma igualdade natural (derivada de sua independência), que consiste na ausência da desigualdade convencional, isto é, de relações de dominação e servidão. Como o selvagem é um animal solitário, há também a ausência de uma 181cadernospetilosoia número14 | 2013 noção de moralidade. Por não haver convivência entre homens, todos estão em uma situação amoral, ou pré-moral. A alcunha de “bom selvagem” só se justiica como juízo retrospectivo do moralista (cf. Starobinski, 2011, p. 41). Entretanto, Rousseau atribui ao homem uma virtude natural: a piedade (pitié), ou comiseração. Essa virtude pode ser descrita como o desconforto provocado no indivíduo por ver o outro sofrer; a piedade atua como moderadora do instinto de autoconservação, do amor de si. Enquanto o amor de si contribui para a conservação de indivíduos, a piedade garante a conservação da espécie como um todo. Mas, para Rousseau, até mesmo as bestas são capazes de algumas demonstrações de piedade. O que, então, diferencia o homem dos animais? Em primeiro lugar, o que distingue o homem selvagem dos animais é a sua liberdade, que é essencial à natureza humana. Para Rousseau, a princípio, o que diferencia o homem selvagem do animal não pode ser a razão, visto que a faculdade racional ainda não está desperta, só progressivamente se acendem as luzes da razão no homem. Veremos como isso pode se dar a seguir, tratemos antes da liberdade.Homem e animal são como máquinas, mas o animal escolhe ou rejeita somente por instinto, enquanto o homem, por um ato de liberdade. Segundo Rousseau (1978, p. 242), “[...] o homem executa as suas [operações] como agente livre”. O homem tem consciência de sua liberdade e sente-se livre para seguir, ou não, os instintos e impulsos naturais. Portanto, “não é, pois, tanto o entendimento quanto a qualidade de agente livre possuída pelo homem que constitui, entre os animais, a distinção especíica daqueles” (Rousseau, 1978, p. 243). Desse modo, temos a primeira qualidade que permite fazer uma distinção entre homens e animais; no entanto, há outra qualidade que estabelece essa distinção sem deixar margem para dúvida ou contestação. Em segundo lugar, a qualidade especíica capaz de distinguir os homens dos animais é a perfectibilidade. Para Rousseau (1978, p. 243), a perfectibilidade “[...] é a faculdade de aperfeiçoar-se, faculdade que, com o auxílio das circunstâncias, desenvolve sucessivamente todas as outras e se encontra, entre nós, tanto na espécie quanto no individuo”. Na concepção de Rousseau, essa faculdade falta completamente a outros animais, tanto aos indivíduos como às espécies; porque ao cabo de alguns meses, os indivíduos já estarão constituídos para toda vida e, no primeiro ano, a espécie já adquiriu a forma que conservará por milhares de anos. A perfectibilidade é, no entanto, uma faculdade ambígua, pois permite ao homem tanto aperfeiçoar-se como regredir; ou seja, essa faculdade não garante que as transformações e modiicações alcançadas pelo homem serão sempre em seu proveito. Existe 182 a possibilidade de que a perfectibilidade conduza a espécie humana por caminhos nefastos, rumo à decadência e à queda. Rousseau chega mesmo a lamentar essa ambiguidade: “Seria triste, para nós, vermo-nos forçados a convir que seja essa faculdade, distintiva e quase ilimitada, a fonte de todos os males do homem” (Rousseau, 1978, p. 243). A princípio, a perfectibilidade encontra-se adormecida – apenas em latência –, precisando ser “disparada” ou “detonada” para que então a história humana tenha início – com seus acertos e erros, virtudes e vícios. Uma vez que a perfectibilidade seja “detonada”, não há mais volta, a origem está para sempre perdida. A questão que se impõe agora é: como partindo desse nostálgico estado de natureza chegamos às nossas sociedades modernas? Essa é a questão respondida pela segunda parte do Discurso. É a história dos acasos e eventos extraordinários que ao longo dos séculos nos conduziu a esse ponto. 1.2 Sociedade e desigualdade A passagem do estado de natureza para à condição social deve-se justamente à perfectibilidade. Por diversos motivos, os homens passam a se relacionar com mais frequência, são obrigados a unir forças para enfrentar as adversidades naturais; tanto as lutas contra predadores, como as vantagens oferecidas pela cooperação, levam os homens a se agrupar em pequenos bandos. Tendo isso em vista, Rousseau inicia a descrição encadeada de “[...] uma série de ‘momentos’ que se condicionam uns aos outros, e que o homem percorre em razão de sua perfectibilidade. Ao obstáculo natural se opõe o trabalho; este provoca o nascimento da relexão, que produz ‘o primeiro movimento de orgulho’” (Starobinski, 2011, p. 44). Devido à sua perfectibilidade e à relação mútua, os homens começam a utilizar instrumentos e trabalhar. Mas como Starobinski aponta, esse movimento dá origem aos vícios; é o trabalho que desperta na consciência do homem a ideia de sua superioridade em relação aos outros animais: o orgulho é o primeiro vício humano. Há um movimento contínuo, desencadeado pela perfectibilidade, que torna o homem cada vez mais artiicial, com a criação e desenvolvimento de diversas maneiras de relacionar-se. São exemplos disso: a linguagem, o canto, o uso de apetrechos para enfeitar o corpo, a dança, os rituais. De acordo com Starobinski (2011, pp. 398-9), “não existe de modo algum mudança nos métodos de subsistência e de produção (isto é, na economia) que não seja acompanhada, correlativamente, de uma transformação do instrumental mental e da disposição passional dos homens”. Cada passo, cada nova descoberta contribui para o afastamento do seu estado natural. Com o 183cadernospetilosoia número14 | 2013 trabalho e o instrumento (a técnica), o homem torna-se capaz de obter mais facilmente aquilo que precisa para sua conservação. E, assim, ele pode tirar da natureza mais do que precisa para o seu sustento, então, ocupa-se com o acúmulo de provisões, a construção de abrigos e cabanas, o cultivo da terra, a extração de metais, o conforto. Enim, o trabalho acaba por multiplicar as posses dos homens. A produção de bens e o acúmulo deposses só se tornam um problema quando os homens passam a depender uns dos outros. Quando os homens precisam do trabalho de outros para produzir conjuntamente (fazer aquilo que não poderiam sem ajuda de outros) e o acúmulo de posses acende a chama da ambição, então, o trabalho torna-se necessário. De acordo com Rousseau, [...] desde que o homem sentiu necessidade do socorro de out- ro, desde que se percebeu ser útil a um só contar com provisões para dois, desapareceu a igualdade, introduziu-se a proprie- dade, o trabalho tornou-se necessário e as vastas florestas transformaram-se em campos aprazíveis que se impôs regar com o suor dos homens e nos quais logo se viu a escravidão e a miséria germinarem e crescerem com as colheitas (Rousseau, 1978, p. 265). Ora, no estado de natureza, a terra e todos os seus frutos são de todos; os homens colhem aquilo que necessitam para uso imediato. Com o trabalho os homens passam a adquirir posses, contudo, a posse ainda não constitui a propriedade dos bens. A noção de propriedade é um passo decisivo para a entrada na sociedade civil. “O verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo cercado um terreno, lembrou-se de dizer isto é meu e encontrou pessoas suicientemente simples para acreditá-lo” (Rousseau, 1978, p. 259). O estabelecimento da propriedade necessitado reconhecimento, isto é, não basta que o primeiro possuidor da terra se declare o proprietário, é preciso também que os outros acreditem nele. Somente com o reconhecimento e aceitação mútua dos homens é que a posse pode tornar-se propriedade. Mas como esse processo se dá? Inicialmente, os homens que foram capazes de produzir em abundância e de garantir suas posses, defendendo-as pela força, tornaram-se ricos; enquanto os homens incapazes de produzir em excesso e de defender suas posses icaram na pobreza. Essa distinção entre ricos e pobres, os possuidores e os sem posses, deu origem aos primeiros conlitos. Com o passar do tempo, essa desigualdade torna-se insustentável, pois somente a força não pode 184 garantir a propriedade de nada. O que é conservado apenas pela força, pode ser também tomado pela força. Inicia-se, então, um estado de guerra generalizado onde o roubo e a violência constituem a regra. Esse estado, em que os homens voltam-se uns contra os outros é desvantajoso para todos, mas, sem dúvida, aquele que tem mais a perder é o rico. O pobre tem apenas o único bem que lhe resta, isto é, a vida – mas uma vida miserável e precária. Enquanto o rico, por sua vez, vê ameaçada uma vida farta, de privilégios e conforto. “Antes a ordem que a violência; antes uma aparência de justiça que a anarquia: tal é o raciocínio que vai dar origem ao estado civil. Ameaçados em sua segurança, os homens vão acabar de socializar-se” (Starobinski, 2011, p. 402). O grande trunfo do rico consiste em irmar um pacto com os pobres. Pacto em que os homens concordam em estabelecer a propriedade em troca de segurança. “Todos correram ao encontro de seus grilhões, crendo assegurar sua liberdade, pois, com muita razão reconhecendo as vantagens de um estabelecimento político, não contavam com a suiciente experiência para prever-lhe os perigos” (Rousseau, 1978, p. 269). Esse pacto realiza um astuto logro dos pobres, pensando que o acordo é vantajoso para eles acabam por concordar com a sua condição servil (cf. Nascimento, 1988, p. 125). O que os ricos conseguem com o pacto é assegurar com bases legais a desigualdade de posses, agora tornada propriedade. Esse é o primeiro grau da desigualdade. De agora em diante será instituída a “justiça” e o “direito”, no entanto, é em favor do rico que o pacto funciona. Propondo uma igualdade jurídica, o rico assegura a desigualdade e mantém sua posição privilegiada. “As leis fornecerão a todos a condição da igualdade jurídica apenas, e se constituirão no mascaramento da desigualdade de fato” (Nascimento, 1988, p. 126-7). É dessa maneira que se estabelecem os Estados, com os ricos tornando- se magistrados, ou antes, proprietários do Estado. Esse constitui o segundo grau da desigualdade, o exercício ilegítimo da magistratura. De acordo com Rousseau, [...] tendo se tornado hereditários, os chefes acostumaram-se a considerar a magistratura como bem de família e a si próp- rios proprietários do Estado, do qual a princípio não seriam senão funcionários; a chamar seus concidadãos de escravos, a incluí-los, como o gado, entre as coisas que lhes pertenciam [...] (Rousseau, 1978, p. 277). Com a hereditariedade da magistratura, os “direitos civis” e a “justiça”, constituídos pelo falso pacto, progressivamente são substituídos pelo arbítrio 185cadernospetilosoia número14 | 2013 dos poderosos, culminando na tirania e no despotismo. O poder político degenera em cega dominação: os súditos não conhecem outra lei, além da vontade caprichosa do senhor; e o déspota segue apenas seus desejos e paixões, a razão é jogada para escanteio. Qualquer noção de direito ou justiça (ainda que falha e precária) não opera mais. “[...] O ponto extremo fecha o círculo e toca o ponto de que partimos; então todos os particulares se tornam iguais, porque nada são” (Rousseau, 1978, p. 280). Estamos no último grau de desigualdade. Os súditos são cada vez mais desrespeitados e se instaura novamente a violência. O povo já não vê grandes vantagens em honrar o pacto com o tirano. Logo começam as rebeliões e revoltas, as portas icam abertas para a guerra civil e a revolução. O que acontece, então, é a abrupta dissolução do Estado e da sociedade civil. “Só a força o mantinha, só a força o derruba” (Rousseau, 1978, p. 280). Com isso o povo livra-se da tirania e retoma sua liberdade natural. Nesse ponto é possível dizer que o caminho ica livre para que outro pacto seja irmado entre os membros remanescentes desse Estado. O povo pode instituir uma nova sociedade que, talvez, restabeleça a liberdade e a igualdade entre os homens. Vejamos então o que o Rousseau propõe no Contrato. 2. Liberdade e igualdade no Contrato Social 2.1 Pacto social e alienação total “O homem nasceu livre e por toda parte ele está agrilhoado” (Rousseau, 2006, p. 9). Ora, tendo partido do segundo Discurso, acompanhamos o processo que leva o homem do estado de natureza à sociedade civil. Do ponto de vista do segundo Discurso, esse processo – que se constitui lentamente ao longo dos séculos – é a história humana: uma história de queda e degeneração. O homem parte de uma condição de felicidade, ingenuidade e pureza, de um contato imediato com a natureza, isto é, da liberdade e igualdade naturais, e, no entanto, por conta de sua perfectibilidade, termina preso aos grilhões da sociedade civil. A desigualdade que se consuma no processo civilizatório é o próprio mal. Mas nenhum homem, considerado individualmente, pode ser culpado pela queda. Somente o homem em relação, o homem vivendo coletivamente e organizado em sociedades, pode engendrar essa sequência terrível de erros. 186 Resta saber então como é possível constituir uma sociedade justa, que esteja de acordo com a reta razão. Como estabelecer um corpo político verdadeiro, a sociedade que seja, de fato, uma legítima associação de homens livres. Uma sociedade que não seja fundada em relações de senhores e escravos – como vimos no segundo Discurso. Por isso, Rousseau não trata das sociedades tal como são de fato; pelo contrário seu objetivo é estabelecer um campo teórico abstrato no qual o dever ser tem prioridade, é preciso focar no que é de direito. Nesse sentido, Nascimento airma que “toda a obra, portanto, irá se desenvolver no plano do dever ser, no plano do direito, pois, resolver a questão do que importa é estabelecer os princípios do direito que tornarão possível o julgamento dos fatos” (Nascimento, 1988, p. 120). A principal tarefa do Contratoé revelar os princípios que devem nortear o poder político. No Capítulo VI do Livro I, intitulado Do Pacto Social, Rousseau supõe uma situação em que os homens tenham sido obrigados a sair do estado de natureza. Temos aqui, uma situação semelhante a que já havia sido relatada por Rousseau no segundo Discurso. No entanto, no Contrato, o que importa não é a descrição do nascimento das sociedades existentes. E aqui reside uma importante diferença entre as duas obras. Rousseau supõe que os homens estejam saindo do estado de natureza, prontos para estabelecer uma sociedade, e, por isso, ainda não foram corrompidos pelas vicissitudes de alguma sociedade injusta. Temos aqui uma situação ideal. Por essa razão, povos saídos de uma revolução ou da dissolução de um Estado não estariam em condições de por em prática os princípios do Contrato (se é que algum povo realmente poderia fazê-lo). Mas não é isso que importa. Os princípios abstratos do Contrato são normativos, por isso podem ser colocados como ideal regulador. Retomemos, assim, as condições do pacto. No entanto, para Rousseau, não é qualquer agregado de homens que pode formar uma sociedade civil. “Que homens isolados sejam subjugados sucessivamente a um só, qualquer que seja o seu número, não vejo nisso senão um senhor e escravos, e de modo algum hei de considerá-los um povo e seu chefe. É, talvez, uma agregação, mas não uma associação” (Rousseau, 2006, p. 19). O objetivo é mostrar quais os fundamentos de uma sociedade civil legítima, isto é, que tenha como principal inalidade a igualdade e a liberdade convencional, que seja justa. Para isso, em um primeiro momento, é preciso mostrar “o ato pelo qual um povo é um povo” (cf. Rousseau, 2006, p. 19). Desse modo, convém abordar do ato simbólico pelo qual os homens se reúnem em uma associação. O pacto social é o ato convencional que origina uma forma de associação 187cadernospetilosoia número14 | 2013 entre indivíduos. A partir do momento em que os homens particulares fazem o pacto institui-se uma associação, os homens saem do estado de natureza. Mas no que consiste essa forma de associação ideal? De acordo com Rousseau (2006, pp. 20-1), o objetivo do Contrato é “encontrar uma forma de associação que defenda e proteja com toda a força comum a pessoa e os bens de cada associado, e pela qual cada um, unindo-se a todos, só obedeça, contudo, a si mesmo e permaneça tão livre quanto antes”. A primeira parte da formulação parece não oferecer grandes diiculdades; o pacto permite que os homens unam suas forças a im de conservar sua propriedade através da força combinada de todos os associados. O problema está na segunda parte. A fórmula paradoxal consiste em propor um modo de associação em que os homens possam ser “tão livres quanto antes”, e que, ainda que unido a outros, cada homem obedeça apenas a si mesmo. É a “quadratura do círculo”. Como garantir a liberdade sem que ela se degenere em licença e como proteger a liberdade contra a possível dominação alheia? Vejamos então como é possível entender esse suposto paradoxo. Para Rousseau, a solução dessa diiculdade reside justamente nas cláusulas do contrato, sendo que todas elas podem ser reduzidas a uma única cláusula. [...] Essas cláusulas se reduzem todas a uma só, a saber, a alien- ação total de cada associado, com todos os seus direitos, a toda a comunidade. Pois, em primeiro lugar, cada qual dando-se por inteiro, a condição é igual para todos, e, sendo a condição igual para todos, ninguém tem interesse em torná-la onerosa para os demais (Rousseau, 2006, p. 21). A alienação total garante a igualdade absoluta de condições no contrato; submeto-me totalmente aos outros para que já não tenha que me preocupar com eles. Desse modo, vemos que a liberdade civil só pode ser obtida pela igualdade de condições. Nesse sentido, Rousseau pode concluir: “Enim, cada um, dando-se a todos, não se dá a ninguém, e, como não existe um associado sobre o qual não se adquira o mesmo direito que se lhe cede sobre si mesmo, ganha-se o equivalente de tudo o que se perde e mais força para conservar o que se tem” (Rousseau, 2006, p. 21).Ou seja, todos se alienam igualmente, assim, com todos abrindo mão de sua liberdade natural em benefício do todo, nada se perde. Mas vejamos isso de maneira mais detida. A entrada na sociedade civil representa uma perda e um ganho. Segundo Rousseau, “o que o homem perde pelo contrato social é a liberdade natural e um direito ilimitado a tudo quanto deseja e pode alcançar; o que com ele ganha é a liberdade civil e a propriedade de tudo o que possui” (Rousseau, 188 2006, p. 26). Essa ênfase de Rousseau em apontar aquilo que se ganha ao aceitar o contrato é um dos pontos de diferenciação entre o segundo Discurso e o Contrato. No segundo Discurso, o tom é idílico, carregado de nostalgia do estado de natureza; a sociedade civil é vista como degeneração e corrupção. Segundo Nascimento (1988, p. 128), no Contrato, “[...] a farsa da história não se repete ao nível do direito, onde o único contrato capaz de instaurar a liberdade civil é aquele no qual ‘a condição é igual para todos’ e, sendo assim, ‘ninguém se interessa em torná-la onerosa para os demais’”. O objetivo, agora, é mostrar a perspectiva do Contrato. Nesse caso, a retórica de Rousseau busca convencer o interlocutor sobre os ganhos ao aceitar o contrato; há claramente uma tentativa de persuasão. Como mostrou Lebrun (cf. 2006, p. 230), é preciso mostrar que o contrato é um “bom negócio”; Rousseau busca convencer, fazendo apelo à razão, que não se perde nada, só se tem a ganhar aceitando as cláusulas do contrato. Para Rousseau (cf. 2006, p. 42), bem pesadas as condições, pode-se até mesmo dizer que não há qualquer verdadeira renúncia dos particulares. Ainal, o que implica essa transição do estado de natureza para o estado civil? O contrato pode garantir a liberdade e igualdade civis, bem como a propriedade das posses dos homens. Recapitulando, de agora em diante a propriedade é um direito reconhecido por todos e protegido pelo corpo político através da força combinada de seus membros. Esses ganhos, contudo, têm como condição necessária a alienação total; ou seja, os homens abrem mão de sua liberdade natural. No resultado inal do balanço de perdas e ganhos, temos o seguinte: Onde “ninguém tem o direito de fazer o que a liberdade do out- ro proíbe”, serei portanto tão livre quanto antes (pelo menos): terei trocado uma vida agressiva, estúpida e arriscada, por uma vida tal que o Outro já não será para mim um obstáculo. Essa é a raiz ultra individualista do Contrato e a razão pela qual a justiça igualitária – que é, para Rousseau, o avesso da liberdade – “deriva da preferência que cada um dá a si próprio” (Lebrun, 2006, p. 227). Vemos então o que pode haver de proveitoso e vantajoso para os indivíduos no contrato. Ao aceitar suas cláusulas, faço isso em meu proveito. De modo que cada um ganha com a adesão ao contrato. Ninguém é lesado, pelo contrário, todos os direitos só podem constituir-se dessa maneira. Além disso, é manifesta a relação intrínseca entre liberdade e igualdade, as duas faces de uma mesma moeda. Não é possível pegar uma sem levar a outra: 189cadernospetilosoia número14 | 2013 uma sociedade que pretenda ser justa não pode ignorar a relação desses dois conceitos. 2.2 Vontade geral e lei Mas, retomemos por um momento a cláusula principal do contrato, a alienação total. Ora, em última análise, alienação total implica a submissão da vontade e interesse particular à vontade e interesse geral. De agora em diante, a vontade particular deve ser deixada em segundo plano, a vontade geral deve ter sempre a primazia sobre o interesse particular. Segundo Rousseau (2006, p. 22), o que há de essencial no pacto é o seguinte: “Cada um de nós põe emcomum sua pessoa e todo o seu poder sob a suprema direção da vontade geral; e recebemos, coletivamente, cada membro como parte indivisível do todo”. A totalidade que resulta dessa união entre os associados é o corpo político (é chamado de Estado quando passivo e soberano quando ativo), os homens são os membros que compõem esse corpo (e são chamados cidadãos, enquanto parte do soberano, ou súditos, enquanto submetidos às leis do Estado). No corpo político, a vontade geral é exercida através do poder legislativo, sendo que a função da soberania é dar a Lei. O soberano exprime a vontade geral pela elaboração das leis; para Rousseau as leis são a expressão da vontade geral. As leis dão movimento ao corpo político. “Pelo pacto social demos existência e vida ao corpo político. Trata-se agora de dar-lhe o movimento e a vontade pela legislação” (Rousseau, 2006, p. 45). Antes de examinarmos qual a função do poder legislativo é preciso tentar determinar o conceito de vontade geral. Em primeiro lugar, para Rousseau, a vontade geral não consiste na soma de vontades particulares; não é apenas a soma da vontade de todos. A vontade particular sempre tende ao interesse privado, de modo que a mera “soma” desses interesses não poderia resultar na vontade geral. Para que a vontade geral seja expressa é condição necessária que nenhum dos membros do corpo político deixe de manifestar sua vontade. No entanto, essa condição necessária está longe de ser suiciente. A vontade geral consiste naquilo que há de comum nas vontades particulares. Segundo Rousseau (2006, p. 37), quando retiram das vontades particulares “os mais e os menos que se destroem mutuamente, resta, como soma das diferenças, a vontade geral”. Ao que parece, os polos extremos das vontades particulares acabam por anular- se reciprocamente, restando apenas o que há de comum entre essas vontades. Em segundo lugar, a vontade geral é sempre reta, ela nunca erra e tende sempre à utilidade pública, deseja sempre o bem comum. No entanto, o povo 190 pode errar, pode enganar-se ou ser enganado. “Deseja-se sempre o próprio bem, mas não é sempre que se pode encontrá-lo. Nunca se corrompe o povo, mas com frequência o enganam, e só então ele parece desejar o mal” (Rousseau, 2006, p. 37). Nesse sentido, um dos obstáculos para a expressão da vontade geral consiste na criação de facções e associações no interior do corpo político. Essas facções, ou partidos, inluenciam os membros do corpo político, de modo que sua vontade se ajustaria à vontade de um grupo. Por isso, a vontade de um cidadão ligado a uma facção pode ser geral em relação à facção, mas particular em relação ao corpo político. Quanto menos numerosas são as facções, mais nociva se torna sua presença no corpo político. Se não for possível eliminá-las, é preciso multiplicá-las, de modo que aumente a diferenciação e o “choque” entre as vontades particulares possa produzir, como resultado, a vontade geral (cf. Rousseau, pp. 37-8). Terceiro, “a vontade particular, por sua própria natureza, tende às predileções, enquanto a vontade geral propende para a igualdade” (Rousseau, 2006, p. 34). Ora, vontade geral e vontade particular são, por deinição, radicalmente distintas: tanto do ponto de vista que adotam quanto pelos objetos. Se a vontade geral coincide com uma vontade particular é apenas por um feliz acaso, de modo que não há garantias de que essa coincidência persista por muito tempo; nenhum indivíduo pode representar a vontade geral. E ainda que possa existir uma conformidade entre a vontade particular e a vontade geral, isso só pode ser assegurado através do voto; apenas depois que todo o povo delibera e manifesta sua opinião é que podemos estar certos dessa coincidência (Rousseau, 2006, pp. 51-2). Apenas a totalidade do corpo político pode manifestar e expressar a vontade geral. Nesse sentido, Rousseau airma que “[...] a soberania, sendo apenas o exercício da vontade geral, nunca pode alienar-se, e que o soberano, não passando de um ser coletivo, só pode ser representado por si mesmo; pode transmitir-se o poder – não, porém, a vontade” (Rousseau, 2006, p. 33). Pelo mesmo motivo, a soberania também é indivisível. Pois, ou a vontade é geral e, portanto do todo; ou é de uma parte e, por isso, particular. Se a vontade é geral, então, é também soberana e quando expressa “é um ato de soberania e faz a lei” (Rousseau, 2006, p. 35).Mas qual é a inalidade dos sistemas de legislação? Dito de outro modo, qual é o im que a vontade geral deve visar para garantir o bem comum e a utilidade pública? De acordo com Rousseau (cf. 2006, p. 62), a inalidade de todo o sistema de legislação deve resumir-se a dois objetivos principais, a saber, a liberdade e a igualdade. Na sociedade civil, a igualdade se mostra como o pressuposto da liberdade; se os cidadãos não forem iguais o suiciente – isto é, se a igualdade 191cadernospetilosoia número14 | 2013 não for objeto do legislativo –, então, podem acabar na dependência de outros e, portanto, não serão livres. O sistema legislativo deve garantir a igualdade em dois aspectos principais: no poder e na riqueza. Isto não quer dizer que todos devem ser matematicamente iguais; mas, a legislação deve garantir que ninguém tenha tanto poder que seja capaz de usar a violência e a coerção com outros; nem que exista alguém tão rico que possa comprar os outros ou indivíduo tão pobre que seja obrigado a vender-se para subsistir (cf. Rousseau, 2006, pp. 62-3). O soberano deve legislar para que o grau de desigualdade não ultrapasse aquilo que seria aceitável, assim, a liberdade de nenhum dos membros do corpo político ica comprometida. A igualdade é vista por muitos como uma quimera, algo impossível de ser realizado. No entanto, para Rousseau isso não deve servir como desculpa. Pelo contrário, aí está uma forte razão para não descuidarmos da igualdade. Justamente por que as circunstâncias conspiram para a destruição da igualdade – com a consequente imposição de uma desigualdade que ameaça a liberdade de todos – é que a legislação deve sempre visar preservá-la (cf. Rousseau, 2006, pp. 62-3). Portanto, para Rousseau, a sociedade civil justa tem como principal objetivo a liberdade e a igualdade. Por isso, o exercício legítimo do poder político deve sempre ter em vista essa inalidade. Conclusão Inicialmente, vimos que animal singular é o homem no estado de natureza. Um animal independente, não está preso a outros indivíduos da mesma espécie. Em razão de sua liberdade não está completamente submetido aos impulsos naturais; é o único animal dotado de livre escolha. Além disso, possui uma faculdade que falta completamente a outros animais: a perfectibilidade. Faculdade ambígua que possibilita ao homem o progresso e o regresso, a ascensão e a decadência. Por um lado, a perfectibilidade é uma faculdade quase ilimitada, por outro lado, a liberdade natural do homem permite a escolha livre. É possível escolher tanto aquilo que lhe é benéico, como o que é nocivo. Com a combinação dessas duas faculdades, abre-se um leque indeinido de possibilidades; de modo que, uma vez que a perfectibilidade seja “detonada”, o homem torna-se um animal imprevisível. Não é possível determinar os rumos da história humana. No entanto, conhecemos nossa situação atual. Lançando um olhar retrospectivo, como é a investigação de Rousseau, podemos conjecturar como, a partir do estado natural, chegamos às sociedades tal como se encontram (ou, no caso do Discurso, como se encontravam em meados do século XVIII). 192 Como Rousseau aponta, as transformações técnicas são acompanhadas por mudanças institucionais; e também alterações das formas de vida. O trabalho e o consequente uso e aperfeiçoamento dos instrumentos, da técnica, dá origem a dependência entre os homens, que passam a multiplicar as posses edepender uns dos outros. A posse dá lugar ao primeiro grau de desigualdade, o estabelecimento da propriedade. Para garantir o direito da propriedade os pobres são logrados e pelos ricos, em um pacto no qual trocam sua liberdade por uma aparente segurança. Em seguida, os ricos tornam-se proprietários do Estado, os magistrados. O estabelecimento da hereditariedade faz com que o Estado torne-se também posse, assim como os súditos, que acabam reduzidos à condição de gado. Assim, o círculo fecha: os senhores passam a fazer de sua vontade e arbitrário a lei, e os homens tornam-se novamente iguais, porque nada são. Com isso, abrem-se os portões da revolta, da guerra civil, da revolução. O Estado é derrubado e os homens retomam sua liberdade natural. Desse modo, com o fracasso da instituição ilegítima do poder político, no Contrato, Rousseau buscará os fundamentos e condições de legitimidade de todo poder político. Inicialmente, a concepção do Contrato aponta para a importância do pacto social que estabelece e institui a sociedade política. A principal cláusula desse contrato é a alienação total. Essa condição implica que todos os membros do corpo político devem abrir mão de sua liberdade natural, de dispor e fazerem o que quiserem, para submeter-se ao corpo político, isto é, a todos os outros. Assim, a vontade particular de cada membro deve ser deixada em segundo plano, a im de que a vontade geral, de todo o corpo político, dê a direção à sociedade civil. A vontade geral, do corpo político, não é somente a vontade de todos. A soma das vontades particulares não resulta na vontade geral. A vontade geral é de todos e para todos; seu ponto de vista e seu objeto é sempre geral, ela não se aplica ao que é privado ou particular. O bem comum e público é o verdadeiro objetivo da vontade geral. Embora a vontade geral seja sempre reta, o povo pode errar, pode enganar-se e ser enganado; por isso, é preciso precaver-se contra as vontades particulares que visam apossar-se da vontade geral. Isso porque o corpo político em sua atividade é o soberano, e a expressão da vontade geral faz a lei. A lei, quando guiada pela vontade geral esclarecida, tem como inalidade a liberdade e a igualdade. É necessário que o poder legislativo tenha em vista a igualdade. Não se deve usar como desculpa a diiculdade da tarefa. É por que as sociedades tendem a ser, ou tornarem-se, injustas e desiguais que o soberano não deve descuidar dessas questões. E nisso consiste o exercício legítimo do poder político. Todo o povo legislando para todo o povo. 193cadernospetilosoia número14 | 2013 Referências Bibliográicas LEBRUN, Gérard. “Contrato social ou negócio de otário?”. Trad. Marta Kawano. In: ______. A ilosoia e sua história: Gérard Lebrun. 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