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Marcas do corpo, marcas de podal .,,1 .. , Diz-se que corpos carregam marcas. Poderíamos, cntno, 1 pcrgunr:u: onde das se inscrevem? Na pele, nos pelos, nas for- mas, nos traços, nos gestos? O que elas "dizem" dos corpo~~ Que significam? São tangíveis, palpéÍvcis, físicas? Exibem-se F.tciJ .. mente, à espera de serem reconhecidas? Ou se insinuam, suge .. rindo, qualificando, nomeando? HJ corpos "não-marcadns"? Elas, as marcas, existem, de fato? Ou são uma invençâ() do olhar do otmo? Hoje, como antes , a determinação d_os lugares sociais ou das posições dos sujeitos no interior de um grupo é referida n seus corpos. Ao longo dos tempos, os sujeitos vêm sendo indi- ciados, classificados, ordenados, hierarquizados c definidos pela aparência de seus corpos; a partir dos padrões c referência!!, das normas, valores e ideais da cultura. Então, os corpos são o que são na cultura. A cor da pele ou dos cabelos; o formato dos olhos, do nariz ou da boca; a presença da vagina ou do pênis: o tamanho das mãos, a redondeza das ancas e dos seios são, sempre, significados culturalmente c é assim que se tornam (ou não) nzarcaJ de raça, de gênero, de etnia, até mesmo de classe e de nacionalidade. Podem valer mais ou valer menos, 75 pu Podem ser decisivos p;Ha dizer do lugar social de um sujc iro, l• ou podem ser irrelevantes, sem qualquer validade para o siste- ma classificnório de cerro grupo cu I rural. C;uacrerísricas dos corpos significadas como marcas pela cu ltu ra distinguem su- jeitose se constituem cm marcJs de poder. Enrrc ranras marcas, ao longo dos séculos, a maioria das lc;>_çiedadcs vem estabelecendo a di\'isão masculino/ feminino çg_rpp uma divisão primordial. Cma divisão usualmente com- preendi&\ como primeira, origin;iria ou esscnóal c, quase sem- pre, relacionada ao corpo. l~ u1~1_ ~~1gano, comudo, supor que Q m~_cf<) como pensamos o corpo c a forma como, a partir de sua materiaJidadc, "deduzimos'' identidades de gênero c sexuais seja generaliz <"Í.n~ l para qualquer cultura, para qualquer rcmpo c l~g~_r. A idcnridadc sex ual rem de ser pensada "como enra iza- da historicamente" , diz Linda Nicholson (2000, p. 15). Preci- samos esrar <ttcntos para o carátcr específico (c também transi- tório) do sistema de crenças com o qual operamos; precisamos nos dar conta de que os corpos vêm sendo ''lidos'' ou compre- endidos de formas distintas em diferentes culturas, de que o modo como a distinçâo masculino/feminino vem sendo enten- dida diverge c se modifica histórica e cu lturalmente. ~o tempo cm que a B.íblia era a ''fonte da autoridade", era no texto sagrado que se buscava :1. exp licação sobre o relacio- namento entre rnulhcrcs c homens c sobre qualquer dife- ren ça percebida entre eles. Nesse tempo, o corpo tinha menos importância. Posteriormente, no entalHo, ele ganhou um papel prirnordial- o corpo se tornou cawrz cju:;tijicativa das difcren• ças. ''De um sinal ou marca da disrínç:ío masculino/feminino [u cuactcrísricas] passaram a ser sua ca usa, aqui lo que dá origem", allrrna ::-\icholson (2000, p.] 8).Tais mudanças não são banni11: elas denotam profundas c relevantes transformações nas form;ls de dar significado ao que representa ser homem ou mulher em dcrenninada sociedade, elas sugerem mudanças nas suas rela- ções c, portanto , nas formas como o poder se exercita . Até o início do século XIX. confórme conta Laqueur, per- sistira o modelo sexual que hierarquizava os sujeitos ao longo de um ünico eixo, cujo te/os era o masculino; portanto, enten- dia-se que os corpos de mulheres c de homens diferiam em "graus'' de perfeição. As exp li cações da vida sexua l apoiavam- se na idéia de que as mulheres tinharn, "dentro de seu corpo", os rnesmos ôrgãos genitais que os homens tinham externamen- te. Em outras palavras, "as mulh eres eram essencialmente ho- mens nos quais uma f1lta de calor \'i ta l -- de perfeição- havia resultad o na retenção, interna, de estruturas que nos machos eram ,·isíveis'' (L·\C~LTCR, 1990, p. 4). í\ subst iw ição desse mode- lo (de urn ünico sexo) pelo modelo de dois sexos oposros, que é o modelo que até hoje prevalece, tem de ser entend ida como arti- culada a mudanças epistemológicas c políticas. O discurso sobre o corpo c sobre a sexualidade muda na medida un que o corpo n5o é mais comprc.endido como "um 77 : I \ ' ' ' · ... , ... , .... ' ' ~-' .. ' ~ÍÇ!.Ç)COSJE<? de uma ordem maior". A amiga concepção, que .~ Ugava a experiência sexual humana à realidade metafísica c à ordem social, cede espaço à ourra, que permitid desvincular o éorpo desse am plo contexto c, ao mesmo tempo, irá atribuir ao ~exo uma centralidade nunca vista. Experimenta-se uma trans- fo.rmação de paradigmas. Formulações filosóficas, religiosas c t~óricas ligadas ao Ilumin ismo; novos arranjos entre as classes SQciais decorren rcs da Revolução Francesa e do conservadoris- mo pós-revolucionário; mudaJ1Ç1S nas relac;õcs entre homens e mulheres, vinculadas ao industrialismo, à divisão sexual do tra- balho, bem como às idéias de carátcr feminista então cm circu- lação, são algumas das condiçócs que possibilitam essa mudan- ça de paradigmas. Mas, como aflrma Laqueur ( 1990, p. ll ), ''nenhuma dessas coisas provocou a construção de um novo corpo seX:uado. Em vez disso, a reconstrução do corpo é, ela própria, intrínseca a cada um desses desenvolvimentos". Portanto, é pos- sível dizer que novos discursos, outra retórica, outra epistcme se instalam c, nessa nova formação discursiva, a sexualidade passa ~l ganhar centralidade na compreensão e na org;1nizaçác) da ~~)ciedade. Por certo o surgimento desse novo modelo não sig- nificou o completo rechaço do anterior; por um largo tempo, travaram-se di sputas em torno do significado atribuído aos corpos, ~l sexualidade c à existência de homens c mulheres. Organizados politicamente, os estados passaram a se pre- ocupar, cada vez mais, com o controle de sua população, com medidas que garantissem a vida e a produtividade de seu povo 78 c se voltaram, então, para a disciplinarização e regulaçlo d. família, da reprodução c das pdricas sexuais. Nas décadu fin~_is_do século XIX, homens vitorianos, médicos e tamb4m filósofos, moralistas c pensadores flzem "descobertas", definiç001 e classiflcaçóes sobre os corpos de homens e mulheres. Suas llrO• clamações tem express ivos e persistentes efeitos de verdade:, A partir de seu olhar "aurorizado", diferenças entre sujcitos.c práticas sexuais são inapclavelmcnrc estabelecidas. Não ~ de: estranhar, pois, que a linguagem c a ótica empregadas em tai11 definições sejam marcadamcnrc masculinas; que as mulheres se- jam concebidas como portadoras de uma sexualidade ambígua, escorregadia c potencialmente perigosa; que o comportamento das classes média c alta dos grupos hr::tncos cbs sociedades urba- nas ocidentais tenha se constituído na referência para estabele- cer as práticas moralmente apropriadas ou higien icamente sãs. Tipologias c relatos de casos, classificações c minuciosas hierar- quias caracterizam os estudos da nascente sexologia. Busca-se, tenazmente, conhecer, explicar, identificar c também classificar, dividir, regrar c disciplinar a sexualidade. Produzem-se discursos carregados da autoridade da ciência. Discursos que se confron- tam ou se combinam com os da igreja, da moral c da lei. Tudo isso permite dizer, como faz Judith Butler, que os discursos "habitam corpos", que "eles se acomodam em cor- pos" ou, ainda mais contundentemente, que "os corpos, na ver- dade, carregam discursos como pane de seu próprio sangue" 79 (Btri'LERem entrevista a P Rli\S c ~v1 F I]ER, 2002, p. 163). Ponan-~- ·to; antes de pretender, simplcsmcnrc, '' ler'' os gêneros c as 8exttalidadcs com base nos ''dados" dos corpos, parece prudente pensar tais dimensõescomo sendo discursivamcntc inscrit<lS nos .. c()rpose se exp ressando através deles; pensar as formas de gêne- ro e de sexualidade flZendo-sc c transformando-se histórica c culturalmente. Não se pretende, com isso, negar a mareri ,dida- de dos corpos, mas o que secnfuiza são os processos c as prácicas ~iscursivas que fazem com que aspectos dos corpos se conver- tam em ddlnidorcs de gênero e de sexualidade c, como conse- qüênci a, acabem por se converter cm definidores dos sujeitos. Certa premissa, bastante consagrada, costuma afirmar que d<::tcrminado sexo (entendido , nesre caso, em termos de carac- terísticas biológicas) indica determinado gênero c este gênero, por sua vez, indica o desejo ou induz a ele . Essa seqiit~nc i a su- pôc e institui uma çocrência c uma continuidade entre sexo- género-sexualidade. Ela supõe e institui urna conseqüência, da afirma e repete uma norma, apostando numa lógica bin <í ria pela qual o cQxpo, identificado como macho ou como ffJ1)~ ~l, cierermina o gênero (um de dois gêneros possíveis: masculino ou feminino) e leva a urna fcmna de desejo (especiflcamente, o desejo dirigido ao sexo/gênero oposto). Ainda que o corpo possa se transformar, ao longo d:1 vida, espera-se que ral rransforma- çao se dê numa direção ünica e legítima, na medida cm que esse corpo adquire c exibe os atributos próprios de seu gênero s:: c desenvolve sua sexualidade, rendo como alvo o pólo oposto, ou seja, o corpo diferente do seu. Essa scqüênciaserá, contudo, im• perativa? Natural? Jncomest;:ívcl? Que garantias há de que ela ocorra, independente de acidentes, acasos? Não há qualquer garantia. {\ seqli2ncia não é natural nem segura, muito meno1 _jndiscurívcl. !\ ordcrnpodc ser_ncgada, desviada. A seqü!ncia d es liza c escapa. r1a é desafiada c subve rtid a. Para suportá-la ou assegurar seu funcionamento são ncccssürios investimentos con· rinuados e repetidos; não se poupam csfon;os para defende-la. j\ ordem srí parece segura por se asscn ta r sobre o duvido- so pressuposto de que o sexo existe fcHa da cultura e, consc- qüenremcntc, por inscrevê-lo num domínio aparentemente estável c universal, o domínio da natureza . i\ ordem "funcio- na" co mo se os co rpos carregassem uma essência desde o nasci- mento; como se corpos sexuados se constituíssem numa espé- cie de superfície pré-existente, anter ior :1 cultura. Onde encontrar, contudo, esse corpo pré-cultural? Como acessá-lo? ).Ja tela do aparelho de ecograf!a que mostra os primeiros mo- mentos da vida de um f"Cto, teríamos, aflnaJ, um corpo ainda não I ' non1eado pela cultura? J\ resposta red de ser negativa. Não há 1 1 1 ( ,· ~orpo que não seja, desde sempre, diro e feiro na cultura; descri- to, nomeado c reconhecido na linguagern , através dos signos, dos dispositivos, das convenções c das tecnologias. A concepção bin:iria do sexo, tomado como um "dado" que indcpcndc da cultura, impôe, portanto, li mires ú concepção de S I /1 , I senoJ.To e toma a heterossexualidade o destino inexorável, a for- mil compulsória de sexualid~1de. As descontinuidades, as trans- gressões e as subversões que essas três categorias (scxo-gênero- s~dade) podem experimentar são empmradas para o terreno dGl:Íncomprecnsível ou do patológico. Para garantir a coerên- cia, a solidez c a permanência da norma, são realizados investi- mentos- continuados, rciterarivos, repetidos. ]nvcsrimentos produzidos a partir de múltiplas instâncias sociais e culturais: posros em ação pelas famílias, pelas escolas, pelas igrejas, pelas kis, pela n1Ídia ou pelos médicos, com o propósito de aflrmar c reafirmar as normas que regulam os gêneros e as sexualidades. As normas rcgulatórias voltam-se para os corpos para indicar- lhes limites de sanidade, de legitimidade, de moralidade ou de coerência. Daí porque aqueles que escapam ou atravessam es- ses omites ficam marcados como corpos- e sujeitos- ilegítimos, irnorais ou parológicos. Apesar de rodo esse Ím'estimento, os corpos se alteram continuamente. Não somente sua aparência, seus sinais ou seu funcionamento se modificam ao longo do tempo; de.s podem, ainda, ser negados ou rcaf!rrnados, manipulados, ~Jrcrados, trans- formados ou subvertidos.As marcas de gênero e sexualidade, significadas e nomeadas no contexto de um:1 cultura , são tam- bém cambiantes e provisó rias, e estão , indubitavelmente, en- volvidas em relações de poder. Os esforços empreendidos para instituir a no rma nos co rpos (e nos sujeitos) precisam, pois, ser, 82 constantemente, reiterados, renovados e refeitos. Não lúWif __ l111_um núcleo cfctivo e confiável com base no qual a ''norml'f, -· · ~ · . --· - - . ou seja, a consagrada seqüência sexo-gênero-sexualidaclc•pOIJI fluir ou emanar com segurança. O mesmo se pode dizor lll'CI• peit_o dos _movimentos para transgredi-la. Esses também ~upOQQ'l intervenção, deslocamento, ingerência. Em ambas as di~çôca, é no <::Qrpo c através do corp_o ~JU:C os processos de afirmaçãq .OU _!r<!QSgfǧ_~?,o das normas rcgularórias se realizam e se ~x.pr.~• .. s~!P· Assim, os corpos são marcados social, simbólica e material~ ) ( Pl1'' ·, mente- pelo próprio sujeito c pelos outros. É pouco relcvan.t~ ' ~ 1' definir quem tem a iniciativa dessa "marcação" ou quais su~ intenções, o que importa é examinar como ocorrem esf~C$ processos e os seus efeitos. Uma multiplicidade de sinais, códigos c atitudes produ7. referências quefazern sentido no interior da cultura e que dcfl .. nem (pelo menos momentaneamente) quem é o sujeito. A marcação pode ser simbólica ou física, pode ser indicada por uma aliança de ouro, por um véu, pela colocação de um pitr· cing, por uma tatuagem , por uma musculaçáo "trabalhada"1 pela implanraçao de uma prótese ... O que importa é que ela terá, além de efeitos simbólicos, expressão social e material. Ela poderá permitir que o sujeito seja reconhecido como perten· cendo a determinada identidade; que seja incluído em ou excluído de determinados espaços; que seja acolhido ou recu· sado por um grupo; que possa (ou não) usufruir de direitOS! S3 ii 11 . que possa (ou não) rea!iz:n dctc:rrninadas funçôcs ou ocupar determinados postos; que tenha deveres ou privilégios: que seja, em síntese, aprovado, rolcrado ou rcjc ic1do. O argumento se rorna mais co Jwinccnre, se colocannos ifn d em evi ência o corpo de umadrrtg-rjueen . Embora :llguns pos- sam afirmar que esse é um corpo ''excepcional" c, por isso, ina- dequado para pensar os corpos "normais", insisro no exernplo , confiando que ele podeLi fornecer pisras ir11porranrcs para pensarmos os corpos "comuns" c o coridiano. Admgé, funda- menralm cnte, uma figura "pública" , isto é, urna flgura que se apresenr:l c surge como tal apenas no espaço público . Desco- bri-la no seu processo de produç:ío é, pois, uma tarefa difícil. Conduzidos por urna pesquisa realizada por Anna Paula \'en- cato (2002) com rlrrzg-rpt tCI/Jda Ilha de Sanra Catarina, entra- mos no cun<!rim de urna dmg, espaço usualmente interditado aos olhos elos outros. f no camarim que ela "se monta". A ''mon- rari:l' ' comisrc na minuciosa c longa uref:1 de transformação de seu corpo, urn processo que sup0c técnicas c truques (como tuna cuidadosa dcpilaçJo , a dissimulação do pênis ou, ainda, por exemplo, o 11so de seis pares de meias-calças para ''corrigir" as pernas flnas); um processo que continua com uma exube- rante \'Cstimcnta, muira purpurina, sapatos de alras platafor- mas c que se completa com pesada maquiagcm (corretivo, base, batom, muito b!ush, cílios postiços c perucas) . Ao cxe- curar, por ílm, seus últimos !ll OYimcntos , rcrocando o batom ______________________ .......... ou o delineador dos olhos, a "drflg 'baixa' '' - conf(nme uma delas aflrma. I~ nesse momento q11c a drrzgefcrivamcnrc inror- pom, que ela toma corpo, que ehse materiali za c passa a cxisrir como personagem. Fla cst:í, agora, pronra para ganh:t r a rua, para se apresentar num show, a rratHlho, para "fazer'' o cuna- val ou simplesmente para se di\·cnir. Anna Paula reproduz ~~ fala de uma rlmg, j<í montada c maquiada , numa noite de car- navaL tentando convencer a colega que resistia a se produzir, porque "i<1 não rinha mais corpo": ''Corpo? Corpo se f1brica ... cu não E1briquci um agora? '' ( V FNC\TO, 2002, p. 46). A dmg assume, explicitamente, que bbrica seu corpo; cb intervém , esconde, agrega, exp0c. Dclibcradamcme, rea- liza rodos esses aros nJo porque pretenda se fazer passar por uma mulher. Seu propósito não é esse; ela não quer ser con- fundid a ou tomada por uma mulher. A d!'rlg propositalmen- te exagera os traços convencionais do feminino, exorbita c acentua nurcas corporais, comportanH:nros, ati rudes , vcsri- mentas culturalnJctHc idcnrif]cadas como femininas. O que faz pode ser compreendido como .t,JJila paródia de género: ela imita e exagera, aproxima-se, legitima c, ao mesmo tem- po, subvcnc o sujciro que copia. l\'a pós-modernidade, a paródia se constirui não somente numa possibilidade csrérica rccorrcnrc , m~ls ru forma mais efe- riva de crítica, n a medida cm c1uc implica, paradoxalmente, a identificl~':l.o c o dis tanciamento cm relação ao objeto ou ao 85 p SUJJjeito parodiado. Conforme acentuam teóricas e teóricos con- ttmporâneos, não se trata de uma imitaçáo ridicularizadora, ' mas de uma "repetição com distância crítica que permite a I 1 \ indicação irónica da diferença no próprio âmago da scme- \ lhança" (H UTCJ·IEO:\, 1991, p. 47). Para exercer a paródia, I parece neccssúio, pois, cena "afiliação'' ou alguma intimida- decon1 aquilo que se vai parodiar e criticar. A paródia supõe, 'como afirma Judirh Burlcr (1998/99, p. 54), "entrar, ao mcs- ' :mo rcmpo, numa relação de desejo e de ambivalência". Isso pode significar apropriar-se dos códigos ou das marcas da- quele que se parodia para ser capaz de expô-los, de torná-los m?ÍS eviJenres e, assim, subvertê-los, criticá-los e desconstruí- los. Por tudo isso, ~_ paródia pode nos fazer repensar ou pro- blematizarª idéia de originalidade ou de autenticidade- em muitos terrenos. f~ cxatamentc nesse sentido que a f-Igura da drag permite pensar sobre os gêneros e a sexualidade: ela permite questionar a essência ou a autenticidade dessas dimensóes e refletir sobre 1 seu caráter construído. A dmg-queen rcp~te e subverte o fe- ' - . : _mjni~o , utilizando e salientando os códigos culturais que mar- . cam esse gênero. Ao jogar e brincar com esses códigos, ao exagerá-los e exaltá-los, ela leva a perceber sua não-naturali- dade. Sua figura estranha c insólita ajuda a lembrar que as for- !!las co!Tlono.s apresentamos como sujeitos de gênero e de se- xualidade são, sempre, formas inventadas e sancionadas pel~s 86 circunstâncias ct!_IE~lr~~~~ -emque vivem~~· q_~?!.PDS conside .. rados "normaj{ s "comuns'' são, també1n,produzidos atra-:- vés de uma série de artcfaros, acessórios, gestos e atitudes que uma sociedade arbitrariamente estabeleceu como adequados c legítimos. Nós também nos valemos de artifícios e de signos para nos apresentarmos, para dizer quem somos c dizer quem são os ou r r os. Aqueles e ~:qttcbs que rransgri~cm as front~iras de gênero ou de scxualicbdc, q~te as atravessam ou que, de algum modo, embaralham c confundem os sinais considerados "próprios" de cada um desses territórios são marcados como _sujeitos di- _fcrentcs c desviantes. Tal como atravessadores ilegais de terri- tórios , como migrantes clandestinos que escapam do lugar onde deveriam permanecer, esses sujeitos são tratados como infrato- .res e devem sofrer penalidades. Acabam por ser punidos, de alguma forma, ou , na melhor das hipóteses, tornam-se alvo de correção. Possivelmente experimentarão o desprezo ou a su- bordinação. Provavelmente serão rotulados (e isolados) como "minorias". Talvez sejam suportados, desde que encontrem seus guetos e permaneçam circulando nesses espaços restritos. Já que não se ajustaram c desobedeceram às normas que regulam os gêneros e as sexualidades, são considerados transgressores e, então, desvalorizados e desacreditados. Uma série de estraté- gias e técnicas poderá ser acionada para recuperá~los: bus- cando curá-los, por serem doentes, ou salvá~los, por estarem 87 l ~~· • •' I ' em pecado; re-educando-os nos serviços especializados, por padecerem de "desordem" psicológica ou por perrencerem a famílias "desestruturadas"; reabilitando-os cm espaços que os mantenham a salvo das "m;is companhias'' . \1\1'. A coerência e a continuidade supostas ent re sexo-gêne- ~,,,,..1 rE_:~~~~al_idadc servem para sustentar a norn1atiza ~;-i o da_yida dos indivíduos c das sociedades. A fo rma ·'normal" de viver ~s gêr;cros aponta para a constituição da fornu "normal"' de fam ília , a qual, por sua vez, se sustenta sobre a reprodução sexual c, conscqücnrcmcnrc, sob re a heterossexualidade. I~ evidt·nte o cadtcr político dessa premissa, na qual ~1~o há lu- gar para ac1ucles homens c mulheres que, de algum modo, i;;nurbcm a o r~lcn1 o u dela cscapen_l. Os custos cobrados desses sujeitos são altos. Sã~)-_Jhc~ ir!1postos custos morais , po- líticos, materiais , soc ia is, econtJmicos, mesmo que, hoje, a dc- sol;cdiência ~1 essa ordem c o d~sY.io .dela sejam mais vish·eis c at é rncsmo mais ''suportados" do que cm o utros mom entos. Custos que vão além do seu não-reconhecimento culrural. Co mo lembra Judirh Butlcr, são inúm eros os efeitos materi- ais e as privações civis que se arriculam a esse não-reconhecimen- to. A Eunília sancionach pelo Estado exclui gays c lóbicas . Como conseqüência, c1sais constituídos por sujeitos domes- mo sexo cnfrcnram imensas dit}culdadcs de manter a guarda de fi lhos ou sJo sumariamente impedidos de ado rar crianças; aos membros dessas L1mílias ''ilegítimas" usualmente se nega o direito de receber herança do compa nheiro ou companheira ss .i ;: . . t / L ,.II !L . . L . l!iii~ mortos ou de tomar decisões quando ele/ela enfrenta perigo de vida. Essas e outras privações precisariam ser compreendidaa, como sugere Butler, como algo mais do que a mera circulaçlo de atitudes culturais indignas, ou seja, como "uma operaçlo específica da distribuição sexual e da reprodução dos direitos legais c econôm icos" (Bt:rLER, ] 998/99, p. 56). Pcfinir algttérn s:(~fl2<)hom_~·~l1.S?~- ~!:!L~-~!?..~()!J:1~sujcito d~ t;~ n c ro c de sexualidade signifl~_a, _E_<}j~_, _ !:_eses~~~i'.l_J:Il..~l1tc,_ ~<>· md-lo segundo as marcas distintivas de uma cultura- com ---- ·---·----·-----· ,\.. · . " - -· - .. . ... ... -- - -- - · -- - . ··· - -·· · -·-··· -- - -·-·---- ~-- - . · ·- - -~- -- rodas as conscqüê·ncias que esse gcsro acarreta: a atribuição de direitos ou de\'C:n:s, privil égios ou dcsv:Jntagens. Nomeados c classifl c.Hios no interior de urna cultu ra, 9_,~ çorpos se fazem hj_.~~(>ricos c sirua~tos. O s corpos sJo "datados", ganham um va- lor que é sempre trans itório c ci rcunstancial. A significação que se lhes atr ibui é arhirr;ir ia, relacional c é, também, disputada. P<l_ra construir a marcrialidade dos corpos c, ass im, garantir legitimidade aos su jeitos , I}()_!:In_as r~g~_d~l~0-~_i_;_J5_ .Q~~[lero c de sexua lidade precisam ser conrin uamcme rc;_ ir er;l~-a~_~refcitas. Ess;lS normas, como quaisquer outras , s:ío irwcnções sociais. Sendo ass im, corno acontece com quaisquer outras normas, alguns sujciros as rcpctcn1 c reafirmam c outros delas buscam escapar. ' lódos esses movimentos, seja para se aproximar, seja para se afastar cbs convençôcs, seja para rci nvcnrá- la!j, seja para subverré-b.'i , .-;upôcrn i n\'esri me mos. requerem esforços c implicam cusros. Todos esses movim entos s5.o tramadosc funcionam através de redes de poder. . \I ' " ,, ,, .·- ; I ... t • • ' · ~ I ,. ----------------~t~· ----------------~ Referências BUTLER, Judith. ·· 0-lcrmlerHc u dtu r;.tl ". FI Rod:/J,do. '[í ,Hl. :\lici,t ck San to>. Buenosi\ ircs : .\tlll\', r1 'l, l')')í.:l;J(). HUTCHLC)N , Lind.t l'o/u(,; do l'ri• -ittodall!.•ino. Tr.~d.)cn·mc S.donún. Ri o dt: Janeiro: lm:~go, 1 '>'>i. L\.QtT L R. ['hunus. ;\/,t!·iug .<n. llod)' .mrlgewfa(i·om .f!.1'<'t'!ê.< to hntrl C;unbrid- ge e Lortdrcs: l !.Jr\·,J rd l'11 iversir-'· Prcss, 1 <) <)() .!'-:I C I· I Ol.Sl ) N, I in cb . .. I nr,T tnc·u ndo u v/ncn," . Tr;~cl. l.. tti l Fdipc C rti m:H:ics So:Hc .s. /(, ., irr.z Fcutr!os r;·minisiOI.I. \'. 1:\ (2) . 201JO . PRP\ S, Baul;jc; ,\ íFI] LR, !reDe. "Come> os corpus se torrnm rnatc:rt;l: crnrcvisra com }1dith !lu der" '[i'.Jd Sman.t Bor 1\c:o Funde RtTÍ•I<i L• tudo, h ·m n!Útds. v. 1 () ( I ), .:002 . \ T.N C :.\1 ·c), :\ nna J';Jul.t. "Fén •,•t!rlo Cll/11 i i i dr".'!/": cmpou!~tilfft., e pnj;mii.!IICI'.< de rlog 'f ll<'•'ll' <'IIJ t ,·nitâno• X"l' r/;~ ! !/1.1 r/,· ,\, n/111 C11arina. DisscrLl~ : t o (0- ·!esu,ldo e m .-\ ru ropo lngia Soci:d) - Lni,·crsi(Ltdt: h :dc r.d de S;una C11ar ina, 200:2.
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