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13. marcas do corpo, marcas do poder

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Marcas do corpo, marcas de podal 
.,,1 
.. , 
Diz-se que corpos carregam marcas. Poderíamos, cntno, 1 
pcrgunr:u: onde das se inscrevem? Na pele, nos pelos, nas for-
mas, nos traços, nos gestos? O que elas "dizem" dos corpo~~ 
Que significam? São tangíveis, palpéÍvcis, físicas? Exibem-se F.tciJ .. 
mente, à espera de serem reconhecidas? Ou se insinuam, suge .. 
rindo, qualificando, nomeando? HJ corpos "não-marcadns"? 
Elas, as marcas, existem, de fato? Ou são uma invençâ() do 
olhar do otmo? 
Hoje, como antes , a determinação d_os lugares sociais ou 
das posições dos sujeitos no interior de um grupo é referida n 
seus corpos. Ao longo dos tempos, os sujeitos vêm sendo indi-
ciados, classificados, ordenados, hierarquizados c definidos pela 
aparência de seus corpos; a partir dos padrões c referência!!, 
das normas, valores e ideais da cultura. Então, os corpos são o 
que são na cultura. A cor da pele ou dos cabelos; o formato dos 
olhos, do nariz ou da boca; a presença da vagina ou do pênis: o 
tamanho das mãos, a redondeza das ancas e dos seios são, 
sempre, significados culturalmente c é assim que se tornam 
(ou não) nzarcaJ de raça, de gênero, de etnia, até mesmo de 
classe e de nacionalidade. Podem valer mais ou valer menos, 
75 
pu 
Podem ser decisivos p;Ha dizer do lugar social de um sujc iro, 
l• ou podem ser irrelevantes, sem qualquer validade para o siste-
ma classificnório de cerro grupo cu I rural. C;uacrerísricas dos 
corpos significadas como marcas pela cu ltu ra distinguem su-
jeitose se constituem cm marcJs de poder. 
Enrrc ranras marcas, ao longo dos séculos, a maioria das 
lc;>_çiedadcs vem estabelecendo a di\'isão masculino/ feminino 
çg_rpp uma divisão primordial. Cma divisão usualmente com-
preendi&\ como primeira, origin;iria ou esscnóal c, quase sem-
pre, relacionada ao corpo. l~ u1~1_ ~~1gano, comudo, supor que 
Q m~_cf<) como pensamos o corpo c a forma como, a partir de sua 
materiaJidadc, "deduzimos'' identidades de gênero c sexuais seja 
generaliz <"Í.n~ l para qualquer cultura, para qualquer rcmpo c 
l~g~_r. A idcnridadc sex ual rem de ser pensada "como enra iza-
da historicamente" , diz Linda Nicholson (2000, p. 15). Preci-
samos esrar <ttcntos para o carátcr específico (c também transi-
tório) do sistema de crenças com o qual operamos; precisamos 
nos dar conta de que os corpos vêm sendo ''lidos'' ou compre-
endidos de formas distintas em diferentes culturas, de que o 
modo como a distinçâo masculino/feminino vem sendo enten-
dida diverge c se modifica histórica e cu lturalmente. 
~o tempo cm que a B.íblia era a ''fonte da autoridade", era 
no texto sagrado que se buscava :1. exp licação sobre o relacio-
namento entre rnulhcrcs c homens c sobre qualquer dife-
ren ça percebida entre eles. Nesse tempo, o corpo tinha menos 
importância. Posteriormente, no entalHo, ele ganhou um papel 
prirnordial- o corpo se tornou cawrz cju:;tijicativa das difcren• 
ças. ''De um sinal ou marca da disrínç:ío masculino/feminino [u 
cuactcrísricas] passaram a ser sua ca usa, aqui lo que dá origem", 
allrrna ::-\icholson (2000, p.] 8).Tais mudanças não são banni11: 
elas denotam profundas c relevantes transformações nas form;ls 
de dar significado ao que representa ser homem ou mulher em 
dcrenninada sociedade, elas sugerem mudanças nas suas rela-
ções c, portanto , nas formas como o poder se exercita . 
Até o início do século XIX. confórme conta Laqueur, per-
sistira o modelo sexual que hierarquizava os sujeitos ao longo 
de um ünico eixo, cujo te/os era o masculino; portanto, enten-
dia-se que os corpos de mulheres c de homens diferiam em 
"graus'' de perfeição. As exp li cações da vida sexua l apoiavam-
se na idéia de que as mulheres tinharn, "dentro de seu corpo", 
os rnesmos ôrgãos genitais que os homens tinham externamen-
te. Em outras palavras, "as mulh eres eram essencialmente ho-
mens nos quais uma f1lta de calor \'i ta l -- de perfeição- havia 
resultad o na retenção, interna, de estruturas que nos machos 
eram ,·isíveis'' (L·\C~LTCR, 1990, p. 4). í\ subst iw ição desse mode-
lo (de urn ünico sexo) pelo modelo de dois sexos oposros, que é o 
modelo que até hoje prevalece, tem de ser entend ida como arti-
culada a mudanças epistemológicas c políticas. 
O discurso sobre o corpo c sobre a sexualidade muda na 
medida un que o corpo n5o é mais comprc.endido como "um 
77 
: I \ ' ' ' · 
... , 
... , .... ' ' 
~-' 
.. ' 
~ÍÇ!.Ç)COSJE<? de uma ordem maior". A amiga concepção, que 
.~ Ugava a experiência sexual humana à realidade metafísica c à 
ordem social, cede espaço à ourra, que permitid desvincular o 
éorpo desse am plo contexto c, ao mesmo tempo, irá atribuir ao 
~exo uma centralidade nunca vista. Experimenta-se uma trans-
fo.rmação de paradigmas. Formulações filosóficas, religiosas c 
t~óricas ligadas ao Ilumin ismo; novos arranjos entre as classes 
SQciais decorren rcs da Revolução Francesa e do conservadoris-
mo pós-revolucionário; mudaJ1Ç1S nas relac;õcs entre homens e 
mulheres, vinculadas ao industrialismo, à divisão sexual do tra-
balho, bem como às idéias de carátcr feminista então cm circu-
lação, são algumas das condiçócs que possibilitam essa mudan-
ça de paradigmas. Mas, como aflrma Laqueur ( 1990, p. ll ), 
''nenhuma dessas coisas provocou a construção de um novo corpo 
seX:uado. Em vez disso, a reconstrução do corpo é, ela própria, 
intrínseca a cada um desses desenvolvimentos". Portanto, é pos-
sível dizer que novos discursos, outra retórica, outra epistcme se 
instalam c, nessa nova formação discursiva, a sexualidade passa 
~l ganhar centralidade na compreensão e na org;1nizaçác) da 
~~)ciedade. Por certo o surgimento desse novo modelo não sig-
nificou o completo rechaço do anterior; por um largo tempo, 
travaram-se di sputas em torno do significado atribuído aos 
corpos, ~l sexualidade c à existência de homens c mulheres. 
Organizados politicamente, os estados passaram a se pre-
ocupar, cada vez mais, com o controle de sua população, com 
medidas que garantissem a vida e a produtividade de seu povo 
78 
c se voltaram, então, para a disciplinarização e regulaçlo d. 
família, da reprodução c das pdricas sexuais. Nas décadu 
fin~_is_do século XIX, homens vitorianos, médicos e tamb4m 
filósofos, moralistas c pensadores flzem "descobertas", definiç001 
e classiflcaçóes sobre os corpos de homens e mulheres. Suas llrO• 
clamações tem express ivos e persistentes efeitos de verdade:, 
A partir de seu olhar "aurorizado", diferenças entre sujcitos.c 
práticas sexuais são inapclavelmcnrc estabelecidas. Não ~ de: 
estranhar, pois, que a linguagem c a ótica empregadas em tai11 
definições sejam marcadamcnrc masculinas; que as mulheres se-
jam concebidas como portadoras de uma sexualidade ambígua, 
escorregadia c potencialmente perigosa; que o comportamento 
das classes média c alta dos grupos hr::tncos cbs sociedades urba-
nas ocidentais tenha se constituído na referência para estabele-
cer as práticas moralmente apropriadas ou higien icamente sãs. 
Tipologias c relatos de casos, classificações c minuciosas hierar-
quias caracterizam os estudos da nascente sexologia. Busca-se, 
tenazmente, conhecer, explicar, identificar c também classificar, 
dividir, regrar c disciplinar a sexualidade. Produzem-se discursos 
carregados da autoridade da ciência. Discursos que se confron-
tam ou se combinam com os da igreja, da moral c da lei. 
Tudo isso permite dizer, como faz Judith Butler, que os 
discursos "habitam corpos", que "eles se acomodam em cor-
pos" ou, ainda mais contundentemente, que "os corpos, na ver-
dade, carregam discursos como pane de seu próprio sangue" 
79 
(Btri'LERem entrevista a P Rli\S c ~v1 F I]ER, 2002, p. 163). Ponan-~- ·to; antes de pretender, simplcsmcnrc, '' ler'' os gêneros c as 
8exttalidadcs com base nos ''dados" dos corpos, parece prudente 
pensar tais dimensõescomo sendo discursivamcntc inscrit<lS nos 
.. c()rpose se exp ressando através deles; pensar as formas de gêne-
ro e de sexualidade flZendo-sc c transformando-se histórica c 
culturalmente. Não se pretende, com isso, negar a mareri ,dida-
de dos corpos, mas o que secnfuiza são os processos c as prácicas 
~iscursivas que fazem com que aspectos dos corpos se conver-
tam em ddlnidorcs de gênero e de sexualidade c, como conse-
qüênci a, acabem por se converter cm definidores dos sujeitos. 
Certa premissa, bastante consagrada, costuma afirmar que 
d<::tcrminado sexo (entendido , nesre caso, em termos de carac-
terísticas biológicas) indica determinado gênero c este gênero, 
por sua vez, indica o desejo ou induz a ele . Essa seqiit~nc i a su-
pôc e institui uma çocrência c uma continuidade entre sexo-
género-sexualidade. Ela supõe e institui urna conseqüência, da 
afirma e repete uma norma, apostando numa lógica bin <í ria 
pela qual o cQxpo, identificado como macho ou como ffJ1)~ ~l, 
cierermina o gênero (um de dois gêneros possíveis: masculino 
ou feminino) e leva a urna fcmna de desejo (especiflcamente, o 
desejo dirigido ao sexo/gênero oposto). Ainda que o corpo possa 
se transformar, ao longo d:1 vida, espera-se que ral rransforma-
çao se dê numa direção ünica e legítima, na medida cm que 
esse corpo adquire c exibe os atributos próprios de seu gênero 
s:: 
c desenvolve sua sexualidade, rendo como alvo o pólo oposto, ou 
seja, o corpo diferente do seu. Essa scqüênciaserá, contudo, im• 
perativa? Natural? Jncomest;:ívcl? Que garantias há de que ela 
ocorra, independente de acidentes, acasos? Não há qualquer 
garantia. {\ seqli2ncia não é natural nem segura, muito meno1 
_jndiscurívcl. !\ ordcrnpodc ser_ncgada, desviada. A seqü!ncia 
d es liza c escapa. r1a é desafiada c subve rtid a. Para suportá-la ou 
assegurar seu funcionamento são ncccssürios investimentos con· 
rinuados e repetidos; não se poupam csfon;os para defende-la. 
j\ ordem srí parece segura por se asscn ta r sobre o duvido-
so pressuposto de que o sexo existe fcHa da cultura e, consc-
qüenremcntc, por inscrevê-lo num domínio aparentemente 
estável c universal, o domínio da natureza . i\ ordem "funcio-
na" co mo se os co rpos carregassem uma essência desde o nasci-
mento; como se corpos sexuados se constituíssem numa espé-
cie de superfície pré-existente, anter ior :1 cultura. Onde 
encontrar, contudo, esse corpo pré-cultural? Como acessá-lo? 
).Ja tela do aparelho de ecograf!a que mostra os primeiros mo-
mentos da vida de um f"Cto, teríamos, aflnaJ, um corpo ainda não 
I ' 
non1eado pela cultura? J\ resposta red de ser negativa. Não há 1 1 1 ( ,· 
~orpo que não seja, desde sempre, diro e feiro na cultura; descri-
to, nomeado c reconhecido na linguagern , através dos signos, 
dos dispositivos, das convenções c das tecnologias. 
A concepção bin:iria do sexo, tomado como um "dado" que 
indcpcndc da cultura, impôe, portanto, li mires ú concepção de 
S I 
/1 , I 
senoJ.To e toma a heterossexualidade o destino inexorável, a for-
mil compulsória de sexualid~1de. As descontinuidades, as trans-
gressões e as subversões que essas três categorias (scxo-gênero-
s~dade) podem experimentar são empmradas para o terreno 
dGl:Íncomprecnsível ou do patológico. Para garantir a coerên-
cia, a solidez c a permanência da norma, são realizados investi-
mentos- continuados, rciterarivos, repetidos. ]nvcsrimentos 
produzidos a partir de múltiplas instâncias sociais e culturais: 
posros em ação pelas famílias, pelas escolas, pelas igrejas, pelas 
kis, pela n1Ídia ou pelos médicos, com o propósito de aflrmar c 
reafirmar as normas que regulam os gêneros e as sexualidades. 
As normas rcgulatórias voltam-se para os corpos para indicar-
lhes limites de sanidade, de legitimidade, de moralidade ou de 
coerência. Daí porque aqueles que escapam ou atravessam es-
ses omites ficam marcados como corpos- e sujeitos- ilegítimos, 
irnorais ou parológicos. 
Apesar de rodo esse Ím'estimento, os corpos se alteram 
continuamente. Não somente sua aparência, seus sinais ou seu 
funcionamento se modificam ao longo do tempo; de.s podem, 
ainda, ser negados ou rcaf!rrnados, manipulados, ~Jrcrados, trans-
formados ou subvertidos.As marcas de gênero e sexualidade, 
significadas e nomeadas no contexto de um:1 cultura , são tam-
bém cambiantes e provisó rias, e estão , indubitavelmente, en-
volvidas em relações de poder. Os esforços empreendidos para 
instituir a no rma nos co rpos (e nos sujeitos) precisam, pois, ser, 
82 
constantemente, reiterados, renovados e refeitos. Não lúWif 
__ l111_um núcleo cfctivo e confiável com base no qual a ''norml'f, 
-· · ~ · . --· - - . 
ou seja, a consagrada seqüência sexo-gênero-sexualidaclc•pOIJI 
fluir ou emanar com segurança. O mesmo se pode dizor lll'CI• 
peit_o dos _movimentos para transgredi-la. Esses também ~upOQQ'l 
intervenção, deslocamento, ingerência. Em ambas as di~çôca, 
é no <::Qrpo c através do corp_o ~JU:C os processos de afirmaçãq .OU 
_!r<!QSgfǧ_~?,o das normas rcgularórias se realizam e se ~x.pr.~• .. 
s~!P· Assim, os corpos são marcados social, simbólica e material~ ) ( Pl1'' ·, 
mente- pelo próprio sujeito c pelos outros. É pouco relcvan.t~ ' ~ 1' 
definir quem tem a iniciativa dessa "marcação" ou quais su~ 
intenções, o que importa é examinar como ocorrem esf~C$ 
processos e os seus efeitos. 
Uma multiplicidade de sinais, códigos c atitudes produ7. 
referências quefazern sentido no interior da cultura e que dcfl .. 
nem (pelo menos momentaneamente) quem é o sujeito. 
A marcação pode ser simbólica ou física, pode ser indicada por 
uma aliança de ouro, por um véu, pela colocação de um pitr· 
cing, por uma tatuagem , por uma musculaçáo "trabalhada"1 
pela implanraçao de uma prótese ... O que importa é que ela 
terá, além de efeitos simbólicos, expressão social e material. Ela 
poderá permitir que o sujeito seja reconhecido como perten· 
cendo a determinada identidade; que seja incluído em ou 
excluído de determinados espaços; que seja acolhido ou recu· 
sado por um grupo; que possa (ou não) usufruir de direitOS! 
S3 
ii 11 . 
que possa (ou não) rea!iz:n dctc:rrninadas funçôcs ou ocupar 
determinados postos; que tenha deveres ou privilégios: que seja, 
em síntese, aprovado, rolcrado ou rcjc ic1do. 
O argumento se rorna mais co Jwinccnre, se colocannos 
ifn d em evi ência o corpo de umadrrtg-rjueen . Embora :llguns pos-
sam afirmar que esse é um corpo ''excepcional" c, por isso, ina-
dequado para pensar os corpos "normais", insisro no exernplo , 
confiando que ele podeLi fornecer pisras ir11porranrcs para 
pensarmos os corpos "comuns" c o coridiano. Admgé, funda-
menralm cnte, uma figura "pública" , isto é, urna flgura que se 
apresenr:l c surge como tal apenas no espaço público . Desco-
bri-la no seu processo de produç:ío é, pois, uma tarefa difícil. 
Conduzidos por urna pesquisa realizada por Anna Paula \'en-
cato (2002) com rlrrzg-rpt tCI/Jda Ilha de Sanra Catarina, entra-
mos no cun<!rim de urna dmg, espaço usualmente interditado 
aos olhos elos outros. f no camarim que ela "se monta". A ''mon-
rari:l' ' comisrc na minuciosa c longa uref:1 de transformação 
de seu corpo, urn processo que sup0c técnicas c truques (como 
tuna cuidadosa dcpilaçJo , a dissimulação do pênis ou, ainda, 
por exemplo, o 11so de seis pares de meias-calças para ''corrigir" 
as pernas flnas); um processo que continua com uma exube-
rante \'Cstimcnta, muira purpurina, sapatos de alras platafor-
mas c que se completa com pesada maquiagcm (corretivo, 
base, batom, muito b!ush, cílios postiços c perucas) . Ao cxe-
curar, por ílm, seus últimos !ll OYimcntos , rcrocando o batom 
______________________ .......... 
ou o delineador dos olhos, a "drflg 'baixa' '' - conf(nme uma 
delas aflrma. I~ nesse momento q11c a drrzgefcrivamcnrc inror-
pom, que ela toma corpo, que ehse materiali za c passa a cxisrir 
como personagem. Fla cst:í, agora, pronra para ganh:t r a rua, 
para se apresentar num show, a rratHlho, para "fazer'' o cuna-
val ou simplesmente para se di\·cnir. Anna Paula reproduz ~~ 
fala de uma rlmg, j<í montada c maquiada , numa noite de car-
navaL tentando convencer a colega que resistia a se produzir, 
porque "i<1 não rinha mais corpo": ''Corpo? Corpo se f1brica ... 
cu não E1briquci um agora? '' ( V FNC\TO, 2002, p. 46). 
A dmg assume, explicitamente, que bbrica seu corpo; 
cb intervém , esconde, agrega, exp0c. Dclibcradamcme, rea-
liza rodos esses aros nJo porque pretenda se fazer passar por 
uma mulher. Seu propósito não é esse; ela não quer ser con-
fundid a ou tomada por uma mulher. A d!'rlg propositalmen-
te exagera os traços convencionais do feminino, exorbita c 
acentua nurcas corporais, comportanH:nros, ati rudes , vcsri-
mentas culturalnJctHc idcnrif]cadas como femininas. O que 
faz pode ser compreendido como .t,JJila paródia de género: 
ela imita e exagera, aproxima-se, legitima c, ao mesmo tem-
po, subvcnc o sujciro que copia. 
l\'a pós-modernidade, a paródia se constirui não somente 
numa possibilidade csrérica rccorrcnrc , m~ls ru forma mais efe-
riva de crítica, n a medida cm c1uc implica, paradoxalmente, a 
identificl~':l.o c o dis tanciamento cm relação ao objeto ou ao 
85 
p 
SUJJjeito parodiado. Conforme acentuam teóricas e teóricos con-
ttmporâneos, não se trata de uma imitaçáo ridicularizadora, 
' mas de uma "repetição com distância crítica que permite a 
I 
1 \ indicação irónica da diferença no próprio âmago da scme-
\ lhança" (H UTCJ·IEO:\, 1991, p. 47). Para exercer a paródia, 
I 
parece neccssúio, pois, cena "afiliação'' ou alguma intimida-
decon1 aquilo que se vai parodiar e criticar. A paródia supõe, 
'como afirma Judirh Burlcr (1998/99, p. 54), "entrar, ao mcs-
' :mo rcmpo, numa relação de desejo e de ambivalência". Isso 
pode significar apropriar-se dos códigos ou das marcas da-
quele que se parodia para ser capaz de expô-los, de torná-los 
m?ÍS eviJenres e, assim, subvertê-los, criticá-los e desconstruí-
los. Por tudo isso, ~_ paródia pode nos fazer repensar ou pro-
blematizarª idéia de originalidade ou de autenticidade- em 
muitos terrenos. 
f~ cxatamentc nesse sentido que a f-Igura da drag permite 
pensar sobre os gêneros e a sexualidade: ela permite questionar 
a essência ou a autenticidade dessas dimensóes e refletir sobre 
1 seu caráter construído. A dmg-queen rcp~te e subverte o fe-
' - . 
: _mjni~o , utilizando e salientando os códigos culturais que mar-
. cam esse gênero. Ao jogar e brincar com esses códigos, ao 
exagerá-los e exaltá-los, ela leva a perceber sua não-naturali-
dade. Sua figura estranha c insólita ajuda a lembrar que as for-
!!las co!Tlono.s apresentamos como sujeitos de gênero e de se-
xualidade são, sempre, formas inventadas e sancionadas pel~s 
86 
circunstâncias ct!_IE~lr~~~~ -emque vivem~~· q_~?!.PDS conside .. 
rados "normaj{ s "comuns'' são, també1n,produzidos atra-:-
vés de uma série de artcfaros, acessórios, gestos e atitudes que 
uma sociedade arbitrariamente estabeleceu como adequados 
c legítimos. Nós também nos valemos de artifícios e de signos 
para nos apresentarmos, para dizer quem somos c dizer quem 
são os ou r r os. 
Aqueles e ~:qttcbs que rransgri~cm as front~iras de gênero 
ou de scxualicbdc, q~te as atravessam ou que, de algum modo, 
embaralham c confundem os sinais considerados "próprios" 
de cada um desses territórios são marcados como _sujeitos di-
_fcrentcs c desviantes. Tal como atravessadores ilegais de terri-
tórios , como migrantes clandestinos que escapam do lugar onde 
deveriam permanecer, esses sujeitos são tratados como infrato-
.res e devem sofrer penalidades. Acabam por ser punidos, de 
alguma forma, ou , na melhor das hipóteses, tornam-se alvo de 
correção. Possivelmente experimentarão o desprezo ou a su-
bordinação. Provavelmente serão rotulados (e isolados) como 
"minorias". Talvez sejam suportados, desde que encontrem seus 
guetos e permaneçam circulando nesses espaços restritos. Já 
que não se ajustaram c desobedeceram às normas que regulam 
os gêneros e as sexualidades, são considerados transgressores e, 
então, desvalorizados e desacreditados. Uma série de estraté-
gias e técnicas poderá ser acionada para recuperá~los: bus-
cando curá-los, por serem doentes, ou salvá~los, por estarem 
87 
l 
~~· • •' I ' 
em pecado; re-educando-os nos serviços especializados, por 
padecerem de "desordem" psicológica ou por perrencerem a 
famílias "desestruturadas"; reabilitando-os cm espaços que os 
mantenham a salvo das "m;is companhias'' . 
\1\1'. A coerência e a continuidade supostas ent re sexo-gêne-
~,,,,..1 rE_:~~~~al_idadc servem para sustentar a norn1atiza ~;-i o da_yida 
dos indivíduos c das sociedades. A fo rma ·'normal" de viver 
~s gêr;cros aponta para a constituição da fornu "normal"' de 
fam ília , a qual, por sua vez, se sustenta sobre a reprodução 
sexual c, conscqücnrcmcnrc, sob re a heterossexualidade. I~ 
evidt·nte o cadtcr político dessa premissa, na qual ~1~o há lu-
gar para ac1ucles homens c mulheres que, de algum modo, 
i;;nurbcm a o r~lcn1 o u dela cscapen_l. Os custos cobrados 
desses sujeitos são altos. Sã~)-_Jhc~ ir!1postos custos morais , po-
líticos, materiais , soc ia is, econtJmicos, mesmo que, hoje, a dc-
sol;cdiência ~1 essa ordem c o d~sY.io .dela sejam mais vish·eis c 
at é rncsmo mais ''suportados" do que cm o utros mom entos. 
Custos que vão além do seu não-reconhecimento culrural. 
Co mo lembra Judirh Butlcr, são inúm eros os efeitos materi-
ais e as privações civis que se arriculam a esse não-reconhecimen-
to. A Eunília sancionach pelo Estado exclui gays c lóbicas . 
Como conseqüência, c1sais constituídos por sujeitos domes-
mo sexo cnfrcnram imensas dit}culdadcs de manter a guarda 
de fi lhos ou sJo sumariamente impedidos de ado rar crianças; 
aos membros dessas L1mílias ''ilegítimas" usualmente se nega 
o direito de receber herança do compa nheiro ou companheira 
ss 
.i ;: . . t 
/ 
L ,.II !L . . L . l!iii~ 
mortos ou de tomar decisões quando ele/ela enfrenta perigo 
de vida. Essas e outras privações precisariam ser compreendidaa, 
como sugere Butler, como algo mais do que a mera circulaçlo 
de atitudes culturais indignas, ou seja, como "uma operaçlo 
específica da distribuição sexual e da reprodução dos direitos 
legais c econôm icos" (Bt:rLER, ] 998/99, p. 56). 
Pcfinir algttérn s:(~fl2<)hom_~·~l1.S?~- ~!:!L~-~!?..~()!J:1~sujcito d~ 
t;~ n c ro c de sexualidade signifl~_a, _E_<}j~_, _ !:_eses~~~i'.l_J:Il..~l1tc,_ ~<>· 
md-lo segundo as marcas distintivas de uma cultura- com 
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rodas as conscqüê·ncias que esse gcsro acarreta: a atribuição de 
direitos ou de\'C:n:s, privil égios ou dcsv:Jntagens. Nomeados c 
classifl c.Hios no interior de urna cultu ra, 9_,~ çorpos se fazem 
hj_.~~(>ricos c sirua~tos. O s corpos sJo "datados", ganham um va-
lor que é sempre trans itório c ci rcunstancial. A significação que 
se lhes atr ibui é arhirr;ir ia, relacional c é, também, disputada. 
P<l_ra construir a marcrialidade dos corpos c, ass im, garantir 
legitimidade aos su jeitos , I}()_!:In_as r~g~_d~l~0-~_i_;_J5_ .Q~~[lero c de 
sexua lidade precisam ser conrin uamcme rc;_ ir er;l~-a~_~refcitas. 
Ess;lS normas, como quaisquer outras , s:ío irwcnções sociais. 
Sendo ass im, corno acontece com quaisquer outras normas, 
alguns sujciros as rcpctcn1 c reafirmam c outros delas buscam 
escapar. ' lódos esses movimentos, seja para se aproximar, seja 
para se afastar cbs convençôcs, seja para rci nvcnrá- la!j, seja para 
subverré-b.'i , .-;upôcrn i n\'esri me mos. requerem esforços c 
implicam cusros. Todos esses movim entos s5.o tramadosc 
funcionam através de redes de poder. 
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Referências 
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