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Uma Visita de Alcebíades, de Machado de Assis 
 
Fonte: 
ASSIS, Machado de. Obra Completa. Rio de Janeiro : Nova Aguilar 1994. v. II. 
 
Texto proveniente de: 
A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro <http://www.bibvirt.futuro.usp.br> 
A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo 
Permitido o uso apenas para fins educacionais. 
 
Texto-base digitalizado por: 
Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística 
(http://www.cce.ufsc.br/~nupill/literatura/literat.html) 
 
Este material pode ser redistribuído livremente, desde que não seja alterado, e que as 
informações acima sejam mantidas. Para maiores informações, escreva para 
<bibvirt@futuro.usp.br>. 
 
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Se você quer ajudar de alguma forma, mande um e-mail para <bibvirt@futuro.usp.br> e 
saiba como isso é possível. 
 
 
 
Uma visita de Alcebíades 
Carta do desembargador X... ao chefe de polícia da Corte 
 
Corte, 20 de setembro de 1875. 
Desculpe V. Ex.ª o tremido da letra e o desgrenhado do estilo; entendê-los-á daqui a pouco. 
Hoje, à tardinha, acabado o jantar, enquanto esperava a hora do Cassino, estirei-me no sofá 
e abri um tomo de Plutarco. V. Ex.ª, que foi meu companheiro de estudos, há de lembrar-se 
que eu, desde rapaz, padeci esta devoção do grego; devoção ou mania, que era o nome que 
V. Ex.ª lhe dava, e tão intensa que me ia fazendo reprovar em outras disciplinas. Abri o 
tomo, e sucedeu o que sempre se dá comigo quando leio alguma coisa antiga: transporto-
me ao tempo e ao meio da ação ou da obra. Depois de jantar é excelente. Dentro de pouco 
acha-se a gente numa via romana, ao pé de um pórtico grego ou na loja de um gramático. 
Desaparecem os tempos modernos, a insurreição da Herzegovina, a guerra dos carlistas, a 
rua do Ouvidor, o circo Chiarini. Quinze ou vinte minutos de vida antiga, e de graça. Uma 
verdadeira digestão literária. 
Foi o que se deu hoje. A página aberta acertou de ser a vida de Alcibíades. Deixei-me ir ao 
sabor da loqüela ática; daí a nada entrava nos jogos olímpicos, admirava o mais guapo dos 
atenienses, guiando magnificamente o carro, com a mesma firmeza e donaire com que sabia 
reger as batalhas, os cidadãos e os próprios sentidos. Imagine V. Ex.ª se vivi! Mas, o 
moleque entrou e acendeu o gás; não foi preciso mais para fazer voar toda a arqueologia da 
minha imaginação. Atenas volveu à história, enquanto os olhos me caíam das nuvens, isto 
é, nas calças de brim branco, no paletó de alpaca e nos sapatos de cordovão. E então refleti 
comigo: 
- Que impressão daria ao ilustre ateniense o nosso vestuário moderno? 
Sou espiritista desde alguns meses. Convencido de que todos os sistemas são puras 
niilidades, resolvi adotar o mais recreativo deles. Tempo virá em que este não seja só 
recreativo, mas também útil à solução dos problemas históricos; é mais sumário evocar o 
espírito dos mortos, do que gastar as forças críticas, e gastá-las em pura perda, porque não 
há raciocínio nem documento que nos explique melhor a intenção de um ato do que o 
próprio autor do ato. E tal era o meu caso desta noite. Conjeturar qual fosse a impressão de 
Alcibíades era despender o tempo, sem outra vantagem, além do gosto de admirar a minha 
própria habilidade. Determinei, portanto, evocar o ateniense; pedi-lhe que comparecesse em 
minha casa, logo, sem demora. 
E aqui começa o extraordinário da aventura. Não se demorou Alcibíades em acudir ao 
chamado; dois minutos depois estava ali, na minha sala, perto da parede; mas não era a 
sombra impalpável que eu cuidara ter evocado pelos métodos da nossa escola; era o próprio 
Alcibíades, carne e osso, vero homem, grego autêntico, trajado à antiga, cheio daquela 
gentileza e desgarre com que usava arengar às grandes assembléias de Atenas, e também, 
um pouco, aos seus pataus. V. Ex.ª, tão sabedor da história, não ignora que também houve 
pataus em Atenas; sim, Atenas também os possuiu, e esse precedente é uma desculpa. Juro 
a V. Ex.ª que não acreditei; por mais fiel que fosse o testemunho dos sentidos, não podia 
acabar de crer que tivesse ali, em minha casa, não a sombra de Alcibíades, mas o próprio 
Alcibíades redivivo. Nutri ainda a esperança de que tudo aquilo não fosse mais do que o 
efeito de uma digestão mal rematada, um simples eflúvio do quilo, através da luneta de 
Plutarco; e então esfreguei os olhos, fitei-os, e... 
- Que me queres? perguntou ele. 
Ao ouvir isto, arrepiaram-se-me as carnes. O vulto falava e falava grego, o mais puro ático. 
Era ele, não havia duvidar que era ele mesmo, um morto de vinte séculos, restituído à vida, 
tão cabalmente como se viesse de cortar agora mesmo a famosa cauda do cão. Era claro 
que, sem o pensar, acabava eu de dar um grande passo na carreira do espiritismo; mas, ai de 
mim! não o entendi logo, e deixei-me ficar assombrado. Ele repetiu a pergunta, olhou em 
volta de si e sentou-se numa poltrona. Como eu estivesse frio e trêmulo (ainda o estou 
agora) ele que o percebeu, falou-me com muito carinho, e tratou de rir e gracejar para o fim 
de devolver-me o sossego e a confiança. Hábil como outrora! Que mais direi a V. Ex.ª? No 
fim de poucos minutos conversávamos os dois, em grego antigo, ele repotreado e natural, 
eu pedindo a todos os santos do céu a presença de um criado, de uma visita, de uma 
patrulha, ou, se tanto fosse necessário, - de um incêndio. 
Escusado é dizer a V. Ex.ª que abri mão da idéia de o consultar acerca do vestuário 
moderno; pedira um espectro, não um homem "de verdade", como dizem as crianças. 
Limitei-me a responder ao que ele queria; pediu-me notícias de Atenas, dei-lhas; disse-lhe 
que ela era enfim a cabeça de uma só Grécia, narrei-lhe a dominação muçulmana, a 
independência, Botzaris, lord Byron. O grande homem tinha os olhos pendurados da minha 
boca; e, mostrando-me admirado de que os mortos lhe não houvessem contado nada, 
explicou-me que à porta do outro mundo afrouxavam muito os interesses deste. Não vira 
Botzaris nem lord Byron, - em primeiro lugar, porque é tanta e tantíssima a multidão de 
espíritos, que estes se fazem naturalmente desencontrados; em segundo lugar, porque eles 
lá congregam-se, não por nacionalidades ou outra ordem, senão por categorias de índole, 
costume e profissão: assim é que ele, Alcibíades, anda no grupo dos políticos elegantes e 
namorados, com o duque de Buckingham, o Garrett, o nosso Maciel Monteiro, etc. Em 
seguida pediu-me notícias atuais; relatei-lhe o que sabia, em resumo; falei-lhe do 
parlamento helênico e do método alternativo com que Bulgaris e Comondouros, estadistas 
seus patrícios, imitam Disraeli e Gladstone, revezando-se no poder, e, assim como estes, a 
golpes de discurso. Ele, que foi um magnífico orador, interrompeu-me: 
- Bravo, atenienses! 
Se entro nestas minúcias é para o fim de nada omitir do que possa dar a V. Ex.ª o 
conhecimento exato do extraordinário caso que lhe vou narrando. Já disse que Alcibíades 
escutava-me com avidez; acrescentarei que era esperto e arguto; entendia as coisas sem 
largo dispêndio de palavras. Era também sarcástico; ao menos assim me pareceu em um ou 
dois pontos da nossa conversação; mas no geral dela, mostrava-se simples, atento, correto, 
sensível e digno. E gamenho, note V. Ex.ª, tão gamenho como outrora; olhava de soslaio 
para o espelho, como fazem as nossas e outras damas deste século, mirava os borzeguins, 
compunha o manto, não saía de certas atitudes esculturais. 
- Vá, continua, dizia-me ele, quando eu parava de lhe dar notícias. 
Mas eu não podia mais. Entrado no inextricável, no maravilhoso, achava tudo possível, não 
atinava por que razão, assim, como ele vinha ter comigo ao tempo, não iria eu ter com ele à 
eternidade. Esta idéia gelou-me. Para um homem que acabou de digerir o jantar e aguarda a 
hora do Cassino, a morte é o último dos sarcasmos. Se pudessefugir... Animei-me: disse-
lhe que ia a um baile. 
- Um baile? Que coisa é um baile? 
Expliquei-lho. 
- Ah! ver dançar a pírrica! 
- Não, emendei eu, a pírrica já lá vai. Cada século, meu caro Alcibíades, muda de danças 
como muda de idéias. Nós já não dançamos as mesmas coisas do século passado; 
provavelmente o século XX não dançará as deste. A pírrica foi-se, com os homens de 
Plutarco e os numes de Hesíodo. 
- Com os numes? 
Repeti-lhe que sim, que o paganismo acabara, que as academias do século passado ainda 
lhe deram abrigo, mas sem convicção, nem alma, que as mesmas bebedeiras arcádicas, 
Evoé! padre Bassareu! 
Evoé! etc. 
honesto passatempo de alguns desembargadores pacatos, essas mesmas estavam curadas, 
radicalmente curadas. De longe em longe, acrescentei, um ou outro poeta, um ou outro 
prosador alude aos restos da teogonia pagã, mas só o faz por gala ou brinco, ao passo que a 
ciência reduziu todo o Olimpo a uma simbólica. Morto, tudo morto. 
- Morto Zeus? 
- Morto. 
- Dionisos, Afrodita?... 
- Tudo morto. 
O homem de Plutarco levantou-se, andou um pouco, contendo a indignação, como se 
dissesse consigo, imitando o outro: - Ah! se lá estou com os meus atenienses! - Zeus, 
Dionisos, Afrodita... murmurava de quando em quando. Lembrou-me então que ele fora 
uma vez acusado de desacato aos deuses e perguntei a mim mesmo donde vinha aquela 
indignação póstuma, e naturalmente postiça. Esquecia-me, - um devoto do grego! - 
esquecia-me que ele era também um refinado hipócrita, um ilustre dissimulado. E quase 
não tive tempo de fazer esse reparo, porque Alcibíades, detendo-se repentinamente, 
declarou-me que iria ao baile comigo. 
- Ao baile? repeti atônito. 
- Ao baile, vamos ao baile. 
Fiquei aterrado, disse-lhe que não, que não era possível, que não o admitiriam, com aquele 
trajo; pareceria doido; salvo se ele queria ir lá representar alguma comédia de Aristófanes, 
acrescentei rindo, para disfarçar o medo. O que eu queria era deixá-lo, entregar-lhe a casa, e 
uma vez na rua, não iria ao Cassino, iria ter com V. Ex.ª. Mas o diabo do homem não se 
movia; escutava-me com os olhos no chão, pensativo, deliberante. Calei-me; cheguei a 
cuidar que o pesadelo ia acabar, que o vulto ia desfazer-se, e que eu ficava ali com as 
minhas calças, os meus sapatos e o meu século. 
- Quero ir ao baile, repetiu ele. Já agora não vou sem comparar as danças. 
- Meu caro Alcibíades, não acho prudente um tal desejo. Eu teria certamente a maior honra, 
um grande desvanecimento em fazer entrar no Cassino, o mais gentil, o mais feiticeiro dos 
atenienses; mas os outros homens de hoje, os rapazes, as moças, os velhos... é impossível. 
- Por quê? 
- Já disse; imaginarão que és um doido ou um comediante, porque essa roupa... 
- Que tem? A roupa muda-se. Irei à maneira do século. Não tens alguma roupa que me 
emprestes? 
Ia a dizer que não; mas ocorreu-me logo que o mais urgente era sair, e que uma vez na rua, 
sobravam-me recursos para escapar-lhe, e então disse-lhe que sim. 
- Pois bem, tornou ele levantando-se, irei à maneira do século. Só peço que te vistas 
primeiro, para eu aprender e imitar-te depois. 
Levantei-me também, e pedi-lhe que me acompanhasse. Não se moveu logo; estava 
assombrado. Vi que só então reparara nas minhas calças brancas; olhava para elas com os 
olhos arregalados, a boca aberta; enfim, perguntou por que motivo trazia aqueles canudos 
de pano. Respondi que por maior comodidade; acrescentei que o nosso século, mais 
recatado e útil do que artista, determinara trajar de um modo compatível com o seu decoro 
e gravidade. Demais nem todos seriam Alcibíades. Creio que o lisonjeei com isto; ele sorriu 
e deu de ombros. 
- Enfim! 
Seguimos para o meu quarto de vestir, e comecei a mudar de roupa, às pressas. Alcibíades 
sentou-se molemente num divã, não sem elogiá-lo, não sem elogiar o espelho, a palhinha, 
os quadros. - Eu vestia-me, como digo, às pressas, ansioso por sair à rua, por meter-me no 
primeiro tílburi que passasse... 
- Canudos pretos! exclamou ele. 
Eram as calças pretas que eu acabava de vestir. Exclamou e riu, um risinho em que o 
espanto vinha mesclado de escárnio, o que ofendeu grandemente o meu melindre de 
homem moderno. Porque, note V. Ex.ª ainda que o nosso tempo nos pareça digno de crítica, 
e até de execração, não gostamos de que um antigo venha mofar dele às nossas barbas. Não 
respondi ao ateniense; franzi um pouco o sobrolho e continuei a abotoar os suspensórios. 
Ele perguntou-me então por que motivo usava uma cor tão feia... 
- Feia, mas séria, disse-lhe. Olha, entretanto, a graça do corte, vê como cai sobre o sapato, 
que é de verniz, embora preto, e trabalhado com muita perfeição. 
E vendo que ele abanava a cabeça: 
- Meu caro, disse-lhe, tu podes certamente exigir que o Júpiter Olímpico seja o emblema 
eterno da majestade: é o domínio da arte ideal, desinteressada, superior aos tempos que 
passam e aos homens que os acompanham. Mas a arte de vestir é outra coisa. Isto que 
parece absurdo ou desgracioso é perfeitamente racional e belo, - belo à nossa maneira, que 
não andamos a ouvir na rua os rapsodos recitando os seus versos, nem os oradores os seus 
discursos, nem os filósofos as suas filosofias. Tu mesmo, se te acostumares a ver-nos, 
acabarás por gostar de nós, porque... 
- Desgraçado! bradou ele atirando-se a mim. 
Antes de entender a causa do grito e do gesto, fiquei sem pinga de sangue. A causa era uma 
ilusão. Como eu passasse a gravata à volta do pescoço e tratasse de dar o laço, Alcibíades 
supôs que ia enforcar-me, segundo confessou depois. E, na verdade, estava pálido, trêmulo, 
em suores frios. Agora quem se riu fui eu. Ri-me, e expliquei-lhe o uso da gravata e notei 
que era branca, não preta, posto usássemos também gravatas pretas. Só depois de tudo isso 
explicado é que ele consentiu em restituir-ma. Atei-a enfim, depois vesti o colete. 
- Por Afrodita! exclamou ele. És a coisa mais singular que jamais vi na vida e na morte. 
Estás todo cor da noite - uma noite com três estrelas apenas - continuou apontando para os 
botões do peito. O mundo deve andar imensamente melancólico, se escolheu para uso uma 
cor tão morta e tão triste. Nós éramos mais alegres; vivíamos... 
Não pôde concluir a frase; eu acabava de enfiar a casaca, e a consternação do ateniense foi 
indescritível. Caíram-lhe os braços, ficou sufocado, não podia articular nada, tinha os olhos 
cravados em mim, grandes, abertos. Creia V. Ex.ª que fiquei com medo, e tratei de apressar 
ainda mais a saída. 
- Estás completo? perguntou-me ele. 
- Não: falta o chapéu. 
- Oh! venha alguma coisa que possa corrigir o resto! tornou Alcibíades com voz suplicante. 
Venha, venha. Assim pois, toda a elegância que vos legamos está reduzida a um par de 
canudos fechados e outro par de canudos abertos (e dizia isto levantando-me as abas da 
casaca), e tudo dessa cor enfadonha e negativa? Não, não posso crê-lo! Venha alguma coisa 
que corrija isso. O que é que, falta, dizes tu? 
- O chapéu. 
- Põe o que te falta, meu caro, põe o que te falta. 
Obedeci; fui dali ao cabide, despendurei o chapéu, e pu-lo na cabeça. Alcibíades olhou para 
mim, cambaleou e caiu. Corri ao ilustre ateniense, para levantá-lo, mas (com dor o digo) 
era tarde; estava morto, morto pela segunda vez. Rogo a V. Ex.ª se digne de expedir suas 
respeitáveis ordens para que o cadáver seja transportado ao necrotério, e se proceda ao 
corpo de delito, relevando-me de não ir pessoalmente à casa de V. Ex.ª agora mesmo (dez 
da noite) em atenção ao profundo abalo por que acabo de passar, o que aliás farei amanhã 
de manhã, antes das oito. 
 
FIM