Buscar

A Exibição das Palavras

Prévia do material em texto

Denis Guénoun
A exibição
das palavras
Uma idéia (política) do teatro,
Tradução
FáiimaSaadi
E~li.mnstuos
Teatro do Pequeno Gesto/ 2003
Copyríght (O DenisGuénoun
Tradução
FátimaSaadi
Revisão técnica
Walter Lima Torres
Revisão
Paulo Telles
Capa, projeto gráfico e editoração
Bruno Cruz
Secretária
Márcia Alves
Cet ouvrage, publié dans le cadre du programme d 'aide à la
publication, b én éficie du soutien du Ministêrefrança is des
A./JairesEtrang êres.
Este livro, publicado no âmbito doprograma de apoio à
publicação, contou com o apoio do Ministériofrancêsdas
RelaçõesExteriores.
Guénoun, Den is 19 46-
A exibição das palavras: uma idéia (política)
do teatro. por Denis Guénoun: tradu ção Fátima
Saadi. Rio de Janeiro: Teatro do Pequ eno Gesto,
2003 .
80 p.: 12 x 18 em
1. Teatro 2. Estética
Sumário
Apresentação • 9
Capítulo I • 13
Capítulo 11 • 43
Quatro objeçõ es • 73
ISBN 85 -98055-0 1·8
Teatro do Pequ eno Gesto
Tel/Fax 2 1 2558-03 53
www.pequen ogesto .co m.br
CDD 790
,
Apresentação
Com a tradução de A exibição das palavras.
Uma idéia (política) de teatro, de Denis Guénoun,
o Teatro do Pequeno Gesto inaugura a série
Folhetim/Ensaios, cujo objetivo é publicar textos
que abordem a atividade teatral de modo instigante,
estabelecendo pontes entre os diversos domínios
da criação artística e entre eles e o pensamento a
respeito de seus fundamentos.
O caráter multifacetado do teatro redobra o
prazer de pensá-lo em s uas articulaçõ es e
possibilidades, e a liberdade que a forma ensaística
permite e sugere torna o exercício da imaginação
criadora parte indispensável da leitura.
É com grande praz er que apresentamos o
trabalho de Denis Guénoun ao público brasileiro ,
certos de qu e as discussões que ele propõe vêm
se inserir num diálogo qu e se torna cada vez mais
efetivo no teatro brasileiro e que articula a estética,
a história e a política.
9
Para Robert Abirached
I.
oteatro requ er uma reunião de espectado res.
Outras art es também: a música , a dan ça. Outras
não: literatura, pintura, esc ultura . ' Claro qu e não
imaginamos qu e elas possam dispensar o público.
Mas se u públi co não precisa necessariam ent e estar
reunido num lugar c num mom ento comuns para
que a obra cheg ue até ele: m ármore, quadro , livro
pod em espe rar um visitante ou um leitor qu e virá ,
sozinho, qu and o quiser. Objeção: o teatro pod e ser
lido. Mas es ta leitura não é o qu e o constitui. Ele
não é - ap en as - literatura dialogad a. teatro
r qu er um púIJlico. col tivo, ~ tivamente reunido.
Éo modo , determinado, de ua apresentação .
Esta reunião é convocad a publicam ente .
Podem os citar exe mplos em contr ário: teatro em
família , privad o. Mas, ainda as sim, trata-s e de
I. Consid eramos. aqui. cada um a destas
artes antes de sua repro dução mecan izada
se ler tom ado possíve l. 13
A exibição das palavras
exceções, até mesmo, antífrases - uso de um termo
por uma espécie de passagem ao limite oposto -
como pode acontecer com qualquer definição: um
automóvel se desloca sozinho e, contudo, às vezes
ele tem que ser empurrado. O teatro é público: a
mesma palavra serve para designar a assembléia
dos espectadores.
(A palavra: público. Mas também a palavra:
teatro. Lembremos que, no lugar teatral grego, de
onde nos vem o termo, "teatro" - théatron - não
designa a cena - que é designada pelo termo skênê
-, mas sim as arquibancadas onde se senta o povo.
Isto mudará: mais tarde, a palavra passa a
denominar, realmente, a área de representação, o
francês clássico vê os atores "sur le théâtre".· E este
deslocamento de um espaço a outro é signo de uma
história. Para nós, "teatro" designa por extensão o
prédio em seu conjunto. Mas, no começo, o teatro é
o lugar do público - do público reunido.)
Denis Guénoun
concerne ao povo tomado em seu conjunto, à
coletividade social e política, ao Estado). É uma
tese : discutível, configurada, que aqui expomos.
O teatro é, portanto, uma atividade intrinse-
camente política. Não em razão do que aí é
mostrado ou debatido - embora tudo esteja ligado
- mas, de maneira mais originária, antes de
qualquer conteúdo, pelo fato, pela natureza da
reunião que o estabelece. O que é político, no
princípio do teatro, não é o representado, mas a
representação: sua existência, sua constituição,
"física", por assim dizer, como assembléia, reunião
pública, ajuntamento. O objeto da assembléia não
é indiferente: mas o político está em obra antes da
colocação de qualquer objeto, pelo fato de os
indivíduos se terem reunido, se terem aproximado
publicamente, abertamente, e porque sua confluên-
cia é uma questão política - questão de circulação,
fiscalização , propaganda ou manu-tenção da
ordem.
Formulemos aqui uma tese: a convocação, de
forma pública, e a realização de uma reunião, seja
qual for seu objeto, é um ato político. Pela reunião,
em si (que , sendo uma assembléia, contém todos
os germes desenvolvidos, ou não, do político), e
por sua publicidade ("público" designa, antes de
mais nada, segundo o dicionário Robert, o que
14 * Théãtre; aqu i, significa palco. (N. da T.)
.,
*
Embora fundamental, esta determinação é
fa cilmente esquecida. É espantoso como o
pensamento do teatro se preocupa pouco com ela:
pensamento cuja história poderia ser contada como
15
A e x i 11 i ç ã () 11 a s JIa Ia v I ' a s
o desenvolvimento de um esq uecime nto da
representação - do fato , do acontecim ento da
representação - em proveito da atenção dispensada
ao representado, ao conteúdo.
Verem os qu e es ta evolução arnnesia ,
cegueira , censur a, como preferirem - duplica uma
linha da próp ria hist ória do teatro: deslocamento
do centro, do coração, do lugar desta arte - a
platéia vai sendo mergulhada na penumbra, o
palco vai se ndo iluminado.
*
o ato, político, de convocar uma represen -
tação pod e chamar o público para uma rua, um
edifício - rara mente para um descampado. Na rua,
é lima aglomeração: é política a escolha do lugar
(afastad o ou ce ntra l, cidade ou vilarejo), da hora
(dia, noite , horário de lazer ou de trab alho) , bem
corno da composição e da forma da assembléia.
Cad a urn a d est as carac te rís tic as tr ad uz urna
relação muito precisa com a orga nização da cidade
e formu la urna espécie de discurso em relação a
ela - consc iente, deliberado , explícito ou não, o
q u e , n est e mom ent o , nã o tem qualqu er
importâ ncia. Tod as es tas posições são assumidas
publicament e - e se instalam fisicamente - no
espaço do político.
D eni s G ué no u n
Num edifício sobrevive ainda alguma coisa
destas determinações . A localização do prédio
(subúrbio ou centro da cidade?), sua forma e o
sistema de suas funções internas, com tudo o que ele
pressupõe no tocan te a escolha do horário, duração
e desenrolar das rep resentações: são es tas as
p'li meiras marcas da política. ~ instância política que
orde na o teatro é, em primeiro lugar , a arquitetura.
Isto não significa que o que é rep resentado no teatro
seja desprovido de significação política, sem projeção.
Simplesmente o que se representa é previamente
ordenad02 pela arquitetura - literalmente, colocado
em cena por ela. A arquitetura, como se sabe, é arqui-
política: art e instituída pela política e que talvez, em
contrapartida, a institua. eensar o teatro a par tir de
oesclições do que acontece em cena, ignorand o o
que a existência, a forma, o lugar, o volume desta
cena devem a uma construção - qu e não é universal
não é óbvia - é pensar o teatro esquece ndo a política
que o orde na - a prescri ção, a convocação política
que o põe em cena.
*
Ora, uma viagem ao reino da arquitetura teatral
(viagem no tempo e também no espaço) impõe-nos
urna constataç ão: a imensa maioria dos teatros foi
constru ída seg undo um desenho circ ula r.
16
2. Prescrit o . d ir igid o, so lic itado -
formu lado CO IIIO uma co uuuu lu. 17
A exibição das palavras Deni s Gu énoun
Antes de tudo porque, ao que parece, o círculo
é uma boa disposição para ver e ouvir. Os teatros
refazem a organização espontânea da aglomeração,
fixando-a: qualquer pessoa que já tenha armado
um tablado num lugar de circulação pública sabe
Não vamos nos deter neste ponto: não é nosso
tema aqui. Basta lembrar que, mesmo se só
levarmos em conta os teatros ocidentais, as três
arquiteturas que marcam sua história: a greco-
romana, a elisabetana e a assim chamada "à
italiana", produziram volumes redondos. Por quê? "
que os curiosos se dispõem espontaneamente num
círculo perfeito - se o espaço não apresentar
nenhum obstáculo, claro.
Será qu e é o caso de pensar que nossos dois
sentidos estão em contradição '? - é que, nas salas
totalmente frontais, os espectadores do fundo vêem
melhor do qu e nas extremidades laterais dos
balcões (nos nossos teatros antigos , lugares
19
Esta explicação não basta: dada a evolução
dos espetáculos, os teatros de planta circular não
oferecem mais, hoje em dia, a melhor visibilidade.
Todas as tentativas de construir salas de fronta-
lidade mais rígida (salas em forma de retângulo,
nas quais cada espectador está de frente para o
palco), por um lado, resultam em lugares onde todo
mundo tem a oportunidade de ver bem mas, por
outro, criam teatros detestáveis: frígidos, para dizer
o mínimo. Qual a razão, então, para esta
superioridade do circular?
• negat ivo: é um teatro cujos muros laterais
não são vistos , porqu c es tão escond idos
por es pectadores. Numa sa la retangular.
as fileiras dc poltron as vão dar. à esq ue rda
e à direita, em pared es lisas ou decoradas.
Ao cont rá rio , nas sa las qu e chamamos de
arredond ad a s. a bs t r a íd as tod as as
difer en ças. dos lad os só vem os o pú hlico
(nos bal cões ou nas arquibancadas do
anfit eatro), cujos assentos mais laterais
quase en costam no palco,
3. Precisemos um pouco mais, tendo em
mente o leito r qu e pen saria apenas nos
"teatros de arena" , áreas circulares que se
prestaram às mais diver sas expe riênc ias .
Este leitor poderia se espantar com a nossa
tese, na medida em que os teatros de arena
são muito raros. A rotundidade à qual nos
referimos aqui designa, por exemplo, o
anfiteatro antigo, construído sobre um arco
de círcul o; o cilind ro perfeito do teatro
elisab etano - a célebre maqu ete do Globe
- no qual as galeri as se enco ntram com o
espaço cênico e chegam até a instalar alguns
espec tadores atr ás da cena; ou ainda à
maioria de nossos teatro s ditos ..à italiana"
(embora e les seja m, co m freqü ên cia,
bastardos), cuja circularidade é ass umida,
so bre tudo. pelos balcões. qu e chegam até
a beira do arco de proscênio (e. na platéia.
os assent os são dispostos. freqü entemente,
em linhas curvas muit o abe rta s).
O que estamos cha mando de teatro circular
pode ser definid o também de modo.18
A c x i b i ç ã o d a s p a I a v I' a s
conside rados quase cegos), em compe nsaç ão,
escutam de forma muito pior ." É verdade . No
enta nto, existe m salas retangulares co m uma
acústica exce lente qu e sofre m, contudo, do qu e
chamare mos provisoriamente de frieza - ausê ncia
desta misteriosa "boa relação" entre o pal co e a
platéia , à qu al todo s os atores se referem, se m
conseguire m defini-la a não ser por uma espécie
de se nsação, enigmática mas incontest ável.
*
Mas o que importa não está aí. ÓS o procura-
rem os - como o leitor pode imaginar - na origem
política da representação teatr al. E se fund amenta
num a observação ingênua: o círculo é a disposição
qu e permite qu e o público se veja.
Deni s Guénou Il
se ouça m (é possível escutar algu ém qu e es tá
atrás de nós), mas é precisamente a es tr utura
qu e permite qu e as pessoas se vejam e distin gam
as dem ais não co mo massa , mas como reunião
d e indi vídu os: p ermit e ve r os r ost os -
recon hecer- se .
Ora, o púlJIico dos teatros não é uma multidão.
em uma aglomeração de indivíduos isolados. Este
público qu er ter o se ntimento, concre to, de sua
existência coletiva. O público qu er se ver, se
reconhecer como grupo. Qu er perceber suas
próprias reações, as emoções qu e o percor rem, o
cont ágio do riso, da aflição, da expec tativa. t lima
reunião volunt ária, fund ada sobre uma divisão. É,
ao men os como es pera nça, co mo so nho, 11 ma
comunida de.
Num grupo, para qu e cada um veja tod os
os dem ais, é preciso es tar em círculo. O círc ulo
não é a organização qu e permite qu e as pessoas
20
4-. Simplesmen tc porque estão longe. Em
duas salas dc igual lotação. os espectadores
menos hem localizados es tão nas late ra is
extre mas dos balcõ cs (c. portanto. nu ma
relação de visão execráve l, mas ruuitíssimo
próxi mos do palco): ó o caso do teat ro
circ ula r. Ou. então. es tão re legados às
[ileiras do fundo (ua hipótese fron tal) e.
port ant o. dc frente. mas longe dem ais.
O pre ço d as e nt ra das d en ot a. co m
freqiiêneia esta hierarquia.
Logo após a Segunda Guerra, fez-se a tentativa
de construir na Fran ça teatros onde o púb lico todo
ver ia bem. Havia nisto um a preocupação qu e
chamava m de dem ocráti ca e (lue se define com
mais exatidão como igualitár ia. As vezes, desejava-
se tam bém , po r razões de mod ernism o ta nto
qu ant o de econo mia, apresentar nu m único lugar
teatro e cinema. O fracasso foi completo. Teatr o e
cinema não reúne m o pú blico de modo análogo.
O cin ema auto riza um a relação individua l do
espec tado r com a tela . Em determ inados períodos
2 1
A e x i biçã o d a s p a l a v r a s
de sua hist óri a, ele favorece esta relação: assim,
faz uns vinte anos, proliferaram as pequ enas salas ,
cujo conceito de conforto consiste em qu e cada
espectador possa afundar na poltrona e se esquecer
do que está em volta. " A forma retan gular se presta
bastant e bem a isto: ela privilegia a melhor visão
possível de cada poltrona diant e da imagem. Ela
não imp ed e , mas também não e nc oraj a a
comunicação entre o público. É possível ver um
filme sozinho numa sala e tirar disto grande prazer.
No teatro, jamais é possível o prazer solitário.
Se a platéia está deserta, a representação fica
prejudi cada. O público quer a percep ção de seu
estar-ali coletivamente. Ele quer se sentir se ouvir, ,
experimentar seu pertencimento, sua reunião. Os
espectadores querem se ver uns aos outros."
D e ni s Gu é n o u n
Daí a necessidade de teatro s circulares."
*
Em que medida esta necessid ade é política?
Vamos esquecer por um momento o teatro.
O círculo permit e a um gr u po que ele se
reconheça. Portanto, que ele se fale: o círculo é a
form a d as ass e mblé ia s - pel o men os das
asse mbléias livres . Que p r essu p õem um a
comunidade consc iente de si mesma e capaz de
decidir seu destino. O anfitea tro exprime esta idéia
de Cidade: reúne o povo todo, ou seus rep resen -
tant es. Mas num ou noutro caso, sua rotun did ad e
d esi gna a co mu nid ade, s ua un id ad e , s ua
autonomia. Ela é a condição da deliberação, bem
como sua figura: o esque ma próprio do coletivo
na democracia.
22
5 . Esta relação é possível no cine ma, e é,
hoje em dia, dominante, Mas ela não entra
na defini ção do cine ma. No inicio do
séc ulo, os cine-tca tros se aprox imava m
mais da aglomeração popu lar. da fe ira e
da festa. E h á qu em qu eira atualmente
d evolv er ao espe t áculo do filme es ta
dimensão perd ida (mais coletiva, d ivertid a)
para combater a desativação das salas de
cinema.
6 . Esta exigê nc ia aparece também em
outros domíni os for a do tea tro . Num
estúdio, por exemplo. Este é un i ponto que
o tea tro e o es po rte têm e m comum.
Exercício: procura r - em outro âmbito - a
diferen ça.
7. Não estamos pretend end o que no teatro
cada espectador veja e reconheça todos os
demais. A arq uiteturatea tra l é complexa e
res ulta de necessi d ad es eonOitante s.
O cí rc ulo é sua ba se , mas de forma
diver sificada. O qu e esta mos querendo
dizer é qu e, se a forma em arcos se impôs
na maioria dos casos, é pr eciso buscar a
razão primeira para este fato na adequação
do círculo ao reco nhecimento eomunitário.
A partir daí. o círculo se man ifesta ou se
desvan ece. triunfa ou recu a, se realiza ou
se fraglllcllta. 23
A exibição das palavras
Ao contrário, uma assembléia reunida em
fileiras retas favorece para cada participante a visão
do que se passa na tribuna: como numa sala de
aulas de antigamente, pouco preocupada em
despertar no auditório a consciência comunitária:
o sentimento era de temor em relação à tribuna.
A precedência é atribuída à relação direta, de
autoridade entre professor e alunos.
Denis Guénoun
Voltemos aos teatros. A arquitetura circular
que os predispõe deixa, portanto, entrever uma
relação fundamental para a afirmação que aqui
fizemos (relação complexa, que será preciso
abordar sem reducionismos - mas relação, ainda
assim): uma afinidade de origem entre teatro e
democracia.
*
A disposição frontal, em fileiras retas e
paralelas, quer combater, desestruturar a cons-
ciência de pertencer a um grupo que delibera
sobre sua história. Ela desarticula a comunidade,
submete-a: ela se parece à formação de soldados
no pátio do quartel para a revista. Vemos um
Parlamento disposto em fileiras retilíneas,
alinhadas diante de uma tribuna? - é a imagem,
infalível, de um regime autoritário. O mesmo ocorre
no nível do simbólico com Congressos e colóquios
de todos os tipos: seu autoritarismo cresce na razão
inversa de sua circularidade."
24
8. Seria preciso acrescentar algo sobre as
formas mistas: como a das assembléias
monárquicas, nas quais, de início ao
menos, as ordens estão frente a frente, cm
grupos compactos. O que a cidade vê de si
mesma. neste caso, é sua divisão, sua
estrutura. Ela se representa, a seus próprios
olhos. não como reunião de indivíduos,
mas como composição de Corpos.
Não se trata de afirmar aqui que o teatro seja
a democracia, nem o contrário. Esta aproximação
concerne às formas: ela aponta uma semelhança
entre a forma originária de um teatro e a forma da
assembléia democrática. Pelo menos no sentido
em que esta palavra está sendo entendida aqui:
assembléia que delibera - e, portanto, que decide
- a respeito de sua história. O que diz esta
semelhança?
Diz que a democracia quer exprimir a Cidade
como comunidade, e que é a questão da
comunidade (o desejo, a nostalgia, a vontade de
comunidade, como veremos) que se mobiliza na
convocação de um grupo como público de teatro.
Tentaremos a seguir compreender por que esta
questão é aí desenvolvida. Como, nós já sabemos:
na forma da assembléia do público, na disposição
circular que lhe permite reconhecer-se.
25
A e x i b i ç ã o das palavra s
E isto nos leva , sem dúvida, a dar um pouco
mais de consistência à nossa determinação do
alcance políti co do teatro (do fato , do aconteci-
mento, da representação teatral, antes de qualquer
exame de seu conte údo ou de seu desenrolar-se).
Como dissemos, a convocação dos espectadores
é, efetivame nte, um ato público - que se processa
no espaço da organização da cidade . E nunca é
indiferente , seja qual for a forma do Estado e seu
regim e, qu e seja convocada, publicamente, uma
reunião na qual se mobiliza o desejo da comuni-
dade. Est e des ejo se r á aí mobilizado talvez
timid amente, de modo velado ou medroso. Ele
se rá, talvez, objeto de coerç ões ou desvios. Mas
ele se rá ali mobilizado - ou então não se es tar á
no teatro. E a provocação , pública, de uma reunião
deste tipo não pod e se r indiferente ao Estado.
Pouco importa se ela lhe sorri ou se ele se põe em
alerta por ca usa dela.
*
A circ ula r id ade do teatro é urna pré-
d isp osição política . Este enunc iado ped e dois
complementos.
Observemos a maquet e do Clobe: é um
cilindro quase perfeito. Olhem os também a planta
de um aut êntico teatro à italiana: a platéia é quase
26
D eni s Gu énoun
circular , a ponto de se encontrar com o palco. O
qu e ocorria também, ao que parece, com os
primeiros teatros g;:-egos - em madeira - até onde
sabemos. Em todos estes casos, o espaç o do
público se fecha pelos lados na direção do lugar
dos atores. E é possível formular isto de outro modo,
por um ligeiro deslocam ento do olhar : os atores
fazem parte do círculo, eles são seu complemento,
seu fechamento , eles agem no ponto em qu e se
completa sua rotundidade.
A pureza do des enho não é o qu e mais
interessa nesta ob serv ação, ma s se u corolário
imediato: os atores são membros da comunidade
reunida, o palco es tá na platéia . O qu e se põe em
jogo no palco não é heterogêneo ao que se mobiliza
no público. O palco é ocupado por urna fração da
comunidade , qu e aí se encontra - originariame nte
- em conse qüê ncia de urna espécie de delegação,
ou, se preferirem (segundo a dupla ressonân cia
da palavra que nos remete a afinidade e a política):
por eleição.
(Dizendo isto, não pr etendem os afirmar qu e
o ator é membro da comunida de por proveniên cia,
por origem. Não : ele entra na assembléia pelo ato
- políti co - da representação. Acontece co m
freqüên cia, desd e o início do teatro, qu e o ator
seja um es trange iro , qu e viaja. Isto não o exclui
27
A exibição das palavras
da comunidade reunida. Pelo contrário.
O momento do teatro na cidade éo convite a esta
narrativa e a este narrador, estrangeiros.)
*
Outra consequencia: a História do teatro
parece feita de uma sucessão, de uma alternância
de episódios inversos. Em certas épocas, vê-se o
círculo surgir, fechar-se em sua forma completa.
Depois vêm tempos - mais longos - em que ele
parece atacado, fracionado, achatado.
Primeiro, fracionado. O palco se opõe ao resto
do círculo. Ele se eleva, se separa: se institui.
O limite entre ele e a platéia, corredor provisório
e cômodo, não funciona mais como aproximação
mas como barra, barreira.
Em seguida, achatado. O palco separado quer
se estender: em largura, em profundidade. Os
lados vêem menos bem. O arco de círculo em que
a platéia se transformou (desde que ela foi
amputada de um fragmento) se abre irresisti-
velmente. A curva se atenua. O teatro se torna
pouco a pouco frontal. Face a face, confronto de
espaços que se afrontam.
28
Denis Guénoun
Este relato, sob a forma que lhe demos aqui,
é, evidentemente, um romance das origens.
A sucessão não é factual nem tampouco linear.
Não obstante, a história do teatro conhece, na
verdade, momentos de irrupção bruta, de invenção
intensa, quando a arte parece se regenerar: o
momento grego, claro, o momento elisabetano, o
momento italiano. Poderíamos apontar também
uma espécie de momento revolucionário na
Europa dos anos vinte. São tempos nos quais o
político da representação (no sentido em que nos
aproximamos dele aqui - como mobilização de
um desejo comunitário e proclamação pública da
vivacidade deste desejo) se afirma sem prudência,
freqüentemente com alegria. E são momentos em
que o círculo se reforma.
Depois então vêm os retornos à ordem: o
círculo se abre, o corte em relação ao palco se
ennjece.
Mas, a partir desta análise, é preciso deduzir
o seguinte: mesmo nas piores épocas de achata-
mento do teatro, este processo não avança até seu
limite máximo. Ele não pode reduzir a represen-
tação ao frente a frente total entre um palco
autoritário e uma comunidade desfeita. Se isto
ocorresse, o teatro, neste ponto, se desvane-
ceria. E enquanto o teatro subsistir, por mais
29
A exibição das palavras
enfraquecido que ele esteja, resta algo da
comunidade desejada, do reconhecimento, do
compartilhar. E, portanto, do círculo.
*
A abertura dos arcos do círculo - o achata-
mento do teatro - não é a única testemunha desta
espécie derepressão da representação em proveito
do representado, deste esquecimento, desta
censura do político originário. Outro exemplo: o
emprego da luz e da sombra.
Nas épocas fortes do teatro (segundo a
acepção, política, que acabamos de esboçar) a
assembléia dos espectadores é visível. Portanto:
iluminada. Às vezes a representação acontece ao
ar livre, em pleno dia - como entre os gregos.
Mesmo à noite o teatro de rua recebe as luzes da
cidade. As platéias são iluminadas: fogo, lâmpadas
- e o Globe Theater não tem teto. Só em determi-
nados períodos e em contextos definidos os
espectadores são mergulhados na obscuridade. O
efeito - político - está determinado: a platéia se
esquece em proveito do palco, como se pode
esquecer o próprio corpo durante um sonho. Ela
se ausenta, o palco parece que está só - o que não
é verdade, ao menos porque o público pode ouvir
seus próprios ruídos e silêncios. Mas ele não se
30
Denis Guénoun
vê. Ele está imaginariamente excluído da
representação, apesar de ser seu fundamento
prrmeiro.
Este obscurecimento não pode aniquilar o fato
político da representação. Ele obscurece a
experiência que ela tem de si mesma.
A representação permanece um ato político, mas
ela sabe - vê - isto com menos nitidez. Assim como
o recalque de um desejo não o destrói nem suprime
seu papel (só encobre seu objeto), o fato de
mergulhar a sala na penumbra não dissolve o
público: isto seria ausentar o teatro. O recalque
do político é político também. Aqui, ele tem o efeito
de cobrir com um véu a comunidade mobilizada
dos indivíduos reunidos e de só deixar aparecer
dela a pequena parte, intensamente iluminada, que
emerge sobre o palco: freqüentemente, aliás,
floresce a idéia do teatro como subespécie da
magra.
*
E, para finalizar estes comentários a respeito
da rotundidade, menciono um último traço desta
história, e dos mais singulares: o destino da
orchestra. A disposição do público em arqui-
bancadas circulares tem como conseqüência
liberar um espaço no chão, também circular, en-
31
A e x i b iç ã o da s p u l u v r a s
tre as primeiras fileiras e o palco. Isto não é
arbitrário nem for çado: basta observar um clown
ou um c a n to r na rua, e ve re mos a platéia ,
es ponta nea me nte org a nizada num cí rc ulo, d eixar
que se form e um gra nde espaço vazio diante d o
ca ntor , do mímico. Também aí os es pectad ores
mai s próxim os es tão nas laterai s. Nó s no s
habituamos co m o fato d e qu e nos teatros também
este espaço seja ocupado p or poltronas. Ma s ist o
é uma e vo lução rccen te.
Os gregos usam este lugar num so be ra no
e q u ilí b r io e n tre c oe rê ncia e in vençã o . El e s
in scre vem aí as evoluç õe s d o coro . At é ond e se
sa be, o co ro é um grupo pouco numeroso (em
vis ta d est e gra nd c espaço) c uja a tivid ad c difcrc
cla ra me nte d a d os a to res : o co ro ca nta e d ança .
Daí qu e eles cons tituc m, segund o reza a tradição,
o e lc me n to mai s atraente: mais popular, d a
rcprcsent ação. So bre tudo - a í es tá a in venção -
não são " p rofiss iona is " da práti ca teat r al. Ao
contrá rio d os a tores, qu c represcntam sob re o
pal c o , o s c o rc u tas s ã o p c s s o a s d o p o vo :
co n tra ta dos por um pcríod o muit o limitad o ,
a pe nas para pa rti cipar d a fcst a, clcs só agcm , na
rep resenta ção, scgu nd o este ca r áte r provisório .
E les provêm , d iretamente , da ass e m b lé ia d o
público.
32
D en i s G u é no u n
O ator também, como afirmamos. Ma s não
seg u n d o o me smo r egime. O ator e n tr a na
assembléia habilitado pela representação. Sua
exis tê nc ia - como membro d e uma profissão ,
confra ria - testemunha uma evoluç ão originária
qu e di stingue o narrador d e seu público . Nas
tragédias gregas, co m freqüência, o ator principal
é também o poeta. Sua fun ção c m cena deveria
se r objeto d e u ma análise - política - profunda:
porque ele figura, freqü entemente, o rei ou o
d et entor do poder, ou se u mensageiro, sc u port a-
voz, se u intérprete. A palavra poéti ca e nunciad a
no pal co é int erpret a ção dos signos d o político, isso
quando a própria int erpretação não é, cla própria,
política, isto é , interior ao di scurso político. Mas
nã o nos antecip emos a resp eito dcste pont o. A ce na
figura a autoridade, o pod er. Ela fala , ficticiam ent e ,
e m se u nome. E o at or que est á no pa lco j á se
di stingu e da platéia , como o pod er se di stingu e na
c idadc . Simplesmente, o ato da representação, e a
di sposição circ ula r qu e o organiza , int egra es ta
autoridade e seu di scurso como uma parte da
co m u nid a de reunida, co loca n d o- a co mo um
fragmento - destacado - dc sc u círculo c não como
uma irrupção externa, incid cnte celeste ou e nxe rto
divino . O palco es tá no teatro como o Olimpo na
Grécia, ele vado, mas c irc unscr ito . I~ ass im qu e a
Grécia representa para si, aqui , pel o men os, o
exte rior : não co mo alte r id ad c d e ess ência, ma s
33
A e x ib i çã o da s palavra s D en i s Gu én oun
*
Se respondêssemos a isto agora, anteciparía-
mos mais que o necessário.
Por ora, basta mencionar o destino que terá
esta superfície surpreendente . Seu vazio será
pouco a pouco preenchido - por dois tipos de
afluência.
Primeiro, pelo público: as poltronas de platéia.
A ocupação deste espaço por assentos é tardia. Nos
teatros elisabetanos e, com freqüência , ainda no
século XIX, o público fica em pé neste espaço: área
de circulação, em geral muito animada e barulhenta.
Os atores reclamam da indisciplina do "panerre",'
35
Este lugar no chão, circular, colocado entre
o teatro e o palco, se chama orchestra. A palavra
vem de um verbo grego que significa dançar: é o
lugar ond e se vê o coro que dança. Por que a
dança? Por qu e é ela que define este espaço? Por
que é que ela deixa seu rastro (imperceptível,
esquecido) na etimologia da orquestra?
*O lermo significa tamLém" andm·rérn,o".
Em port uguês não lemos, no vocabul ário
teat ral, um a palavra para trad uzir partcrre.
espa ~'o des tinad o a espectadore s qu e
assistia m de pé, à re presemnção, e qu e se
distinguia dos balcões, camarotes e gale lilL~ ,
(N. daT.)
Já o coro emana do povo, diretamente. Seus
membros são uma parte da comunidade cidad ã,
provisoriamente encarregada de cantar e dançar. O
público o vê e assim vê a si mesmo por delegação ,
figuração, metonímia. O coro é exatamente uma
representação do público - no sentido político e
mimético do termo. Não resistiremos a uma pequena
antecipação do que virá em seguida - quanto ao
conteúdo, ao representado do teatro. Porque é preciso
observar, sem delongas, que esta delegação do coro
pela comunidade tem sua inscrição legível no texto.
O coro representa - na narrativa - o povo. Ele é a
figura dos cidadãos reunidos diante do Rei - que
está ' no palco - e qu e o interrogam, exige m
esclarecim entos, pedem -lhe contas, solicitam
respostas. A tragédia conta as respostas do Rei ao
povo- sua responsabilidade. Esta é a invenção grega
do Teatro: a projeção na área central , liberada, no
chão, pela constituição circular das arquibancadas,
de um grupo de cantores e dançarinos saídos do povo
por delegação direta e que o povo vê como vê a si
próprio , aos pés da autoridade, que o domina,
interpelando-ade baixo, perguntando-lhe pela palavra
e pelo sentido.
como fragmento alterado de si. O palco é a figura
- arquitetural e poética - de uma exterioridade
assim colocada no interior da assembléia. Ele é o
signo comunitário do estranho.
34
A exibição das palavras
Território do público menos bem aquinhoado
financeiramente - ao contrário do que acontecerá
no futuro, quando aí serão fixadas as poltronas
frontais.
ooutro ocupante que virá se instalar aí depois
da desaparição do coro é o grupo dos músicos (que
por isto recebe a denominação de orquestra). Por
muito tempo a orquestra conservaráos vestígios
de sua origem: conjunto proveniente do povo. Nas
cidades pequenas, por exemplo, a orquestra reúne
músicos do lugar - enquanto os cantores, no palco,
são, com freqüência, viajantes vindos da capital
ou do estrangeiro. A cooperação entre eles evoca
os ofícios religiosos nos quais o coral - o coro - é
composto por paroquianos, enquanto que o
oficiante empresta sua voz ao discurso, todo-
poderoso, do Outro.
*
Por que pretender, então, que o ator está em
cena por delegação, por eleição? Quanto ao coro,
pode ser, porque ele se origina diretamente do
povo. Mas o ator? Que é um estrangeiro, de
passagem...
Vamos recorrer, novamente, a uma ficção
sobre as origens. O público se junta - no salão de
36
Denis Guénoun
festas de uma cidadezinha. O espaço está vazio, o
chão nu. Na véspera, aconteceu ali um baile, as
cadeiras estão empilhadas, encostadas na parede.
Alguém arma um tablado - dois praticáveis que
estavam desmontados num canto. As cadeiras são
arrumadas em círculo. Todos se sentam.
O presidente da associação agradece ao prefeito,
aos bombeiros. Depois convida um ator a subir ao
palco improvisado. O ator sobe. Talvez seja um
morador da cidade, conhecido da maioria dos
presentes - mas é o menos provável. Talvez seja
um viajante que chegou naquela manhã mesmo.
Pedem-lhe que suba: é o grupo, pela voz de seu
representante, que o chama, atribuindo-lhe o lugar
do recitante, do criador de histórias. A constituição
originária do teatro corresponde a este romance.
O ator só está no palco porque foi convidado, por
eleição da assembléia - mesmo que ele seja um
visitante de passagem por um único dia.
*
Seria preciso ainda pensar qual o estranho
elo que liga a autoridade com o exterior o outro, ,
para que a comunidade chame com tanta
freqüência um estrangeiro para assumir o papel
(usar a máscara, pronunciar as palavras) daquele
que detém o poder.
*
37
A e x i h i ç ã u tia s palavra s
oque concluir de tudo isto? O teatro acontece
num espaç o politicamente pré-di sposto. Por quê ?
Qu e espéc ie de afinidade (do teatro com o político)
este pare ntesc o d e lugar exprime?
Primeiro a seguinte : o teatro reúne um público
que tem, ou acredita que tem, ca pacid ade d e
d ecisão políti ca. E ntre os gregos, o público é a
cid ade toda. Todos os cidad ãos são convoc ad os .
O Esta do os ajuda , concede-lhes um a nti-impo s to,
um a subvenção por d e ve r d e presença. Tod o o
povo, potencialmente , se vê nas arq uibancad as -
as mesmas que a asse mbléia políti ca usa, traves
d e mad e ira , provisórias , d esmontáveis , remon-
tadas pa ra a festa. A a tração d o momento é tão
grande q ue a cid ade fica d eserta: os bandidos, di z
Aristófanes, se esba ld a m nas cas as a ba ndonadas .
É, pois , a própria política , a fJOli;~ reunida , qu e
cons titui o espaço d o fat o teatral. E a instância d o
pod er político - apto à decisão polít ica - que assiste
à re presenta ção .
A observa ção vale também para o teatro de
Corte . A Corte reunida no teatro é aquel a qu e , por
sua proximidade com o Rei, sua influência sobre ele ,
exe rce a autori d ade sobre a vida p ública. Ela inclui
a família, os ministros, os consel he iros, as ca mmi lhas .
O próprio Rei pode aparecer ali. As platéias modernas
aind a corroboram es ta co nstatação. As ge rações que
38
D e n i s G lI én o ll n
se batem por um teatro de rua são as que acr editam
qu e é a Rua que faz a d ecisão p olítica (lugar
insurrecional , lugar de Revolução). O público burguês
do teatro de bul evar qu er controlar as rédeas da
cidade. A assembléia de notáveis qu e lota certas salas
de província se vê diri gindo a vicia pública local.
E os professores, a classe média ou os ama do res qu e
apó iam o teatro de AI1e se vêe m como sujeitos ativos
da democracia liberal mod erna . Mesm o a afluência
de um público "operário" - e m geral composto de
qu adros ou líderes de associações ou sind icatos -
qu e fez o sucesso de um ce rt o teatro dito popul ar
depois da Liberação não pode se r compreendido se m
a es pe rança, a vontade de parti cipação na decisão
política nestes se tores de um a sociedade e m Iase de
fort e sind icalização .
(Pod e-se ded uzir daí o seguinte, que vale pa ra
a co nte mpo ra ne idade : se a co rrelação es tá corre ta,
não nos espa nta re mos co m a baixa de afluênc ia
ao s teatros neste per íod o de desapreço pelo político.
A a bs te n ção a fe ta s im u lta ne a me nte os d oi s
espaços . O teat ro não poderia se r rea b ilitado a
não se r nu ma é poca d e d emoc racia rea vivad a
porqu e um pú bli co só ve m ao teatr o q uan d o
ac red ita , sa be ou qu e r se r pol itica me nte a tivo. )
O cí rc ulo permite a todas estas asse mblé ias
conve nc idas de sua pr ópri a hab ilitação política qu e
39
A e x i b iç ã o da s p a l a v r a s
se reconheçam. Nas arquibancadas , a cidade grega
se ree ncontra e se vê.Y Nos teatros à italiana, o
público burguês gosta de se exibir. Os balcões são
propícios a isto - a plat éia de pé pode aplaudir
um recém- ch egad o ilu stre . Cer tos camarotes
limitam com a cena - a visão é péssima , mas quem
está ali es tá em evidê ncia. No teatro da corte, o
Rei se mostra. Às vezes com a nob reza, ele toma
assento no palco , ao lado da a ção . ! ? No teatro se
exibe uma idéia (uma vista) da cidade reunida.
É por isto que ele é um teatro do mundo: a Cidade
se vê como análoga ao cosmo - e o teatro figura
sua unid ad e esférica - o Globo .
*
D eni s G u é no u n
O teatro acontece no espaço do político. Num
lugar marcado , ocupado, pré-disposto pela aptidão
(real ou fictícia) para a deliberação e a decisão
políticas.
Pode-se dizer que o teat ro faz políti ca? Não,
não exatamente . O teatro acontece no es paço
político, mas ele faz com que aí aco nteça algo
diferent e daquil o que a política faz acontecer. Há
teatro no lugar da política (dent ro de seu es paço,
mas também em seu lugar - como uma usur-
paçã o). A representação teatral co nsis te em
produzir, na área assim organi zada, determin ada
- uma outra pal avra , outros signos , outros
adventos de sen tido .
*
40
9 . Coletivamen te, claro, levando-se em
conta a dim e nsão c o número . No q ue diz
respei to ao tamanho, pen sa mos nos nossos
mo d ernos es tá d ios - no s q u a is o
recon hecim ento ta mbé m de se mpen ha se u
papel , mas com outras regra s, as de u m
combate simulado, e m torn o do q ua l os
hab itantes das cidades expe rime nta m o
bru tal desejo de afirma r se u pcrt encimen to
- e ncontrando, ás vezes, so b o jogo, como
que uma guerra real.
10. No teat ro de Corte, a d isp osição não
tende necessari am enle à circ ularid ade.
t q ue, como a soc ieda de é extre ma me nte
hierárquica , se o Hei es tá no palco vê-se d a
Cid ad e tud o o qu e é pr eciso ver - co mo
num parlam ent o sta linista.
Alcançamos o limite deste primeiro percurso,
- conclusão provis ória , hipótese: o teatro acontece
no es paço do político e produz outra coisa
(diferente da política).
O quê?
41
11.
Já observamos várias vezes qu e o desenvol-
viment o acima diz respeito à representação: antes
de qualqu er exame do qu e aí se mostra ou se
enunc ia, ant es do representado. l~ preciso tratar
disto agor a e perguntar para qu e atividade o
público se reún e neste teatro, por qu e atração
comum - visto qu e outras reuniões, de aspecto
se melhante , acontecem e m outros lugares: no
conce rto, no estádio, na missa. Uma asse mbléia
se reúne no teatro - par a fazer o qu ê?
Para ver. - Ver e ouvir, assistir, sentir? Claro,
porém mais essenc ialme nte ainda: para ver.
Tea tro provém do verbo grego que significa: olhar.
E se, na arquitetura antiga, o termo designa o lugar
do público (mais qu e a cena ou a orchestrai, é
pri meiro por es ta raiz: o teatro (as arquibancad as)
é o lugar de onde se vê.
43
A e x i b i ç ã o da s p a l a v r as
Uma expressão corrente, a respeito de um
espetáculo bem-sucedido ou de um ator talento so,
diz qu e ele faz ouvir o texto. Apontaremos aqui
um abuso de linguagem. Fazer ouvir um texto é
fazer dele uma leitura, em voz alta. Uma leitura,
mesmo pública, não é teatro. É uma atividade qu e
mantém com o teatro laços profundos e complexos
- voltaremo s a isso - mas ela é infra, extra ou
prototeatral, como preferirem: não é exatamente
teatral.
D en i s Gu énoun
o teatro só germina quando alguma coisa é
proposta à visão. No entanto, o ato de mostrar não
é o suficiente: há atos sem elhantes (no estádio, na
missa) que também dão a ver e não são teatro no
sentido estrito. Isto também não equivale a dizer
qu e o teatro se limita a mostrar - o dar a ver não
esgota sua natureza, ele não mo stra tudo ,
indiferentement e. Mas o visível é necessário para
que o teatro se form e. É o âmago, o coração de
se u advento.
Como compreender então qu e certas leituras
produzam uma impressão de teatro (e às vezes de
um teatro que se rviria de exe mplo a muitas
representações - pela inteligência , ~ prazer e até,
pod eríamos dizer, a teatralidade)? E qu e alguma
coisa aí se dá a ver qu e talvez seja eminentemente
teatral. Imaginemo s a audição pública de uma
gravação: I I isto sim, se destina ap enas ao ouvido.
Neste caso, qualquer vestígio de teatro es taria
proscrito. Uma leitura pública produz efeitos de
teatro porque o leitor - que deve fazer ouvir o texto
- é visto. Teatro germina nesta visão.
44
1 1. Destinad a. por exemplo. a fazer ouvir
a voz de algné m que já morr eu . Ou a
ap resentar. nUJII tcutrn , UJII tr ab alh o
sonoro . com as caixas de so m no palco
(não é uma fic ção . já assisti a uma sessão
deste tipo).
(Então, é impossível o teatro para cegos? Não.
Ele existe. É aqu ele qu e, num sentido extre mo, os
faz ver.)
*
o p,úblico se reúne. É para ver. Questão
subseqüente: o que é que ele vem ver? O que é
que o teatro lhe mostra?
Vamos pro ced er pas so a passo, por aproxi-
mações - cada vez mais restritivas, se tudo der
certo. Obs ervemos o caso mais freqüent e (antes
de chegar às situaç ões -limite , aos confins , às
margens). Geralment e, o qu e é levado à cena é
um texto. Um texto é urna seqüência de palavras.
As palavras são eleme ntos de linguagem. E a
linguagem não é da ord em do visível.
45
A e x i h i ç â o d a s p a l a v r a s
Trata-se aqui de apontar para dois planos da
reflexão. Inicialmente, o fato , empírico de que a
linguagem se es ta be lece primeiro na pa lavra e ,
portanto, sen sorialmente , no elem ento da escuta .
As palavras pertencem originariame nte ao uni-
verso sonoro . Não são vistas. O qu e o teatro quer,
o que ele produz, aquilo sobre qu e trabalha é o
colocar à vista, é o ato de mostrar as palavra s -
que es tão, por natureza, no ele me nto do invisível.
O teatro qu er exibir o invisível , dá-lo a ver.
O leitor pod e ficar tranqüilo: sabe mos qu e
há o escrito. E qu e o escrito é precisam ente a
tran scri ção visua l da linguagem. Acreditamos até
ter compreendido qu e es ta transcrição atravessa
inicialm ente a pa lavra, que ela marca sua origem
e não lhe conce de o es paço de nenhuma so no-
ridade pura, pr é-escritural, anterior à efetuação
d e seu s tr aços . Mas a escr ita produz sig nos
determinados - grá ficos, a té mesm o pict óri cos -
e queremos afi rmar o seguin te : não é es ta
visibilid ade que o teatro busca. O teatro não
trab al ha no tornar-visível das palavras expondo ao
olha r números e letras. Uma ence nação não é a
apresentação di ant e d o público d e grandes
configurações grá ficas. Esta diferen ça é profunda,
essencial. Ela tem rel ação, antes de tud o, co m o
fato de qu e a visua lidade do teatro não é a d a
pintura. Um qu adro, colocado no palc o, não é
46
D eni s G ué no ll n
tea tra l. Ali, uma belíssima obra pictórica passaria
quase desp ercebida. Os bon s ce nários pintados,
são, em geral, pinturas medíocres . E os bo ns
pintores- cenógrafos sa be m tirar partido des ta
diferen ça. O dar a ver qu e a pintura propicia e o
qu e o teatro exige são coisas heterogên eas. Por aí,
o teatro se afasta da qui lo que, na escrita, participa
do pictural - e, portanto , desta forma de dar a ver
as pa lavras.
Mas a escrita não é ape nas uma região da
pintura. Ela produz uma visualiclade qu e atravessa
e ult ra passa o es paç o da obra pin tada - ou
desenhada. Ela é um arqui-sisterna de traços ao
mesm o tempo abstratos e físicos, cuja teori a não
vamo s (relprodu zir aqui, visto que não é es te nosso
objetivo. Assin alaremos ap enas qu e o recurso ao
visível , qu e age na escrita , tem rela ção co m a
ausên cia da pal avra: a retirada do locutor , a falt a
d e s ua presença efe tiva , o afastamento ou a
in-disposiçã o do falante para pron unciar es te
discurso no lugar e no tempo para os quais a esc rita
o leva . O teatro não dá a ver os vestígios, os
depósitos, os subs titutos de uma pa lavra a use nte .
Q teatro qu er o corpo e a voz. Ele exige a própria
palavra , no ato qu e a profere. E ele qu er vê-la.
(O qu e não acarreta, intui-se, talvez , qu e o
teatro nã o tenha rela ção alguma co m a es crita -
47
A e x i h iç ã o da s p a l a v r a s
aco ntecime nto vis ível de um a pura presença
imediata. Claro que nã o.)
*
Neste sentido, port anto, a lingu agem não es tá
no ele me nto do visível. É o primeiro plano de
refl exão: as palavras são in-visíveis porque se
enuncia m e m sonori dades. Isto diz resp eito à sua
materi alid ad e , a seu corpo - a orde m do s signifi-
cantes , grosseirame nte faland o.
Mas as palavras participam também do não
vis íve l por i n te r m éd io d o ele me n to d e se u
significado. Efetivamente, o significado é da ordem
da intelectu alidade - do inteligível e , por isto,
di stinto do se nsíve l, d o qu al o visível é parte.
Tentarem os nos precaver contra os efe itos d e
contaminação: prim ei ro porque os conteúdos da
int el igibilidad e p od em muit o bem in clu ir
significados cujos referentes são coisas visíveis,
significados qu e tratam do visível, qu e o pen sam.
É o qu e acontece com a palavra " vermelho", cujo
significado não é, e m si, vermel ho, nem muito
men os visível (da mesma forma qu e o conceito de
cachorro não late) .
Alé m do mais , nas tópi cas tradicionais do
se ntido, o intelecto recorre a uma metáfora do olhar
48
D en i s C u é no u l1
para designar se u próprio es tatuto: o pen samento
co mo visão do espíri to. Mas isto , ao men os numa
primeira aproximação, nad a mais é que uma figura
de estilo. E , mesm o se , no fundo, é d ifícil imaginar
um conceito do inteligível totalmente livre desta
metáfora do visual, somos levados a respeita r a
di stinção - sob pe na d e mis tu rarmos tud o.
Aceitaremos, po is , para e feitos ope racionais,
qu e as pal avras , por seu significado ta mbé m
(e, portanto, na medida e m que abrem caminho
para o int eligível ) participam de u m ele me nto
fundam entalmente não-sen sível : portan to, não vi-
sual.
~s 'palavras são so m e se ntido: duplamente
" imostr áveis" , E o teatro qu er dá-las a ver.
*
Porqu e o teat ro, no que lhe diz resp ei to, não
usa o vis ua l co m o me tá fo r a - co mo faz o
pen sam ento, que pretende ver, mas ap enas com o
olho ana lógico do logos. Com o o teatro, a teoria
esconde um a referên cia ao ver e m se u núcleo
e timológico . Mas , nes te ponto, o pa re n tesco
permanece lon gínquo: o qu e o teatro qu er é o
visível em si , em sua efe tividade se nso rial. É ver
ve r dadeirame n te. É faz er advir diante das
arquibancadas algo d e realmente, fisicamente
49
A e x i b i ç ã o d a s p u l a v r a s D en i s G ué no u n
*
Qual é a utilidade desta asser tiva? Puro prazer
do paradoxo? Queremos atrib uir ao teatro uma
espécie de utopismo, uma disposição vaga men te
apresentado, a ponto de, como veremos, esta
efetivida de da apresentação tornar-se pou co a
pouco sinônimo do próprio teatro. O teatro quer o
corpo, as coisas, exibidos sob se us olhos. O visível
como se nsaç ão. O estético.
E este corpo, qu e ele quer olhar, perscrutar,
es ta matéria visível da qual ele qu er fazer se u
objeto de teatro - é o corpo, a matéria das palavras
qu e por essê nc ia sã o imprópri as à vis ta ,
i-mostráveis (porque são feitas de sons e idéias).
O teatro qu er ver o invisível: e é a esta singular
impossibilid ad e qu e ele consagra, ao menos nos
últimos vinte cinco an os na Eu ropa - mas, sem
dúvida, também ant es e em outros lugares - tod o
o e nge nho de se us art ist as: a tores, pintor es ,
figurin istas, ce nógrafos, m úsicos.!" bailarin os ,
maestros, artesãos - toda a ar te de sua en-cenação .
prometéica , qu e o conde naria a se mpre tentar o
impossível? Não, nada disto. Esta determinação
do teatro - dar a ver uma matéria de palavras -
leva a olhar precisam ente a ativida de que ali se
desenvolve e talvez mesmo , acreditamos - lan çar
alguma luz sobre o encontro entre seus atores e o
público qu e os assiste.
51
O qu e o teatro faz, portanto, é produ zir algo
visível a parti r de palavras. Í~ este, exatamente, o
conteúdo da ence nação. A ence nação é uma art e
- ou um saooir-faire - ligad o a dois âmbitos: o
lingüístico e o visual. E esta art e se desdobra no
espaço delimitado por es tes dois domín ios, ele é a
arte da passagem de um ao outro, da inter-relação
entre o textual e o corpo extenso. Se o teatro perd er
uma destas du as amarras, ele se desfaz, nega a
própri a essência. l ú se disse a respeito da leitura:
o teatro sem visibilidade não é teatro, é apêndice
do escrito, protuberância do literário. E es ta
tent ação o habita se mpre: teatro qu e não passaria
de literatura dramática , proferi ção de pala vras.
Teatro sem corpo: fechado, reabsorvido pela pura
vocalidade - mas vocalidade mutilad a, deficien te,
porque o alcance da voz não se reduz a suas
produ ções sonoras, ela não se esgota na esc uta;
o ator qu e fala, qu e pr ofere, qu c faz "sair" a voz é
também um at or qu e se oferece à vist a , na
exposição de sc u esforço físico , da ação corporal
12 . A m úsica de teatro não é simplesmente
m úsica. f: m úsica orde nada segundo a a rte
de mostra r. de fazer ve r. Podc ría mos
ob serva r a se u respei to o mesm o q ne
observamos sobre a pintura: a força de uma
partitura musical não ti torn a auto ma ti-
ca mente teatral (e vice-versa),50
A e x i h i ç ã o d a s p a l u v r a s
de sua boca , de se u pescoço , do enraiza mento do
sopro que afeta se u corpo inteiro. Isto também o
teatro most ra aos olh os. Reduzido ao som e ao
se ntid o, ele se r ia desencarnad o, d escarnado,
privad o de todos os seus atrativos físicos - mesmo
dos da carne visível d o som e do se ntid o.
Mas o teatro pode também perder a outra
amarra e se red uzir ao visua l, à pura mostração.
Chamare mos es te es pe tác ulo de ativid ade cê nica
que produz o visível pelo visível, se m dar a ver
sua proveniência no in- visível d o texto e d as
palavras . O espe tác ulo é o co r po d o teatro
isolad o. t;l
É o qu e urna certa teologia chama de a carne:
não o corpo oposto ao espíri to, mas o COll JO privad o
de espírito, o corpo desabitado, o corpo vazio .!"
Portanto , não a matéri a , mas a matéria órfã de sua
rela ção fundadora co m o se ntido . O es pe tác ulo é
o visual sem o texto invisível que o chama. E como
es te tex to - mes mo no es pe táculo - es tá se mpre
aí, o espetáculo é este efeito de cena que se pretende
se m palavra, se m linguagcm originária , se m escrito
D cni s C ué n o u n
fundador. Não é o corpo, mas a ideologia do cor-
po ra l: o efeito de ilusão que vela e recob re a
prove ni ência do te atral na lingu agem e no
i-rnos tr ável das pa lavras.
Dupla tentação, portanto, em qu e o teatro é
solicitado a se renegar du as vezes: como literatu ra
ou como espe t áculo. É entre os dois qu e o teatro,
propria men te, se ma nté m: e ntre as palavras
invisíveis e a ex tensão da ce na, nesta improprie-
da de radica l q ue des-natura o texto exibindo-o,
engana o olho oferecendo-lhe palavras e dá a ver,
infatigavelm ente, o imp róp rio desta exibição.
*
A essênc ia do teatro é o pôr/em/cena. Tese
provocante - posso até ouvir o gri to das ligas da
virtude . Especifiq uemos. O qu e qu er dizer es ta
afirmação brutal? É uma injúria aos atores , aos
autores, uma negação da sua preeminên cia? Claro
que não, é exa tame nte o co ntrá rio, se lermos
corre tamente . É a colocação de sua fundame ntal
- e simé trica - necessidade no princípio do tea tro.
52
13 . Cuy Debord teria esc rito: sepa rad o.
1,I·. Evacua ção quc não devolve o corpo à
sua essência pri meira (mat ória se parada);
cla o priva. ao con tr ário , de nma parte de
se u ser - a linguage m originária que o
inscreve e o chama. O espetáculo é o corpo
do teatro afásico. desccrc hrad o.
Primeiro o aut or. Para que o teatro seja posto/
em/cena, é preciso qu e ele seja o pôr em cena de
alguma coisa . Pod em os afirmar sem ambigüida de:
o tea tro é a vinda à ce na de um texto originário, de
53
A e x i h i ç ã o d a s p a l a v r a s D en i s G ll é no ll n
de ele se distinguir do ato cIe suas enunciações
sucessivas, cIe a escrita o colocar nesta necessária
autonomia em relação às vozes qu e vão qu erer
levá-lo à ce na. I ,';
O texto é um escrito, um escrito literário ,
livresco. O autor é urn escritor. Com o texto tudo
começ a, nele tucIo se funda e se origina . Mas o
texto não produz, por si só, a teatralidade do teatro.
iA teatraliclade não es tá no texto . Ela é a vincIa cio
texto ao olhar. Ela é es te processo pelo qual as
palavras sae m d e si mesmas para produzir o
visível. A teatralidacIe é o próprio pôr/em/cena.
uma matéria de palavras. Não é direção de cena,
agen ciam ento de cores e form as, pura disp osição
do visível : isto é qu estão de es pe tác ulo, teatro
nenhum se produz ass im. O pôr/em/cena é a art e
de colocar diante dos olhos a linguagem, o verbal, o
textual. O teatro só é fiel à sua essê ncia na medida
em qu e coloca a anterio rida de de um texto, distinto
do ato da rep resentação e cuja representação é a
passagem ao visível. O teatral, sendo propriamente
es ta vinda (a ence nação, o pôr em ce na), não pode
dispensar o texto primeiro, ant eri or , distinto dele e
dotado de urna existência autônoma. Nisto ele difere
do cinema , cujo texto inicial é um instrumento
comprometido com a produção do filme. É o frlme
qu e se põe em obra, enquanto qu e no teatro é a
escri ta. O texto de cine ma não tem autonomia -
por isto sua relação com a publicação é mais incerta
e em sua definição não entra a aptidã o para servir a
várias real izações sucessivas, enquanto o texto de
teatro se coloca, de saída, como distinto de qualquer
das realizações qu e lhe darão corpo. Ele pode ser
levad o à ce na várias vezes, em diversos países, em
diversas époc as, com atores e diretores diferentes.
É por isto qu e ele faz parte do corpus literário: ele
existe, em sua autonomia, corno texto e corno livro .
Nes te se ntid o, o texto d e teat ro é neces-
sariame nte esc rito: não porque a ence nação vise
a reprod uzir se u cará te r esc riturai, mas pelo fato
54
15. H á exce ções not órias : recentemen te ,
obras de Iloh Wilson ou Tadeu sz Kanl or,
por exemplo. .Iá referimos aci ma qu e toda
ca racte rização pod e se r desm en tida pelo
e feito de sua própria passagem ao limite .
Seg undo Hegel : " Não í: c.u ac te riza ndo
uma es p écie por um a defin ição qu alqu er
q ue chegare mos ao conce ito desta espécie.
1..•1Definindo, por exe mplo. o anima l por
sua livre mobilidade. por se u poder de
deslocamen to, percebe mos logo quc a ostra
c mu itos outros an imais n ão ca be m nesta
defini ção; definindo-os pela se nsibilidade .
per cebe mos qu e a mimosa. q ue nãoí: nm
a n i ma l. po ss u i. no e n ta n to . e s ta
se nsibilidade ." Efei to da rel atividad e de
tod as as coisas. rebeldes ao conceito? Seria
sumá rio dem ais. No cas o q ue esta mos
a ho rdu udo . trat a-se ant es de um trab a lho
do própri o conceito: a teatral íd ade nos dois
i n ve n t o re s a tua e xa t a ni c n te co mo
confro ntaç ão polêmi ca co m a essê nc ia do
teat ro (vista co mo saída da liflguagclll para ... 55
A e x i h i ç â o d a s p u l a v r a s
*
E m s eguida os atore s . Muitos ofícios
conc orre m para a exibição do texto . O ce nário,
q ue é consid erado bom quando manifes ta a lgo da
obra esc rita - e tanto melhor quanto mais ocu lto,
menos patente e s ta va aquil o q ue e le tor n a
manife sto. Ma s o ce n á r io é o bj e to d e u m a
desconfian ça porque sua relação com o texto é
aleatória, pode parecer exte rior. Qualquer teat ro
é " exterior" - o teatro é o mo vimento mesmo da
exte riorização, do devenir exte rio r das palavras .
No tocante ao ce nário, o perigo é q ue o elo que
une a palavra a es ta figura extern a seja cortado ou
dis-tendido.
A pri meira e mais necess ária modalidade do
tornar-visível da língua será falada pelo COlV o do ator .
É o princípio, o começo desta saída das palavras diant e
dos olhares, é o arq ui-teat ral , Porque o elo que un e
esta exteriori dade ao texto é necessário, retesado. Este
D eni s Gu énoun
elo se prende à voz, cuja a mbigüidade é aqui
fundadora: palie integrante do un iverso sonoro e ,
portanto, daquilo qu e o teatro visa e procura mostrar,
a voz es tá no coração do som e do se ntido. Mas, já se
disse qu e ela, por se u próprio corpo, suas cordas
tensionadas no corpo do ator, suas ca ixas d e
resso nâ ncia vibrantes e mobil izadas, participa
originariamen te da visualidade cê nica. A voz es tá
dup lamen te inscrita no som e no espaço. Ela coloca
e institui seu próprio limite . A es te respeito, ela está
no coração, no núcleo do teatro . Não qu e o teatro se
reduza à vocalidade como parte do mu ndo dos sons .
Mas o teatro se produ z no exato limite entre o som e
o corpo, onde a voz es tá precisamente aloja da.
O ator é a font e da teatralidad e . Ele é o ponto
de passa gem da palavra para o corpo, o lugar d e
irrupção, de orige m da palavra no es paço visível
da ce na . É nisto que a atividade do ator participa
muito esse nc ia lme n te do pôr/em/cena co mo
coraç ão da produção do teatro.
56
(
~ fora de si mesma). O teatro. corno qualquer
art e. é assombrado pelo desejo de colocar:i
prova s e u limite , pel o so n ho d o
trausho rdameruo de sua própria essência -
e o sonho é prod utivo. Kantor ou Wilson
tensionam . até o ponto da rup tur a. o elo
para doxal entre o corpo c a visibilida de da
língua - a estra nheza do texto ao visível. o
estranho ílsico das palavras - o olha r do
surdo, por assim dizer.
E isto d et ermina at é a funda çã o d e s ua
a tivid ade própri a: a atu ação , o jogo d o at or.
A atua çã o não é abso lutamente a pura enunc iaç ão
do text o (segundo o regim e de s ua lite ra r iedade),
também nã o é a instalação no coração do simulado,
do factício, da imagem. A atuação é exa tame nte a
atividade qu e cond uz do texto ao visível. A atuaçã o
57
A e x i h i ç ã o d li S (l li I li V I' li S
é a passagem ao jogo. O que é propriamente teatral
na atuação é o jogo desta impropriedade que entra
em jogo , qu e faz nascer o jogo e mostra ao olhar
sua irrupção. É nisto qu e o jogo é essencialmente
lúdico: o jogo não é um domínio próprio , definido,
circ unscrito no âmbito do qual se ria possível se
colocar por um savoirf aire. O jogo é o pôr em
Jogo.
Para falar de outro modo , o núcleo, o coração
do jogo do ator é se mpre um certo quaruum de
improvisação. Se o jogo do ator se fixa, se estabelece
- sejam quais forem as marcas, os ges tos, as
entonações qu e parecem por um instant e defini-lo
- deixa de ser jogo para se esgo tar na rep rodu ção
mimética. O jogo do ator, claro, não é alheio à
imitação, mas o qu e o funda como jogo é o ato de
imitar, não a figura (a mímica) qu e disto result a.
Se não se trata , no momento do jogo, da passagem
livre e, de ce rta forma, aleatória, de uma palavra
ao visível, se a tensão qu e leva de um a outro se
esgo ta, se o ato de represent ar - a passagem ao
jogo - desaparece no resultado, o jogo se eclipsa .
E com ele o teatr o. O teatr o é se mpre a passagem
do texto ao teatr o. A passagem do texto ao visível
- ela própria torn ad a obje to do olhar.
O qu e estamos aqui tent ando determinar é
como o arqui-teatral do jogo do ator, o nascimento,
D eni s G uén o u n
o começo do teatral no jogo, qu e aí funda sua
teatralidade (o pôr em jogo, a passagem para o
jogo) , talvez tenha algum elo com o qu e a língua
comum chama de "o natural". Realmente, como
explicar qu e o público desaprove imediatament e
toda e qualquer atuação qu e pareça " teatral"? No
teatro, isso é o cúmulo.1(, Como compreende r es ta
ce nsura, tão freqüent e: "dá pra ver qu e ele es tá
representando, ele não é natural"? Proponho aqui
a seguinte tradu ção: "o que a gente vê é o resultado
do jogo da atuação, não o pôr em jogo". Não se vê
o jogo vir, 'provir do não-jogo. Não se vê o
nascimento do jogo do ator, o nascimento do teatro,
quer dizer , o próprio teatro. Só se vê o representado
- não a representação.
(Aproximação inesperad a: entre a qu estão
qu e está se ndo aqui debatida e a qu e discutimos
ac ima - a qu estão política . Pod eríamos diz er
então: a passagem ao jogo da atuação é o que mostra
qu e o ator em ce na é membro da comunidade dos
espec tadores . Ele é natural, ele é como um de nós.
Ele não é ator por essê ncia, mas porqu e, num dado
momento, ele começ a a atuar, ele entra no jogo.
O entrar no jogo da atuação é o vestígio, em ce na,
do gesto de convite pelo qu al o ator foi chamado a
subir ao palco. ]~ o começo do teatro, seu prin cípio,
sua produção a partir da cidade. É seu fund amento
58
16, Cf. G Uf;i\Oll N. Denis. Le d éuudemcnt ,
in l.es temps modernes, jan . 199 1. 59
A e x i b i ç â o da s p a l a v r a s
co m unitá r io, político. E o apagam ento da
passagem para o jogo, reduzida à mímica pura
seria como qu e o corolário do eclipse da sala em
ben efício do palco, do esquecime nto da assem-
bléia , da qu al o palco é ap en as uma parte. É por
isto que os atores populares - cômicos, por exemplo
- atuam tão bem: eles não param de passar ao
jogo da atuação , de fazer o vaivém entre o jogo e o
não jogo. Isto está relacionado a seu modo, político,
de conduzir a representação: eles não esquecem
jamais a platéia , tomam-na como testemunha,
dirigem-se a ela em longos monólogos, multiplicam
os apa rtes, enviam-na se m cessar ao se ntime nto
que ela tem de si mesma - este é um dos prin cipais
efeitos do riso - e são, port ant o, pou co suspe itos
de se enclausurarem no espaço imagético da ce na.
Eles jogam a represent ação contra o representado ,
freq üentemente até em sua esc rita - Moli êre faz
isto se m par ar. )
E, dep ois, a passagem para o jogo da atu ação
não age ap enas em sua forma mais explícita (as
fissuras e retomad as do jogo cômico, por exemplo).
Ela trab alh a o coração do jogo, se mpre - mesm o
nos momentos mais simulados, mais exteriores,
mais fixos. Como espaço da improvisação, mesm o
em meio às marcas mais rep etiti vas. Ela é a arte
de encontrar a proveni ên cia aleatória no mais
íntimo do retorno do mesm o. Ela é o testemunho
60
D en i s G ué no u ll
do nascimento do visível a partir do não-visível,
como um buraco negro, um abismo no fundo da
imagem , atestando sua vinda a partir do nad a, e
sem a qual ela não é mais uma imagem, mas uma
coisa: privada da atividade, nela, do imaginário,
do devenir-i magem ela imagem da ficção - privada
do jogo.
*
Nada há , em tud o isto, qu e atente contra a
dignidade dos atores, dos autores. Trata-se de dizer
que, na pr ópri a atividade deles, o todo do teatro
consiste no pôr em ce na, qu er dizer, nesta função
singular qu e qu er abrir ao visível a matér ia ncgra
e cega das palavras. Ator e autor são os dois pólos
fund ad ores do teatro: pólo verbal, literário, textual
e pólo físico, corpora l, expos to à vista. Entre eles
se coloca todo o teatro: não há nad a além deles, da
atividade de se pôr e m relação. Mas nem um nem
outro podem prescindir desta viagem , do percurso
deste espaço qu e os separa e ao mesmo tempo os
reúne: se o ignorar, o autor se fechará entre os
livros, e o a tor se ence rrará nos es pe táculos .
O teatro acont ece na travessia qu e conduz de um
ao outro - é o espaço da interpretação, o espaço
aberto do sentido. A interpretação é es te adve nto
do se ntido ao se nsível. O sentido não es tá nas
pala vras antes de lhes se r proposto um corpo
61
A e x i h i ç â o da s p a l a v r u s
aleatório e mutante. Ne m nos corpos que nenhum
texto invoca. O sentid o es tá na int erpretação,
caduca, provisória, aberta. Na passagem para o
jogo, o pôr em jogo da escrita - o pôr e m ce na .
E é isto que o público olha. O público não olha
ap enas os corpos e as imagen s - neste caso ele
es tari a no registro do espe táculo, não no do teatro.
O público do teatro qu er ver a passagem do texto
à ce na. Ées ta demanda qu e sustenta se u olhar tão
singular. Este olha r pré-supõe o texto. Ele escava
a ce na para ex umar o texto so te rra d o (invisível).
O olha r do espec tado r é aqui um a estra nhíssima
abertura para a escuta . Não no sentido de qu e ele
deveri a fech ar os olhos para ouvir. Pelo contrário,
ele deve abrir be m os olhos para perscrutar a cena
e d istinguir aí os sinais da passagem (invisível) do
texto. O q ue o espectador olha é o jogo dos traços
imagéticos qu e at est a a p resença aqu i, física,
corpo ral, de um texto qu e age na so mbra, obscuro,
e cuja onipresença é uma espécie de ausência
ativa. O texto é um livro qu e ca da ator teve por
muito tempo nas mã os e o público sabe disto , ele
olha a representação dos atores corno inteirament e
determinada por um livro ausentc.! " O público
D en i s Guénoun
ficará completamente de cep cionad o com o teatro,
enganado em sua expectativa, se não perceb er nada
desta vinda de um texto prévio até a ce na. Por isto
as novas encenações de textos clássicos desempe-
nharam várias vezes o papel de manifesto das
mudan ças de época da teatralidade - porque elas
dão a ver, co m uma clareza meridiana, o trabalho
do texto ausente nos corpos e bocas visíve is. É por
isto qu e as novasp eças são tão difíceis de encenar,
porque elas levam muito tempo a dar a ler sua
teat r alidad e , para alé m da sua literariedade :
porque o primeiro olha r só mu ito d ificilmente
co nsegue di ssociar o texto d os signos que o
transportam e é necessária, no e nta nto es ta
dist inção para qu e o caminho do texto à ce na seja
visível - para qu e haja teatro . Beckett só agora
es tá alcan çando isto.
E, no e ntanto: a viagem do texto à ce na qu e
deve se r lida, vista, a distân cia qu e um clá ssico
facilmente, facilmente até dem ais co nsegue, é
muito mais difícil- e tamb ém muito mais divertida
- de se produzir co m um co nte mporâ neo - e é o
62
I 7 . t por isto que se pod e sentir um prazer
tão es pec ial e m ver um ator represe nta r
co m o texto na mão . t o qu e acont ece nas
sessões - muit as "ezes mem oráveis - em
que. numa emergência. um ator ausent e é
su listituido por outro ou até pe lo próprio ~
~ di ret or , São mom entos de teatro mui to
raros. t isto que raz também - c com justiça
- o sucesso de ce rtas " leituras-espet áculo".
qu c se considera m um a es pé cie de teatro
incompleto, p rovisóri o c produz e m algo
como o a rq ui-tcatro . Aí se torna visível.
e minc ntc me nto co rporal. o salto so bre o
palco das palavras ocultas e ntre as p ágiuas
qu c o alor lem nas mãos. 63
A c x i 11 i ç ã o da s "a I a v " a s
olha r so bre isto tudo que funda o prazer, o júbilo
singular do público de teatro . É o qu e ele procura,
o qu e ele es pe ra . É isto que ele veio olhar quando
se reuniu nas arquibancadas circ ulares. Se este
prazer se apaga, poderemos ainda por algum
tempo utilizar os edifícios teatrais, mas para outra
coisa que não sua vocaç ão: o es pe tác ulo avulso, a
atração do visíve l em si mesm o: jogos de circo e
de sa ngue .111
*
Isto é o qu e eles vêm fazer no teatro: ver a
passagem do texto pelos corpos. Idéia curiosa.
Realmente, esta atividade do teatro se desdobra
numa região muito determinada: lugar onde se coloca
a qu estão da relação do visível com o invisível, do
se nsível com o não-sensível. Espaço de interroga ção
relativa à fundação do sentido fora da sensação, à
viagem do se ntido em direção do COlV O. Lugar de
um limite, de uma passagem - de uma passagem ao
D en i s G ué no u n
limite oposto. Lugar onde se abre a questão da relação
entre o COlVO e se u outro, relação fundadora e
instituinte que insere o visível, o se nsível - o físico -
na questão de seu outro, de sua relação com o outro.
O espaço da atividade teatral é o espaço da abertura
do físico a seu outro ativo e ause nte: espaço, já
compree nde mos, da pr ópria questão metafísica.
Podemos daqui por diante avançar um pouco
na determinação daquilo que funda e faz o tea tro
- daquilo qu e o teatro fun da e faz. Como vimos, o
teatro é uma reunião políti ca, qu e acontece num
es paço politicamente determinado, mas com o
obj etivo de aí produzir uma atividade que difere
do políti co propriament e dito. Já conhecemos es ta
atividade: ela consiste em dar a ver a proven iência
do visível na língua, o tornar visível das palavras
i-mostráveis, isto é, o tentar abrir para o sensível o
próprio não- sen sível. O qu e o teatro faz (no espaço
do político), é colocar a qu estão metafísica sob o
olhar da comunidade reu nida .
Idéia (políti ca) curiosa , temos qu e convir.
64
18. Estou pensando no circo romano. claro
- não nos circos popu lares de onte m.
lugar es de uma art e dig na. embora muito
difer ent e do tea tro . Os jogos do circo têm
se u eq uivalente e m nosso mundo, mas
uunhéru em outros luga res - em qua lque r
Ingar em que a busca do fascínio do visível
por si mesmo leva a ofe recer o espetáculo
do sa ng ue . I~ qu e e le a tra i o olha r,
realmente.
*
Que rer, assim, que a ativida de do teatro seja
funda mentalmente metafísica não é forçar o sen tido
das palavras? Não - se compreendermos que não se
trata, para ele, de enunciar a questão nos termos
65
A e x i b i ç ã o das palavr a s
(filosóficos) do que se convencionou chamar discurso,
história da metafísica. Trata-se de trabalhar esta
questão sob a forma muito particular de um recurso
ao visível das palavras diante da comunidade reunida.
Também a referência explícita ao metafisico como gê-
nero de discurso , não é nem necessária nem, de modo
algum , a garantia de que a questão seja claramente
explicitada em cena - pelo contrário, ela é, a este
respeito, às vezes o pior dos indícios. O que ocorre é
que a atividade teatral , por natureza, quer que a ques-
tão seja aí levantada. O que é uma última confirmação,
Denis G ué n o u n
de um a multiplicidade de cop ias de qualidades
variáveis mas de dignidade equivalente no que diz
respeito à relação com a "essência" da obra. No
sentido estrito da palavra, não há original na fotografia,
mas ape nas uma cópia-testemunha, padr ão, Ora, a
po ssibilidade d e uma r eprodução me cânica
indefinida produz um efeito sobre as condições de
exercício da arte: a invenção da fotografia modifica a
história da pintura. O que acontece com o teatro, do
ponto de vista desta relação?
Porque o teatro não é mais o que era. As condi-
ções de seu exercício foram profundamente
transformadas pela possibilidade de sua reprodução
mecânica.!? Como é sabido, Walter Benjamin
tematizou ,na esteira de outros pensadores, mas se-
gundo uma problemática nova, aquilo que muda na
alie quando a obra não se apresenta mais segundo o
brilho singular (a aura) de um original único. Um
qu adro difere, por sua aura, da série de suas cópias.
Em compe nsação, uma fotografia não é nada além
66
19. O raciocínio que seguc faz. evid ente-
mente . re fe rência a \Valter Ben jamin:
L'oeuire d 'art à I 'é poque de sa reprodua ioii
mécanis ée, diversas publicações cm francês.
entre as quais BENJA MI.-':. Wa lter. Ecrits
fra nçais, Paris: Nouvelle Hcvue Fran çaise,
1991 . (Em português, o ensaio A obra de
arte na era de sua reprodu tibilidade técnica
foi publicado pela editora Brasiliense (19B.'))
em tradu ção de S érgio Paulo Houan et . /lO
volu me 1 das Obras escolhidas dc Walter
Benj amin . N. da T .)
O teatro conheceu, no começo do séc ulo XX, a
irrupção brutal e ameaçadora de sua reprodução
mecânica: o cinema. O cinema, ao menos numa das
direções abertas por seu nascim ento, afirma-se como
teatro fotografado. Por algum tempo, - bem pouco
tempo - o teatro se preveniu contra esta rivalidade
pela prevalência do original diante de múltiplas (e,
acredi tava ele, fracas) cópias . Esta defesa não se
sustenta. Por razões econômicas e, logo depois,
também artísticas, a competição entre os dois
" teatros" se torna acirrada. O cine ma parece
desfrutar de todas as vantagens, em especial por sua
capac idade de figurar tudo o qu e escapa ao teatro: a
corri da, as montanhas, as multidões, os animais .
Es ta concorrência incita cada um a das duas
artes a afir ma r sua originalidade. No cine ma, ela
leva à ela boração de um léxico , de um a sintaxe
67
A e x i b i ç ã o ria s p a l n v r a s
específica : planos gerais, movimentos d e câme ra,
mo ntagem. E no teatro? Qu e efeito produzem no
teatr o a apari ção e depois a difu são quase universal
das imagens filmadas ?
Elas estimulam o teatro ao aprofundamento
d e sua essê ncia . Logo o teatro se torna o seguinte:
a co locação diante do observador do que não é
fil mável. Isto é: de tudo que escapa a qualquer
reprodução. Colocação da própria coisa, do estar-
aí da coisa. O teatro se torna o gesto da mostração,
na medida em que visa não à forma do obj eto
mo strado, sua figura, se u desenho, sua co r - tudo
o qu e a câ mer a poderia captar e reproduzir
in definidame nte - mas na medida e m que co loca
dian te do olhar, ali, sob os olhos, a coisa em si em
sua fe nom en alidade, o aparecer d e se u estar-aí, o
qu e poderíamos c hamar de se u apare-cer-aí. O
aparecer-aí da coisa é a sua teatralidade.
O q ue só ve m, ev idente me nte, reforçar a
determinação me tafisica do teat ral. O teatro, daí por
diante, não se contenta mais em convocar para o palco
o visível que so breveio a partir das pal avras. Ele
interroga o aparecer-aí da pr ópria coisa, usando pm'a
isto da condição singular (política) de seu aparecertaí):
o qu e faz com q ue as palavras produzam este visível-
aí, enq ua nto ele está aí, es te jorrar de visibilidade,
de sen sibilidade , aí, d iant e do povo reunido, sob
D en i s Gu én oull
seus olhos, na atualidade de sua reu nião, nestas
arquibancadas, nesta cidade, neste dia e nesta hora
aprazados.
É por isto, e so me nte a partir daí, que se pod e
emancipar um pouco o teatro de sua relação co m o
olho, com a ocularidad e como sensação singular. Esta
relação (de mostraçã o do aparecer- ai , do tornar
se nsível-aí palavras) é, com efeito, mas no limite,
extensível à escuta. É possível imaginar - mas como
uma espécie de extremo - um teatro de sons, um
teatro da so mbra. Teatro da noite , do eclipse, do
mom ento de obscuridade qu e se opõe às luzes como
os silênc ios habitam a música. Momen to no qual ,
também pela orelha , se tira a prova do aparecer-aí
de um corpo - de um sopro, de uma voz - q ue pode,
realmente , por um mom ento, ser cegamente ouvido.
IVIas é a borda da se nsação, sua confirmaç ão pelo
extre mo - e ainda é preciso qu e os olhos perscrutem
o escuro. Aliás, não há teatro do nariz ou das mãos.i"
*
Qu al é, portanto, esta es tran ha idéia (política)
do teatro? Es ta idéia que o teatro tem e que põe em
cena no es paço do po lítico? Por qu e a assembléia
d os espectadores é convocada , publicam ente , a se
reunir no lugar do po lítico para aí ver co locada a
questão metafisica? Qual é o alcance , a significação
(polít ica) d est a reunião?
68
20. No se ntido de um teatro impossível
do olfato ou do lato. 69
A e x i h iç ã o d a s p a l a v r a s
Numa frase: o alcance desta reunião deveri a
ser levar a co munidade a co nsiderar o fund am ento
não político do político. Levá-la a observar qu e o polí-
tico não tem seu fundam ento em si mesmo , mas res-
ponde por outra coisa que não é ele. O político result a
de um a necessid ad e que o ultr apassa, que ele deve
servir, diante d a qual ele deve responder. O político
não é se u pr ópri o horizon te e é trabalhar para torn á-
lo ind igno cnclausurá-Io na conside ração de si próprio
ap enas, se m que ele jamais tenha q ue se abrir a es te
outro diferente dcle que o inscreve c o chama. É isto
a id éia (política) d o teat ro: congrc gar a cid ad e,
publicamente unida na mobilizaçã o de seu desejo
de co munidade, para convidá-la a tomar assento no
lugar da assembléia política, para abrir o político para
outra coisa fora de si mesm o." Para fazer, portanto,
um pou co de metafísica, não há dúvida . Mas não na
produção obriga t ória das pal avras c da sintaxe do
discurso metafísico: no olhar sobre signos visíveis qu c
exi bem um a palavra soterrada, um livro ausent e, para
expô-lo à vista como jogo sensível dos textos e dos
COIlJOS.
Para se r capaz disto , o teatro precisa, se m
dú vida, ter a dignidade de jamais se acreditar simples
D en i s G u é n ou l1
jogo de cena , adulação do olhar; ele precisa ter a
dignidade de nunca esquece r que só se apresenta ali
porque foi convidado por uma comunidade reunida;
ele precisa ter a dignidade d e nunca obscurecê-la ,
nunca relegá-l a à so mbra , admirando ap enas a si
próprio; ele precisa ter a dignidade de jamais ce de r
ao desejo político de fazer com qu e a comunidade se
cale ou de organizá-la em classes. Porque é esta
comunidade que o institui e m seu louco desejo de
olhar o invisível e exige , para isto - para que haja
teatro - ser livre, pelo menos um pou co, em suas
reuniões, suas narrativas e nas injunções qu e escolhe
diri gir a si mesma qu ando co nvida es trangeiros a
tomarem lu gar e m seu círculo para e xib ir o
i-rnostrável das palavras .
La Cluutreuse, Villeneu oe-les-A vignon,
Abril 199]
70
2 I. í-: nesta medid a que o político do teatro
uão pode se r mcd ido pcla politizaç:i o dc
seu co nte údo. Sua di mensão po litica es tá
prec isam e nlc e m sua capae id adc d c
pro duzir urna qu est ão uão-política e de
inte rroga r e m se u no mc o político. Isto .
• podc figurar no texto - ou não (trabalha r a
assembléia. ape nas).
Talvez seja necess ári o ver nisto uma razão
para o ca nto e a da nça. O cauto marca csta
palavra co mo poét ica. e. portanto. não-
política : a política não canta. E a dan ça é
como qu e a exposi ção fisica do canlo. Ela
inscr eve na vi sibilidade do corpo o poético
- o musica l, o rítm ico - da palavra. 7 1
Quatro objeções
1. o teatro pode realmente convocar uma
comunidade política? Não: não quero dizer
aqui que o teatro convoca. Ele é, antes,
convocado. Não é ele {mas o que é "ele"?
É alguém? Duvido; não é ninguém, "o" teatro,
não um sujeito, nem um ator, apenas um fato,
fatos, às vezes um acontecimento) que convoca
seja o que for. Uma convocação ocorre. Ela é
pública. E faz da representação, inesca-
pavelmente, uma questão política. O que
convoca o teatro vem do lado político
propriamente dito. É então o político'? Seria
supor que o político se convoca, coisa de que
eu também duvido. Alguma coisa convoca

Continue navegando