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Fonte: http://introducaoaodireito.info/wpid 01. Do ensino médio ao ensino superior A passagem para o ensino superior deve ser encarada como um marco na vida intelectual do aluno, que, normalmente, acaba de deixar o ensino médio. Como toda transição, pode ser sentida de um modo positivo ou negativo. Há uma diferença essencial entre o ensino médio e o ensino superior: no primeiro, o professor está, em sua maioria, lidando com crianças que se tornam adolescentes; no segundo, está lidando com adolescentes que se tornam adultos. Ora, o papel do professor deve ser diferente em cada um dos casos. O professor de ensino médio deve cuidar de todo o processo de aprendizagem do aluno. Não basta apresentar os temas em aula, mas deve também acompanhar e supervisionar o trabalho individual de estudo do aluno. Isso significa entregar ao aluno material de leitura (livros e apostilas) pré-selecionado, fazer exercícios rotineiros para verificar o aprendizado e interferir constantemente nas atividades. Por que o professor de ensino médio deve se comportar desse modo? Simples: seus alunos não possuem, ainda, maturidade suficiente para a aquisição do conhecimento. Precisam contar com a supervisão de um profissional para fazerem as melhores escolhas. Mas isso não ocorre no ensino superior. Neste momento, os alunos caminham para a maturidade. Ser maduro significa ser capaz de tomar as decisões mais importantes de sua vida. O aluno torna-se adulto. É capaz de pensar e de fazer escolhas. O papel do professor se modifica. Ao lidar com adolescentes que se tornam adultos, não deve assumir uma posição de controle e de supervisão. Sua função é simplesmente indicar os caminhos a serem trilhados. O aluno escolhe como e quando percorrer. Grande parte dos professores do ensino superior limita-se a expor o conteúdo da matéria em sala de aula e a indicar um livro-base que trata do tema. Somente isso. O resto, é com o aluno. Ele terá que anotar a aula, ir atrás do texto indicado e estudá-lo. Sozinho. Apenas procurando o professor para tirar suas dúvidas. A primeira coisa que todo universitário deve aprender é justamente a diferença entre o ensino médio e o ensino superior. Quanto antes perceber isso, menos traumática e mais gostosa será a passagem 02. Requisitos para o estudo: vontade, tempo, organização Os estudantes de direito que desejam adquirir todos os conhecimentos sobre um determinado tema de aula, devem seguir o Roteiro Completo de Estudo. Para tanto, é indispensável possuir duas coisas: 1. vontade e 2. tempo. Quanto ao requisito “vontade“, devemos constatar que nem sempre o tema estudado despertará o interesse do aluno. É perfeitamente normal que, em um curso de introdução ao direito, haja temas que pareçam mais interessantes ou menos interessantes. Assim, sugerimos que o aluno adote todos os passos para estudo daqueles temas que reputar mais interessantes, e “pule” alguns passos quando estudar temas de que goste menos. Em outras palavras, diria simplesmente: estude mais aquilo de que você gosta e menos aquilo de que você não gosta. É sempre mais chato e menos promissor fazer o que é desagradável; é mais interessante e estimulante fazer o que é agradável. Por outro lado, o requisito “tempo” nem sempre é tão subjetivo quanto o anterior. Muitas vezes o aluno possui “vontade” de estudar o tema, mas carece de “tempo” para fazê-lo. Na nossa sociedade capitalista, a grande maioria das pessoas depende de um emprego para sobreviver. Ser assalariado em grandes cidades, por exemplo, toma quase todo o “tempo” do estudante, seja pelos afazeres típicos da profissão, seja pelo cansaço gerado por outros fatores, como o transporte precário e o desgaste emocional do cotidiano. Com isso, o estudante precisa desenvolver uma habilidade específica e fundamental: organização. Por mais que disponha de “vontade” para estudar um tema, o “tempo” poderá ser curto. Então, o aluno precisará gerenciar seu tempo, escolhendo quais os passos do Roteiro Completo de Estudo irá seguir e os distribuindo nos períodos disponíveis durante a semana. Mas cuidado: consulte o Roteiro Mínimo de Estudo ao gerenciar seu tempo. É muito importante que você não elimine medidas essenciais para seu aprendizado, sem as quais estará gerenciando mal seu tempo, ficando, ao final, desestimulado e sem “vontade”. 03. Roteiro Completo de Estudo Pensando no aluno ideal do ensino superior, apresentamos o Roteiro Completo de Estudo. Tal roteiro pode ser utilizado em quase todas as disciplinas, embora tenha sido elaborado para aquelas de cunho teórico. Roteiro Completo: 1. Informando-se sobre o tema (antes da aula) • pesquise na internet sobre o tema a ser estudado (procure definições e conceitos) • leia rapidamente artigos de periódicos eletrônicos (jornais e revistas) • procure textos sobre o tema na biblioteca (em livros e revistas) • anote suas dúvidas iniciais • formule perguntas sobre o tema 2. Assistindo à aula • ouça atentamente o discurso do professor • interprete o que foi dito • anote conforme seu entendimento • crie tópicos para organizar seu caderno • anote suas dúvidas e faça perguntas assim que possível • anote as respostas às perguntas • peça sugestões de leitura 3. Estudando (após a aula) • leia as anotações de aula • busque compreender tais anotações • leia integralmente o texto-base sobre o tema • releia, com mais cuidado, o texto-base, grifando as ideias principais • “fiche” o texto (resuma as ideias principais grifadas) • leia outros livros, conforme seu interesse pelo tema, e, se for o caso, faça novos “fichamentos” • feche os livros e escreva um texto sobre o tema, usando como referência o caderno e as “fichas” • anote suas dúvidas e consulte o professor • pense nos pontos principais e elabore perguntas sobre eles • responda, por escrito, às perguntas 4. Consolidando o estudo • antes de estudar o novo tema, releia seu caderno, a “ficha” do texto-base e seu texto sobre o tema anterior • tente entender os conceitos e as ideias • após cada leitura, feche os olhos e pense no tema • repita, pelo menos, uma vez a cada quinze dias os procedimentos deste tópico para todos os temas estudados LEMBRE-SE: 1. “Entenda” as aulas 2. Tire suas dúvidas 3. Anote sempre que possível 4. Estude todos os dias 5. Converse com os amigos sobre os temas estudados 04. Roteiro Mínimo de Estudo Seja por falta de vontade, de tempo ou de organização, o aluno pode ter dificuldades para seguir o Roteiro Completo de Estudos. Quando, excepcionalmente (assim esperamos), isso ocorrer, recomendamos a adoção do presente Roteiro. Roteiro Mínimo de Estudo: • assistir às aulas e anotá-las • tirar suas dúvidas • reler, semanalmente, as anotações de aula • escrever um resumo (de cabeça) para cada tema estudado • ler, se possível, o texto-base CUIDADO: • fazer menos do que o roteiro mínimo é plantar para colher dificuldades na véspera das provas • se for estudar apenas na véspera da prova, limite-se a ler e a resumir as anotações de seu caderno; NÃO leia, pela primeira vez, o texto-base neste momento, pois você terá mais dúvidas do que certezas 05. Nomenclatura – histórico normativo Se observarmos os livros que pretendem introduzir os alunos ao direito, notaremos, de antemão, que possuem títulos muito parecidos, porém com uma diferença nos termos utilizados. Qual a razão para essa diferença? Podemos, vasculhando a história dos cursos de direito, encontrar uma possível explicação: existem normas que, em diferentes momentos históricos, trazem uma nomenclatura diferente para a disciplina. Chegamos, assim, ao Decreto n. 19.852, de 1931, que exige o oferecimento, nos cursos de Direito,de uma disciplina denominada “Introdução à Ciência do Direito”. Tal nome é mantido até a Resolução n. 3, de 1972, que passa a chamá-la de “Introdução ao Estudo do Direito”. Por fim, a Portaria 1886, de 1994, refere-se, simplesmente, à “Introdução ao Direito”. Curiosamente, a atual Resolução n. 9, de 2004, que rege o funcionamento dos cursos jurídicos, foi omissa quanto a conteúdos introdutórios ao direito e/ou à sua ciência. De qualquer modo, ficamos com duas possibilidades: Introdução ao Direito ou Introdução à Ciência do Direito. Será que, independentemente das razões históricas, haveria outros motivos para a diferença? Desenvolveremos a questão noutro momento 06. Introdução à Ciência ou ao Direito? Vimos, noutra postagem, que as normas referentes ao funcionamento dos cursos de direito referiram-se a nossa disciplina como Introdução à Ciência do Direito, Introdução ao Estudo do Direito e Introdução ao Direito. A partir daí, surgiram manuais enfatizando um ou outro dos títulos. No exterior, uma rápida pesquisa em francês e em inglês seria capaz de revelar que a expressão Introdução ao Direito é preferida: Introduction au Droit e Introduction to Law. Mas, será que a distinção revela alguma diferença conceitual? Ou trata-se apenas de uma preferência terminológica, sem consequências práticas? Podemos constatar que existem duas finalidades básicas de uma disciplina do gênero: 1. Apresentar o aluno a um fenômeno social chamado direito; 2. Apresentar o aluno ao estudo desse fenômeno social. Pois bem, a distinção pode revelar a preferência do autor do livro. Os livros que recorrem à expressão Introdução à Ciência do Direito (e sua variante mais frequente, Introdução ao Estudo do Direito) consideram que a função básica da disciplina é mostrar ao aluno o modo de se estudar o direito. O fundamental seria, assim, mostrar quais as principais abordagens possíveis ao fenômeno social e quais os temas básicos discutidos pelos estudiosos do direito. Já os livros que recorrem à expressão Introdução ao Direito enfatizam o fenômeno social. O objetivo básico é descrever, para o aluno iniciante, as características básicas desse fenômeno. Em outras palavras, mostrar ao aluno o que é o direito, que será estudado nas inúmeras disciplinas dogmáticas. Por fim, devemos constatar que, não obstante a diferente postura apontada, os livros escritos no Brasil terminam por apresentar uma semelhança estrutural muito grande, não fugindo a uma mescla básica de apresentar a ciência que estuda o direito e o direito enquanto fenômeno social ao mesmo tempo 07. Natureza e Cultura O ser humano destaca-se dos outros animais. Em sua existência, não se limita a aceitar o mundo natural que o rodeia, mas o modifica, construindo a civilização. Podemos considerar a natureza como o conjunto de todas as coisas que existem em estado bruto, ou seja, independentemente da interferência humana. Não foram os seres humanos que construíram as florestas, os rios, os minerais, as estrelas… Todas essas coisas já existiam antes do nascimento do primeiro humano e poderão continuar a existir após o desaparecimento da espécie. O ser humano, porém, destaca-se dos demais primatas justamente pela capacidade de modificar a natureza. Não se limita a aceitar aquilo o que é dado quando de seu nascimento, mas age no sentido de modificar o seu entorno. Desde cedo aprendeu a utilizar lascas de pedra e pedaços de madeira como instrumentos, construindo lanças e outros utensílios. Aprendeu a manipular o fogo, ocupando lugares até então inóspitos aos primatas. Graças a sua capacidade de transmitir seus inventos e suas modificações a seus descendentes, o homem passa a produzir cultura. Podemos, assim, definir a cultura como o conjunto de tudo aquilo o que o homem constroi modificando a natureza. Incluímos no conceito não apenas objetos materiais, mas também objetos espirituais, como comportamentos, crenças e manifestações artísticas. Os bens culturais, diferentemente dos naturais, não existem sem a participação humana. Ao contrário, é imprescindível que o ser humano aja para que se produza a cultura. Assim, em resumo, constatamos que a natureza é um DADO, enquanto a cultura é um CONSTRUÍDO. Bibliografia básica: BETIOLI, Antonio Bento. Introdução ao Direito. São Paulo: Saraiva, 2011, lições I e II. REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. São Paulo: Saraiva, cap. III a V. 08. Sociedade, valores e controle social O estudo do Direito deve partir, necessariamente, da constatação de que se trata de um fenômeno SOCIAL. Ou seja, o direito só existe na sociedade. Dito isso, torna-se um requisito definir a sociedade. Numa disciplina de Introdução ao Direito, essa definição corre o risco de ser classificada de superficial. Não é seu papel problematizar a noção, feito reservado a outra disciplina, a Sociologia. Porém, mesmo correndo o risco da simplificação exagerada, é importante apresentar uma definição, pois sua falta acarretaria prejuízos maiores para o aluno que busca compreender o direito. Muitos pensadores concordam que o ser humano é naturalmente dotado da sociabilidade, ou seja, tende a constituir sociedades. O mesmo fenômeno seria observável em outros animais, como as abelhas e as formigas, por exemplo. Mas somente o ser humano é capaz de transformar sua sociedade natural em uma sociedade cultural, modificando-a conforme seus objetivos. Podemos definir a sociedade como um conjunto de pessoas que se comportam para atingir determinados objetivos. Não existe sociedade com apenas um indivíduo, mas, sim, com vários. Não existe sociedade com apenas um comportamento, mas com um conjunto de comportamentos. Há de se notar que os comportamentos humanos em sociedade tendem a se pressupor, ou seja, cada comportamento espera outro comportamento de outra pessoa e foi, do mesmo modo, esperado pelos demais. Os comportamentos são marcados, assim, pela previsibilidade. A razão de as pessoas se comportarem de um modo previsível é justamente o fato de a sociedade buscar a realização de valores. Espera-se que cada comportamento e/ou a soma dos comportamentos permita à sociedade transformar alguns valores desejáveis em realidade, modificando essa realidade. Podemos afirmar, ainda, que a sociedade natural torna-se uma sociedade cultural a partir dessa busca valorativa. Mas, o que é um valor? O valor é uma qualidade ideal que se pode atribuir às coisas, constatando-se que, caso essas coisas correspondam ao valor almejado, tornar-se-ão satisfatórias. Por exemplo: o respeito é um valor. Quando uma pessoa se relaciona com outra e demonstra respeito nesse relacionamento, seu comportamento será bem visto, pois corresponde a um valor esperado. Do contrário, se a pessoa demonstra desrespeito, seu comportamento não possui a qualidade valorativa que dele se espera, sendo considerado indesejável. Ora, os seres humanos se reúnem em sociedades culturais e se comportam de um modo previsível porque, precisamente, buscam concretizar nas relações sociais determinados valores. Uma sociedade ideal, por exemplo, seria aquela em que os seres humanos, entre outros valores, concretizariam, em todas as relações com os demais, o valor dignidade da pessoa humana. Infelizmente, todavia, nem sempre é fácil identificar quais os valores efetivamente concretizados por uma sociedade. Nem sempre esses valores verificados na realidade correspondem aos valores proclamados pela sociedade como almejados. As sociedades capitalistas, por exemplo, pregam buscar a concretização de vários valores mas, na prática, muitas vezes, apenas buscam concretizar um valor, de natureza econômica, chamado valor de troca. Supondo que se identifiquem os valores efetivamente buscadospor determinada sociedade, logo se detecta que existe um risco: as pessoas podem se comportar de um modo que não os realize. A fim de evitar comportamentos indesejáveis ou até de corrigi- los, as sociedades desenvolvem mecanismos de controle social. Surgem instrumentos que permitem à sociedade padronizar, de antemão, os comportamentos desejáveis, geralmente por meio de regras (normas). Os instrumentos mais comuns são: religião, moral, costumes e direito. Chegamos, assim, ao direito. Consiste em um instrumento de controle social que se destaca dos demais, pois procura dirigir as condutas de forma a concretizarem determinados valores por meio de um conjunto de normas preciso e bem estruturado, tornando-se um mecanismo que gera maior segurança e certeza para as pessoas. Recorrendo às normas jurídicas, os membros de uma sociedade sabem exatamente qual o comportamento que devem adotar para a concretização dos valores sociais. Autor: prof.Adriano Ferreira (53 Posts) Prof. Dr. Adriano de Assis Ferreira Doutorando em Filosofia e Teoria Geral do Direito (USP) Doutor em Ciência Política (PUC-SP) Doutor em Literatura Brasileira (USP) Mestre em Direito Político e Econômico (Mackenzie) Mestre em Teoria Literária (USP) Graduado em Direito (USP) Professor na Universidade São Judas Tadeu (SP) email: prof.adriano@gmail.com 09. Normas físicas Se definimos a natureza como o conjunto de objetos que existem independetemente da ação humana, isso não significa que essas coisas sejam “imóveis” ou não se modifiquem ao longo dos tempos. Um olhar mais atento, ao contrário, revela que a natureza é uma soma de fenômenos e processos em constante transformação, que levam à criação (natural) de algumas coisas e ao desaparecimento (natural) de outras. Os climas, os relevos, a fauna e a flora transformam-se constantemente, mesmo sem a interferência dos seres humanos. Além disso, os objetos naturais relacionam-se entre si continuamente. Corpos se chocam, animais se enfrentam, raios incendeiam florestas… Diuturnamente a natureza dá provas de seu dinamismo. Os seres humanos, talvez impressionados pela grandeza natural do globo, talvez movidos pelo espírito curioso que lhe é peculiar, buscam, desde os mais remotos dias, compreender as relações e as transformações que se desenvolvem na natureza. Observando os objetos naturais, descobrimos que existem algumas constâncias em seus comportamentos. Percebemos, por exemplo, que dois corpos que possuem massa tendem a se atrair reciprocamente, movidos por uma aceleração contínua; ou ainda, que algumas substâncias, em determinadas condições, alteram seu estado físico, passando de sólido a líquido e de líquido a gasoso. Essas constâncias podem ser descritas como “normas” ou “regras” físicas (a palavra grega phýsis significava “natureza”; assim, a palavra “física” equivale a “natural”). Tais normas enunciam as relações entre objetos naturais, constatando que, dadas determinadas causas, haverá, necessariamente, uma consequência. Um exemplo é a chamada “Lei da Gravidade”, citada acima. Os homens, como dito, constataram que massa atrai massa. A Terra, dado seu tamanho, atrai todas as coisas com massa para seu núcleo, fazendo com que as coisas caiam. Trata-se, assim, de uma norma física ou natural: se soltarmos qualquer objeto com massa, ele cairá em direção ao centro da Terra. Há uma relação de causa e efeito: se um corpo ficar “solto” no ar, tende a cair na direção do centro de nosso planeta. Outro exemplo é a chamada “Lei de Darwin”, ou teoria da evolução das espécies. O renomado cientista, após observar o comportamento de inúmeros animais, formulou uma regra que, conforme sua visão, explica o movimento de extinção e de surgimento de espécies. Convém destacar que as normas físicas contêm consequências “dadas” pela própria natureza e não escolhidas pelo homem. Não é uma escolha do cientista dizer qual será o resultado de um fenômeno natural; a própria natureza já ligou ao fenômeno uma consequência necessária. Ninguém escolhe qual será o resultado de um aquecimento da água a cem graus Celsius, ou qual será o resultado do arremesso de uma bola para o alto. A água, necessariamente, irá evaporar; a bola, necessariamente, irá cair. Como a norma física é o resultado da observação de um cientista, nada impede que o observador venha a se enganar. Em outros termos, nada impede que seja criada uma norma que pretende explicar todos os fenômenos naturais do gênero, mas não consegue fazê-lo, pois está errada. Quando um cientista constata que os fenômenos observados não levam à consequência esperada pela norma, então pode ser o momento de se reelaborar dita norma. Se, por exemplo, as pessoas constatarem que as espécies não evoluem do modo proposto por Darwin, o erro não está na natureza, que simplesmente existe, mas no modelo normativo criado para explicá-la, que deve ser reavaliado. Costuma-se dizer que, quando a norma natural é contrariada pelos fatos, prevalecem os fatos, em detrimento da norma, que deve ser alterada 10. Normas culturais O processo de transformação das sociedades humanas naturais em sociedades culturais envolve a busca pela concretização de alguns valores, colocados como objetivos dessa passagem. As sociedades culturais, assim, movimentam-se em determinadas direções, evoluindo (ou regredindo…) constantemente. As transformações pelas quais passam as sociedades culturais e as forças que operam essas transformações, ou as impedem, podem ser descritas mediante observações realizadas por cientistas. Dessas observações são criadas “regras” ou “normas” que tentam explicar a realidade social. Por outro lado, no interior das sociedades culturais nem sempre os comportamentos se manifestam de modo cooperativo, havendo ocasiões em que surgem os conflitos. Esses conflitos podem colocar em risco a própria continuidade do agrupamento humano, levando a sua dissolução. A fim de evitar esse risco, desenvolvem-se as “normas” ou “regras” de controle social. Diferentemente das normas físicas, essas normas são direta ou indiretamente criadas pelos seres humanos, podendo, assim, ser chamadas de normas culturais. Conforme dividido acima, podem ser de duas espécies: compreensivas (explicativas) ou éticas. As normas compreensivas ou explicativas assemelham-se às normas físicas, com uma ressalva importante: tentam explicar o funcionamento de fenômenos culturais, ou seja, cuja existência depende da ação humana, e não se referem a fenômenos naturais. Por tentarem explicar o funcionamento de fenômenos culturais, essas normas, enquanto mecanismos operacionais desses objetos, são, por sua vez, também criadas pelos seres humanos, embora indiretamente. Vejamos alguns exemplos dessas normas culturais: 1. As normas sociológicas derivam da observação dos fatos sociais, realizada pelos sociólogos. Tais cientistas buscam formular regras que expliquem os comportamentos sociais, indicando as razões pelas quais as pessoas permanecem vivendo em sociedade, mesmo quando esta não seja capaz de satisfazer suas necessidades básicas. Com a descoberta das normas sociológicas, espera-se compreender e explicar o funcionamento das sociedades; 2. As normas históricas, por sua vez, derivam da observação dos acontecimentos históricos, realizada pelos historiadores, que buscam encontrar regras que expliquem as transformações ocorridas e, quem sabe, antecipem as transformações futuras; 3. As normas econômicas, por fim, derivam da observação dos fatos econômicos, realizada pelos economistas, cujo objetivo é encontrar regras que expliquem o funcionamento global da economia. Uma regra econômica muito famosa é a “lei da oferta e da procura”, que explica a variação de preços em economias liberais. É preciso destacarque, tal qual ocorre com as normas físicas, podemos considerar que as normas culturais compreensivas também “submetem-se” aos fatos. Em outras palavras, quando um cientista percebe que criou uma norma para explicar um fenômeno cultural e que as consequências previstas pelo cientista na norma não se verificam em concreto, então surge a necessidade de se refazer dita norma. Os cientistas sociais, historiadores e economistas, para ficarmos em nossos exemplos, explicam seus respectivos objetos culturais de estudo por meio de normas cujo conteúdo precisa, efetivamente, corresponder aos fatos sociais, históricos e econômicos. Em havendo divergências, a norma cultural compreensiva é descartada ou modificada. Outro gênero de normas culturais é o gênero das normas éticas. Diferentemente das compreensivas, seu objetivo não é explicar a realidade cultural, mas determiná-la ou comandá-la. Essas normas correspondem aos mecanismos de controle social criados pelas pessoas para neutralizarem os conflitos, permitindo à sociedade sua permanência e reprodução. Sua estrutura interna revela um comando dirigido aos agentes sociais buscando determinar seus comportamentos obrigatórios, permitidos ou proibidos, estabelecendo o que deve ou pode ser feito por cada um para se concretizarem os valores buscados coletivamente. Assim, são exemplos de normas éticas as normas jurídicas, morais, religiosas e de trato social. Todas estabelecem os limites socialmente toleráveis do comportamento humano. Referências bibliográficas: BETIOLI, Antonio Bento. Introdução ao Direito. São Paulo: Saraiva, 2011, lição III. REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. São Paulo: Saraiva, capítulos III a V 11. Normas éticas: caracteres gerais As normas éticas são espécies de normas culturais. Sua finalidade não é compreender ou explicar os fenômenos culturais, mas determiná-los ou controlá-los no sentido de permitirem a concretização de valores. Considerando que as normas éticas surgem em sociedades culturais, seu objetivo é especificar os comportamentos humanos permitidos, proibidos e obrigatórios, limitando as possibilidades de transformação ou de existência dos fatos àquelas que permitam a concretização dos valores sociais. Alguns comportamentos humanos podem resultar em situações indesejáveis socialmente, sendo, então, proibidos pelas normas éticas; outros comportamentos, porém, podem ser indispensáveis para a concretização dos valores sociais, tornando-se, assim, obrigatórios. Embora existam normas éticas de diversas espécies, como as normas jurídicas, religiosas, morais e de trato social, podemos considerar que ambas apresentam caracteres comuns, quais sejam: imperatividade, violabilidade e contrafaticidade. 1. Imperatividade: toda norma ética indica uma direção considerada “normal” que deve ser seguida pela sociedade possibilitando a concretização dos valores. Por haver limitação nas possibilidades de ação dos seres humanos, consideramos que as normas éticas sejam imperativas, pois derivam de uma relação de autoridade. Também podemos definir a imperatividade em oposição à causalidade das normas físicas. Estas indicam uma consequência necessária a uma condição, representada pela fórmula se A é, B é (ou seja, se ocorre um fenômeno, sua consequência necessariamente ocorrerá também). As normas éticas, por sua vez, indicam uma consequência esperada, mas apenas possível, para uma condição, sendo representada pela fórmula se A é, B DEVE SER. Comumente se identifica o mundo das normas éticas como o mundo do DEVER SER, em oposição ao mundo natural, que é o mundo do SER. No campo ético, a indicação de um comportamento desejável não é uma garantia de que ele se verificará na prática. Podemos exemplificar imaginando uma situação na qual algumas pessoas busquem concretizar um determinado valor, como a educação. Podemos supor que essas pessoas estejam reunidas em uma sala de aula na qual o professor ministre sua disciplina. Ora, dada a condição acima (pessoas reunidas em sala de aula buscando a educação), podemos estabelecer uma consequência ética: “deve ser respeitado o silêncio”, ou, simplesmente, “é proibido conversar”. A norma é imperativa, pois deriva de uma autoridade que limita as possibilidades de comportamento dos presentes na sala de aula. Também é imperativa porque indica limites que DEVEM SER respeitados, não havendo qualquer garantia de que SERÃO respeitados. 2. Violabilidade: justamente esse caráter imperativo da norma ética revela outro caráter específico, que é a possibilidade de o comando não ser respeitado, sendo, assim, violado. Toda norma ética considera sempre presente essa possibilidade de não ser cumprida, pois é dirigida a seres humanos, que podem escolher um comportamento diferente daquele estipulado. Tendo-se em vista essa possibilidade constante da violação, as normas éticas costumam existir aos pares: uma norma ética limita o comportamento e outra norma ética estipula uma consequência que estimula o comportamento limitado e/ou coíbe o comportamento “anormal”. Esta segunda norma ética chama-se sanção. Voltando ao exemplo acima, um professor, tendo-se em vista o objetivo de concretizar o valor educação, pode criar uma norma dizendo que o silêncio deve ser respeitado (“proibido conversar”) e, sabendo que existe a possibilidade de os alunos não respeitarem sua determinação, pode criar uma segunda norma, dizendo que o aluno conversador deve ser punido com uma advertência. 3. Contrafaticidade: toda norma ética pode enfrentar uma oposição dos fatos, ou ser desmentida pela realidade. A norma ética criada em nosso exemplo, dizendo que o silêncio deve ser respeitado na sala de aula, pode ser desmentida pela verificação fática de que os alunos conversam. Uma norma ética jurídica pode não corresponder ao comportamento da maioria da população, que a descumpre impunemente. Nesses casos, porém, não podemos dizer que a norma ética tenha deixado de existir ou não sirva para mais nada. As normas éticas não existem para se adequarem aos fatos, mas, ao contrário, para adequar os fatos a elas. Caso haja uma oposição entre a realidade e uma norma ética que consagra um valor atual, devemos modificar a realidade, não a norma. A isso chamamos contrafaticidade. Trata-se de uma característica contrária à apresentada pelas normas físicas e pelas normas culturais compreensivas. Conforme especificado, os caracteres acima são peculiares às normas éticas e, inclusive, as diferenciam de outros tipos de normas. Referências bibliográficas: BETIOLI, Antonio Bento. Introdução ao Direito. São Paulo: Saraiva, 2011, lição III 12. Normas éticas: tridimensionalidade Quando nos referimos a normas éticas, devemos sempre ter em mente que correspondem a apenas uma das pontas de um fenômeno tridimensional que também envolve fatos e valores. Os fatos sociais são aqueles acontecimentos que, por derivarem de ações humanas culturais, concretizam determinados objetivos, aos quais denominamos valores. Os valores são justamente os objetivos perseguidos pelos seres humanos em seus atos culturais. As normas éticas partem da constatação de que nem sempre os fatos sociais realizam os valores mais desejáveis para a sociedade. Para evitar que valores indesejáveis se concretizem, elas limitam as possibilidades de escolha das pessoas envolvidas nos fatos, direcionando-as a objetivos socialmente aceitos, por meio de permissões, proibições e obrigações. Os três elementos, fato, valor e norma, sempre se fazem presentes em situações envolvendo a conduta ética humana. Também não podemos esquecer que ambos se somam para explicar o fenômeno normativo. Podemos ilustrar com um exemplo. Imaginemos uma situação concreta na qual uma pessoa trabalhe muito e receba um saláriopequeno. Podemos avaliar essa situação a partir de um valor, a proporção ou o “equilíbrio entre as prestações”: como houve um desequilíbrio na troca entre o trabalhador e seu empregador, diremos que a situação, sob tal ponto de vista, é injusta e indesejável. O desejável seria que, se a pessoa trabalha muito, seu salário fosse elevado. Estudiosos podem constatar que a situação descrita se repita com frequência em nossa sociedade, descrevendo o fenômeno por meio de normas culturais compreensivas sociológicas ou econômicas. Inspirados por tais descrições, os legisladores podem reputar necessário dirigir a sociedade para o rumo correto, realizando o valor “equilíbrio entre as prestações”. Esse direcionamento dar-se-á mediante a criação de uma norma ética afirmando que o salário deve ser equivalente à quantidade de trabalho e estabelecendo uma punição para aqueles que a descumprirem. Nosso exemplo é fictício. Será que poderia ocorrer na prática? Será que, numa sociedade capitalista, o valor do salário de todos os trabalhadores poderia ser equivalente à quantidade de trabalho? Economicamente, isso seria impossível. Sem o desequilíbrio entre o valor do salário e o tempo de trabalho, não há produção de lucro. Sem a produção de lucro, o capitalismo não prospera. Porém, a norma ética pode refletir um grau de desequilíbrio que seja o menor possível dentro da sociedade. A diferença entre o valor do salário e a quantidade de trabalho pode ser apenas aquela que permita sobrevivência lucrativa das empresas. Então, o valor se concretiza nos limites das possibilidades sociais. A norma ética, assim, corresponde a um equilíbrio socialmente possível entre o valor desejável e as condições fáticas da realidade. Não faz sentido pensarmos nela sem pensarmos nos fatos e nos valores a que se referem. Esse equilíbrio é sempre momentâneo. A evolução social modifica os fatos e os valores ininterruptamente. Tais mudanças exigem que as normas éticas sejam também alteradas, a fim de se atualizarem. Nem sempre, entretanto, esse ritmo de atualização normativa acompanha o ritmo das transformações sociais, deixando muitas normas éticas defasadas 13. Sanção As normas éticas são imperativas e suscetíveis de serem descumpridas. Elas referem- se a comportamentos que DEVEM SER respeitados, contendo em sua essência a possibilidade do descumprimento, pois dirigem-se a seres humanos, dotados da liberdade de escolher sua conduta. O ideal seria que todos os membros de uma sociedade compreendessem a importância de buscarem a concretização dos valores consagrados pelas normas éticas em seus relacionamentos, manifestando ações de respeito mútuo e solidariedade, aperfeiçoando cada vez mais a vida comum. Todavia, esse ideal não se materializa. Nem sempre as pessoas se comportam dentro dos limites estabelecidos pelas normas éticas. Para tentar minimizar o índice de descumprimento das normas éticas que limitam os comportamentos sociais, surgem outras normas (também éticas) chamadas “sanções”. A sanção, assim, é uma consequência atribuída à observância ou não de um comportamento previsto em uma norma ética anterior, que pode estimulá-lo ou reprimi- lo. Numa sociedade hipotética, pode-se considerar proibido o comportamento de olhar os mais velhos diretamente nos olhos. Como nem todos podem vir a cumprir tal norma ética, cria-se (espontânea ou conscientemente) uma consequência negativa para aqueles que olharem nos olhos dos mais idosos: uma admoestação. Assim, se uma pessoa olhar nos olhos de outra mais idosa, DEVE SER aplicada a sanção, qual seja, uma bronca. Na mesma sociedade, o Estado pode considerar inadmissível a conduta de um ser humano matar outro. Cria-se uma norma ética jurídica proibindo o homicídio (a vida deve ser respeitada). Para garantir que essa norma seja respeitada, o Estado cria outra norma ética jurídica, a sanção, determinando que se alguém matar outra pessoa, DEVE SER preso. É importante fazer um apontamento: enquanto a norma ética que descreve os comportamentos sociais permitidos, proibidos ou obrigatórios se dirige para todos os membros da sociedade, a norma ética que descreve a sanção se dirige apenas àqueles que têm, na sociedade, a competência para tornar concreta a consequência. São essas pessoas que devem aplicá-la. Nos nossos exemplos, a primeira sanção se dirige à própria pessoa que foi olhada nos olhos, que deve dar uma bronca no ofensor; a segunda, por sua vez, dirige-se aos funcionários do Estado que têm a competência para punir uma pessoa que tenha matado outra, que devem prender o homicida. Nos dois casos, ressalte-se, qualquer pessoa pode ser punida, mas somente algumas pessoas terão a competência de aplicar a sanção. Outro apontamento necessário diz respeito ao fato de a sanção também ser, sob todos os aspectos, uma norma ética. É imperativa, violável e contrafática. Isso significa que nada ou ninguém pode garantir que a pessoa que DEVE aplicar a sanção realmente o faça. O senhor que foi olhado nos olhos pode não dar uma bronca no ofensor; o funcionário do Estado que deve prender o homicida pode não o fazer. Estamos, novamente, no reino da liberdade. Muitas vezes, porém, a sanção se dirige a pessoas específicas e determinadas, que possuem algumas características que diminuem as possibilidades de não serem aplicadas. Assim, as sanções jurídicas dirigem-se a funcionários públicos que, caso não as apliquem às pessoas condenadas, correm sério risco de serem, eles próprios, vítimas de outras sanções e punidos. É interessante notar que as sanções não são apenas consequências ruins dirigidas àqueles que violam as normas éticas. Podem ser também boas consequências, aplicadas àqueles que se comportam conforme os padrões normais. As sanções “ruins” são chamadas de negativas. São punições que devem ser impostas àqueles que descumprirem outras normas éticas. Já as sanções “boas” são chamadas de positivas ou premiais e consistem em consequências benéficas atribuídas àqueles que cumprem outras normas éticas, tendo o objetivo de estimular esse comportamento. Há inúmeros exemplos de sanções negativas, como a prisão, a multa e a perda de cargos. As sanções positivas podem consistir em descontos oferecidos a contribuintes que pagam seus tributos dentro de prazos determinados, em isenções tributárias a empresas que se instalam em determinadas regiões ou na concessão de honrarias a pessoas que fazem determinadas coisas. Um aspecto interessante na análise da sanção é verificar como ela é aplicada. Dissemos que a sanção é uma norma ética dirigida a determinadas pessoas dentro das sociedades, que têm a competência para aplicá-las. Quem são essas pessoas? Há limites quanto ao grau da consequência? Conforme a sociedade humana, há, sim, diferentes modos de se aplicarem as sanções e diferentes pessoas com a competência de fazê-lo. Em determinadas sociedades, predomina o sistema da vingança social: quando uma pessoa descumpre uma norma ética de uma comunidade, deve ser aplicada, por toda essa comunidade, a sanção. Haverá, assim, uma punição coletiva contra o ofensor. Noutros locais, surge a vingança privada: apenas a pessoa ofendida, ou sua família, podem aplicar a sanção contra o ofensor. A punição, nesse caso, torna-se personalizada, não sendo levada a cabo por todos os membros da coletividade. A vingança privada passa a ser controlada por regras que delimitam o grau de sua abrangência. Em certos casos, o ofensor será submetido, pelo ofendido, à vontade dos deuses (ordálios); noutros, a vingança seguirá as regras dos duelos; ou ainda, a vingança será controlada pela regra do Talião, determinando que a sanção seja proporcional ao dano sofrido (“olho por olho, dente por dente”). Nas sociedades contemporâneas é frequente a tentativa de monopólioestatal da sanção. Muitas regras estabelecem os critérios para sua aplicação, que se torna exclusividade dos funcionários do Estado, sobretudo nos casos das normas éticas jurídicas. Em resumo, podemos dizer que a sanção consiste em uma norma ética que garante o comportamento previsto em outra norma ética. Ela se dirige a determinadas pessoas, que devem aplicá-la. No caso do direito, o Estado monopoliza essa aplicação. Referências bibliográficas: BETIOLI, Antonio Bento. Introdução ao Direito. São Paulo: Saraiva, 2011, lição VI 14. Normas éticas – análise comunicativa As normas éticas são marcadas pela imperatividade, pela violabilidade e pela contrafaticidade. Os dois primeiros caracteres indicam que existe apenas uma possibilidade de o comando ser cumprido. Pensando nisso, surge uma dúvida: sempre que houver uma indicação de um comportamento que DEVE SER respeitado, feita por qualquer pessoa, haverá uma norma ética? Em outras palavras, quando um comando possui alguma possibilidade de ser obedecido, transformando-se em uma norma ética? O tema pode ser abordado sob o ponto de vista da teoria da comunicação. Toda comunicação pode ser reduzida a um processo genérico, no qual existe um Emissor que cria e transmite uma Mensagem para um Receptor, que a interpreta (E -> M -> R). Haverá comunicação sempre que houver a recepção da mensagem transmitida. Toda norma ética é uma mensagem; nem toda mensagem, como é óbvio, é uma norma. Nossa questão é descobrir, com base na teoria da comunicação, quando uma mensagem pode ser considerada uma norma. Toda norma ética limita as possibilidades de um fato, estabelecendo o que é permitido, o que é proibido e o que é obrigatório. Seu comando se manifesta pela expressão DEVER SER, que caracteriza toda norma: o comportamento permitido DEVE SER garantido; o comportamento proibido DEVE SER evitado; o comportamento obrigatório DEVE SER realizado. Podemos concluir, por ora, que somente poderá ser uma norma aquela mensagem que se expressar, direta ou indiretamente, por um DEVER SER. Mas, será que toda mensagem que indique limitações ao fato que DEVEM SER respeitadas é uma norma? Imaginemos duas situações muito parecidas: na primeira, um professor afirma que é proibido conversar em sala de aula; na segunda, um aluno franzino, na ausência do professor, afirma que é proibido conversar na sala. Em ambos os casos há uma norma ética? Não obstante a mensagem, nos dois casos, ser a mesma, com facilidade visualizamos a norma ética no primeiro, mas, dificilmente, no segundo. O que faltaria ao segundo caso? Simples: o emissor da mensagem não possui autoridade para criar uma norma. Um professor é uma autoridade em sala de aula, podendo, em virtude da relação contratual entre alunos e Universidade, criar regras disciplinares. Caso um aluno descumpra uma regra disciplinar criada por um professor, será punido pela Universidade, com respaldo do Estado brasileiro. Por outro lado, o aluno franzino que pediu silêncio não possui autoridade previamente reconhecida pelos colegas para criar mensagens normativas. Por mais que sua mensagem pareça uma norma, não será. Podemos concluir, assim, que o caráter normativo de uma mensagem não venha apenas do seu conteúdo (DEVER SER), mas, principalmente, da existência de autoridade entre seu emissor e seu receptor. Uma mensagem, para ser norma, deve ser criada por um emissor que possua algum nível de autoridade (física, moral, intelectual…) reconhecido pelo receptor. Voltando ao segundo caso, quando o aluno franzino afirmou ser proibido conversar na sala, não criou uma norma, pois não houve o reconhecimento de qualquer autoridade exercida por ele sobre os colegas, receptores da mensagem. Porém, caso o aluno fosse uma pessoa, por qualquer motivo, respeitada pelos demais, então, sua mensagem poderia vir a se tornar uma norma ética, pois existiria autoridade na relação. O que mudaria, portanto, não seria a mensagem em si, a mesma, mas a relação entre os comunicadores, imbuída ou não de autoridade. 15. Normas éticas: características distintivas Todas as normas éticas (etiquetas sociais, jurídicas, morais e religiosas) possuem as já citadas características comuns da imperatividade, violabilidade e contrafaticidade. Representam, além disso, um ponto de equilíbrio entre fatos e valores, limitando os fatos para se atingir o máximo possível de um valor. Existem, todavia, outras características que se fazem presentes em algumas das normas éticas e podem, inclusive, servir como critério para diferenciá-las. São elas: 1. Heteronomia: algumas normas éticas são heterônomas, ou seja, são elaboradas por outras pessoas que não os próprios destinatários, os quais devem obedecê-las independetemente de aceitá-las ou não internamente. Outras normas éticas são autônomas, no sentido de que somente podem ser verdadeiramente obedecidas se houver a convicção interna de quem se comporta ou são diretamente criadas por tal pessoa. Uma norma jurídica, assim, é heterônoma se preencher dois requisitos: a) ser criada por outra pessoa que não seu destinatário; b) ter imperatividade mesmo que o destinatário não deseje aceitá-la. Podemos citar um exemplo: não importa se a pessoa que paga um tributo criado pelo Estado concorda com ele, acatando interiormente a norma; apenas interessa ao direito que a pessoa manifeste externamente o comportamento de pagar. 2. Coercibilidade: algumas normas éticas são coercíveis, ou seja, podem invocar a força física para impor as limitações que trazem aos fatos. Outras, não. Hoje, uma norma religiosa não pode resultar na prisão de um fiel que a descumpra, nem prever um castigo físico para puni-lo. Não há, assim, coercibilidade na religião em nosso país. Devemos, ainda, distinguir “coerção” de “coação”. Dissemos que algumas normas éticas são coercívies, palavra derivada de coerção, assim como coercibilidade. Simplificadamente, podemos definir coerção como “ameaça”. Algumas normas éticas buscam concretizar seu dever ser por meio da ameaça da aplicação da sanção negativa. Já a palavra “coação” (cujos derivados e sinônimos são coatividade, coativo e coercitivo) significa o uso concreto da força, a materialização da ameaça. Quando a norma ética recorre à sanção e impõe uma pena a seu destinatário, constatamos que houve a coação. Assim, a norma é coerciva enquanto ameaça e se torna coativa quando concretiza a ameaça. 3. Bilateralidade: toda norma ética é socialmente bilateral, pois refere-se a uma relação que envolve mais de um indivíduo; nem toda é, contudo, axiologicamente bilateral, pois nem sempre há uma proporção valorativa estabelecida entre as pessoas relacionadas de modo a buscar o bem comum. Uma norma ética somente será axiologicamente bilateral se determinar os limites das condutas dos envolvidos em um fato sem ignorar a existência de ambos e a necessidade de se atingir um valor externo a eles, que não pode ser reduzido a qualquer um, qual seja, o bem comum. Se a norma ética busca, em última instância, atingir o bem individual de uma das partes da relação, acima da busca do bem comum, então ela pode ser classificada como axiologicamente unilateral. As normas religiosas não são axiologicamente bilaterais, pois consideram apenas os indivíduos em sua relação com Deus, estabelecendo valores que realizam o sagrado no indivíduo, sem considerá-lo independentemente disso. Já as normas jurídicas, por outro lado, sempre olham os dois envolvidos em uma relação, distribuindo direitos e deveres conforme os valores que devem ser realizados, levando a relação ao bem comum, não se identificando com qualquer deles. 4. Atributividade: há normas éticas que atribuem a uma pessoa o poder de exigir de outra comportamentos em determinada relação.Esse poder é garantido por alguma espécie de entidade social, que atuará para protegê-lo. Podemos dizer que tais normas éticas conferem uma exigibilidade garantida a certas pessoas envolvidas em fatos por elas regulados. Uma norma de etiqueta social, por exemplo, não possui atributividade, pois não confere poderes de exigibilidade garantida para as pessoas. Em resumo, podemos distinguir as normas éticas conforme as características acima: a. normas jurídicas: são heterônomas, coercivas, axiologicamente bilaterais e atributivas (possuem todas as características); b. normas de moral social (etiqueta): são heterônomas e axiologicamente bilaterais. c. normas de moral individual e religiosas: não possuem tais características 16. Relações entre o Direito e a Moral Há relações necessárias entre o Direito e as normas morais de uma sociedade? Será que as normas jurídicas precisam ser consideradas boas pela população? Ou inexiste qualquer ponto de contato entre o direito e a moral? Uma primeira resposta a tais indagações é trazida pela Teoria do Mínimo Ético, delineada pelo jurista Georg Jellinek (1851-1911). Tal teoria afirma que todas as normas jurídicas são normas morais. Especificamente, considera-se que as normas morais mais importantes da sociedade são transformadas, pelo Estado, em normas jurídicas. Nesse sentido, a sociedade sempre considera corretas as normas jurídicas, não podendo existir tais normas que sejam vistas como imorais. Há normas morais que não se convertem em normas jurídicas, pois não são consideradas as mais importantes da sociedade. Por exemplo, a proibição ao homicídio é uma norma moral que a sociedade, por meio do Estado, dada sua importância, transformou em jurídica. Por outro lado, existem regras de etiqueta social como, por exemplo, um cavalheiro abrir a porta para uma dama, que não são transformadas em jurídicas pelo Estado. Mas nem todos concordam com a teoria do Mínimo Ético. Muitos afirmam que existem normas jurídicas imorais (contrárias à moral) e normas jurídica amorais (indiferentes à moral). A norma que define o valor do salário mínimo, por exemplo, é, inegavelmente, jurídica. Muitos, todavia, argumentam que seja imoral, tendo-se em vista o baixo valor especificado. Há normas, ainda, amorais. São normas de caráter meramente técnico, cujo conteúdo não pode ser avaliado nem de modo positivo nem de modo negativo pela moral. Por exemplo, a norma jurídica que especifica que os carros devem parar na luz vermelha do semáforo. Por que a cor vermelha para parar? Por que não outra? Essa escolha não envolve questões morais, mas uma mera convenção técnica. Uma última objeção ainda pode ser levantada: será que existe uma única moral na sociedade? Ou será que a sociedade possui várias morais que convivem simultaneamente? Se esta segunda pergunta puder ser respondida afirmativamente, então não podemos dizer que o direito sempre seja visto como moral por todos os membros da sociedade, pois existem várias morais sociais. Outra teoria busca explicar essas relações, mas de um modo diametralmente oposto: a Teoria da Separação entre o Direito e a Moral. Thomasius (1655-1728) afirma que não há ponto de contato entre as esferas analisadas. A Moral é um conjunto de regras que regula a esfera íntima dos seres humanos, sendo aplicável apenas no nível da consciência. O Direito, por sua vez, é um conjunto de regras que apenas regula a esfera externa dos comportamentos humanos, ou seja, a manifestação e a concretização desses comportamentos. A teoria de Thomasius não explica satisfatoriamente, contudo, as regras da chamada moral social (costumes, etiqueta etc.), que se referem a comportamentos externos, sem grandes preocupações com a esfera íntima. Também não explica os casos em que o direito se preocupa com a esfera íntima das pessoas, como no caso da verificação de dolo ou culpa na prática de um crime (é necessário saber se o autor teve ou não a intenção de praticá-lo). Assim, não parece ser um critério adequado para justificar a separação entre os campos. Ainda afirmando a separação entre Direito e Moral, podemos apontar o jurista Hans Kelsen (1881-1973). Sua visão, contudo, difere da de Thomasius. Para Kelsen, não há qualquer diferença essencial entre as esferas. As regras morais são em tudo idênticas às normas jurídicas, salvo por um aspecto, por assim dizer, externo: as normas jurídicas são as normas morais com maior condição de se impor socialmente de modo eficaz. A diferença estaria no grau da força coercível por detrás da norma: o emissor da norma jurídica é mais “forte”, no sentido de poder concretizar socialmente sua ameaça, do que o emissor de uma norma moral. Além disso, ele adota o princípio da relatividade da moral, admitindo que toda sociedade possui mais de um conjunto de regras morais, que podem julgar o direito de modos diversos. Um grupo social, que adota sua moral própria, pode considerar uma regra jurídica justa; outro grupo, da mesma sociedade, mas adotando outra moral, pode reputar tal regra jurídica injusta. O fato de os grupos sociais poderem julgar o direito, todavia, não interfere no seu funcionamento. Em outras palavras, as normas jurídicas são criadas pelo próprio direito e somente deixam de existir se revogadas por ele. Enquanto existem, independentemente da opinião dos destinatários, podem impor seu comportamento. No momento em que uma nova norma jurídica é criada, basta que ela siga os procedimentos do próprio direito, sem precisar referir-se às outras normas morais, para passar a existir. A visão de Kelsen afasta do direito a pretensão de estar preso, necessariamente, a um conteúdo superior ou distinto dele. Revela, com enorme precisão, que o direito moderno pode servir a diversas moralidades ao mesmo tempo, sem, contudo, ser reduzido a qualquer delas. Enquanto a força que impõe o direito (no caso, o Estado) for socialmente mais eficaz do que outras, suas regras deverão ser cumpridas independentemente das avaliações morais que possam receber. Alguns autores, porém, perplexos ante a revelação kelseniana, refutam a possibilidade de relativismo moral e de o Direito não possuir qualquer ponto de contato com a Moral. Adotando a Teoria dos “círculos secantes”, elaborada por Claude du Pasquier, afirmam simplesmente que o conjunto das normas morais é parcialmente coincidente com o conjunto das normas jurídicas. Assim, para tais autores, haveria regras morais não jurídicas e regras jurídicas amorais e imorais. Além disso, ambos os conjuntos possuiriam regras comuns, que são ao mesmo tempo morais e jurídicas. O exemplo outrora citado da proibição ao homicídio pode ser resgatado, estando, simultaneamente, em ambos os conjuntos. Podemos filiar Miguel Reale à teoria dos círculos secantes. Para ele, embora possam existir normas jurídicas fora do universo da moral, seria desejável que o maior número possível delas estivesse de acordo com a moral. Três teorias, em síntese, tentam explicar as relações entre as normas jurídicas e as normas morais. A Teoria do Mínimo Ético defende que as normas morais mais importantes são transformadas em normas jurídicas. A Teoria da Separação do Direito e da Moral afirma que não há ponto de relação necessário entre ambos os campos. Thomasius afirma que o objeto das normas morais é um (esfera íntima) e das normas jurídicas é outro (comportamento externo); Kelsen, por sua vez, afirma que existem diversos grupos de normas morais e o direito não se prende necessariamente a qualquer deles, sendo um campo próprio e autônomo. Por fim, a Teoria dos “círculos secantes” estabelece que há um núcleo comum entre a Moral e o Direito, composto por normas simultaneamente morais e jurídicas. Referências: Betioli, Antonio Bento. Introdução ao Direito. São Paulo: Saraiva,2011. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6ª edição. Coimbra: Armênio Amado, 1984, pp. 48-55 e 93-107. (itens I.5 e II) 17. Direito: etimologia O fenômeno jurídico, ao longo da história, vem sendo designado por duas palavras derivadas de radicais distintos: Direito e Jurídico. Podemos apresentar uma breve etimologia dessas palavras (ou seja, buscar as palavras originárias que se transformaram nelas). A palavra direito não foi utilizada pelos romanos para designar o fenômeno que hoje recebe seu nome. Apenas no final da Idade Média os estudiosos passam a utilizá-la. Seu radical latino é rectum e directum, que significam, basicamente, “reto” e “em linha reta”. Podemos dizer que uma coisa está directum se estiver conforme uma regra (“reta”). Se pensarmos nas principais línguas ocidentais, todas possuem um termo derivado dessas palavras latinas: em alemão, Rechts e, em inglês, right, derivadas de rectum; em português, direito, em espanhol, derecho, em italiano, diritto e, em francês, droit, derivadas de directum. A palavra Jurídico, por sua vez, deriva daquela palavra usada pelos romanos para designar o fenômeno do direito: jus. Uma série de palavras hoje utilizadas também derivam desse mesmo radical: jurisconsulto, judicial, judiciário, jurisprudência… Conforme dito, jus significava, em latim, direito. Há, contudo, controvérsias quanto a sua origem remota. Alguns autores derivam-na de jussum, particípio passado de jubere, que significa “mandar”, “ordenar” (significando, assim, mandado, ordenado). A palavra jus, nessa visão, reforçaria o aspecto da garantia atribuída pelo direito aos envolvidos numa relação, destacando sua força ordenatória. Outros autores, porém, defendem que a palavra derivaria de justum, que significa “justo”, “em conformidade com a justiça”. Nesse caso, o aspecto valorativo do direito é reforçado, considerando-se o fenômeno como um caminho para a realização do bem comum. É interessante notar que a incerteza quanto à origem etimológica de jus revela a tensão própria da palavra em seu sentido contemporâneo: nosso direito é, ao mesmo tempo, uma força que ordena (“manda”) e busca realizar a justiça (o bem comum). Referência: MONTORO, André Franco. Introdução à Ciência do Direito. São Paulo: RT. (cap. 1 – O conceito de direito 18. Direito: simbologia Comumente se representa o direito ou o Poder Judiciário por meio de uma balança, colocando-se ambos os pratos em um mesmo nível, indicando que há um equilíbrio ou uma igualdade de pesos. Podemos nos perguntar: o que estaria em cada prato? O que deve estar em uma situação de equilíbrio? Não seria equivocado supor que em cada lado da balança possa estar uma das partes envolvidas em uma relação social. A norma jurídica distribui, a partir dos valores que levam ao bem comum, uma medida de poderes e deveres às pessoas. Se elas se comportam conforme essa medida, a balança permanece em equilíbrio. Se uma das partes faz o que não pode (o que é proibido) ou deixa de fazer o que deve (o que é obrigatório), então haverá um desequilíbrio na balança, subindo-se um prato e descendo-se o outro. Por exemplo, suponhamos que uma pessoa seja proprietária de um relógio de ouro. Enquanto proprietária, ela possui o direito de que outras pessoas não danifiquem seu objeto, ou seja, todas as outras pessoas, que não são proprietárias do relógio, estão proibidas de fazerem algo que o danifique. Se uma pessoa, movida por desígnios misteriosos, resolve derreter a pulseira de ouro do dito relógio, terá violado a norma proibitiva e causado um dano ao proprietário. A balança ficará desequilibrada. Caberá ao juiz encontrar uma medida judicial que possa reequilibrar a balança. No caso exemplar, ele poderá condenar a pessoa que derreteu a pulseira de ouro a pagar um valor indenizatório, reparando os prejuízos materiais. Se o relógio, além disso, tivesse algum valor sentimental, o juiz também precisaria condená-la a reparar esse dano moral. Assim, em cada prato da balança está uma das pessoas envolvidas em uma relação social. Quando ocorre um comportamento que desrespeita uma norma jurídica, há um desequilíbrio. Cabe ao direito, por meio dos juízes, encontrar uma medida que reequilibre a relação. Devemos destacar que a medida deve ser precisa, no sentido de que não pode haver um excesso nem uma falta. Se o juiz encontra uma medida que não repara todo o dano causado por uma pessoa a outra, essa medida será insuficiente para o equilíbrio; se a medida, por outro lado, for exagerada, então haverá outro desequilíbrio, dessa vez causado pelo juiz. Desde a Antiguidade o símbolo da balança aparece nas mãos de uma deusa. No caso dos gregos, a deusa é Diké, filha de Zeus e Themis. Originariamente, ela possui os olhos abertos, carrega a balança na mão esquerda e uma espada na mão direito. Quando os pratos atingem o equilíbrio (íson), a deusa encontrou a medida a ser tomada e profere o direito (díkaion). Os romanos criaram sua representação original para a deusa Iustitia, depois modificada ao longo da história. Essa deusa, ao contrário da grega, possui os olhos vendados e segura a balança com as duas mãos, sem ter uma espada. Há um fiel na balança que atinge a posição reta quando a deusa encontra a medida a ser adotada (de + rectum), levando a deusa a manifestar-se, declarando o direito (jus). Comparando-se as deusas, notamos que os olhos abertos de Diké revelam uma preocupação com a busca especulativa e abstrata da justiça (os olhos simbolizam o pensamento). Ao mesmo tempo, a existência da espada revela a importância dada pelos gregos ao uso da força para concretização do direito. Já a deusa romana revela outras concepções. Os olhos vendados mostram que a deusa não vê os fatos nem os conflitantes, exigindo, por outro lado, que ambos narrem para ela os acontecimentos. A deusa somente conhecerá aquilo o que lhe for trazido pelas partes, ignorando toda a profundidade do conflito. Isso exigirá dela “prudência”, a virtude romana dos juristas: deve equilibrar a necessidade de refletir sobre o que ouviu com a necessidade premente de uma decisão que solucione o problema. Deve refletir o suficiente para não cometer uma injustiça; esse tempo não pode ser tão longo a ponto de tornar a decisão inútil. Além disso, a deusa Iustitia não possui espada. Isso revela que seu mero pronunciamento já é suficiente, na cultura romana, para revelar o direito. Executá-lo é outra questão, fora da alçada divina. Em concreto, o estado romano limitava-se, por meio de um processo, a declarar o direito, concedendo ao particular o poder de agir, por conta própria, para assegurá-lo. Para finalizar estas reflexões sobre a simbologia que envolve o direito, não podemos deixar de apontar uma extraordinária alteração no modo como a deusa é representada. Consolidou-se uma imagem de deusa que possui os olhos vendados, a balança na mão esquerda e a espada na mão direita, fundindo as duas deusas anteriores. Pois essa representação, no caso do direito brasileiro e de grande parte do direito ocidental, não é fortuita. Nossos juízes estão com os olhos “fechados” para os conflitos, exigindo que as partes os narrem e só reconhecendo os fatos que forem previamente trazidos nas petições. Possuem a balança para tentar encontrar a medida exata que permite o equilíbrio da situação desequilibrada, sem faltas ou excessos. E possuem a espada, revelando a primazia do Estado no uso da violência e das medidas para garantir o direito. Não há direito sem essa garantia. Referência: FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. São Paulo: Atlas. (item 1.1 e item 1.2) 19. O Direito: a imprecisão da palavra Um problema sempre enfrentado pelos juristas consiste na imprecisão do vocábulo“direito”. Trata-se de uma palavra polissêmica, ou seja, com muitos significados. Nesse sentido semântico (a semântica busca os significados dos signos, das palavras), portanto, é inútil buscar um único significado denotativo que defina “direito”. Em um sentido “próprio”, a palavra pode significar coisas diversas, como norma, faculdade, justiça, ciência ou fato social. A força desses significados é, muitas vezes, equivalente. Sob a perspectiva sintática (a sintática analisa as palavras combinadas entre si, quanto às funções que cumprem umas em relação às outras) verificamos a mesma imprecisão. De um lado, podemos usar a palavra “direito” como substantivo (o direito brasileiro prevê…), como adjetivo (não é um homem direito) ou, até mesmo, como advérbio (Ele não agiu direito). De outro, notamos que o vocábulo pode ser conectado a palavras sintaticamente diferentes, como verbos (meus direitos não valem), substantivos (o direito é uma ciência) ou adjetivos (o direito é injusto). Como se não bastassem as imprecisões semântica e sintática do termo, ainda convém destacar que, pragmaticamente (a pragmática enfoca a relação estabelecida entre os comunicadores e a função da mensagem nessa relação), o “direito” é uma palavra de forte carga emotiva. Normalmente é usado em contextos de reivindicações, de lutas sociais, de desilusões. Assim, pensando na teoria da comunicação, constatamos que sob todos os enfoques a palavra “direito” é imprecisa. Por isso afirmamos que defini-la torna-se um problema. Referência: FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. São Paulo: Atlas 20. O Direito: significados Por se tratar de um termo impreciso, definir o direito requer a apresentação de mais de um significado. Muitas vezes utilizamos a palavra “direito” para designar uma norma ou um conjunto de normas. Ao afirmarmos, por exemplo, o direito brasileiro proíbe o furto, podemos considerar que o significado do termo, no caso, é “a legislação brasileira”, ou seja, o conjunto de normas legais do país. No mesmo sentido poderíamos dizer o direito obriga ao pagamento de impostos ou, ainda, o direito permite o uso da propriedade. Novamente, em ambos os casos, referimo-nos às normas jurídicas ou, especificamente, às leis. Pelo fato de as normas situarem-se “fora” dos indivíduos envolvidos nas relações a que elas se referem, muitos, no sentido estudado, utilizam a expressão “direito objetivo”. O direito objetivo, portanto, é a norma jurídica ou o conjunto de normas jurídicas. Ainda podemos destacar outras expressões em que a palavra direito surge no significado “conjunto de normas”: direito positivo (conjunto de normas criadas, ou postas, por decisão), direito natural (conjunto de normas que deriva da natureza), direito costumeiro (conjunto de normas que deriva dos hábitos), direito estatal (conjunto de normas positivado pelo Estado), direito não-estatal (conjunto de normas não positivado diretamente pelo Estado). Outro significado da palavra é poder ou faculdade. No caso, a palavra é usada para indicar o poder que pertence a uma pessoa individual ou coletiva. Utilizamos o termo nesse sentido, por exemplo, nas seguintes frases: o comprador tem o direito de receber a coisa comprada, o credor tem o direito de cobrar a dívida, o réu tem o direito de apresentar a contestação. Pelo fato de o poder sempre pertencer a uma pessoa, a um sujeito, utiliza-se a expressão “direito subjetivo”. Convém destacar que, no presente, tende a haver uma complementaridade entre o direito subjetivo e o direito objetivo: o Estado, por meio da norma jurídica (direito objetivo) estabelece limites a uma situação fática, atribuindo poderes aos sujeitos e garantindo o exercício desses poderes (direito subjetivo). Conclui-se, assim, que a razão última da existência do direito objetivo (conjunto de normas jurídicas) é distribuir poderes garantidos aos membros de uma sociedade (direitos subjetivos). Por outro lado, a garantia máxima que um direito subjetivo pode possuir é aquela conferida pelo Estado, por meio das normas jurídicas (direito objetivo). Em alguns momentos históricos que suscitaram revoluções como a Francesa (1789) ou a Russa (1917) houve um gritante descompasso entre o direito objetivo e o direito subjetivo. Muitos poderes subjetivos que a maioria da sociedade gostaria de ver garantidos pelo Estado não o eram. Durante as revoluções citadas, novos direitos subjetivos foram reconhecidos pelo direito objetivo, graças à ação dos revoltosos. Outro significado de extrema importância da palavra direito é conforme a justiça ou devido por justiça. Quando afirmamos que “não é direito viver na miséria” ou “não é direito roubar”, simplesmente expressamos o sentimento de que a situação está em desconformidade com a justiça, ou “não é justo”; já se dizemos que “pagamento é direito do credor” ou “educação é direito das crianças”, sem pensarmos em um caso concreto, trazemos a ideia de que os bens “pagamento” e “educação” são devidos, por justiça, às pessoas mencionadas. Convém deixar claro, assim, que, no sentido de justiça, podemos usar a palavra direito para: 1. avaliar um fato conforme o critério do justo; 2. indicar que um bem é devido a uma pessoa como exigência da justiça. Torna-se difícil estabelecer, dos três significados já apresentados, qual o mais importante. Se dissemos que o direito-norma e o direito-poder são dois pares que se complementam, não podemos omitir que essa complementaridade tem em vista o terceiro significado do direito, qual seja, a justiça. Em termos ideais, uma sociedade deve reconhecer, por meio do direito objetivo, todos os poderes que permitirão aos indivíduos uma vida justa, transformando-os em direitos subjetivos. As normas jurídicas devem, assim, distribuir poderes para os sujeitos, de tal forma que conduzam as situações fáticas ao ideal valorativo do justo. Durante os anos em que uma pessoa estuda direito, por outro lado, talvez não haja outro significado mais importante para a palavra do que o científico. É comum os alunos afirmarem que “fazem direito”. O direito feito pelos alunos não é a norma ou a justiça, mas a ciência. Existe, assim, uma ciência que estuda o fenômeno jurídico. Essa ciência busca sistematizar o conhecimento sobre tal fenômeno, a fim de torná-lo compreensível e manipulável. O nome dessa ciência, como destacado, também é “direito”. Por fim, há um significado sociológico da palavra “direito”. Entre os fatos sociais estudados pelo sociólogo, existem fatos religiosos, econômicos, políticos e, também, os jurídicos. Trata-se de um setor da vida social, com características próprias, também chamado de direito. Os significados aqui apresentados não esgotam as possibilidades de definições do “direito”. Em outros campos do saber, a palavra indica reta (segmento direito), perfeição aritmética (cálculo direito), perfeição moral (homem direito) ou, simplesmente, um dos lados de qualquer coisa (lado direito, oposto ao esquerdo). Referências: BETIOLI, Antonio Bento. Introdução ao Direito. São Paulo: Saraiva. (Lição VIII) MONTORO, André Franco. Introdução à Ciência do Direito. São Paulo: RT. (cap. 1 – o conceito de direito) 21. O Direito: definição de Miguel Reale Segundo Miguel Reale, o direito é a ordenação ética coercível, heterônoma e bilateral atributiva das relações sociais, na medida do bem comum. Sua definição, portanto, apresenta a soma das características gerais e distintivas das normas éticas. Analisando-se os termos utilizados pelo autor na definição, verificamos, primeiro, que o direito é uma ordenação. A palavra ordenação pode ser entendida como o conjunto de normas que organizam alguma coisa. Por ser uma ordenação ética, essas normas organizam a esfera ética da culturahumana. O direito, assim, é um conjunto de normas éticas (uma “ordenação ética”). Todas as normas éticas compartilham de determinadas características gerais, como dito acima: são imperativas (impõem uma conduta; regem-se pelo princípio da imputação – “dever ser”), violáveis (a conduta pode ser respeitada ou não) e contrafáticas (ainda que sejam desrespeitadas, as normas éticas não perdem seu valor). Além disso, o direito possui todas as características distintivas das normas éticas, conforme especificado por Miguel Reale: 1. É coercível, ou seja, busca minimizar o índice de violabilidade mediante ameaças de recurso à força; 2. É heterônomo, pois as normas jurídicas são elaboradas pelo Estado e devem ser cumpridas independentemente da aceitação íntima do destinatário; 3. É axiologicamente bilateral pois busca concretizar valores que não estão reduzidos a uma das partes da relação fática, e sim valores que levam ao bem comum; 4. É atributivo pois atribui poderes garantidos aos destinatários das normas jurídicas. Convém destacar, por fim, que tal definição congrega os três elementos da tridimensionalidade ética: fato, valor e norma. O direito busca valores ligados ao bem comum (bilateralidade axiológica) por meio da criação de normas éticas heterônomas que limitam os fatos de modo coercível e atributivo 22. Historicidade do Direito O direito é um fenômeno histórico. Afirmar isso significa, primeiramente, que não existe “o” direito, enquanto conceito absoluto, eterno e imutável. Buscar-se uma definição universal para o direito, válida em todos os momentos e em todas as sociedades humanas, seria esforço inútil e pouco produtivo. Na Grécia Antiga, o direito possuía caracteres muito peculiares, ligando-se ao exercício da cidadania e à delimitação do espaço político por meio das normas. Não era um campo autônomo, pois pressupunha a política e concretizava a ética. Durante o Império Romano, o direito torna-se um mecanismo de resolução de disputas, com rituais próprios e relativa autonomia dos outros campos. Avançando para a Idade Média, o direito passa a confundir-se como os poderes dos nobres, ligados à propriedade privada da terra. No Absolutismo, o direito transforma-se em uma decorrência do poder divino dos reis, derivando da vontade real. Apenas no capitalismo recente o direito é identificado com a norma jurídica, em especial a lei, o contrato e a sentença. O direito de um povo passa a ser entendido como o conjunto de normas jurídicas criado ou reconhecido pelo Estado que o representa. Mais precisamente, passamos a chamar direito ao processo contínuo de criação de normas jurídicas. Algo, portanto, bem diferente daquilo o que já foi o fenômeno jurídico. 23. Positivação do Direito e Ciência Dogmática O direito Contemporâneo, típico das sociedades capitalistas, transforma-se em uma tecnologia de resolução de conflitos com um mínimo de perturbação social. Seu elemento fundamental é a norma jurídica positiva, revestida da forma de lei, contrato e sentença. A ideia de direito positivo significa que as normas jurídicas são criadas de um modo específico, em detrimento de outros. De modo genérico, podemos reconhecer três modos pelos quais uma norma é criada: revelação, costume ou positivação. As normas reveladas são aquelas cuja autoria se atribui a um ser divino e, no mais das vezes, transcendente, que escolheria algumas pessoas a quem transmiti-las (“revelá- las”). As normas costumeiras são criadas por força de hábitos sociais reiterados, não se podendo identificar uma vontade que as estabelecem. Por fim, as normas positivas são aquelas criadas por força de uma decisão, individual ou coletiva. O direito contemporâneo torna-se positivo recentemente. Um marco dessa passagem é a Revolução Francesa, que traz a noção de que o poder jurídico emana do povo, sendo exercido por representantes e pelo Estado. A manifestação máxima desse poder é a norma jurídica, especialmente na forma da lei, mas também na forma de contratos e sentenças. O direito pós Revolução Francesa é um direito criado por força de decisões estatais (a lei e a sentença de modo direto; o contrato de modo indireto). Ele torna-se positivo, portanto. Cumpre notar que cada nova decisão que cria uma nova norma jurídica (positiva), para ser aceita, deve derivar de outras decisões que criaram previamente outras normas jurídicas, as quais conferem autoridade para a nova criação. Falar de direito positivo, pois, significa falar de uma teia de decisões que são pressupostas para a positivação de uma nova norma. Assim, para que o juiz possa criar uma sentença, antes já foram tomadas decisões que criaram as leis que lhe deram competência e fundamentos; tais leis, por outro lado, pressupõem outras decisões que criaram outras normas que possibilitaram sua existência. O fenômeno jurídico transforma-se numa constante produção de decisões que criam normas. Podemos, inclusive, afirmar que esse direito transformou-se de uma praxis em uma poiesis. Aristóteles classificou a ação humana com os termos acima, adotando o critério de analisar o resultado ou o fim dessa ação. A praxis é aquela modalidade de ação cujo resultado é um “bem” (no sentido valorativo do termo). A poiesis é aquela modalidade de ação cujo resultado é um produto, elaborado durante a ação. Se um conjunto de alunos se reúne para reivindicar, por meio de um abaixo-assinado, um direito da sala, essa ação não tem como resultado o documento em si, mas a busca de um “bem” por meio desse instrumento. Trata-se de praxis. Quando uma pessoa resolve fazer um bolo, o resultado de sua ação é o alimento finalizado, tratando-se, portanto, de poiesis. A classificação aristotélica da praxis também especifica o “bem” buscado pela ação. Quando se busca um bem individual, ele chama a ação de ética; quando se busca um bem coletivo, a ação é chamada de política. O direito corresponderia às normas derivadas da ação política que especificam, limitam, o espaço ético de cada indivíduo, dentro da cidade. Seria, portanto, uma modalidade de praxis. Com a positivação do direito, ele transformar-se-ia, hoje, em uma poiesis. A ação jurídica realizada pelo profissional do direito deixa de preocupar-se, fundamentalmente, com o “bem”, e passa a centrar-se no processo de produção das decisões que criam as normas. Pensando no exemplo do abaixo-assinado, imaginemos uma situação em que uma sala de aula se especializasse na elaboração desses documentos. Toda a turma passaria a fazer, imprimir e distribuir textos de abaixo-assinados para outras salas de aula. Para essa turma, o documento em si transformar-se-ia no objetivo de sua ação; essa ação, portanto, de praxis tornar-se-ia poiesis. Pois é exatamente isso o que ocorreu com o direito. Os profissionais especializaram-se de tal modo na elaboração das chamadas “peças processuais” (note-se o termo “peça”, dando a entender que algo será montado ou produzido), que sua atividade cotidiana pode ser reduzida à mecânica produção desses documentos. Se voltarmos à praxis da Antiguidade, notaremos que havia uma condição absoluta para que um ser humano a praticasse: ele deveria ser minimamente virtuoso. A ação fundamental da praxis é a política. Somente as pessoas mais virtuosas de uma cidade podem participar dessa ação e, por consequência, criar o direito. Conforme o regime de governo, modifica-se a abrangência de pessoas virtuosas: democracia (com abrangência máxima, pois considerava-se que todos os cidadãos, cerca de 10 a 20% das pessoas de uma cidade, eram virtuosos o suficiente para participarem da política), aristocracia (somente alguns cidadãos são virtuosos o suficiente) e monarquia (apenas uma pessoa possui virtudes suficientes para criar as normas). Se, na Antiguidade grega,
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